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LITERARIEDADE

quarta-feira, 10 de março de 2010

A teoria da literatura tem como objeto do seu estudo, o que foi denominado por Roman Jakobson de literariedade. Esse conceito caracteriza o que torna diferente um texto literário de um texto de literatura (lato sensu).
Um texto para ser literário, parte de uma elaboração especial da linguagem, utilizando elementos da ficção e da imaginação do autor, a chamada literatura stricto sensu. Essa elaboração especial, constitui o chamado "desvio", que afasta a linguagem literária das ocorrências verbais ordinárias.
Note a transcrição abaixo:


"O sol poente desatava, longa, a sua sombra pelo chão, e protegido por ela - braços largamente abertos, face volvida para os céus, - um soldado descansava.
Descansava... havia três meses.
Morrera no assalto de 18 de julho."
(Euclides da Cunha, Os sertões)


O dito desvio ocorre em dois fatos: um léxico, no emprego do verbo descansar, e um sintático, o uso incomum das reticências. A palavra "morrera", dá significado a "descansava", e as reticências que seguem a ela , operam um corte na frase, responsável pela criação do suspense inicial. Esse arranjo verbal organizado, constitui a literariedade do trecho, tornando-o especificamente literário.
No passado, o apego intransitivo ao texto, vedava as questões de real interesse. Atualmente, a teoria da literatura é aberta a métodos de investigação que valorizam bases sociológicas, antropológicas e psicanalíticas, ou seja, não basta ler, achar bonito, é necessário entender o que se está lendo, inclusive as motivações implícitas ao texto.

Postado por Rúbida Rosa às 7.7.08

SIGNO

terça-feira, 9 de março de 2010

Narra a lenda que Constantino, o Grande, imperador romano, no poder de 306 a 337, teria visto em sonhos, às vésperas da batalha decisiva contra Magêncio para o controle do império de Roma, uma cruz no céu e ouvido alguém pronunciar esta frase: “In hoc signo vinces” (que traduzo: “Com este signo, vencerás”). Ao despertar, o Pontifex maximus ordenou a seus soldados que gravassem, nos seus escudos, aquele signo. Naquele mesmo dia de 312, o imperador sonhador, que , apenas no leito de morte, se tornaria cristão, ganhou a batalha da Ponte Mílvia. Outra versão dá conta de que a visão ocorrera na Gália, quando Constantino estava a caminho de Roma, antes da batalha contra Magêncio. Já uma terceira versão da mesma lenda narra que a visão miraculosa aconteceu para todos os soldados de Constantino, quando os dois exércitos rivais se defrontaram na ponte Mílvia. Nas três versões do milagre, está sempre presente a palavra “signo”, ou o signo “signo”, declinada no ablativo singular latino do substantivo latino neutro signum/signi. Ainda no repertório do signo gravado, recordo que Mensagem, de 1934, único livro de Fernando Pessoa (1888-1935), publicado em vida do Poeta, a que foi atribuído, no concurso “Antero de Quental”, promovido pelo Secretariado de Propaganda Nacional, um decepcionante prêmio de “segunda categoria” (o prêmio de “primeira categoria”, recebeu-o o livro Romaria, de Vasco Reis: quem saberá algo do poemário galardoado?)), inaugura-se com uma epígrafe em latim: “Benedictus Dominus Deus noster qui dedit nobis signum”, que, em vernáculo, verto para : “Bendito seja o Senhor nosso Deus, que nos deu o signo”. Embora a insígnia inaugural, conjugando, no acusativo do singular, o substantivo latino, não tenha levado à vitória quem dela se apropriou, terá, todavia, inaugurado a trajetória literária inexaurível de alguém que se, em vida, não foi considerado o “Supra-Camões”, goza, per omnia saecula saeculorum, de uma fortuna crítica muitíssimo mais vasta do que o império romano, definitivamente mais significativa do que todo o império luso, pois, entre o céu e a terra, entre o sonho e o livro, entre a batalha e a poesia, entre os signos e as coisas, há muito mais signos do que possa imaginar nossa, nem tão vã, semiologia. Destarte, é o signo: surpreendente, ambíguo, plurívoco, imperial, poético. Em ambos os enunciados, tanto na frase esotérica de Mensagem quanto no enunciado cristão do imperador romano, fulgura o significante “signo”, chave, portanto de qualquer leitura das “coisas, que são a mesma da maneira como as entendem aqueles que delas usam, falando ou escrevendo”, como finaliza Fernando Pessoa seu texto de pórtico.

Tão complexa revela-se a noção de signo que o célebre semiólogo italiano Umberto Eco chega a afirmar, com doses de ironia, como é de seu feitio pós-moderno, que “um dos momentos de crise da semiótica contemporânea foi justamente a crise da noção de signo. Afirma-se: ‘o signo não existe’ “. No entanto, ainda segundo o autor de Lector in fabula (1979), não podemos viver fora do círculo dos signos, dado que “encontramo-nos na situação de dever evitar o que Jonathan Swift imaginou para os habitantes da ilha de Laputa, que andavam com um saco contendo os objetos que precisavam nomear. E assim, quando tinham de falar de uma maçã, de uma pena ou de uma caixa, tiravam o objeto do saco. À parte o fato de que estavam, portanto, impossibilitados de falar de elefantes ou de hipopótamos por motivos práticos, veremos mais adiante que também esses personagens estavam, no fundo, usando coisas presentes para indicar coisas ausentes, porque, evidentemente, a maçã que tiravam do saco não devia representar somente aquela maçã, mas todas as maçãs possíveis. E novamente, portanto, havia uma presença que remetia a algo que não estava presente”. Misturando lenda e reflexão semiológica, o professor da Universidade de Bolonha aponta a natureza dupla do signo, de qualquer signo, seja ele verbal, imagético, sonoro, táctil, gustativo...Com efeito, fica claro, em qualquer abordagem sobre o signo, que este é, por sua própria natureza cultural , duplo, visto que se estrutura como presença de algo ausente e como ausência daquilo a que remete. Segundo o semiólogo francês Roland Barthes (1915-1980), o “termo signo, presente em vocabulários bem diferentes (da Teologia à Medicina) e de história muito rica (do Evangelho à Cibernética), é por isto mesmo bastante ambíguo; além disto (...), é preciso uma palavrinha a respeito do campo nocional onde ele ocupa um lugar, aliás flutuante (...). Signo , na verdade, insere-se numa série de termos afins e dessemelhantes, ao sabor dos autores: sinal, índice, ícone, alegoria são os principais rivais do signo”. Concomitantemente e sem se conhecerem (confirmando o que Carl Jung designa, belamente, como “sincronicidade”), o norte-americano Charles Sanders Peirce (1839-1914) e o suíço Ferdinand de Saussure (1857-1913) conceberam, respectivamente, uma semiótica e uma semiologia, em que a categoria do signo funciona como básica. No entanto, o lógico estadunidense e o lingüista genebrino definem, diferentemente, o signo, até por se basearem, para a constituição da nova ciência, por ambos definida como “ciência dos signos”, em heurísticas diversas: Peirce parte da lógica, ao passo que Saussure fundamenta-se na lingüística. Outra marca da diferenciação de perspectiva, semiótica e semiológica, reside no fato de se considerarem como signos não apenas entidades lingüísticas como signos não-verbais. Ao fim e ao cabo, tudo é signo e como falar do signo a não ser por outro signo? Em todas as suas linguagens, o ser humano não escapará de uma instigante tautologia.

De acordo com Peirce, signo é algo que substitui algo, para alguém, em certa medida e para certos efeitos; define-se como “qualquer coisa que conduz alguma outra coisa (seu interpretante) a referir-se a um objeto ao qual ela mesma se refere (seu objeto), de modo idêntico, transformando-se o interpretante, por sua vez, em signo, e assim sucessivamente, ad infinitum”. É de se notar que o termo “interpretante” refere, na nomenclatura semiótica peirceana, o signo equivalente que se cria na mente da pessoa a quem o signo se dirige. A cadeia infinita de signos revela, então, o traço que permite caracterizar o ser humano como um incansável produtor de signos, presentes em todas as civilizações e culturas, até porque, ocorrendo no seio de um grupo social, o signo é um fato culturalizado. Não terá fim a capacidade semiótica do homo significans. Por conseguinte, o significado de um signo é um outro signo.

Recortando o signo como signo lingüístico, Saussure pondera que “le signe linguistique unit non une chose et un nom, mais un concept et une image acoustique. Cette dernière n’est pas le son matériel, chose purement physique, mais l’empreinte psychique de ce son, la représentation que nous en donne le témoignage de nos sens; elle est sensorielle, et s’il nous arrive de l’appeler ‘matérielle’, c’est seulement dans ce sens et par opposition à l’autre terme de l’association, le concept, généralement plus abstrait”. Nessa linha de pensamento, o autor do Cours de linguistique générale (1915) nomeia “significante” a “imagem acústica” do signo e “significado” o “conceito”. Com seu talento taxonômico, sempre articulando uma tríade, ao contrário da lingüística saussureana, que privilegia o duplo (langue/parole; forma/conteúdo, sincronicidade/diacronicidade...), o filósofo-semioticista de The collected papers (nome original da tradução brasileira Semiótica, efetuada por José Teixeira Coelho Neto ) distingue três classes de signos: “um signo é um ícone, um índice ou um símbolo. Um ícone é um signo que possuiria o caráter que o torna significante, mesmo que seu objeto não existisse, tal como um risco feito a lápis, representando uma linha geométrica. Um índice é um signo que de repente perderia seu caráter que o torna um signo se seu objeto fosse removido, mas que não perderia esse caráter se não houvesse interpretante. Tal é, por exemplo, o caso de um molde com um buraco de bala como signo de um tiro, pois sem o tiro não teria havido buraco; porém, nele existe um buraco, quer tenha alguém ou não a capacidade de atribuí-lo a um tiro. Um símbolo é um signo que perderia o caráter que o torna um signo se não houvesse um interpretante. Tal é o caso de qualquer elocução de discurso que significa aquilo que significa apenas por força de compreender-se que possui essa significação”. Ainda numa relação triádica, Peirce, considerando os signos como elementos de sistemas mais ou menos elaborados de significação e de comunicação, assim dimensiona os signos : numa perspectiva sintática, em que se analisam as relações formais que mantêm entre si; numa perspectiva semântica, privilegia-se a relação entre o signo e o seu designatum; já, numa perspectiva pragmática, equaciona-se a relação entre os signos e os seus utentes.

Como exemplo da aplicação da semiologia de cariz saussereano, podemos ler o poeta contemporâneo brasileiro Arnaldo Antunes, ex-integrante da banda de rock “Titãs”, que oferece, no poema “Nome não”, uma emblemática lição de coisas semiológicas, onde não se podem fundir palavras e coisas:

“os nomes dos bichos não são os bichos/ os bichos são:/ macaco gato peixe cavalo/ vaca elefante baleia galinha // os nomes das cores não são as cores/ as cores são: / preto azul amarelo verde vermelho marrom // os nomes dos sons não são os sons/ os sons são// só os bichos são bichos/ só as cores são cores/ só os sons são/ som são, som são/ nome não, nome não// nome não, nome não// os nomes dos bichos não são os bichos// os bichos são:// plástico pedra pelúcia ferro/ madeira cristal porcelana papel “

Por seu turno, o extraordinário poeta modernista brasileiro Jorge de Lima (1893-1953) trava, na clave da intertextualidade semiológica, no “Canto X”, de seu Inventário de Orfeu (1952), um diálogo poeticamente amoroso com o decadentista francês Stéphane Mallarmé (1842-1898), que buscava uma rosa que não estava em nenhum buquê, vale dizer, um referente a que signo algum reenvia : “Não a vaga palavra, corrutela/ vã, corrompida folha degradada, / de raiz deformada, abaixo dela,/ e de vermes, além, sobre a ramada; // mas, a que é a própria flor arrebatada/ pela fúria dos ventos; mas aquela/ cujo pólen procura a chama iriada/ - flor de fogo a queimar-se como vela:// mas aquela dos sopros afligida,/ mas ardente, mas lava, mas inferno,/ mas céu, mas sempre extremos. Esta sim,// está é que é a flor das flores mais ardida,/ esta veio do início para o eterno,/ para a árvore da vida que há em mim”. Nesse belo soneto, a cascata da adversativa “mas” produz a semiose do signo que não alcança a coisa; mas é preciso ler os significantes que levam a uma frondosa e fecunda árvore. Se, segundo o filósofo francês Merleau-Ponty (1908-1961), a gênese do sentido jamais se conclui, a semiologia ajuda a quebrar-se o espartilho da linguagem, que é, saussureanamente falando, um sistema de signos. Este poema do imenso poeta português Eugénio de Andrade celebra, lindamente, a força e a fraqueza das palavras, que são signos de nossa sina, quer sejamos ou não literatos, pois somos todos leitores e fazedores de signos, sobretudo de signos lingüísticos: “São, como um cristal, /as palavras./ Algumas, um punhal,/ um incêndio. / Outras,/ orvalho apenas”.

“A Literatura ensina-se?”, pergunta-nos, e a si mesmo, o Professor Carlos Ceia. Creio que a investigação do signo seja um horizonte seminal para se ensinar e aprender a Literatura, metáfora e metonímia de toda linguagem, a fortiori da linguagem da arte. Se, citando-se Saussure, todo signo é arbitrário, “todo o texto literário sujeito a uma leitura crítica é suposto ser anónimo. Este adjectivo denota também aquilo que é obscuro, o que serve também objecto da textualidade. Se partirmos do pressuposto de anonimato do texto, devemos começar por nos consciencializar de que o objecto que temos perante nós possui os seus segredos, o seu mistério próprio que nos cabe não menos desvelar como continuar”, responde o professor da Universidade Nova de Lisboa. Desde sua etimologia, signo é senha, sina, sino, sinal, desenho, desígnio. Intersemioticidade; SEMIOLOGIA; Semiose; Semiótica

BIB: Fernando Pessoa, Obra poética (1983), p. 3. Umberto Eco. Conceito de texto (1984), p. 4, p. 6-7. Roland Barthes, Elementos de semiologia (1964), p. 39. Charles S. Peirce, Semiótica (2000), p. 74. Ferdinand de Saussure, Cours de linguistique générale 19830, P. 98, 99. Carlos Ceia, A Literatura ensina-se? Estudos de Teoria Literária (1999), p. 76. Décio Pignatari, Informação. Linguagem. Comunicação (1977), p. 25.

Latuf Isaias Mucci

O QUE É POESIA: Considerações sobre o fazer poético

segunda-feira, 8 de março de 2010

Afinal, o que é poesia?
Disponho-me neste curto estudo, a tentar explicar o fenômeno poético - e consequentemente literário como um todo - buscando justamente elucidar essa dúvida tão comum a tantos estudantes e ao público em geral.
Há quase que um consenso geral de que poesia é a expressão de sentimentos por meio de versos e/ou rimas, todavia, cremos que essa é uma opinião equivocada. A simples disposição de palavras em versos (sejam eles livres ou não, rimados ou não), por si só, não garante a existência de um texto poético.
Caso essa opinião fosse verdadeira,
Escrever este texto em versos
Já garantiria a existência
De poesia.
Cremos que não foi isso o que aconteceu. Do mesmo modo, organizar um punhado de palavras que expressem algum sentimento, mesmo que ele seja verdadeiro, não é fazer poesia. E então, como fica nossa pergunta inicial após esse comentário? Cremos que o melhor modo de respondê-la é começar mostrando o que há de verdade no conceito de poesia apresentado pelo público em geral; ao definir a poesia como "expressão de sentimentos", um leigo não estaria de todo errado. O texto poético é a expressão de uma subjetividade, é a concretização física e artística da visão de mundo de seu autor.
É necessário, no entanto, colocar-se nesse momento a outra característica da poesia (que podemos dizer que é a mais importante para caracterizá-la); o trabalho com a palavra. A literatura, de um modo geral, é a arte da palavra, é a expressão do homem por meio de uma de suas ferramentas mais importantes; o sistema lingüístico. Assim, enquanto um escultor utiliza-se da de suas ferramentas para lapidar a matéria bruta e o músico precisa afinar o instrumento para poder produzir uma melodia agradável, o escritor precisa trabalhar também as palavras, para que esteja produzindo arte. A poesia, entretanto, requer um cuidado maior no momento de sua produção; a linguagem poética tende a ser mais metaforizada, mas ritmada, mais sujeita a peripécias estruturais que a linguagem em prosa (conto, crônica, romance, etc.). Se fossemos recorrer ao conceito de "literariedade" que o Formalismo Russo desenvolveu veríamos que há uma diferença entre os graus de literariedade da "prosa" e do "verso".
Entendendo a literariedade como as características formais que fazem com que um texto seja entendido como literário, em detrimento dos demais textos produzidos cotidianamente com outros fins, podemos perceber desde o início que, realmente, um texto literário produzido de forma correta, é bem distinto dos demais. Além disso, comparando um conto e uma poesia, ou até mesmo textos do mesmo gênero, porém de autores diferentes, poderemos ver que a literariedade (ou seja, aspectos formais próprios do texto literário - para reduzir bem a complexidade do termo) nos é útil também para diferenciar uma seqüência meramente narrativa, de uma seqüência poética (mesmo que esta narrativa esteja posta em versos). Não cabe aqui discutirmos se os postulados dos formalistas russos são pertinentes hoje em dia ou não, apenas nos valemos deste conceito para auxiliar no entendimento dos elementos diferenciadores da poesia/literatura e demais textos.
Ora, se a literariedade é o que define a literatura, como será que ela se expressa na poesia? Responderemos esta pergunta partindo da análise de textos. Vejamos

"As rodas rangem na curva dos trilhos
Inexoravelmente" (O Martelo, Manuel Bandeira)

Nestes versos iniciais do poema, Bandeira parece querer trazer o "ranger" das rodas do trem para junto do leitor. Fica nítido na repetição de fricativas e vibrantes, o desejo de levar sonoridade ao texto: "as Rodas RanGem na cuRVa dos TRilhos ineXoRaVelmente". Isso provoca um efeito sonoro espetacular, prendendo as atenções do leitor no texto, mas também o levando para o texto.

"Amor é fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente,
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer." (Soneto, Luís de Camões)

Neste texto, vemos logo de cara, elementos únicos da poesia, como versos metrificados; versos decassílabos com acentuação na 6ª e na 10ª silabas (Versos heróicos), rima (abba), presença da antítese (contentamento X descontente), etc.
É lógico que qualquer pessoa conseguiria descrever um ranger de trilhos ou os paradoxos que afligem o coração de quem ama, porém, só quando essas idéias são expressas de um modo trabalhado, envolto em determinados princípios norteadores, sob um mínimo de planejamento, reflexão e conhecimento teórico que seja e, o mais importante, por um conhecedor do gênero que está produzindo, somente assim, teremos poesia.
Acerca disso, faz-se necessário apresentarmos um trecho de um poema de Carlos Drummond de Andrade, um dos maiores poetas brasileiros, onde, depois de dizer sobre o que a poesia não deve falar (acontecimentos, mortes, aniversários, incidentes pessoais, sentimentos, cidades, ou seja, quase tudo), apresenta o que deve fazer o poeta: "Penetra surdamente no reino das palavras. / Lá estão os poemas que esperam ser escritos. / Estão paralisados, mas não há desespero, / Há calma e frescura na superfície intata. / Ei-los sós e mudos em estado de dicionário. / Convive com teus poemas antes de escrevê-los. (...)" (Procura da Poesia). Lógico que Drummond não pretende nestes versos, apresentar fórmulas nem receitas que inspirem um bom fazer poético, pois desse modo estaria se contradizendo, uma vez que a maioria desses assuntos está presente em seus textos. Ao contrário, o poeta apenas aconselha que não é no calor dos sentimentos que se deve produzir poesia, em súbito, pois desse modo têm-se apenas desabafo, catarse. Não se deve tentar poetizar acerca de um acontecimento somente porque nos chamou atenção ou nos mobilizou, emocionou; o fazer poético requer um trabalho com o texto, um tempo para amadurecer as idéias, pensar num modo correto de as exprimir. "Penetrar surdamente no reino das palavras", para o poeta, significa produzir um texto apenas quando já se conhece os caminhos a seguir, quando se está maduro o suficiente para livrar-se do imediatismo ou sentimentos exagerados que prejudiquem o texto. É não escolher um tema para fazer poesia, mas escolher o modo correto para exteriorizar os anseios do seu "eu".
Enfim, cremos ter ficado claro que o objetivo deste texto é mostrar que o simples desabafo por meio de versos muitas vezes é bonito e necessário, todavia, não deve ser, por isso, chamado de poesia. O texto literário de um modo geral e, mais especificamente a poesia, obedecem a "regras", ou melhor dizendo, satisfazem necessidades formais e conteudísticas necessárias à realização de seus objetivos.
Concordamos inteiramente com Aristóteles quando este afirma que mesmo que Empédocles (filósofo grego contemporâneo seu) escrevesse um tratado de medicina em versos, não estaria fazendo poesia. Ainda segundo Aristóteles, o que difere este filósofo do poeta Homero não é a forma com que escrevem seus textos, mas sim a união desta com outros elementos, tais como rima, metro, etc. Logo, escrever em versos não é poesia, poesia é trabalho, reflexão, organização, teorização, reescritura, ou seja, um longo processo artístico.

Leia também "O QUE É POESIA: do conteúdo", "O QUE É POESIA: um pouco de crítica", "O QUE É POESIA: desfazendo mitos" e "O QUE É CRITICA LITERÁRIA"

Weslley Barbosa
Publicado no Recanto das Letras em 14/03/2008
Código do texto: T901296

Ação

sábado, 6 de março de 2010

Uma das principais categorias do texto narrativo e do texto dramático, a acção indica um acontecimento dinâmico realizado por uma ou mais personagens. Inclui tudo que faz, o que diz e/ou o que verdadeiramente sucede a uma personagem, permitindo identificar este dinamismo numa sequência de acontecimentos, não necessariamente ordenados no tempo e no espaço. A acção narrativa tanto pode corresponder a um único acontecimento (por exemplo, o episódio de Santa Olávia, capítulo III de Os Maias, de Eça de Queirós, que nos apresenta a educação de Carlos da Maia por contraste com a educação de Eusebiozinho), como a um conjunto de acontecimentos (a história da decadência da família Maia, no mesmo romance). Porque os acontecimentos não têm todos a mesma dimensão e importância numa obra, costumamos distinguir acções secundárias (do tipo descrito em primeiro lugar), que se desenvolvem em torno da matéria central da obra de ficção e são, em regra, dispensáveis à consecusão do principal objectivo ficcional; e uma acção principal (a descrita em segundo lugar), que corresponde aos momentos fulcrais da história narrada, e cujos elementos constitutivos não são dispensáveis, sob pena de o fio narrativo perder a sua lógica interna.

O conceito de acção não se limita ao texto narrativo e ao texto dramático, onde está codificado desde o tratado de Aristóteles sobre a tragédia grega. De notar que qualquer texto que envolva uma matriz narrativa, como o texto épico, por exemplo, pode ser dividido em acções. O texto de ficção usa de maior liberdade na construção das acções do que o texto dramático. Se vários tratadistas clássicos consideram que um texto dramático pode ter até cinco acções secundárias dentro da matéria principal, Aristóteles, na sua Poética, apenas considera que as partes da acção (pragmata ou actus) devem ser apenas três: introdução ou pré-história que informa o espectador sobre os antecedentes da matéria representada; parte mediana ou história propriamente dita, onde se representa uma acção dinâmica complexa; fim ou conclusão da história representada, que implica a recuperação da harmonia inicial ou o refreamento da acção dramática. Entre as partes principias da acção dramática, podem ocorrer episódios, que apenas devem ser introduzidos segundo um criterio de necessidade. No texto da tragedia, podemos reconhecer várias estratégias para controlar o desenolvimento da acção, o que se testemunha através de peripécias (mudanda brusca dos acontecimentos) ou da anagnórise (ou reconhecimento de um facto decisivo que causa mudança brusca e radical no desenvolvimento da acção e no destino das personagens). Das três unidades constitutivas do texto dramático (acção, lugar e tempo), considera-se, desde esta visão classicista, que a unidade de acção é a mais importante.

No texto de ficção, estas regras são totalmente desrespeitadas. Não há tratados sobre a boa construção das acções de um texto narrativo e um escritor não está obrigado a obedecer ao mesmo padrão em todas as suas criações narrativas e ficcionais. A partir do romance modernista, no início do século XX, as técnicas têm variado tanto que podem ir da tendência para a sobreposição das acções até à anulação de qualquer movimento dinâmico no interior de um texto de ficção. Podemos encontrar um romance complexo como Ulysses, de James Joyce, onde fica evidente a dissimulação do fio da história narrada, os constantes recuos e avanços na acção e a inclusão de episódios estranhos a essa acção, rompendo com todos os cânones respeitados no século XIX por altura do domínio do romance realista; como podemos encontrar um anti-romance de Rayner Heppenstall, Connecting Door (1962), que é uma descrição passiva de edifícios, ruas e notações musicais, abolindo qualquer acção e negando ao próprio narrador uma identidade própria.



CONTO; EPOPEIA; EPISÓDIO; INTERACÇÃO; INTRIGA; NARRATIVA; novela; ROMANCE; TEATRO



Carlos Ceia

A Retórica

sexta-feira, 5 de março de 2010

Ethos – é o tipo de prova centrado no carácter/ética do orador que deve ser virtuoso e credível para conseguir a confiança do seu auditório.

Pathos – tipo de prova centrado no auditório emocionalmente pressionado e seduzido

Logos – tipo de prova centrado nos argumentos e discurso bem estruturado do ponto de vista lógico-argumentativo, para que a tese se imponha como verdadeira.

A retórica, a arte de convencer e persuadir, tem as suas origens na antiguidade clássica, devendo aos sofistas (professores itinerantes que se dedicavam ao ensino dos jovens cidadãos e dominavam a arte de persuadir pela palavra) a sua proliferação.

Eram dotados de habilidade linguística e de estilo eloquente e surpreendiam pela sua vasta sabedoria e pelos seus discursos expressivos. O seu ensino proporcionava aos cidadãos da Grécia antiga os meios e técnicas necessários à inserção e participação na vida política.

Desde muito cedo os sofistas se dão conta de que o uso da palavra, tendo em vista convencer e seduzir os ouvintes, é mais eficaz do que o conteúdo do próprio discurso. Por outro lado, a sua vida itinerante e o contacto com diferentes culturas faziam-nos acredita e defender que a verdade dos discursos é a verdade que serve ao homem, uma verdade relativa. Ao afirmar o relativismo da verdade, é inaugurada uma longa batalha contra Sócrates e Platão, que achavam que a argumentação só podia servir a busca da verdade (única, absoluta e universal capaz de dizer uma realidade absoluta, perfeita e imutável), para praticar o bem (enalteceram o pathos). Pretendem inviabilizar a prática de uma retórica baseada em opiniões e meras aparências. Assim, sofista passa a estar associado ao falso saber, aquele que detém uma sabedoria aparente, que faz uso do raciocínio falacioso.

Mas ao distinguir os domínios da retórica, da moral e da verdade, Aristóteles, pode libertar a retórica da má reputação que a ligava à sofística. Com efeito, pode-se fazer um bom ou mau uso da retórica, não é ela que é imoral, mas quem a utiliza. (Aristoteles, apercebeu-se de todas, mas destacou o papel do logos)

Na concepção clássica:

- o ser identifica-se com tudo o que existe e é independente do modo como o dizemos/ conhecemos

- a verdade é unívoca e corresponde ao conhecimento absoluto do ser (ou realidade

Será apenas no séc.XX que assistiremos à completa reabilitação da retórica e da sua relação com a filosofia. A nova retórica, proposta por filósofos como Chaim Perelman, encontra na argumentação o fundamento de uma nova racionalidade, isto é, passa a considerar-se a sua importância no pensamento e para o conhecimento.

O filósofo Michel Meyer faz uma leitura da história da retórica que é particularmente interessante: é na relação dos conceitos ethos, pathos e logos que podemos encontrar a chave para a explicação dos diferentes momentos da retórica ao longo da sua história.

Na concepção contemporânea:

- o ser diz-se de diferentes maneiras (é plural) e só pode ser dito/conhecido por intermédio da linguagem

- a verdade não é unívoca nem absoluta, é plurívoca e renovável


FONTE: http://www.notapositiva.com/pt/trbestbs/filosofia/11retorica.htm

MODERNISMO

quinta-feira, 4 de março de 2010

O Modernismo teve início em meio à fortalecida economia do café e suas oligarquias rurais. A política do “café-com-leite” ditava o cenário econômico, ilustrado pelo eixo São Paulo - Minas Gerais. Contudo, a industrialização chegava ao Brasil em conseqüência da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e ocasionou o processo de urbanização e o surgimento da burguesia.



O número de imigrantes europeus crescia nas zonas rurais para o cultivo do café e nas zonas urbanas na mão-de-obra operária.
Nesta época, São Paulo passava por diversas greves feitas pelos movimentos operários de fundamentação anarquista.



Com a Revolução Russa, em 1917, o partido comunista foi fundado e as influências do anarquismo na sociedade ficavam cada vez menos visíveis. A sociedade paulistana estava bastante diversificada, formada por “barões do café”, comerciantes, anarquistas, comunistas, burgueses e nordestinos refugiados na capital.



O Modernismo tem seu marco inicial com a realização da Semana de Arte Moderna, em fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo. O grupo de artistas formado por pintores, músicos e escritores pretendia trazer as influências das vanguardas européias à cultura brasileira. Estas correntes européias expunham na literatura as reflexões dos artistas sobre a realidade social e política vivida. Por este motivo, o movimento artístico “Semana de Arte Moderna” quis trazer a reflexão sobre a realidade brasileira sócio-política do início do século XX.



Por Sabrina Vilarinho
Graduada em Letras
Equipe Brasil Escola

Cantigas de Amigo

quarta-feira, 3 de março de 2010

Fragmento de canções do rei D. Dinis, descoberto pelo Prof. Harvey L. Sharrer. IAN/Torre do Tombo.

Constituem a variedade mais importante e original da nossa produção lírica da Idade Média, estas composições que se enquadram na poesia trovadoresca, mas que incluem a particularidade de conferirem estatuto de enunciação à mulher, embora sejam sujeitos masculinos a compô-las.



Um tipo peculiar de cantigas de amigo é o das paralelísticas, que aliam uma simplicidade de motivos e recursos semânticos ao elaborado arranjo da sua expressão, através de um esquema de repetitividade que enriquece o sentido pelo tom de litania e sugestão encantatória, muitas vezes magoada, perplexa ou interrogativa, que cria. Típicas da poesia galaico-portuguesa, encontram-se também nas cantigas de amor e noutras variedades poéticas medievais, persistindo até muito tarde na literatura medieval. O rei D. Dinis é um dos seus mais famosos cultores:

Ai flores, ai flores do verde pinho
se sabedes novas do meu amigo,
ai deus, e u é?

Ai flores, ai flores do verde ramo,
se sabedes novas do meu amado,
ai deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amigo,
aquele que mentiu do que pôs comigo,
ai deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amado,
aquele que mentiu do que me há jurado
ai deus, e u é?

(...)

D. Dinis


João Zorro, poeta do mar como Martim Codax, é autor de uma barcarola célebre, em composição também paralelística:

Em Lixboa sobre lo mar
barcas novas mandei lavrar,
ay mia senhor velida!

Em Lisboa sobre lo lez
barcas novas mandei fazer,
ay mia senhor velida!

Barcas novas mandei lavrar
e no mar as mandei deitar,
ay mia senhor velida!

Barcas novas mandei fazer
e no mar as mandei meter,
ay mia senhor velida!

João Zorro

© Instituto Camões, 2001

O Fenômeno Literário e as Manifestações de Literariedade

terça-feira, 2 de março de 2010

“O enigma é falar coisas certas reunindo termos absurdos”
Aristóteles in A Poética.

1- A borboleta: uma analogia com o fenômeno literário

Em símile ao ciclo de vida de uma borboleta, situa-se o fenômeno literário. No inicio a palavra é automatizada, conduz ao senso comum - é uma lagarta-, contudo algo se interrompe, a metamorfose ocorre: ela fica por algum tempo dentro de um casulo- os procedimentos artísticos – para ganhar vôo e beleza de uma borboleta. Após isso, a palavra literária ganha a forma, movimento e condensa dentro de si inúmeros significados; faz vôos estranhos e singulares cuja compreensão prolonga-se a cada olhar. Como uma borboleta que não se deixa pegar facilmente; necessita-se de uma leitura atenta à palavra literária- à forma do vôo, a fim de apreendê-la.

É lícito dizer que a forma do vôo varia de um movimento rítmico circular, mais metafórico - a poesia- a um movimento mais voltado à seqüência, metonímico - a prosa. Esta em linhas contínuas, um novelo que vai se abrindo aos poucos; aquela em linhas descontínuas, um novelo que segue e volta para o mesmo ponto inicial.

No entanto, essa borboleta- a palavra literária- pode manifestar-se dessas duas formas em liame, de maneira a propiciar um desequilíbrio entre suas fronteiras; cita-se, a exemplo, a prosa poética de Guimarães Rosa em “o burrinho Pedrês”. Perceba a sonoridade bem à moda de poesia, as aliterações (b e v) e rimas produzem esse efeito.

“Um boi preto, um boi pintado,

cada um tem sua cor,

Cada coração um jeito

De mostrar o seu amor”.

Boi bem bravo, bate baixo, bota baba, boi berrando... Dança doido, dá de duro, da de dentro, dá direito... Vai, vem, volta, vem na vara, vai não volta, vai varando...

GUIMARÃES ROSA, João. Sagarana.15. ed. Rio de janeiro: J. Olympio, 1972.

E, da mesma forma a poesia com a prosa. Observe o poema a seguir de Manuel Bandeira cuja tessitura dá uma idéia de seqüência.

Poema tirado de uma Noticia de Jornal

João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro

[da Babilônia num barracão sem número.

Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro

Bebeu

Cantou

Dançou

Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.



Manuel Bandeira in Libertinagem

1.1 A Manifestação de literariedade e sua visibilidade em o Áporo

“Penetra surdamente no reino das palavras

Lá estão os poemas que esperam ser escritos”.

Carlos Drummond de Andrade

O fenômeno literário engendra-se de maneira peculiar, possui características específicas às quais se dá o nome de literariedade: termo, provindo do formalismo, pelo qual se distingue a linguagem literária da linguagem referencial. Em concernência a essa idéia, Aristóteles, em a Poética, já notava algo impar na Poesia- o nome que denominava qualquer espécie de obra literária para os gregos-, dizia que clara e vulgar era a linguagem formada pelas palavras correntes e, nobre e elevada, a linguagem que empregava termos raros: os metafóricos e alongados e todos os que fogem aos de uso corrente.

Deduz-se, assim, que tanto a poesia como a prosa estruturam-se concernente a suas próprias leis, não precisam necessariamente estarem ligadas ao mundo referencial. E, indubitavelmente, elas não o imitam perfeitamente, mas sim o desconstrói para que emanem as dúvidas das ações dos homens; se assim o faz, é com fim de trazê-lo com suas nuanças elementares, através de um enigma formal; na poética de Aristóteles, isso aparece explícito quando ele fala: “O enigma é falar coisas certas reunindo termos absurdos”. Disso posto, pode vincular-se o conceito de mimese, a imitação não dos homens, mas sim de suas ações. Por isso, um isento como em A Metamorfose de Franz Kafka, por meio de aparência absurda, não representa um homem, contudo traços, ações humanas. O absurdo traz, recupera a realidade em sua profundidade.

Partindo desse pressuposto, considera-se um princípio errôneo querer que a linguagem literária se comporte como a linguagem comum; os procedimentos que a arquitetam são de natureza distinta, manifestam-se por outro ângulo: o da forma. O que importa não é o que dito, mas de que forma é dito; o conteúdo entrelaça-se à expressão. Por essa via, entende-se que um áporo não teria o mesmo valor como aparece no poema de Drummond; a forma o torna o Áporo , ou seja, a literariedade o singulariza. Nesse sentido, o poema tem um corpus autônomo, o qual se deve analisar, imanentemente, tendo em vista sempre os seus aspectos intrínsecos. Conforme os formalistas Jakobson e Eichembaum, o importante é o estudo do objeto literário, isto é, a obra e seus procedimentos artísticos . Entende-se, assim, que não interessa recorrer diretamente à biografia do autor e pontos da realidade para compreender o fenômeno literário. Análoga a essa afirmação encontra-se a idéia de Aristóteles em A poética , “a diferença é que na poesia tais efeitos devem decorrer unicamente da ação, sem expressar-se formalmente”. Note-se a importância dada a ação cujo significado é sinônimo de procedimento,



ÁPORO



Um inseto cava

Cava sem alarme

Perfurando a terra

Sem achar escape.



Que fazer, exausto,

Em país bloqueado,

Enlace de noite

Raiz e minério?



Eis que o labirinto

(oh razão, mistério)

presto se desata:



em verde, sozinha,

antieuclidiana,

uma orquídea forma-se.





Carlos Drummond de Andrade



Ao ler o poema, vem à baila o estranhamento- a percepção prolonga-se na linguagem, um efeito distinto o promove, corta os laços com a linguagem prosaica. A sensação apriori é de espanto, o código lingüístico de seqüência é quebrado, desaparece a lógica do senso comum: a imagem do Áporo estranha pelo fato de dizer o comum por uma outra forma. Por esse estranhamento se distancia a realidade; mas a recria sob outro prisma de tal modo a trazer à tona uma sensação de novidade. Como diz Pound, a literatura é novidade que permanece novidade, conclui-se que nunca é mesma percepção.

Destarte, esse processo em conluio com a ambigüidade- a qual contorna a tessitura do poema, pois se erige em torno de um significante (áporo) mais de um significado-, articulam uma desautomatização do olhar. À literatura significar-se mais, com o mínimo de palavras, é algo que lhe é típico; segundo Ezra Pound, é a linguagem carregada de significado até o máximo grau possível.

À luz da função poética de Jakobson, a qual torna proeminente a mensagem, tem-se de fato a metáfora sobre a metonímia. A escolha das palavras prevalece, o eixo de combinação segue em segundo plano; a relação se faz por analogia das imagens que sugerem a luta do inseto-homem para sair do labirinto, faz com que a adversidade, o obstáculo, se transformem em verde esperança e, como por mistério, o inseto se faz orquídea. Dessa forma, vale-se a imagem por sua capacidade de transmitir uma idéia: não aparece no texto literário apenas de forma pictórica, integra-se, fundamentalmente, ao sentido; contribui para uma nova percepção da realidade ao ponto que se distancia dela.

Quanto à manifestação da literariedade na forma, o áporo situa-se no âmbito da poesia, manifesta-se em versos, a sonoridade e o ritmo a diferenciam da prosa; não possui uma seqüência, volta-se para si mesmo, é um signo-de (termo de Décio Pignatari) que se encadeia pela similaridade.

Todavia, emana outra manifestação de literariedade do poema, a qual se concatena com o conteúdo e a forma de dizer: o lírico. Diz-se, assim, tratar-se de um poema lírico, e o é pela forma de orientar-se para um “eu”: para um visão particular do mundo. Os pontos que o evidenciam encontram-se nas interrogações(segunda estrofe) e nas exclamações (oh razão, mistério) das quais sobrevém uma emoção de um “eu”. Por tratar-se de uma poesia a função poética é a dominante no poema, mas outra função vem à baila na forma de dizer, a função emotiva: ela vale-se da subjetividade, das emoções do eu lírico.

2- Outras Manifestações de Literariedade: O lírico, o épico e o Dramático.

À perspectiva de Aristóteles, as manifestações literárias distinguem-se pelo método de imitar. Daí surgiram as nomenclaturas Épico, Lírico e Dramático. O Épico é modo pelo qual se imita os objetos narrando-os; o lírico é a imitação quando se assume a primeira pessoa e o Dramático é quando as personagens agem por elas mesmas

· O Lírico

O Lírico valoriza a subjetividade, “o eu”: configura-se com marcas lingüísticas e sinais envolvidos pela função emotiva. O conteúdo do lírico é, pois, a maneira pela qual a alma, com seus juízos subjetivos, alegrias e admirações, dores e sensações, toma consciência de si mesma no âmago deste conteúdo. Veja o exemplo o poema o Sentimento do mundo de Drummond no qual perpassa toda uma subjetividade; ”o eu” explicita-se pela primeira pessoa de modo que as marcas lingüísticas ( em negrito) sempre se referem ao interior do eu lírico.

Tenho apenas duas mãos

E o sentimento do mundo,

Mas estou cheio de escravos,

Minhas lembranças escorrem

E o corpo transige

Na confluência do amor.

Entretanto, percebe-se, atualmente, que as marcas lingüísticas não precisam aparecer explicitamente marcadas, como no poema acima, para ele ser lírico. Outros meios estão à mercê do lírico perceba-os no poema a seguir.

O mundo inimigo

O cavalo mecânico arrebata o manequim pensativo

Que invade a sombra das casas no espaço elástico.

Ao sinal do sonho a vida move direitinho as estátuas

Que retomam seu lugar na série do planeta.

Os homens largam ação na paisagem elementar

E invocam os pesadelos de mármore na beira do infinito.

Os fantasmas vibram mensagens de outra luz nos olhos,

Expulsam o sol do espaço e se instalam no mundo.

Observa-se a face do lírico não pelos pronomes como no poema anterior, mas pela presença do adjetivo “direitinho” e “elástico” que engendra toda uma subjetividade: a visão do particular do eu lírico diante do mundo inimigo fantástico; ele o descreve sob sua ótica; erige um tom pessoal no poema.

· O épico

Destoando do lírico no que tange à subjetividade, o épico volta-se ao “não eu”, quebra os laços da emoção e segue o plano exterior. Desse modo a poesia épica, segundo Jakobson, centra-se na terceira pessoa, põe intensamente em destaque a função referencial da linguagem, pelo fato de procurar narrar um não “eu”.

Nasceu na antiga Grécia com as epopéias Ilíada e Odisséia de Homero, perdurou no Império Romano com a epopéia Eneida de Virgilio, no final da Idade Média ganhou força com as novelas de Cavalaria, passou por Camões com os Os Lusíadas e no século XVIII derivou-se no romance, sua forma atual e de maior circulação.

A narrativa é o ponto primordial do épico, prioriza o objeto, mesmo que o objeto seja às vezes a vida do próprio narrador. No plano da narrativa tudo vira um “ele”, pense no romance Memórias Póstumas de Braz Cubas, no qual o autor defunto conta sua história; ao narrar se despe de toda subjetividade; sua vida torna-se um objeto ( um ele) no plano da narrativa.

· O Dramático

Em concernência a etimologia, drama significa “ação”. Nessa manifestação de literariedade, os personagens se apresentam por si, não há narrador e as ações vão se desenvolvendo pela própria apresentação, pois estes textos, em poesia ou prosa, são feitos para serem encenados.

As formas clássicas são a Tragédia- representação de um fato trágico, apto por trazer à tona compaixão e terror- e a Comédia, a representação de um fato inspirado na vida e no sentimento comum, de riso fácil, em geral criticando costumes.

Últimas palavras: a forma é o diferencial

De tudo exposto, fica evidente que o fenômeno literário se materializa de diversas formas. Contudo forma significa um dizer particular, por isso a literatura é o manifestar-se em uma forma singular, estranha e com procedimentos que lhe são particulares. Ler poesia é sentir o ritmo, a sonoridade e perceber a imagem de maneira a torná-las um pensamento integrado e analógico. Em símile na prosa, o leitor tem perceber a integração da forma: o enredo, os personagens e a perspectiva de narrar, para que, de fato, compreenda o fenômeno literário. A forma é o diferencial.

Bibliografia:

ARISTÓTELES(s/d) “Arte Poética” em Arte Retórica e Arte Poética, Rio de Janeiro: Ediouro.

JAKOBSON, Roman (1975) “Lingüística e Poética” em Lingüística e Comunicação. São Paulo: Cultrix.

VÁRIOS. (1976) Teoria da Literatura – Formalistas Russos. Porto Alegre: Globo.

História da Literatura

segunda-feira, 1 de março de 2010

Séculos VIII a.C. a II a.C.

As primeiras obras da História que se tem informação são os dois poemas atribuídos a Homero : Ilíada e Odisséia. Os dois poemas narram as aventuras do herói Ulisses e a Guerra de Tróia. Na Grécia Antiga os principais poetas foram: Píndaro, Safo e Anacreonte. Esopo fica conhecido por suas fábulas e Heródoto, o primeiro historiador, por ter escrito a história da Grécia em seu tempo e dos países que visitou, entre eles o Egito Antigo.

Séculos I a.C. a II d.C. : A literatura na História de Roma Antiga

Vários estilos que se praticam até hoje, como a sátira, são originários da civilização romana. Entre os escritores romanos do século I a.C. podemos destacar: Lucrécio (A Natureza das Coisas); Catulo e Cícero. Na época de 44 a.C. a 18 d.C., durante o império de Augusto, corresponde uma intensa produção tanto em poesia lírica, com Horácio e Ovídio, quanto em poesia épica, com Virgílio autor de Eneida. A partir do ano 18, tem início o declínio da História do Império Romano, com as invasões germânicas. Neste período destacam-se os poetas Sêneca, Petrônio e Apuleio.

Séculos III a X

Após a invasão dos bárbaros germânicos, a Europa se isola, forma-se o feudalismo e a Igreja Católica começa a controlar a produção cultural. A língua (latim) e a civilização latina são preservadas pelos monges nos mosteiros.A partir do século X começam a surgir poemas, principalmente narrando guerras e fatos de heroísmo.

Século XI : As Canções de Gesta e as Lendas Arturianas

É a época das Canções de Gesta, narrativas anônimas, de tradição oral, que contam aventuras de guerra vividas nos séculos VIII e IX , o período do Império Carolíngio. A mais conhecida é a Chanson de Roland ( Canção de Rolando ) surgida em 1100. Quanto à prosa desenvolvida na Idade Média, destacam-se as novelas de cavalaria, como as que contam as aventuras em busca do Santo Graal (Cálice Sagrado) e as lendas do rei Artur e dos Cavaleiros da Távola Redonda.

Séculos XII a XIV : O trovadorismo e as cantigas de escárnio e maldizer

É o período histórico do trovadorismo e das poesias líricas palacianas. O amor impossível e platônico transforma o trovador num vassalo da mulher amada, exemplo do amor cortês. Neste período, também foi comum o poema satírico, representado pelas cantigas de escárnio (crítica indireta) e de maldizer (crítica direta).

Séculos XIV a XV : Humanismo

O homem passa a ser mais valorizado com o início do humanismo renascentista. A literatura mantém características religiosas, mas nela já se podem ver características que serão desenvolvidas no Renascimento, como a retomada de ideais da cultura greco-romana. Na Itália, podemos destacar: Dante Alighieri autor da Divina Comédia, Giovanni Bocaccio e Francesco Petrarca. Em Portugal, destaca-se o teatro do poeta de Gil Vicente autor de A Farsa de Inês Pereira.

Século XVI : O classicismo na História

O classicismo tem como elemento principal o resgate de formas e valores da cultura clássica, ou seja greco-romana. O mais importante poeta deste período histórico foi Luís de Camões que escreveu Os Lusíadas, narrando as aventuras marítimas da época dos descobrimentos.

Destacam-se também os franceses François Rabelais e Michel de Montaigne. Na Inglaterra, o poeta de maior sucesso foi William Shakespeare se destaca na poesia lírica e no teatro. Na Espanha, Miguel de Cervantes faz uma sátira bem humorada das novelas de cavalaria e cria o personagem Dom Quixote e seu escudeiro, Sancho Pança, na famosa obra Dom Quixote de La Mancha.

Século XVII

As idéias da Contra-Reforma marcaram profundamente esta época, principalmente nos países de tradição católica mais forte como, por exemplo, Espanha, Itália e Portugal. Na França, a oratória sacra é representada por Jacques Bossuet que defendia a origem divina dos reis. Na Espanha, destacam-se os poetas Luís de Gôngora e Francisco de Quevedo. Na Inglaterra, marca significativamente a poesia de John Donne e John Milton autor de O Paraíso Perdido.

Século XVIII: O Neoclassismo

Época da valorização da razão e da ciência para se chegar ao conhecimento humano. Os filósofos iluministas fizeram duras críticas ao absolutismo. Na França, podemos citar os filósofos Montesquieu, Voltaire, Denis Diderot e D'Alembert, os organizadores da Enciclopédia, e Jean-Jacques Rousseau . Na Inglaterra, os poetas Alexander Pope, John Dryden, William Blake. Na prosa pode-se observar o pleno crescimento do romance.
Obras e autores deste período da História: Daniel Defoe autor de Robinson Crusoe; Jonathan Swift (As Viagens de Gulliver ); Samuel Richardson ( Pamela ); Henry Fielding ( Tom Jones ); Laurence Sterne ( Tristram Shandy ). Nessa época, os contos de As Mil e Uma Noites aparecem na Europa em suas primeiras traduções.

Século XIX (primeira metade): O Romantismo

No Romantismo há uma valorização da liberdade de criação. A fantasia e o sentimento são muito valorizados, o que permite o surgimento de obras de grande subjetivismo. Há também valorização dos aspectos ligados ao nacionalismo.
Poetas principais desta época: Almeida Garrett, Alexandre Herculano, Camilo Castelo Branco, Giacomo Leopardi, James Fenimore Cooper, Edgard Allan Poe.

Século XIX (segunda metade): O Realismo

Movimento que mostra de forma crítica a realidade do mundo capitalista e suas contradições. O ser humano é retratado em suas qualidades e defeitos, muitas vezes vitimas de um sistema difícil de vencer.

Principais representantes: Gustave Flaubert autor de Madame Bovary, Charles Dickens (Oliver Twist ), Charlotte Brontë (Jane Eyre), Emily Brontë (O Morro dos Ventos Uivantes), Fiodor Dostoievski, Leon Tolstoi, Eça de Queiroz, Cesário Verde, Antero de Quental e Émile Zola, Eugênio de Castro, Camilo Pessanha, Arthur Rimbaud, Charles Baudelaire.

Décadas de 1910 a 1930: fugindo do tradicional

Os escritores deste momento da História vão negar e evitar as tipos formais e tradicionais. É uma época de revolução e busca de novos caminhos e novos formatos literários.
Principais escritores deste período: Ernest Hemingway, Gertrude Stein, William Faulkner. S. Eliot, Virginia Woolf , James Joyce, Mário de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa, Cesar Vallejo, Pablo Neruda, Franz Kafka, Marcel Proust, Vladimir Maiakovski.

Década 1940: a fase pessimista

O pessimismo e o medo gerados pela Segunda Guerra Mundial vai influenciar este período. O existencialismo de Jean-Paul Sartre , Simone de Beauvoir e Albert Camus vão influenciar os autores desta época. Na Inglaterra, George Orwell faz uma amarga e triste profecia do futuro na obra 1984.

Década de 1950: crítica ao consumismo

As obras desta época da História criticam os valores tradicionais e o consumismo exagerado imposto pelo capitalismo, principalmente norte-americano. O poeta Allen Ginsberg e o romancista Jack Kerouac são seus principais representantes. Henry Miller choca a crítica com sua apologia da liberdade sexual na obra Sexus, Plexus, Nexus. Na Rússia, Vladimir Nabokov faz sucesso com o romance Lolita.

Décadas de 1960 e 1970

Surge o realismo fantástico, como na ficção dos argentinos Jorge Luis Borges e Julio Cortázar . Na obra do colombiano Gabriel García Márquez , Cem Anos de Solidão, se misturam o realismo fantástico e o romance de caráter épico. São épicos também alguns dos livros da chilena Isabel Allende autora de A Casa do Espíritos. No Peru, Mario Vargas Llosa é o romancista que ganha prestígio internacional. No México destacam-se Juan Rulfo e Carlos Fuentes, no romance, e Octavio Paz, na poesia.

A literatura muda o foco do interesse pelas relações entre o homem e o mundo para uma crítica da natureza da própria ficção. Um dos mais importantes escritores a incorporar essa nova concepção é o italiano Ítalo Calvino.

Literatura e estranhamento

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Cap. II - 2.1 - Literariedade e estranhamento


O interesse da teoria literária se concentra não no sentido amplo do termo, que abrange todo o conjunto da produção escrita, sejam documentos históricos, jornalísticos, obras científicas ou técnicas, vistas por alguns teóricos como textos desprovidos de literariedade. O alvo é a literatura em sentido restrito, ou seja, as composições em que a linguagem se apresenta elaborada de maneira especial e nas quais se dá a constituição do universo imaginário ou ficcional.
A literariedade manifesta-se tanto em linguagem metrificada como em não metrificada. Ela se insinua e se mostra no texto por meio de metáforas, metonímias, alegorias, símbolos, analogias, pontuação, provocando a beleza, o impacto estético. A fuga ao convencional cria uma desfamiliarização que não resulta da utilização de elementos lingüísticos próprios, mas dos mesmos materiais cotidianos em uma organização diferenciada, mais densa, mais complexa. O texto literário escapa das medidas do previsível, fala do mundo mediante uma imagem do mundo, permitindo a apreensão do real pela imaginação. De acordo com Lajolo (1982, p. 43):
As formas literárias não são diferentes das formas lingüísticas, mas sua organização as torna (pelo menos algumas delas) mais visíveis. Enfim, a literariedade não é apenas questão de presença ou de ausência, de tudo ou nada, mas de mais e de menos (mais tropos, por exemplo): é a dosagem que produz o interesse do leitor.
A organização dos vocábulos de forma diferenciada da convencional, capaz de transmitir o máximo de imagens com o mínimo de palavras, de acordo com Chklovski, promovendo a desfamiliarização ou desautomatização, singulariza o objeto, obscurece a forma e prolonga e duração da recepção da arte. Para ele, as ações repetitivas, habituais tornam-se automáticas, ao ponto de serem praticadas inconscientemente. Isso é traduzido como economia de energia e facilita a percepção. Chklovski (in TOLEDO, 1971, p. 43) afirma que “a idéia de economia de energia como lei e objetivo da criação é talvez verdadeira no caso particular da linguagem, ou seja, na língua cotidiana.”
A literatura, assim, não busca a facilidade e a transparência da linguagem. Seu objetivo não é gastar o mínimo possível de energia na comunicação, mas, lançando mão de recursos que prendem a atenção, instigar o leitor a procurar o sentido ausente ou metafórico, não se detendo no sentido literal. A isso se chama “ostranenie” - estranhamento. Depreende-se, assim, que no texto literário cria-se uma linguagem capaz de quebrar o automatismo do cotidiano, representando as coisas num contexto inusitado e aumentando a dificuldade e a duração da percepção:
Examinando a língua poética tanto nas suas constituintes fonéticas e léxicas como na disposição das palavras e nas construções semânticas constituídas por estas palavras, percebemos que o caráter estético se revela sempre pelos mesmos signos: é criado conscientemente para libertar a percepção do automatismo; sua visão representa o objetivo do criador e ela é construída artificialmente de maneira que a percepção se detenha nela e chegue ao máximo de sua força e duração. (CHKLOVSKI in TOLEDO, 1971, p. 54).
Daí infere-se que é primordial para a recepção do texto literário que o leitor seja um intérprete dos signos, que tenha a disposição de procurar o que não está expresso nos vocábulos, em seus significados usuais, mas na combinação criteriosa e proposital desses, feita pelo criador. O texto criado por meio desse modo particular é que confere o caráter estético à literatura, caráter esse assegurado pela percepção do leitor.
Dulce Alves
Publicado no Recanto das Letras em 27/12/2008
Código do texto: T1354658

ELIPSE

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

1 - Omissão de palavra(s), ideias ou factos que se subentendem. O enunciado "Cheguei. Chegaste." (Olavo Bilac, Poesias, nova ed., 1904) encerra uma elipse simples (o sujeito de ambas as frases, que fica subentendido; noutro plano, pode-se considerar também elíptica a relação entre as duas frases simples, por ausência de um conector). PRIVATE Trata-se do termo mais comum para qualquer omissão num enunciado ou num texto, que pode ir da simples omissão de sílabas num verso por razões de métrica até à omissão de informações ou acções secundárias numa grande narrativa. A especificação da parte omitida conduz a um campo semântico da elipse que inclui a omissão de conectores (braquilogia, assíndeto e zeugma). A elipse distingue-se, contudo, da aposiopese (a eliminação do final de uma frase), porque pressupõe um enunciado de sentido completo. Assim, os versos de Os Lusíadas: “Aos Infiéis, Senhor, aos Infiéis [aparecei] / E não a mi, que creio o que podeis” (III, 45), ilustram uma aposiopese porque omite uma palavra no final de uma frase que é necessária ao sentido explícito e não uma elipse, que exige que este sentido não se perca pela omissão.

Os retóricos gregos aceitavam como elipse toda a supressão de substantivos, pronomes, complementos ou orações principais; após o Renascimento, os poetas alargaram as possibilidades da elipse que passou a designar qualquer tipo de omissão na frase, desde que não se perca o sentido. A elipse tornou-se também de grande utilidade nas grandes narrativas modernas e pós-modernas, por uma questão de economia ou, em outros casos, por uma questão metaficcional que não está longe da ironia sobre os processos tradicionais. Mário de Carvalho, por exemplo, não deixa de folgar com os processos narrativos que prevêem a inclusão de elipses (e outras figuras): "A segunda parte queria eu começá-la logo de rijo, e em festa. Tinha ensejado uma vasta elipse, de proporções conformes aos estilos consabidos da Retórica e da Geometria. Mas, antes, arrebatou-me um escrúpulo cadastral de apontar, em sinopse, o que ocorreu no interim, com prejuízo da tal figura de estilo, que fica a dever à perfeição." (Era Bom Que Trocássemos umas Ideias sobre o Assunto, 1995). A elipse pode ser também um artifício retórico decisivo para a marcação de um estilo literário, sobretudo no caso dos escritores que procuram dizer o mais possível com o menor número de palavaras. Ocorre, desde logo, a obra de Carlos de Oliveira, que foi sujeita a uma severa redução de texto de edição para edição pela mão do próprio autor. O romance Finisterra. Paisagem e Povoamento (1978) ilustra o tipo de narrativa elítptica, onde o discurso é reduzido ao seu essencial, sem ornamentos nem elementos sintácticos supletivos: “Os bois, fazem favor. O mesmo ódio, o mesmo ferrete. Marcar as reses, dizem eles. Esquecer a manada solta através dos prados. Criar o animal doméstico, a paciência que se ouve nos provérbios. E a nossa memória (ruminada) de chifres contra chifres? Querem lá saber. O fogo continua: nas cozinhas, nas matanças destivas. Até que surge este desenho. Francamente.” (Obras de Carlos de Oliveira, Caminho, Lisboa, 1992, p.1040). Certos modos de expressão narrativa como o monólogo interior, o diálogo ou o solilóquio são propícios a omissões de parte do discurso, para aproximar a linguagem o mais possível da oralidade, onde sistematicamente recorremos à elipse.



2 - Na narratologia, é costume chamar-se elipse a todas eliminações de partes da acção que ajudam à economia da narrativa e não são importantes para a compreensão da história narrada. O conceito foi introduzido por G. Genette, em Figures III (1972) e inclui três variantes: elipse explícita, se estiver claramente identificada no discurso, por exemplo, com expressões do tipo “Um ano mais tarde” ou “Muito tempo depois”; elipse implícita, se não estiver claramente identificada no discurso, só se inferindo pelos dados fornecidos ao longo da história; elipse hipotética, apenas deduzida a partir da informação restrita que o autor nos dá sobre o desenrolar da história. Os elementos eliminados da história num dado momento podem ser ou não recuperados mais tarde. Se assim acontecer, o recurso à analepse ou flash-back é o mais provável.

Para alguns narratologistas como Mieke Bal, uma elipse, a rigor, nunca pode ser detectada (na terminologia de Genette, equivale a dizer que todas as elipses são “hipotéticas”), porque se nada é indicado no discurso nada podemos dizer sobre aquilo que devia estar indicado (cf. Introduction to the Theory of Narrative, University of Toronto Press, Toronto, 1985, p.71ss), o que significa que a detecção de uma elipse é, afinal, um exercício de adivinhação. Nos casos em que usamos expressões do tipo “Um ano mais tarde”, não estamos a fazer verdadeiramente uma elipse mas um “sumário mínimo”. Esta questão leva-nos à dificuldade natural de separar o que é um sumário e o que é uma elipse. Se a expressão “Um ano mais tarde” não sugere necessariamente que algo aconteceu e o acontecimento tem a ver com a história narrada, então podemos dizer que se trata de uma verdadeira elipse; se a mesma expressão não contiver nenhuma possibilidade de acontecimentos relevantes, então dir-se-á que essa expressão resume drasticamente uma determinada duração da história, mas não omite necessária e voluntariamente dados da história.



APOSIOPESE; ASSÍNDETO; BRAQUILOGIA; TEMPO; ZEUGMA



Bib.: Barbara Cairns: “A Systemic Model for Ellipsis”, Working Papers, 35 (1989); Crit Cremers: “On the Form and Interpretation of Ellipsis”, in Studies in Modeltheoretic Semantics, ed. por Alice Meulen (1983); J. D. Sadler: “Ellipsis”, Classical Journal, 74 (1979); Robert J. Stainton: “Non-Sentential Assertions and Semantic Ellipsis”, Linguistics and Philosophy: An International Journal, 18, 3 (1995); Stanley B. Greenfield: “Ellipsis and Meaning in Poetry”, Texas Studies in Literature and Language: A Journal of the Humanities, 13 (1971).



Carlos Ceia

Refrão

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Do castelhano refrán, o refrão é a repetição do mesmo verso ou conjunto de versos no final de cada estrofe.

Processo formal muito remoto, o refrão é já visível nas litanias suméricas e egípcias, na Bíblia, na poesia grega e latina e nos hinos litúrgicos da igreja primitiva. Este processo literário, documentado desde o século XIII e mencionado na poética fragmentária, é encontrado na poesia provençal e nas cantigas paralelísticas galego-portuguesas, nas quais, a par do paralelismo e do elixa-prem, prolonga e alarga a ideia fundamental da cantiga, desde já reduzida, repetindo-a. Tornar-se-à depois parte integrante da estrutura formal da balada, da canção e do rondó.

Este é o momento base do paralelismo trovadoresco medieval, pertença da cantiga tradicional e popular e, por isso, mais frequente entre as cantigas de amigo do que entre as de amor e as satíricas, distingue a cobla galego-portuguesa da cobla provençal, que não inclui o refrão Na grande maioria das suas cantigas, e traduz, na opinião de muitos, a monotonia do nosso sentimentalismo, além de uma certa uniformidade e repetição na sua estrutura, visto que todos os versos da estrofe devem terminar no refrão e como este é o mesmo para cada estrofe na maioria dos casos uma reprodução exacta, é inevitável a repetição da ideia, por vezes com ligeiras variações na forma.

É-lhe atribuída bastante importância como elemento estruturante e é, muitas vezes, considerado um verdadeiro mote e a alma da cantiga, visto que encerra toda a sua ideia central. O interesse por este elemento formal está também testemunhado no Cancioneiro da Biblioteca Nacional, no qual a palavra “tornel”, em letra do século XVI identifica a grande maioria das cantigas de refrão e assinala a preocupação do seu compilador, Angelo Colocci, em reconhecer as cantigas com esta estrutura formal.

A tipologia dos refrães da lírica galego-portuguesa é variada e não se esgota no refrão de forma fixa, com o número de versos inferior ao do resto da estrofe e com o número de sílabas métricas igual ao dos restantes versos da cobla. Existem outros tipos de refrão, como o refrão intercalar, cujos versos surgem total ou parcialmente dentro da estrofe, e o refrão inicial que aparece no inicio da cantiga e é repetido no fim de cada estrofe, embora estes dois tipos de refrão não sejam muito frequentes na lírica galego-portuguesa.

A cantiga de seguir, género estabelecido na Arte de Trovar, apresenta como jogo formal o refrão de citação, consiste na adopção de um refrão de uma cantiga de um autor diferente, construindo-se um texto com outro significado. A citação de refrães diferentes em cada estrofe, independentes de qualquer cantiga e utilizados várias vezes em canções de géneros diferentes, é também um artifício da lírica francesa medieval, produzindo uma ideia de repetição semelhante aquela provocada pela repetição de refrães iguais dentro de estrofe.

Existem ainda refrães com número de versos maior que o número de versos de cada estrofe, de metro mais longo ou mais curto, refrães cuja rima não é independente da da estrofe, refrães de versos repetidos e refrães provérbio, entre outros.

O refrão, elemento integrante da cantiga, documenta igualmente a união da poesia com a musica, tradição esta já muito anterior à poesia lírica galego-portuguesa. Assim, em termos musicais, o refrão poderá ser definido como uma forma vocal ou instrumental reproduzida após cada copla de uma composição musical estrófica.

Artifício musical já utilizado em civilizações muito anteriores, o refrão aparece nas mais remotas formas musicais, quer em países europeus, quer em civilizações orientais de todo o mundo surgindo de igual modo na musica popular e profana ou na religiosa e erudita. Em certos casos, o refrão é constituído apenas com base na repetição de sons ou constituído por uma única palavra.

O refrão é actualmente muito comum na música “ligeira”, na qual segue ainda os preceitos primitivos, mas é bastante raro na música erudita e culta de vanguarda.

Bib.: Jose Fradejas Lebrero: “Evolución de un Refran”, Epos, nº 4 (1988); G.C. Manuel: “La Cultura del Refran”, Cadernos de Poetica, nº 4/11 (1987); Mário Garcia Page: “Propriedades Linguísticas del Refran”, Epos, nº6 (1990); Ma Nieves Vila Rubio: “El Refran: Un Artefacto Cultural”, Revista de Dialectologia y Tradiciones Populares, nº90 (1990).

Ana Ladeira

TORRE DE MARFIM

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Expressão metafórica para designar a atitude de indiferença e de distanciamento em que se colocam alguns escritores/artistas, numa recusa ostensiva do mundo exterior. O conceito surge ligado à figura do poeta isolado que contempla comodamente o mundo no refúgio da sua torre de marfim, numa postura aristocrática, egocêntrica e mesmo sonhadora. Alheio às controvérsias que agitam o seu tempo e repudiando o compromisso social, o poeta considera a sua arte o destino supremo que a vida lhe reserva.

Simbolicamente, a torre evoca Babel, porta do céu, fixada na Terra com o fim de restabelecer o elo primordial com (os) deus(es); pela brancura, conotar-se-ia com a pureza e o poder quase incorruptível do marfim. Contudo, embora construída com o propósito de elevar o homem à divindade, a torre acaba por perverter-se no seu contrário, símbolo do orgulho humano.

O conceito de torre de marfim é largamente difundido no século XIX ( por Sainte Beuve, por exemplo), no contexto antipositivista de reacção a uma certa tendência romântica para atribuir à arte um fim utilitário. Literariamente , o termo aproxima-se do princípio da arte pela arte, exemplificado no Parnasianismo, que dita os moldes de uma nova estética voltada para a sublimação da beleza. Neste ponto, Baudelaire, entre outros, defende que a poesia não tem outro objectivo senão ela mesma já que a arte é um mundo de perfeição fora deste mundo.

O poeta compreende que a realidade é imperceptível aos sentidos e o verdadeiro conhecimento exige, por isso, que desvie o olhar de tudo quanto o rodeia para descer dentro de si, onde mora o ideal desejado. A poesia torna-se, assim, elevação divina da alma do poeta, só possível numa espécie de vida contemplativa na procura desse absoluto. Surgem, naturalmente, elites intelectuais, associadas a um certo dandismo estético, isoladas sobre si mesmas, mas numa abertura para o infinito que radica no próprio “eu”.

A expressão torre de marfim adquire com frequência um sentido pejorativo, pois, face à impossibilidade de realizar o ideal, na procura desses “paraísos artificiais” sobrevem o cansaço, a frustração e o “mal du siècle” que entedia a vida. A torre torna-se, então, uma síndrome dos orgulhosos e misantropos que, fechados na sua torre, não reconhecem os perigos da literatura que se afasta da vida. É esta a crítica feita por F. L. Lucas em The Decline and Fall of the Romantic Ideal : «[…] but I doubt if […] Ivory Towers are healthy for poets in the end. Ivory Towers have Ivory Gates, through which false and vain dreams come. Such a life divides the poet from his hearers, it divides him against himself.» (Cambridge University Press, Cambridge, 1963, p.213).

O termo tem o seu uso literário, desde logo, em O Cântico de Salomão (7:4); surge ainda no poema «Esperança», de Almada Negreiros (“[...] A preguiça do céu entrou comigo / E prescindo da realidade como ela prescinde de mim./ Para que me lastimas / Se este é o meu auge ?! / Eu tive a dita de me terem roubado tudo / Menos a minha Torre de Marfim. / [...] Só não sei que faça da porta da torre que dá para donde vim.”) ; e também, entre outros, em A História Interminável de Michael Ende: « [...] A Torre de Marfim, o coração de Fantasia e a residência da imperatriz Criança [...] cujo ponto mais alto desaparecia nas nuvens.» ( 2ª ed., Editorial Presença, Lisboa, 1986, p. 22); é ainda fácil reconhecer o conceito na filosofia estóico-epicurista das odes de Ricardo Reis, por exemplo, no seu poema “Ouvi contar outrora , quando a Pérsia”.





Bibliografia :



F. L. LUCAS, The Decline and Fall of the Romantic Ideal ( 1963).



William WIMSATT e Cleanth Brooks, Crítica Literária – Breve História ( 2ª ed., s.d.)



Isabel Almeida

Ginocrítica (gynocriticism)

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Teoria feminista de inspiração anglo-americana que defende que as mulheres têm um processo de leitura e escrita diferentes do homem, por força das diferenças biológicas e das formações culturais da categoria de género. Trata-se de uma proposta de abordagem diferente da crítica feminista, porque não prevê a revisão crítica da escrita literária realizado por homens, concentrando-se antes numa escrita exclusivamente feminina. O carácter crítico desta teoria explica-se, segundo uma das suas mais empenhadas promotoras, E. Showalter, pelo propósito de redefinir as diferenças que nascem nas ideologias culturais e nas experiências biográficas e pelos modos de expressão do feminino. Resulta ainda de todas as opressões patriarcais que desde sempre marcaram a condição feminina. Showalter definiu assim os limites e os objectivos da ginocrítrica: “[gynocriticism] is the study of women as writers, and its subjects are the history, styles, themes, genres, and structures of writing by women; the psychodynamics of female creativity; the trajectory of the individual or collective female career; and the evolution and laws of a female literary tradition.” (“Feminist Criticism in the Wilderness”, in The New Feminist Criticism: Essays on Women, Literature and Theory, ed. por E. Showalter, Virago, Londres, 1986, p.248).

A poética marcada pela perspectiva masculina do fenómeno literário, sobretudo a partir da época vitoriana, defende que a imaginação literária não obedece a qualquer diferença sexual e que uma redefinição da história literária em termos feministas é em si mesma uma forma de discriminação sexual. Para esta tradição, as questões do género não se devem colocar, porque a imaginação criadora é só uma. A partir da década de 1970, algumas feministas contestaram veementemente esta posição, argumentando que o género é um aspecto decisivo da criação literária, existindo uma longa história de discriminação da literatura feita por mulheres e, sobretudo, da visão das mulheres que os escritores homens legaram à civilização ocidental, distorcendo a sua especifidade e o seu valor cultural. Escritoras como Virginia Woolf e Dorothy Richardson foram talvez as primeiras a tomar consciência da prisão ideológica e cultural onde que as mulheres haviam sido colocadas pelas visões patriarcais. As teóricas francesas das últimas décadas do século XX chamaram a atenção para a existência de uma escrita feminina, acessível a homens e a mulheres, mas defendendo em qualquer caso o corpo feminino, as suas paixões, os seus desejos, as suas ambições, etc. Para resguardar a ginocrítica de acusações sexistas, Showalter e outras defendem que não se procura aqui uma via essencialista que reduz a imaginação literária a uma questão de identidade e estilo exclusivamente femininos.

ESCRITA FEMININA; ESSENCIALISMO; ESTUDOS SOBRE AS MULHERES; GÉNERO; MASCULINIDADE

Bib.: Barbara Godard (ed.): Gynocritics: feminist approaches to Canadian and Quebec women's writing. Gynocritiques: démarches féministes à l'écriture des Canadiennes et Québécoises (1987); Elaine Showalter: A Literature of Their Own: British Women Novelists from Brontë to Lessing (1977); Id. The Female Malady: Women, Madness, and English Culture, 1830-1980 (1985); Id.: Sexual Anarchy: Gender and Culture at the Fin de Siècle (1990), Sister's Choice: Tradition and Change in American Women's Writing (1991); Daughters of Decadence: Women Writers of the Fin de Siècle (1993).

http://landow.stg.brown.edu/victorian/gender/femtheory.html

Carlos Ceia

NOUVEAU ROMAN

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Termo aplicado a um conjunto de romances franceses publicados no pós guerra (depois de 1945) da autoria de Alain Robbe Grillet, Nathalie Sarraute, Michel Butor, Marguerite Duras, Claude Simon. O termo é sobretudo da responsabilidade dos jornalistas, que tiveram que encontrar uma designação acessível respeitante à renovação romanesca ocorrida no panorama da literatura francesa da década de 50. Mas, de facto, não existem afinidades claras entre as várias produções literárias; o que existiu foi uma confluência dessas produções numa editora, Éditions de Minuit e uma vontade de renovar o romance, rejeitando a maioria das suas características tradicionais. Por vezes, estes romances lembram o anti romance e têm como antecessores Kafka, Louis Ferdinand Céline, William Faulkner, Samuel Beckett e Albert Camus. Apesar do nome mais notório do agrupamento arbitrário de romancistas ser o de Alain Robbe Grillet, muitos consideram que um dos primeiros passos para o estabelecimento do “novo romance” foi dado com a publicação de Tropismes (1938) de Nathalie Sarraute. Roland Barthes, num texto de 1958, “Não há escola Robbe Grillet”, demonstra a dissemelhança entre os romances de Robbe Grillet e os de Butor: os do primeiro autor recusam a História, a psicologia das motivações e a significação dos objectos; os do segundo instituem uma dimensão simbólica. Assim sendo, Robbe Grillet encontra se do lado da negatividade própria de muita produção romanesca do pós guerra e Butor do lado de uma positividade absoluta. Conclui Barthes que não se pode imaginar duas artes mais opostas do que as referidas. No entanto, todos os romancistas deste período literário escrevem contra os padrões tradicionais do enredo romanesco.

Analisados os principais vectores que atravessam o termo em questão, nouveau roman designa o “romance em superfície” (R. Barthes) de características anti humanistas, que acabam por ser as encontradas na produção romanesca de Robbe Grillet. De facto, os seus romances exprimem, por um lado, uma negação ao nível das técnicas romanescas. A novidade consiste na recusa em representar sentidos para o mundo, instituindo o “nada humano do objecto” (R. Barthes). Por outro lado, Robbe Grillet teorizou sobre o novo romance em Por Um Novo Romance (1963), afirmando, no entanto, logo no início do livro, que não era um teórico do género. De qualquer forma, a polémica causada pela sua escrita levou o a justificar se. O posicionamento deste autor representa, por um lado, a aceitação da história literária, ao dizer: “Flaubert escrevia o novo romance de 1860, Proust o de 1910”, mas, por outro lado, representa também a crença num devir incerto da forma literária romance.

Frequentemente, nouveau roman designa um outro termo école du regard como sinónimo da técnica romanesca de Robbe Grillet. As características mais vanguardísticas dos romances de Robbe Grillet decorrem do descompromisso típico da literatura do pós guerra. Afirma o autor: “Ora o mundo não é significante nem absurdo. Existe, muito simplesmente” (Por um Novo Romance). Apesar da sua filiação não ser existencialista, sobressai um aspecto da fenomenologia husserliana, que é a experiência directa dos dados do mundo em que a validade do conhecimento é fundada de um modo imediato. Este tipo de experiência crucial na representação da realidade nos romances do autor referido é considerado na ausência total de pressupostos. O primado da percepção significa que a objectividade se constitui a partir de actos subjectivos. Com efeito, Robbe Grillet defende que o novo romance visa uma subjectividade total, opondo se muito claramente à objectividade implícita na visão omnisciente do romance tradicional. Nesta medida, as conjecturas do autor são antitradicionalistas e entram na categoria de uma poética da obra aberta tal como Umberto Eco a concebe em Obra Aberta (1962). A experiência directa de Robbe Grillet é semelhante à transmissão directa de acontecimentos característica da estética televisiva segundo Eco. O “novo romance” de Alain Robbe Grillet caracteriza se por se manter à superfície do objecto, dando se por isso uma “promoção do visual” (R. Barthes); a descrição é semelhante à pintura moderna porque destrói a unidade do objecto, ao criar um novo espaço com uma profundidade temporal. No fundo, trata se de uma escrita marcada pelo “estranhamento” ou “desfamiliarização” no sentido em que o mundo “objectalista” representa o “carácter inabitual do mundo que nos rodeia” (A. Robbe Grillet).

Outro marco da definição do termo advém de um conjunto de ensaios sobre o romance da autoria de Nathalie Sarraute, A Era da Suspeita (1956). A suspeita decorre da indiferença e da descrença notórias na sociosfera europeia do pós guerra; neste caso, a suspeita é aplicável ao romance psicológico aqui considerado como um romance do passado na medida em que a verdade individual tem muitas facetas, o que torna a preferência dada à psicologia uma convenção literária tão estéril como outras. A autora considera o ser humano como um “corpo sem alma”, um “eu” anónimo. A impessoalidade é reivindicada para a narrativa romanesca, dando se, então, de novo o triunfo da exterioridade. Jacques Leenhardt vai no mesmo sentido quando define o termo a partir de uma ruptura com todos os determinismos constitutivos do romance anterior a este “novo romance”, os de ordem psicológica, sociológica e metafísica. Há, por isso, uma inversão total: é o mundo, o exterior que determina o que chamamos a interioridade e o eu. O nouveau roman dá conta da “pregnância da exterioridade”.

Ficou célebre na época a interpretação do nouveau roman por Lucien Goldmann no sentido de uma análise das relações do romance de Robbe Grillet com a teoria marxista da reificação. A hipótese de trabalho é a de que existe uma relação de homologia entre as estruturas sociais marcadas pelo fetichismo da mercadoria (a reificação) e as estruturas romanescas em causa. A sociedade capitalista ocidental define se, no século XX, pelo desaparecimento progressivo do indivíduo como realidade essencial e pela independência crescente dos objectos. O mundo circundante é, então, um mundo de objectos como um universo autónomo de qualquer vontade humana. Por isso, para este autor, o desaparecimento da importância e da significação da acção individual torna os “romances novos” (como os de Robbe Grillet) os mais realistas da literatura contemporânea.

No panorama da literatura portuguesa, no início da década de 60, dois escritores aderiram ao nouveau roman, Alfredo Margarido com o romance A Centopeia (1961) e Artur Portela Filho com o volume de contos Avenida de Roma (1961). Foram considerados romances de resistência à tradição romanesca amplamente rejeitada nestes textos mas, apesar da polémica na imprensa cultural da época, a influência do novo romance foi relativamente limitada.

Bibliografia Barthes, Roland, Ensaios Críticos, Edições 70, Lisboa, 1977; Butor, Michel e AA VV., Nouveau Roman: hier, aujourd’hui, U.G.E., 10/18, Paris, 1972; Eco, Umberto, Obra Aberta, Difel, Lisboa, 1989; Goldmann, Lucien, Pour une Sociologie du Roman, Gallimard, Paris, 1964; Margarido, Alfredo e Portela Filho, Artur, O Novo Romance, Editorial Presença, Lisboa, 1962; Ricardou, Jean, Pour une Théorie du Nouveau Roman, Seuil, Paris, 1971; Ricardou, Jean, Le Nouveau Roman, Seuil, Paris, 1973; Robbe Grillet, Alain, Por um Novo Romance, Publicações Europa América, Lisboa, 1965; Sarraute, Nathalie, A Era da Suspeita, Guimarães Editores, Lisboa, 1963; Tadié, Jean Yves, O Romance no Século XX, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1992.

Eunice Cabral

Sequência narrativa

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Agrupamento lógico das acções de uma história. O estruturalista francês Claude Brémond (1973) propôs uma sistematização das formas de funcionamento do fluxo narrativo, que inclui a alternância, o encadeamento e o encaixe. Por exemplo, a novela conhecida por Menina dos Rouxinóis contida em Viagens na Minha Terra, de Almeida Garrett, pode ser considerada globalmente um encaixe no texto digressivo das viagens realizadas pelo Autor. Os factos que constituem essa novela interna se desenvolvem estão devidamente encadeados entre si e alternam várias reflexões e pequenas outras histórias. Como texto complexo que é, as Viagens ilustram os principais métodos de combinação de sequências narrativas. O modelo de Brémond (influenciado pelas teorias morfológicas de Propp sobre as funções) foi largamente utilizado na didáctica da literatura portuguesa durante as décadas de 1980 e 1990 e acabou por sofrer uma simplificação no estudo da narrativa, sem se olhar ao facto de o modelo estar limitado a uma lógica redutora do estudo do texto literário, muitas vezes sacrificando a sua interpretação a esquematizações impenetráveis. O modelo das sequências narrativas, tal como é descrito por Brémond não está orientado para as variações temporais das acções narradas, mas prevê somente relações formais do subtexto com o texto principal ou dos subtextos entre si.

ALTERNÂNCIA; ENCADEAMENTO; ENCAIXE; FUNÇÃO

Bib.: C. Brémond: Logique du récit (1973); Sholomith Rimmon-Kenan: Narrative Fiction: Contemporary Poetics (1983); T. Todorov: “Les catégories du récit littéraire”, Communications, 8 (1966).

Carlos Ceia

Sexualidade e literatura

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

À conhecida expressão lacaniana “o inconsciente está estruturado como uma linguagem”, podemos acrescentar com pertinência outra do autor freudiano: “a realidade do inconsciente é a realidade sexual”.

Mais do que as noções do inconsciente e da divisão do sujeito de que nem todos medem a realidade, foi o alargamento da noção de sexualidade pela psicanálise que escandalizou e continua a chocar muitos bem-pensantes. Com efeito desde Freud que o termo sexual se refere a um conjunto de actividades sem relação com os órgãos genitais e que, assim, o sexual e o genital deixaram de se confundir. Como nota Lacan, “desde Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade que Freud supõe a sexualidade como essencialmente polimorfa, aberrante. O encanto de uma pretensa inocência da criança rompe-se”. Noutro texto é a pretensa ignorância da criança que Lacan ele mesmo interpela em termos definitivos: “Gostaria de saber, na balança do Eterno, o que pesa como a melhor apreensão do outro, se a que pode ter o senhor Piaget na sua posição de professor e na sua idade, ou a de uma criança. Essa sua prodigiosa permeabilidade a tudo o que é mito, lenda, conto de fadas, história, essa facilidade em deixar-se invadir pela narração…”

Essa polimorfia da criança estará na origem da sua vida sexual adulta, mas também na dos seus sonhos, lapsos, actos falhos, neuroses ou perversões. Mas é também ela quem nos conduz às e nas nossas actividades criativas sociais, profissionais ou artísticas.

Freud sustenta que a pulsão sexual (que não é um todo, antes se concretiza nas chamadas pulsões parciais) é o efeito da relação a um outro ser humano falante e desejante e que no investimento libidinal é visado um objecto, indiferente em si mesmo, mas subjectivamente e históricamente determinado que satisfaz (parcialmente) o fim do gozo da pulsão sexual. Fim que não tem nada a ver com o acto sexual na sua finalidade biológica de reprodução. Freud supõe assim um parentesco psíquico entre a satisfação sexual obtida no acto sexual e a obtida pela sublimação das componentes da pulsão. Sublimação que ele considera na origem das “obras culturais mais grandiosas”.

É assim que Lacan, para quem, “face à instância da sexualidade todos os sujeitos estão em igualdade, desde a criança ao adulto: só têm a ver com o que, da sexualidade, passa nos interstícios da constituição subjectiva, nas redes do significante”. Não será assim deturpar o pensamento daquele que disse “que não há relação sexual”, dizer que a criação artística, a literária nomeadamente é o que mais nos aproxima de uma relação sexual enfim conseguida.

De facto, toda a fala é duplamente sublimação do corpo: substitui a simbiose corporal primitiva, é o lugar da distância, permite realizá-la, regulá-la; e integra de modo essencial a experiência do corpo como sua base essencial e real. Esse momento irrecuperável para a memória que se diz permanece na memória sem nome. Aí se forma o desejo que a psicanálise descobre como impossível de satisfazer. O retorno a essa memória nas mais variadas formas parece fundamental ao artista. E a tentativa desesperada de reencontrar esse corpo primitivo na sua relação ao outro fundamental à criação literária.

Bib.: Sigmund Freud,Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, (1905), in Textos Essenciais da Psicanálise, vol.II, Lisboa, Europa-América, 1989; Compendio del Psicoanalisis, (1938), Obras Completas, vol.III, Madrid, Biblioteca Nueva, 1973. Jacques Lacan, Os quatro conceitos fundamentais de psicanálise, (SeminárioXI, 1964), Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1979 (1973). Roland Barthes, Sade, Fourrier, Loyola, (1971), Lisboa, Ed.70, 1979.

Maria Belo

UT PICTURA POESIS & UT MUSICA POESIS

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

UT PICTURA POESIS

Expressão usada por Horácio na sua Arte Poética (c. 20 a. C.), que significa “como a pintura, é a poesia” e que, apesar de não possuir um significado estrutural, veio a ser interpretada como um princípio de similaridade entre a pintura e poesia. A afinidade entre as duas artes já fora mencionada por Plutarco, o qual atribuiu ao poeta Simónides de Céos o dito segundo o qual “a pintura é poesia calada e a poesia, pintura que fala” (De gloria Atheniensium, 346 F). Na mesma obra (17 F - 18 a), Plutarco esclarece ainda que tal comparação se baseia no facto de pintura e poesia serem, supostamente, imitações da natureza, princípio este que se revelaria fulcral nas reformulações sofridas pela analogia entre ambas as artes ao longo da Antiguidade clássica.

Durante a Idade Média, esta questão foi sobretudo divulgada através dos modelos romanos (Horácio, Cícero, Quintiliano, etc.), tendo conhecido um importante desenvolvimento com a conquista do espaço pictórico iniciada por Giotto, e que tendeu a aproximar mais o indivíduo dos textos bíblicos.

No Renascimento, o símile horaciano, que continuou a conhecer grande divulgação sobretudo entre os humanistas, contribuiu para igualar em excelência ambas as artes, assim como para difundir a importância da componente pictórica na poesia, como o comprova o sucesso alcançado pela chamada poesia descritiva até meados do século XVIII. Leon Battista Alberti, um dos autores mais representativos da discussão que envolvia as duas artes no início do Renascimento, já irá desenvolver a questão não a partir do símile horaciano mas sim adaptando o modelo do orador de Cícero às artes visuais. A excelência do pintor, segundo Alberti, passa assim a estar directamente dependente da sua capacidade de impressionar o indivíduo, tal como o bom orador deve ser capaz de mover os seus ouvintes. Os teóricos maneiristas e neoclássicos deram grande importância a esta questão, dividindo-se as hostes em favor ora da poesia ora em favor da pintura, mas concordando na necessidade de delimitar os processos de imitação a que ambas as artes obedecem. As relações entre poesia e pintura só serão abertamente postas em causa por diversos teóricos na segunda metade do século XVIII, entre os quais se destacam Edmund Burke e o crítico alemão G.E.Lessing. Este último irá apresentar no seu ensaio Laokoon: oder über die Grenzen der Malerei und Poesie (1766) os contra-argumentos desse pricípio de similaridade entre as dus artes, dotando a poesia de um estatuto superior face à pintura, atitude de certa forma paralela àquela dos românticos alemães (Schelling, Hegel, Schleiermacher) para quem a poesia constituia a síntese suprema da arte, pois reunia em si a imaginação criativa das artes plásticas e a emoção que fluía da música.

Almeida Garrett, na fase inicial da sua carreira, também se pronunciou sobre a “sentença” de Horácio e rejeitou a equivalência entre as duas artes, porque, na Antiguidade, a pintura estava “atrasada” em relação à poesia. É que os Gregos não tinham então Homeros em pintura. A argumentação de Garrett já irá privilegiar a pintura, porque é a arte que melhor se adequa à imitação da natureza: “A poesia animada da pintura exprime a natureza toda; a dos versos, porém, menos viva e exacta, falha em muita parte na expressão de suas belezas. Que poeta poderia dar uma ideia de Rómulo como David no seu quadro das Sabinas? “Que versos nos poderiam fazer imaginar a Divindade como a Transfiguração de Rafael? Que poema nos faria conceber a majestade dum Deus criador dando forma ao caos, e ser ao universo, como a pintura de Miguel Ângelo?” (Ensaio sobre a História da Pintura, Obras Completas, vol. 1, Lisboa, 1904, p. 27 a-b).

O princípio de similaridade entre poesia e pintura volta a ser reafirmado com o Realismo e o Parnasiarismo. No caso português, alguns poemas de Cesário Verde são um excelente exemplo desta revalorização da vertente pictórica na poesia, enquanto que a obra d’O Egipto, de Eça de Queirós, o é no campo da prosa.

Com o Modernismo e o advento das chamadas correntes vanguardistas (Surrealismo, Futurismo, Cubismo, etc...), as relações entre ambas as artes estreitam-se ainda mais, renovando as experiências poético-pictóricas de alguns poetas dos períodos maneirista e barroco, como o comprova a tentativa de fusão da expressão literária com a plástica nos caligramas de G - Apollinaire.

O interesse pela fusão poético-pictórica vai conhecer um novo desenvolvimento na segunda metade do século XX, com a chamada poesia concreta, iniciada no Brasil nos anos 50, e a poesia experimental da década de 70, manifestações que comprovam mais uma vez a actualidade e o alcance do símile horaciano.


UT MUSICA POESIS



Bib: A.García Berrio e M.T.Hernández: Ut poesis pictura: Poética del arte visual (1988); C.O.Brink: Horace on Poetry; I: Prolegomena to the Literary Epistles(1963); Ars Poética (1971); Fernando Cristovão: Marília de Dirceu de Tomás António Gonzaga ou a Poesia como Imitação e Pintura(1981); Fernando Guerreiro: “Ut pictura, poesis. Ou a intransitividade de um princípio”, in Afecto às Letras: Homenagem da Literatura Portuguesa Contemporânea a Jacinto do Prado Coelho (1984); Garcez da Silva: A Pintura na Obra de Eça de Queirós (1986); H.Ch.Buch: Ut pictura poesis: Die Beschreibungsliteratur und ihre Kritiker (1972); J.F.D’Alton: Roman Literary Theory and Cristicism (1931; reimp. 1962); Peter le Huray e James Day: Music and Aesthetics in the Eighteenth and Early - Nineteenth Centuries (1981); P. Grimal: Essay sur l’Art Poétique d’Horace (1968); R.W.m.: “Ut pictura poesis: The Humanistic Theory of Painting” (the Art Bulletin, 22, 1940).

Carla Sofia Carneiro Escarduça

UT MUSICA POESIS

Expressão latina que dá conta das relações entre música e poesia, artes que usufruíam da protecção das Musas na antiga Grécia. Tal facto já se
encontra testemunhado na própria palavra grega mousiké, uma vez que esta significa toda a actividade decorrente da inspiração das Musas, embora
possa designar, em particular, a dança, a musica e a poesia. Na Grécia o mito de Orpheu e a poesia lírica (acompanhada por uma lira, flauta ou
cítara) constituem nesta época a fusão perfeita das duas artes numa só.

Na Idade Média os hinos litúrgicos e a poesia trovadoresca (cantigas de amigo e cantigas de amor) constituem exemplos bem evidentes do carácter
indissociável entre alguns textos poéticos e o respectivo acompanhamento musical, embora tal associação, por vezes, apenas pretendesse facilitar
a aprendizagem dos poemas em questão.

No decorrer do século XV, o declínio da poesia cantada prenuncia já a importância da profunda relação entre a poesia e a música face à
emergência da poesia escrita. Apesar de tudo, durante o Renascimento e o Barroco, o sucesso alcançado por alguns géneros dramáticos, tais como a
ópera, e por géneros poéticos como a cantata e o madrigal ainda atestam a proeminência da relação entre ambas as artes.

No século XVIII a música adquire uma relevância excepcional nas representações dramáticas, uma vez que esta, segundo James Harris, decai
invariavelmente «if not maintained and fed by the nutritious images of poetry» (Three Treatises, 1744). Contudo, ainda no decorrer deste mesmo
século, a música instrumental irá ganhar um prestígio anteriormente desconhecido, permitindo a transferência gradual de um modelo poético
baseado na pintura para um outro baseado na música. O estatuto alcançado pela música instrumental ganha ainda mais proeminência no século XIX com
o Romantismo e com a ideia de que a música é a arte suprema por excelência, pois ela, mais do que nenhuma outra, consegue realizar o
ideal artístico que identifica a forma com o conteúdo. Esta crença na capacidade da arte musical ultrapassar a barreira da mera significação
também atraiu os simbolistas e os modernistas, tendo estes últimos celebrado sobretudo as qualidades formais da música. Poetas como
Mallarmé e Wallace Stevens já não mais conseguem conceber a poesia como indissociável da harmonia, sonoridade e ritmo proporcionados pela
música, chegando este último a considerar em The Necessary Angel (1951) que as palavras na poesia são, acima de tudo, sons.
Tal como sucedeu no domínio das relações entre a pintura e a literatura, também muitos textos poéticos constituiram elemento
inspirador de textos musicais, como acontece com o poema «La cathédrale engloutie, de Debussy» de Jorge de Sena. Estes são apenas alguns
exemplos que comprovam a actualidade da expressão ut musica poesis, expressão que no campo da literatura tradicional de transmissão oral
encontra, ainda no século XX, renovação constante.


UT PICTURA POESIS

Bib: Bruce Pattison: Music and Poetry of the English Renaissance (1948); Kevin Barry: Language Music and the Sign (1987); Manuel Pedro
Ferreira: O Som de Martin Codax, Sobre a Dimensão Musical da Lírica Galego – Portuguesa (Séculos XII-XIV) (1986); Oliver Strunk (ed.):
Source Readings in Music History (1952); Peter le Huray e James Day (ed.): Music and Aesthetics in the Eighteenth and Early-Nineteenth
Centuries (1981).

Carla Sofia Caneiro Escarduça

Teatro do absurdo

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Se atendermos à etimologia do termo absurdo, este remete-nos para o latim absurdu, ou seja, contrário à razão, contraditório, disparatado. O teatro do absurdo seria assim, um teatro pautado por uma visão irracional, e disparatada da realidade. Não menosprezando a importância de uma explicação etimológica do termo, esta revela-se claramente redutora face à complexidade do conceito em análise, pois este encerra uma nova atitude perante as artes, a filosofia, a religião, a política, a sociedade, enfim, uma nova atitude entre teatro e realidade. Esta posição do teatro face à realidade tem também de ser compreendida à luz do Zeitgeist, no qual este teatro surge, bem como à luz das influências, das especificidades e sensibilidades autorais, já que o teatro do absurdo é constituído por uma rede de autores, que compreendem o mundo de formas diversas, transpondo estas visões para diferentes formas de entender e criar teatro. Mais do que atender às especificidades de cada autor, tentaremos traçar as linhas gerais, os pontos de contacto, que afinal fazem com que se tivesse convencionado juntar determinados autores e obras no universo teatral do absurdo. O primeiro crítico que tentou tal sistematização foi Martin Esslin, em 1961, na sua obra, ainda hoje de referência, The Theatre of the Absurd. E qualquer sistematização terá de começar pelo início: o contexto.

Devemos naturalmente inserir o teatro do absurdo num contexto europeu, pós- Segunda Guerra Mundial. Com os escombros deste conflito, emerge também uma identidade fragmentada, despedaçada por uma descrença e cepticismo generalizados: Todos os pilares, nos quais assentava a nossa civilização estavam também reduzidos a pó. Política e ideologicamente o Homem tinha falhado, já que tanto os sistemas capitalistas democráticos, como as ditaduras não haviam conseguido evitar a guerra, e, como tal, tinham impedido o Homem de avançar de forma optimista para a perfeição e progresso ilimitado. Filosofica e cientificamente a crença no positivismo tinha falhado, pelas razões já enunciadas anteriormente. Do ponto de vista religioso, a Homem sentia-se órfão, perdido do ponto de vista espiritual. Que Deus era aquele que permitira tanta atrocidade? Por toda a parte o vazio existencial, o nada - um Homem isolado, despido de valores e certezas, munido de uma linguagem cada vez mais artificial e falsa, uma vida sem objectivos, condenado a esperar pelo vazio eterno, enfim, uma realidade que desafiava todos os limites da razão, uma existência disparatada – o absurdo. Podemos dizer que o teatro do absurdo nasce assim de uma reflexão profunda sobre a realidade, sobre o homem, sobre a linguagem e da relação do teatro com todas estas variáveis. Para além de proceder a uma crítica à realidade exterior ao próprio teatro, este também vai proceder a um mecanismo de autoreflexividade, já que, se as propostas teatrais anteriores e contemporâneas ao conflito mundial (nomeadamente o teatro da linha Brechtiana e o Teatro Naturalista), faziam parte dessa ordem, elas também faliram e tinham de ser reavaliadas. Este processo experimental e dialéctico entre realidade(s), linguagem(ns) e teatro enceta assim uma faceta muito importante deste teatro - a metaobra, ou metateatro. Ainda no que diz respeito à contextualização deste termo no espaço e tempo, é necessário ressalvar a importância e influência artística que teve o centro das artes europeu que era Paris. Por aqui passaram os mais importantes autores do absurdo (desde Beckett a Ionesco); outros países receberam o teatro do absurdo via Paris, nomeadamente Portugal, cujo exemplo cultural tradicional sempre fora França e que, numa altura de ditadura em Portugal, este exemplo teatral serviria para criticar de forma encapotada o regime; em Paris estavam os vanguardistas, aqueles que experimentavam novas formas, e que propiciariam a que se vivesse em Paris um ambiente de inovação e reflexão constantes.

Falando acerca dos movimentos e autores que terão de certa forma influenciado o teatro do absurdo, e que, já antes da Guerra se ter dado, sonhavam com o caos, há a dizer que, do ponto de vista teatral, reconhecem-se influências do teatro Expressionista, do Futurismo, e do Dadaísmo (entre outros), sobretudo no que se relaciona com uma constante negação das lógicas e ordens pré- estabelecidas. Reconhece-se também uma clara influência de um vanguardista do teatro francês: Artaud. Este via o teatro como uma peste, como um duplo da vida. O teatro era cruel, assim como a vida também o era. Do ponto de vista das temáticas a abordar, e da cosmovisão presentes no teatro do absurdo, Nietzsche (ainda no séc. XIX) e Camus (anos 40 e 50 do séc. XX) terão constituído os grandes pilares da visão do absurdo. De Nietzsche, chega-nos a morte do mito e de Deus, como criações puramente humanas e falaciosas; bem como a crítica ao positivismo e naturalismo. O Homem ficava assim sem o conforto do transcendente, sem a certeza de um Pai universal. De Camus, o teatro do absurdo herdou a própria noção de existencialismo, o pilar filosófico desta corrente teatral, pois este assentava sobre conceitos como a angústia, o nada, a morte e o vazio da existência humana, numa realidade cada vez mais fragmentada e desprovida de sentido. A obra de Camus que melhor transmite estas ideias é sem dúvida o Mythe de Sisyphe (1942), e , embora este autor tivesse feito incursões no teatro, as suas peças debatiam e dissertavam acerca da temática existencialista, mas não se distanciavam das formas tradicionais de teatro. Claramente, só com o teatro do absurdo se aliaria conteúdo e forma, tentando não dissertar apenas mas mostrar exemplos vivos da visão do mundo que cada autor teria.

Oito anos após o Mythe de Sisyphe surgiria a primeira peça de teatro inscrita no cânone do absurdo. Trata-se d’A boneca careca, de Ionesco, que iria ao encontro da definição que o próprio Ionesco havia dado para o Absurdo, um vazio metafísico e religioso, no qual o Homem está perdido, perdido até na sua própria condição de Homem.

A barreira entre Homem- Boneco- Objecto é cada vez mais ténue.

Agora que já foram traçados os contextos, influências e grandes pilares que ajudam a compreender parte da complexa génese deste conceito, atendamos a algumas características mais específicas e estratégias presentes neste teatro. Trata-se de um Teatro que compreende uma vertente nihilista, ou seja uma negação e recusa da política, da história, da religião e da sociedade como princípios unificadores. É impossível extrair qualquer verdade/realidade do mundo (ir)real. É um teatro que tenta também reflectir o caos universal, o labirinto existencial que cerca o Homem, a desintegração da linguagem como descodificador do mundo e como meio de expressar verdades. O caos e condição existencial são muitas vezes expressos por uma ausência de espaço e tempo determinados e lineares, por uma desintegração e muitas vezes ausência de intriga, que leva claramente a uma inércia das personagens, muitas vezes marionetas vazias, desprovidas de sentido, bem como as suas miseráveis vidas. Uma peça que espelha bem as ideias anteriores é À Espera de Godot, de Samuel Beckett , durante a qual dois vagabundos- palhaços presentes num não- lugar, num qualquer tempo, procuram um sentido para a sua existência. Estes estão presos num labirinto circular, que os coloca sempre num mesmo posto, à espera...Já a desintegração linguística é muitas vezes abordada pelo mínimo uso da linguagem verbal, preferindo-se o gesto, a luz, o som, os símbolos cénicos, que oferecem ao público uma interpretação própria bem mais “real”, pois intima e pessoal, do que um qualquer jogo de palavras que, aparentemente provido de sentido e verdade, era afinal vazio e artificial. Outra forma de abordar esta temática é através de uma falta de concordância entre o gesto e a palavra, como forma de denunciar crua e claramente a forma ilícita e pouco verdadeira com que as palavras são proferidas na nossa sociedade. Na peça As Cadeiras, de Ionesco, são dispostas cadeiras no palco como sendo um público invisível, reunido para escutar uma mensagem que será transmitida a qualquer momento. Contudo, o orador é afinal surdo-mudo. O que fica? O vazio linguístico. O vazio existencial. Outra vertente deste teatro poderá também ser a sua face irónica e satírica, tentando, através da formulação da intriga, reflectir o mundo de um modo muitas vezes cru e até violento, cruel e grotesco. Autores como Frisch, Grass e Havel utilizaram esta estratégia para descrever a sua cosmovisão.

O teatro do absurdo tentou, em última análise, quebrar todos os limites entre o que é teatro, o que é realidade, e como estas realidades se confundem, contaminam e reflectem mutuamente. Numa senda de chegar ao essencial e de esticar todos os limites do próprio conceito de teatro, temos dois exemplos de peças, que desafiam o próprio conceito de peça e de teatro. Une vois sans personne (1960), de Tardieu e Breath, de Beckett. Na primeira há uma total inexistência de intriga, personagens ou linguagem, apenas um jogo de luzes. Na segunda peça temos trinta e cinco segundos de inspiração e expiração associados também a uma sequência de luzes. Estas peças estão já inseridas no que poderíamos apelidar de teatro minimalista ou anti- teatro.

Outra das questões levantadas acerca do teatro do absurdo passa pela existência, ou não, de uma função, de um intuito, para além de uma mera constatação do vazio existencial, no qual o homem está fatalmente perdido. Algumas definições deste termo não apresentam nenhuma função inerente ao teatro do absurdo (como é o caso de Patrice Pavis no Diccionario del teatro). Contudo, se este teatro se interroga constantemente sobre a existência e destino humanos, este não influenciará naturalmente comportamentos e atitudes do homem? Através da mistura de poesia, grotesco e horror tragicómico, o espectador é levado a distanciar-se de uma (ir)realidade proposta, que aparentemente nada se assemelha com a sua própria (ir)realidade. Assim, e não obedecendo a mecanismos de identificação com as personagens, o espectador mais facilmente abre caminho à critica e reflexão. Desta reflexão nasce uma gradual consciencialização da condição humana. Só quando se adquire verdadeira consciência do nada existencial, se está preparado para a busca do todo inatingível e inefável. Esta visão aparentemente paradoxal, é apenas complementar, e insere-se, tal como explica Esslin, numa inspiração na filosofia oriental. Segundo Esslin, não existe contradição entre reconhecer as limitações, que o homem naturalmente tem em compreender a realidade num universo de valores hermético e estanque, e reconhecer uma unidade misteriosa, não passível de ser descrita por palavras, pois vai para além de todo o racional, mas, uma vez compreendida e aceite, mune o homem de uma serenidade e força para enfrentar as agruras da condição humana.

Por detrás de um vazio nihilista, o teatro do absurdo propõe um teatro, que em última análise tem uma componente terapêutica, uma nova forma de Katársis: através da experiência viva do absurdo humano (peça de teatro), o homem re-escreve o seu mundo e sua condição, indo ao encontro de uma nova ordem, não assente em valores preexistentes (como acontecia na tragédia clássica) e falidos, mas numa luta pelo inatingível: superar a condição humana e atingir uma nova ordem metafísica.

Absurdo; Teatro Experimental

Bibliografia:

Christopher Innes, “Theatre after Two World Wars”, in Brown, John Russel (dir.), The Oxford illustrated History of Theatre, (1995).

Martin Esslin, The Theatre of the Absurd, (3ª ed., 2001).

Patrice Pavis, Diccionario del teatro. Dramaturgia, estética, semiologia, (1998).

Sebastiana Fadda, O teatro do Absurdo em Portugal, (trad. José Colaço Barreiros), Lisboa, Edições Cosmos, 1998.

http://www.cirp.es/res/dtl/

Hélder Gomes