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Politeísmo crítico

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Os estudos culturais são a tendência mais forte da crítica literária contemporânea, questionando os critérios unívocos de abordagem do artefato "literário" em nome de uma multiplicidade de paradigmas críticos, caracterizados pelo diálogo com diversas áreas das ciências humanas e pela valorização da voz dos excluídos e das minorias políticas.

Sérgio Medeiros

Quem ousará afirmar, hoje, o que é literatura e o que não é literatura? Instigados por esse desafio, mais de 1.300 professores, pesquisadores e estudantes universitários se reuniram em Florianópolis (SC), no último mês de agosto, para debater os rumos da crítica e dos estudos literários no país durante o VI Congresso da Abralic (Associação Brasileira de Literatura Comparada). Teóricos importantes do Brasil, como Silviano Santiago e Roberto Schwartz, e estudiosos estrangeiros de renome, como Susan Buck-Morss e Marjorie Perloff, participaram desse evento que se prolongou por quatro dias e contou com 800 expositores.

As discussões nem sempre foram pacíficas. O próprio tema do congresso, com seu caráter interrogativo - "Literatura Comparada=Estudos Culturais?" -, ensejava desde o início o debate acalorado. Convém recordar alguns fatos, que talvez ajudem a situar melhor os estudos literários no seu "contexto atual". Os estudos estruturalistas, nos anos 60, devotaram-se, na França e alhures, à busca de um possível critério interno para definir o artefato literário. Em nome da "literariedade", isto é, da "essência" da literatura, os estudiosos se dedicaram ao levantamento e à descrição dos procedimentos formais que comprovassem a especificidade das obras do cânone ocidental. Nos anos 70, Tzvetan Todorov, já nessa época um ex-estruturalista, fez um balanço das conquistas da década anterior, que aplicara ao estudo dos objetos artísticos uma "abordagem científica", e anunciou que a oposição até então aceita (ou pressuposta) entre o texto literário e o texto não-literário deveria ser substituída por uma tipologia dos discursos.

A legitimidade dessa posição repousava inicialmente num procedimento muito simples: quando se comparam diferentes textos entre si, considerados literários ou não, percebe-se, segundo Todorov, que determinado tipo de poema, o lírico, e uma prece, por exemplo, obedecem a regras comuns, ao passo que isso não se verifica quando colocamos o mesmo poema ao lado de um romance histórico como Guerra e paz, de Leon Tolstói. Em outras palavras, todo texto "literário" possui parentes "não-literários" que lhe são mais próximos do que os outros textos do cânone. Essa constatação não é original, evidentemente: basta citar um crítico como Northrop Frye, para quem o "nosso universo literário se desenvolveu num universo verbal", o que, todavia, o estudioso da literatura muitas vezes prefere ignorar, fascinado apenas pela ponta do iceberg, que passa a ser considerado o único "objeto" dos estudos literários.

A partir dos anos 80, substituiu-se progressivamente a busca de um critério único, ou interno, para definir o artefato "literário", por uma multiplicação de paradigmas críticos. O objeto "literário" deixou de ser um todo homogêneo (algo que se pudesse definir previamente de uma maneira inequívoca), e o universo verbal pôde assim entrar em cena nos departamentos de letras das universidades, sobretudo das norte-americanas, exigindo novas posturas, novos saberes, novas competências dos professores e pesquisadores.

Deu-se ouvido ao ensinamento de Jacques Derrida, que desde os anos 60 vinha visitando regularmente os Estados Unidos para discutir os fundamentos metafísicos do estruturalismo literário e antropológico: "Um mesmo enunciado pode ser aqui considerado literário, em dada situação ou convenção, e lá como não-literário. É que o signo da literariedade não é uma propriedade intrínseca deste ou daquele evento literário.". Contudo, esse mesmo teórico também alertou: "... às vezes é difícil discernir um texto filosófico de um texto poético ou literário. Mas, para evitar mal-entendidos, eu creio que em situações contextuais claras não apenas se pode mas se deve discernir um discurso filosófico de um discurso poético ou de um discurso literário; aliás, temos à nossa disposição grandes recursos críticos, grandes aparelhos criteriológicos para distinguir um discurso do outro."

Para poder lidar com o "universo verbal", essa proliferação vertiginosa de mensagens que circundam, contaminam, enriquecem e subvertem o antigo artefato "literário" (a ponta do iceberg), o estudioso da literatura estreitou o diálogo com as outras áreas das ciências humanas (filosofia, história, antropologia, sociologia etc.), um procedimento que parece caracterizar certa linha de estudos que, a partir dos anos 80, vem se disseminando pelas Américas sob a denominação de estudos culturais. "O mérito dos estudos culturais é articular as várias áreas do saber", explicou-me o professor Raúl Antelo, presidente da Abralic durante o biênio 96-98. "Uma das conseqüências disso são os ensaios de crítica híbrida, de crítica criativa. Outra conseqüência é o diálogo entre as várias tendências críticas latino-americanas, e posso dizer que a abertura para a América Latina por meio da presença no VI Congresso de pesquisadores argentinos de peso, como Beatriz Sarlo, além de outros chilenos e venezuelanos, foi a marca do atual debate, que de maneira alguma significou simples adesão à onda dos estudos culturais nos Estados Unidos."

Talvez, numa tentativa de síntese provisória ou precária (atualmente, sabemos o quanto é suspeita qualquer tentativa de síntese), ousaria dizer que, no horizonte dos estudos literários atuais, convivem duas tendências principais (pela sua força ideológica): para evitar a fácil oposição entre progressistas e retrógrados (que a esta altura da história esclarece pouca coisa), empregarei as locuções "politeístas literários" e "monoteístas literários". Os primeiros lêem e produzem a literatura (hoje, no ensaio criativo, o crítico se revela também escritor) a partir de parâmetros diversificados, geralmente locais, étnicos, políticos (eles não fingem ignorar o fato de que no Brasil, por exemplo, além do português, são também falados o iorubá e 180 idiomas indígenas); os segundos aferram-se ainda ao critério único, considerado talvez atemporal, eterno, absoluto. Sobre estes, creio não ter no momento algo novo a dizer. No que se refere aos "politeístas", gostaria de mencionar que, entre outras posturas moderadas e extremadas, adotam às vezes atitudes que podem espantar o estudante incauto. A dos pós-ocidentalistas, por exemplo, que são teóricos e críticos que não estão mais preocupados com a densidade das produções artísticas, mas com a diversidade da enunciação: voz dos excluídos e das minorias. "Para os que compartilham esse ponto de vista", esclareceu-me Raúl Antelo, "o que legitima o discurso é o lugar da enunciação. Mas a lógica da enunciação é diabólica - uma minoria sempre surge dentro da minoria e fica, ou considera-se, desatendida...".

Sem pretender exaurir o assunto " estudos culturais", oferecemos a seguir alguns textos lidos em Florianópolis durante o VI Congresso da Abralic, textos que podem colocar o leitor em contato com o debate contemporâneo em torno dos estudos literários e da literatura comparada, a partir de uma perspectiva que, se não é assumidamente culturalista, mostra-se, no entanto, simpática aos "ideais" dos estudos culturais.

Sérgio Medeiros é tradutor professor de literatura na Universidade Federal de Santa Catarina

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