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Brasil sideral

quarta-feira, 8 de abril de 2009

A ficção científica brasileira chega ao final do milênio com uma produção multifacetada, que vai de clássicos no gênero a pós-modernos e cyberpunks - criando uma linhagem literária que, apesar de desconhecida do grande público, já seduziu autores como Érico Veríssimo, Murilo Rubião e Menotti Del Picchia
Jeremias Moranu
A ficção científica (FC) existe no Brasil desde o século XIX e muitas das grandes figuras literárias do país enveredaram por ela de uma forma ou de outra, incluindo Coelho Neto, Monteiro Lobato, Gastão Cruls, Menotti Del Picchia, Érico Veríssimo, Murilo Rubião, Herberto Sales, Ignácio de Loyola Brandão, João Ubaldo Ribeiro, Dinah e Rachel de Queiroz, e claro, José J. Veiga. Mas o gênero só deixou de ser uma presença eventual nas letras brasileiras com o surgimento, na década de 30, do primeiro autor que se dedicou sistematicamente ao gênero (ainda que não exclusivamente), Jerônymo Monteiro (1908-1970).
Nos anos 60, um número de autores foi atraído para a FC, a convite do editor Gumercindo Rocha Dorea, e entre eles estiveram Dinah Silveira de Queiroz, Antonio Olinto, Rubens Teixeira Scavone (que havia começado em 1958) e Fausto Cunha. Ainda em atividade, Dorea ocupa sozinho a posição indisputável de o mais importante editor na história do gênero no país, e sua maior descoberta teria sido André Carneiro, artista plástico e poeta da geração de 45, que a partir do convite de Dorea terminou por desenvolver carreira internacional como contista de ficção científica, tendo sido comparado a nomes de relevo como o argentino Adolfo Bioy Casares. Os autores patrocinados por Dorea tornaram-se conhecidos por "Geração GRD", expressão sugerida por Fausto Cunha nos anos 70.
A partir dos anos 80, a Geração GRD deixou de ser a única referência dentro da ficção científica brasileira. Surgira uma nova geração de autores fascinados pelo gênero e dispostos a atualizá-lo e desenvolvê-lo com uma variedade e riqueza de tendências e estilos, com um domínio de convenções e dispositivos do gênero que os autores dos anos 60 nunca conheceram. Apesar disso, esses novos autores permanecem desconhecidos do grande público, a maioria deles é publicada em revistas e coleções de pequeno impacto e consumida dentro de uma pequena comunidade de dedicados leitores dos gêneros FC e fantasia (gênero paralelo à FC e que constrói realidades estranhas a partir da magia e do sobrenatural).
Chegou a hora de conhecê-los melhor, oferecendo aos leitores um panorama da atual ficção científica brasileira.
Pioneiros do extraordinário

Como os melhores vinhos, Rubens Teixeira Scavone envelheceu para se tornar "talvez o melhor autor brasileiro de ficção científica", segundo Luiz Carlos Lisboa. Começou em 1958 com o romance O homem que viu o disco-voador (editora Martins), um dos livros mais reeditados e vendidos da FC nacional. Ganhou o Prêmio Jabuti 1973 com o romance Clube de campo (não sendo FC), foi eleito em 1988 para a Academia Paulista de Letras, que preside atualmente na gestão 1995-98. Sua novela O 31º peregrino (1993, Estação Liberdade) introduz mais uma história nos Contos da Cantuária, de Geoffrey Chaucer; uma história de horror e mistério, que nos permite ver fatos maravilhosos pelos olhos do homem europeu do século XIV, numa exploração de como as percepções se transformam com o tempo.
O tratamento de linguagem e a técnica narrativa em tudo lembram um texto medieval, mas a novela é mais que uma homenagem ao pai da literatura inglesa e um exercício de virtuosismo literário - é antes de tudo uma história cheia de suspense, na qual mistério, horror e ficção científica se casam com perfeição, sem que o elemento humano seja esquecido. Scavone é o único autor capaz de realizar uma obra-prima desse escopo, e seu nome se ergue acima dos colegas. André Carneiro também é um interessado em cognição e na realidade como objeto mutável. Um dos poucos brasileiros com carreira significativa no mundo da FC internacional, tem em A escuridão um clássico publicado em vários países. Nesse conto, a humanidade perde o poder da visão por algumas semanas, abalando as convenções sociais. Sua terceira coletânea de histórias, A máquina de Hyerónimus, saiu em 1997 (veja resenha à pág. 59), com FC, realismo fantástico e contos eróticos ambientados em um futuro sem limitações sexuais. Embora sua utopia sexual seja um tanto datada e ingênua, Carneiro se redime quando descreve pessoas comuns transformadas pelo contato com o extraordinário.
O pós-moderno e o pré-moderno

Dos novos autores, a maioria nunca alcançará um impacto maior sobre a literatura brasileira. O destino de Braulio Tavares é outro. Ganhador em 1989 do Prêmio Caminho, o único concurso internacional para FC em língua portuguesa, sua coletânea vitoriosa, A espinha dorsal da memória (editora Caminho) foi considerada em Portugal com um dos melhores livros a ganhar o prêmio (foi o único brasileiro a fazê-lo antes ou depois) e, no Brasil, como uma das melhores antologias desde a década de 60. Suas histórias são construções modeladas a partir da tradição de Borges, Cortázar e Calvino, concebidas para traçar as dimensões e os limites da literatura como representação da realidade e do tempo. Seu romance A máquina voadora (1996, Rocco) e alguns contos chegam a ser excessivamente inflados de autoconsciência literária, tornando-se de difícil leitura. Quando José Paulo Paes criou seu conceito de "escritor de proposta" (que escreve para se inserir na tradição literária), estava provavelmente descrevendo Tavares, que aos poucos vai conquistando seu lugar aos olhos da intelectualidade brasileira.

Ivanir Calado, por sua vez, se define como um contador de histórias - ou "escritor de entretenimento", na visão às vezes preconceituosa de Paes. Representar a realidade e o tempo empalidece diante da atem poralidade do ato de narrar. O escritor diante do editor de texto e o xamã falando à tribo em redor da fogueira são uma única entidade que nos liga a uma dimensão imaginativa superior. E em romances como A mãe do sonho (1990, Editora Rio Fundo) e Imperatriz no fim do mundo (recentemente republicado pela Ediouro), ele chega bem perto de nos alçar a esse outro mundo. Para se tornar um sucesso nacional, Calado precisa apenas de uma editora que o promova. Juntos, dois escritores opostos que formam o parêntese que circunscreve a experiência literária. O pós-moderno e o pré-moderno, a disputa entre forma e conteúdo. Abdicar de um deles significaria empobrecer a própria literatura.
The hard stuff
Para muitos leitores, a única FC que importa é a FC hard - aquela onde a ciência de fato aparece. O problema é que ciência e tecnologia - ao menos na proporção requerida pela FC - são coisas do Primeiro Mundo. Daí escritores brasileiros de FC hard serem raros e preciosos. Jorge Luiz Calife praticamente inaugurou a vertente hard nacional, com sua trilogia Padrões de contato (Nova Fronteira), iniciada em 1985 e terminada em 1991. Altamente influenciado por Arthur C. Clarke e outros escritores de relevo mas pouco vistos por aqui - como Larry Nivel e Gregory Benford -, Calife reproduz em seus romances e contos (alguns publicados na França e em Portugal) a atmosfera de maravilhamento e inventividade científica desses autores, embora não os transcenda.
Destaca-se pela extrema elegância de sua prosa clara e escorreita, e pelo lirismo que obtém de descrições científicas e tecnológicas, à maneira de Clarke. Gerson Lodi-Ribeiro é um astrofísico e engenheiro eletrônico que escreve FC hard e FC de temas históricos, no que é um inovador. Suas influências são mais variadas e sua versatilidade mais aparente. Pena que, em muitos casos, com Lodi-Ribeiro a FC hard se traduza em rigidez de estilo e caracterização. Esse modo desajeitado de lidar com a palavra não o impediu de também internacionalizar-se - seu primeiro livro, a coletânea Outras histórias..., acaba de sair em Portugal pela Caminho. Foi também publicado na França. Seu melhor trabalho talvez seja A ética da traição, conto no qual a história do Brasil segue caminhos distintos, com a vitória paraguaia na Guerra da Tríplice Aliança, no que se convencionou chamar FC de "história alternativa".
FC feminina

Dizem que mulher não escreve FC. Nos EUA e Inglaterra isso deixou de ser uma verdade há mais de trinta anos, e no Brasil começa a mudar agora (leia texto à pág. 52). Marcia Kupstas é uma das campeãs da literatura para crianças. Abandonar a segurança desse mercado cativo e enfrentar um público muito diferente do infanto-juvenil exige coragem, e é isso o que Kupstas exibe com a publicação de O demônio no computador, romance que combina ficção científica e horror, lançado em 1997 pela Moderna, em sua nova linha adulta. Coragem também para enfrentar a crítica, pois a literatura de gênero sobrevive muito bem no campo infanto-juvenil, mas, quando dirigida ao público adulto, sofre o preconceito dos que acham que FC e horror são "coisas de criança".

A mesma afinidade entre FC e fantasia ou horror está presente na contista Finisia Fideli, que tem trabalhos publicados no Brasil e em Portugal. Suas influências são mais clássicas dentro do gênero, redundando em maior domínio de suas convenções e temas. Seu premiado conto "Exercícios de silêncio" renova formatos costumeiros e decompõe certos modelos heróicos da FC norte-americana. Assim como Kupstas, é uma contadora de histórias inata, e, juntas, elas sugerem uma FC feminina que vem derrubar barreiras e destruir estereótipos.
Lirismo espacial

Além de habitar os corredores cromados da tecnologia, a ficção científica também povoa os bosques e campinas da nostalgia e do lirismo. Premiado em alguns dos mais importantes concursos literários nacionais - os Prêmios Minas e Paraná -, João Batista Melo compôs suas coletâneas O inventor de estrelas (Editora Lê) e As baleias do Saguenay (Rocco) com histórias de fantasmas, contos de realismo fantástico e FC espacial. Suas influências vão de Bradbury a Borges e suas narrativas buscam reinventar o cotidiano ou revelar o lirismo que ele esconde, trazendo uma certa mineirice à ficção científica brasileira.

Roberto Schima também ganhou um concurso importante - o Prêmio Jerônymo Monteiro, primeiro concurso nacional de FC da história, promovido pela editora Record em 1990 -, batendo 400 concorrentes com o conto "Como a neve de maio". Sua novela Os fantasmas de Vênus, ganhadora do Prêmio Nova de FC 1993, para melhor ficção curta nacional, tenta combinar FC hard com uma emotividade bradburiana um tanto deslocada. Seu primeiro romance, O olhar de Hiroaki, deverá sair em 1998 pela Ficção Científica GRD. Schima é também um habilidoso e premiado ilustrador.
O engenho e a sátira

Ivan Carlos Regina lançou em 1988 o "Movimento Antropofágico da FC Brasileira", o único movimento nacionalista de FC que tivemos. Seus contos reunidos em O fruto maduro da civilização (1993, GRD) combinam engenhosos experimentalismos formais e mistura de gêneros (drama, lírica e prosa) com a sátira ao homem moderno e às convenções e limites da FC como gênero de ficção. Tudo em uma paródia das práticas dos "antropofágicos" modernistas brasileiros, remetendo-se continuamente à prosa cubista de Oswald de Andrade, mas incorporando ao mesmo tempo expressões do concretismo e do tropicalismo. Como ocorre com muitos autores experimentalistas, nem seus "experimentos" sucedem, e seus trabalhos correm o risco de ilustrar apenas mais uma atitude de autoconsciência literária do que propostas sólidas e verdadeiramente transformadoras.

O jovem gaúcho Max Mallmann Souto-Pereira é autor dos romances Confissão do minotauro (1989, IGEL/Instituto Estadual do Livro) e Mundo bizarro (1996, Mercado Aberto), sátiras de cunho político e social bem disfarçadas por trás de uma atitude meio camp, que explora a FC e a fantasia difundida pelo cinema, TV e quadrinhos. Sua falta de intimidade com o gênero é compensada pela prosa clara e direta. No segundo livro, um brasileiro vai parar em um mundo de cores medievais, dividido por intrigas palacianas e manobras maquiavélicas. Assim como ocorre com Regina, o humor mal encobre a crítica, sempre prestes a explodir, do lado mais perverso e falho do ser humano.
Tupinipunks

Alguns chamam assim o cyberpunk brasileiro, por considerar que ele reflete mais a fascinação brasileira pelo sincretismo cultural do que pelas revoluções da tecnologia de informática. Aqui também é a estética vanguardista dos modernistas brasileiros que impera, mesmo tantas décadas depois da Semana de 22. Tanto o cyberpunk anglo-americano quanto o brasileiro seriam reflexos do globalismo e do multiculturalismo atuais, mas vistos de extremos opostos do desenvolvimento. O cyberpunk contesta o privilégio de uma elite de engenheiros ou acadêmicos sobre a tecnologia e afirma o ambiente tecnológico como novo habitat sociocultural, que pode ser transformado de forma não-planejada pelo homem comum ou pelo marginal.

Guilherme Kujawski e Sergio Kulpas escreveram em parceria a novela Borba na Infolândia, pastiche recauchutado com camadas de linguagem computacional de Alice no país das maravilhas. Abraçando a noção de que o meio é a mensagem, publicaram a novela serializada na revista especializada .Net, ao longo de 1997. Kujawski escreveu também o romance Piritas siderais (editora Francisco Alves), de 1994, outro exercício tupinipunk, no qual fica mais evidente que intenções pós-modernas nem sempre mascaram um enredo puramente anedótico e vazio.
O poder da paisagem

Publicada em 1985, a coletânea de contos Alguma coisa no céu (GRD), do jornalista carioca (radicado no Espírito Santo) Marien Calixte, se baseia quase inteiramente na aplicação, sobre um cenário cotidiano, de elementos alienígenas que vêm transformá-lo totalmente. O fato desses elementos se confundirem com a chamada "ufologia" não deveria desmerecer o efeito às vezes pungente, às vezes assustador, que surge dessa tensão. Disco-voadores sobrevoam cidadezinhas e um ônibus inteiro desaparece, enquanto objetos estranhos surgem do nada e sem motivo aparente. A ausência de razões e a aura de mistério só enfatizam o potencial transformador de uma possível visita extraterrestre. Calixte teve uma segunda edição de seu livro publicada dez anos depois, em 1995, e em 1996 ele também apareceu na Itália, recebendo boa atenção da imprensa local. Aqui ele também apareceu em antologias e revistas como a extinta Ficção.

Já A terceira expedição (1987, Marco Zero), de Daniel Fresnot, foi um dos únicos romances brasileiros a imaginar os resultados de uma guerra nuclear sobre o Brasil. Esse tipo de narrativa, conhecida como ficção científica de pós-holocausto, é com certeza um dos subgêneros da FC mais dependentes do uso da paisagem, conforme atestam clássicos como Um cântico para Leibowitz, de Walter M. Miller Jr., e Só a Terra permanece, de George R. Stewart. Fresnot trabalha com eficácia especial a paisagem então desolada de São Paulo, objetivo da terceira expedição enviada por uma comunidade situada no sul do país. Daniel Fresnot, irmão do cineasta Alain Fresnot, tem contos de FC publicados em antologias e coletâneas, mas sua atividade dentro do gênero é apenas uma área de sua produção que inclui obras infanto-juvenis e poemas, alguns também publicados na França.
A nova geração da FC brasileira

Carlos Orsi Martinho é um jovem jornalista que se notabilizou por uma produção de contos inspirados no príncipe do horror, H.P. Lovecraft, mas adaptados - às vezes com muita habilidade - à geografia não menos gótica do Brasil. Estão compilados em Medo, mistério e morte (1995, editora Didática Paulista). Muitos deles saíram na revista Dragão Brasil, especializada em jogos de RPG. Atualmente, para evitar a marca do pastiche, vem produzindo contos de horror e FC que se nutrem de conhecimentos históricos. Marcelo Cassaro é um jovem ilustrador, quadrinista, escritor de RPGs e editor da Dragão Brasil, na qual publicou vários de seus contos de FC e fantasia. Seu primeiro romance, Espada da galáxia (1995, editora Trama), ganhou o Prêmio Nova para melhor livro de autor nacional. Ele também vai buscar fontes externas e marginais ao gênero, para produzir uma construção às vezes engenhosa mas sempre dinâmica, a partir de influências extraliterárias - a ficção científica dos quadrinhos e de séries e desenhos animados de TV. Os dois representam um número de jovens talentos à espera de um espaço no mercado editorial brasileiro, cada um deles com seu próprio conjunto de influências, seu próprio estilo e habilidades únicas.

Roberto de Sousa Causo publicou seus trabalhos em revistas masculinas (incluindo a Playboy), revistas de histórias em quadrinhos e de RPG, em antologias e revistas especializadas em ficção científica do Brasil e do exterior. São contos de FC espacial, de fantasia heróica ou contemporânea, de horror e de realismo fantástico, que apareceram no Brasil, Canadá, França, Portugal e República Tcheca. Causo viaja. Ele quer cobrir territórios não apenas geográficos, mas também conceituais e temáticos. Suas histórias podem abrigar leituras feministas, nacionalistas, ou éticas. Suas atuações incluem também a de crítico, no Jornal da Tarde, organizador de antologias, promotor de eventos, ilustrador, pesquisador acadêmico com bolsa pela Fapesp. Para ele, a ficção científica é a matéria-prima de um objeto maior, cujas fundações ele se aplica (às vezes quixotescamente) a lançar, contribuindo com todos os subgêneros e tendências que pode identificar, e ainda assim mantendo uma identidade muito pessoal. Talvez mais que ninguém ele represente a atual geração de autores, que surgiu primeiro como leitores, como fãs, e que encontra na FC um campo de relações intelectuais e humanas auto-suficiente. Escrever para se integrar à cultura literária deve lhe parecer uma tolice astronômica - não com a FC sendo um objeto tão mais vasto e interessante, e é para com a cultura da ficção científica que ele quer contribuir.

Jeremias Moranu é crítico literário especializado em ficção científica

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