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ROMANCE POLICIAL

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Subgénero do romance muito popular na literatura dos últimos dois séculos. Embora apresente várias ramificações e seja designado de diferentes maneiras (maneiras que podem ou não implicar diferenças entre formas distintas de policial), certas características mantêm-se reconhecíveis desde a origem deste subgénero. As características próprias duma narrativa policial formam um paradigma reconhecido por partes substanciais da população, pois bebe as imagens, ambiências, estruturas próprias e ideologia subjacente a várias fontes: filmes, séries de televisão, B.D., etc. As designações deste género variam entre línguas (se em português se aplica o adjectivo policial, em inglês prefere-se o termo detective story para designar basicamente o mesmo tipo de estruturas) e dentro de cada língua (em inglês existem várias designações ligadas ao detective story: crime story, thriller, hard-boiled novel, etc.). Apesar de as estruturas do romance policial poderem ser encontradas em contos e novelas — aliás, o arranque deste género é normalmente localizado no conto “The Murders in the Rue Morgue”, de Edgar Allan Poe (1841) —, é sob a designação de romance policial que o paradigma a que aqui nos referimos é mais comummente descrito em português.

Dentro do género policial, há várias distinções a fazer. Em primeiro lugar, o romance policial pode ser de detective ou de polícia. O primeiro é característico das literaturas anglo-saxónicas e o segundo das literaturas do continente europeu (embora ambas as formas possam ocorrer em todas as literaturas). No primeiro, o herói é um detective particular (por isso este tipo de estruturas denominam-se detective story em inglês); no segundo, o herói está ligado às estruturas policiais do estado. Como exemplos de detectives, temos Sherlock Holmes, de Conan Doyle, e Philip Marlowe, de Chandler. Como um exemplo bastante de polícia ficcional, temos Maigret, de Simenon. Por outro lado, o romance policial pode ser analítico (descrito pelo termo inglês whodunit) ou de aventura, sendo esta última forma encarnada de forma específica pelo thriller norte-americano, que, a despeito da objecção de muitos críticos (se o policial analítico já é muitas vezes considerado um género menor, o thriller é encarado como uma degenerescência popular do primeiro, com a sua ênfase na excitação e na acção gratuita), partilha a mesma estrutura básica do romance policial analítico, embora com várias diferenças: no romance policial analítico, o crime acontece quase sempre antes de se iniciar a investigação, sendo o enredo um desenrolar lógico dum puzzle para a resolução do qual apenas o herói está à altura; o thriller envolve normalmente uma conspiração continuada que o herói tem de derrubar, através dum enredo com muita acção física (a estrutura do thriller é, aliás, a estrutura subjacente à maioria dos filmes de acção). Porque mais geral e abrangente, iremos concentrarmo-nos nas características do romance policial analítico.

Há, apesar de toda a ambiguidade da designação romance policial, um conjunto de características próprias deste género que, de uma forma ou de outra, estão presentes nas mentes de todos os leitores, mesmo os que não apreciam este tipo de literatura (até porque, como dissemos, a estrutura básica destas obras é usada frequentemente no cinema e na televisão). Quais são os elementos próprios deste subgénero do romance? Para começar, há sempre uma interrupção do fluir normal do mundo. Esta interrupção apresenta-se como misteriosa, com resolução adiada, fonte de suspense e desejo de resolução. Assume quase sempre a forma de homicídio, produzindo uma vítima. O mundo apresentado pelo policial funciona dentro duma normalidade — uma ordem — valorada positivamente, sendo a interrupção dessa normalidade resolvida através da acção do herói, um indivíduo profissional e eficaz (que mostra a sua superioridade através dessa acção). Esta normalidade (e bondade essencial) do mundo onde irrompe o crime ou conspiração está presente mesmo nos romances policiais mais negros e cínicos: neste aspecto vislumbra-se a ideologia que subjaz ao romance policial — a ordem estabelecida é defendida, quem atenta contra ela é castigado, o final é sempre um happy end: a verdade foi encontrada, a ordem foi restabelecida (e confirmada), a vida continua na sua normalidade reconfortante, o perigo encontra-se afastado (morto, preso, descoberto, desmontado) e fica feito o aviso contra todos os que pensem atentar contra ela. Há ainda um outro ponto partilhado por muitos romances policiais: havendo um crime, todos são suspeitos até se encontrar o culpado (em Curtain, 1975, o último romance de Agatha Christie com Poirot como protagonista, o próprio detective é o culpado). Há, portanto, uma culpa que infecta toda a sociedade fechada em que o crime é cometido, culpa esta que só é extirpada com a descoberta do verdadeiro culpado. Este último aspecto é especialmente saliente em histórias policiais que se passam em ambientes muito fechados (lembremo-nos, mais uma vez, de Poirot fechado no Expresso do Oriente ou num barco que desce o Nilo). Outro dos elementos essenciais do romance policial é o herói, normalmente um agente da autoridade (embora haja quase sempre um certo afastamento deste agente em relação à estrutura burocrática que o apoia) ou um detective privado. Este herói apresenta características particulares, entre elas o extremo profissionalismo, uma certa frieza em relação ao caso que está a resolver e alguma solidão, que lhe dá uma espécie de superioridade cínica em relação ao que o rodeia (sem que chegue a pôr em causa a ordem estabelecida, a favor da qual trabalha). Além disso, este herói pode ser caracterizado por uma certa masculinidade agressiva e activa (que abrange muitas vezes a sexualidade), por uma competitividade individualista, no âmbito da qual a resolução do problema é uma prova de superioridade sobre os outros indivíduos. Este género apoia-se também no jogo dedutivo que este herói realiza, acumulando pistas e testemunhos aos olhos do leitor, para no fim chegar a conclusões que estavam implícitas em tudo o que se apresentou, mas que só ele conseguiu ver (o que nalguns casos representa um jogo com o próprio leitor: alguns romances policiais contêm pistas que podem levar o leitor, se for perspicaz, a descobrir o culpado). No thriller, este percurso dedutivo é posto um pouco de lado e a acção física passa para primeiro plano, com peripécias inesperadas que põem a perícia intelectual e física do herói à prova. Porém, o romance ou conto policial tenta sempre responder às seguintes questões: Quem é o culpado? Qual a razão do crime? Que processos se utilizaram para resolver esse mesmo crime? Estas perguntas são sempre convenientemente respondidas, a verdade não fica escondida nem adiada, surge fulgurante no clímax da história, sendo o seu desvendar o verdadeiro objecto de desejo tanto do herói como do leitor, leitor este que vê a história através dos olhos desse mesmo herói (mesmo quando o narrador não é o herói ou é heterodiegético, a focalização faz-se sempre através do herói). O herói constitui a voz única estruturante da visão que é transmitida pelo romance, sendo uma voz concomitante da voz ideológica que perpassa a sociedade retratada. Ou seja, mesmo que o herói se coloque à margem da sociedade, assume os valores desta e defende-os. Essa sua voz absorve todas as outras vozes que ouve até chegar à conclusão final — estas vozes não são visões alternativas do mundo como noutros tipos de romance (> ROMANCE POLIFÓNICO), mas apenas passos a percorrer até que a verdade seja encontrada e a ordem reparada.

Assim sendo, a estrutura básica do policial (em sentido lato), pode ser resumida pelos seguintes pontos: uma interrupção no fluir normal do mundo (cuja ordem é vista como positiva e merecedora de ser restabelecida e defendida); um herói forte e profissional que se dispõe a resolver essa desordem temporária em nome da sociedade ameaçada (mesmo que esteja, de certa forma, à margem dessa sociedade); um percurso dedutivo e activo para atingir a verdade e restabelecer a ordem (percurso que implica acumular pistas, ouvir testemunhos e neutralizar culpados). Por trás destes aspectos estruturais básicos está uma oposição clara entre o bem e o mal, o que pode explicar o sucesso deste subgénero do romance, onde a ambiguidade e a área de cinzentos pode ser maior ou menor mas no fim acaba sempre por descambar num mundo a preto e branco, com o bem vitorioso e certo de possuir a verdade e garantir a ordem. (Assinale-se que esta crença na necessidade de defender o sistema é o ponto cuja inversão é utilizada para a desconstrução do romance policial operada pelos romances também eles ditos policiais — mas que serão, mais propriamente, anti-policiais — que abundam nas últimas décadas e que colocam no centro da acção um herói que representa uma parte da população não defendida pelo sistema, segundo a imagem ideológica do mundo expressa nesses romances: um negro, uma mulher, um hispânico, etc.).

O paradigma do policial, como o acabámos de descrever, surge com o detective Dupin, de Edgar Allan Poe (criado para o já referido conto “The Murders in the Rue Morgue”). O surgimento deste tipo de narração no século XIX tem sido associado à explosão urbana, ao aumento do crime, à ascensão da ideologia burguesa e ao aumento do público leitor ocorridos nesse século. O detective que encarna o herói original do romance policial é Sherlock Holmes, de Conan Doyle (surgido em A Study in Scarlet, 1886). O romance policial começa, portanto, por ser inglês, intelectual (analítico) e urbano. Este início deu origem ao tipo de romance policial analítico: além de Poe and Doyle, temos E.C. Bentley (Trent’s Last Case, 1913 — que constitui uma paródia do seu próprio género), Agatha Christie (com o seu Poirot), Dorothy L. Sayers, para referir apenas alguns casos isolados. Este tipo de romance analítico continuou a ser desenvolvido na Europa e nos Estados Unidos, apesar de nestes últimos ter surgido um subgénero nativo — o romance hard-boiled, menos intelectual, mais físico, mais conspirativo, com menos consciência de classe e, de novo, mais urbano (fugindo a um paradigma que tinha evoluído para os romances de Agatha Christie, de classe alta, intelectual, menos urbano). Exemplos deste romance mais negro, mas não menos defensor do sistema (apenas mais individualista e menos intelectual, talvez mais americano), são Dashiell Hammet e Raymond Chandler, que com o seu Philip Marlowe estabelece o paradigma de todo o género, na sua versão americana. No pós-II Guerra Mundial, desenvolve-se na Europa o romance policial em que o herói é um polícia (o que acabará por condicionar o nome do género em português). O exemplo acabado desse paradigma propriamente policial é o protagonista dos romances de Simenon, Maigret (surgido no romance Pietr-le-Letton, 1931).

Nas últimas décadas, as estruturas do romance policial têm sido utilizadas por muitos autores, num desenvolvimento constante que é fruto da valorização pós-modernista de géneros considerados menores ou populares, mas também da utilização por parte de toda a literatura das estruturas específicas deste subgénero do romance. Sem sair deste subgénero, as últimas décadas assistiram à publicação de romances policiais (ou anti-policiais) de cariz político (em que a inversão do paradigma policial tem objectivos ideológicos anti-sistema, como no caso do americano Walter Mosley, que coloca negros no centro dos seus policiais), de cariz paródico (basta lembrar O Xangô de Baker Street, 1996, de Jô Soares — afinal, este é um género que nasceu com um paródia de si mesmo: o culpado do conto de Poe era um animal), sem deixar de ter em conta os policiais e thrillers puros e duros, que não questionam o género, mas o utilizam com fins comerciais — afinal, a popularidade do policial propriamente dito pode explicar por que é utilizado tão frequentemente para fins políticos e paródicos: os autores podem assim fazer chegar as suas ideias a um público mais vasto. As estruturas do policial, a sua forma particular de perseguir a verdade, têm invadido todos os géneros do romance, muitas vezes como forma de mostrar a impossibilidade de atingir essa mesma verdade. Os exemplos são inúmeros: em Portugal, José Cardoso Pires utiliza as estruturas policiais (com origem na literatura, cinema, etc.) para criar a Balada da Praia dos Cães (1982); Umberto Eco criou um romance com evidentes ecos policiais em O Nome da Rosa (1980); Arturo Pérez-Reverte utilizou estas mesmas estruturas em O Clube Dumas (1993): utilizamos estes exemplos de forma algo aleatória, mas também como forma de mostrar como a utilização do paradigma policial está por trás de muitos dos sucessos da literatura das últimas décadas. O policial é uma forma fixa com origem na literatura popular que a literatura erudita aproveita de forma descarada e criativa — numa época em que a diferença entre esta e aquela se dilui, este efeito é amplificado (tendo antecedentes na utilização das formas folhetinescas no romance em geral a partir do século XIX — estruturas que também neste caso acabaram por ter influência noutras artes e meios de comunicação).

O romance policial é um subgénero com um riqueza por vezes ignorada, utilizado por autores desde Raymond Chandler (cujo Marlowe é o homem duro americano, simples, anti-intelectual e físico) até Manuel Vásquez Montalbán (cujo Pepe Carvalho é um homem envolvido nas ambiguidades culturais europeias, apaixonado pela culinária, amante da cultura erudita, pessimista como poucos e com uma amoralidade que horrorizaria Marlowe) e que tem uma importância fundamental na criação literária das últimas décadas (tanto através da sua utilização, como da sua crítica, paródia e aproveitamentos noutros tipos de romances).

ROMANCE; SUSPENSE; WHODUNNIT

Bib.: Andrew Pepper: The Contemporary American Crime Novel. Race, Ethnicity, Gender, Class (2000); Carlos Rodriguez Joulia Saint-Cyr: La Novela de Intriga (1970); Ernest Mandel: Delightful Murder. A social history of the crime story (1984); Jerome H. Dalamater & Ruth Prigozy (ed.): Theory and Practice of Classic Detective Fiction (1997); Jerry Palmer: Thrillers. Genesis and Structure of a Popular Genre (1978); Scott McCracken: Pulp. Reading Popular Fiction (1998); Stephen Knight: Form & Ideology in Crime Fiction (1980)

http://detective-stories.classic-literature.co.uk/

http://gaslight.mtroyal.ca/vandine.htm http://members.tripod.com/volobuef/biblio_policial.htm

http://www.chesterton.org/gkc/murderer/defence_d_stories.htm

http://www.mysteryguide.com


Marco António Franco Neves

Memória

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Termo que remonta ao mito de Fedro, contado por Sócrates, o qual serve de base ao conhecimento das ideias e ao método intelectual do platonismo. De acordo com este mito, a alma humana teria circulado pelo mundo das ideias como um carro puxado por dois cavalos alados. O carácter desordeiro de um desses cavalos, metáfora dos instintos sensuais e das paixões, e as dificuldades de condução do mesmo teriam levado à queda da alma e à correspondente incarnação no corpo. O homem incarnado perde o acesso às ideias contempladas pela alma na sua situação originária. Mas ao ver as coisas, estas fazem-no recordar as ideias vislumbradas na existência anterior. O homem parte das coisas para que elas lhe provoquem uma recordação ou reminiscência (anamnesis) das ideias já contempladas. Conhecer é recordar o que está dentro de nós, as ideias anteriormente vislumbradas.

Aristóteles considera a memória como a única fonte de recordação e de transmissão de conhecimento de pessoa para pessoa e de geração para geração. O mesmo pensador, na Poética, define a tragédia como imitação de uma acção completa, constituindo um todo com certa grandeza, porque o belo, segundo Aristóteles, consiste na grandeza e na ordem. A visão de conjunto torna-se imprescindível para a apreensão do belo e daí que o mito, princípio da tragédia, deve ter uma extensão bem apreensível pela memória. Encontramos, pois, a ligação entre a capacidade de memória e a apreensão do belo, assim como encontramos, em termos gerais, a memória intrinsecamente ligada ao mito, no fundo, à explicação fabulosa de um tempo perdido, onde impera o desconhecimento.

A detenção de uma memória divinizada caberia aos antigos poetas épicos que recorriam às Musas, filhas de Mnemosina (a Memória) e de Zeus, para que estas os informassem da verdade sobre os acontecimentos cantados nos poemas. O platonismo virá contestar esse poder dos poetas, favorecendo a filosofia. A separação da poesia da Mnemosina e a perda do carácter inquestionável, universal e profético (fontes de conhecimento) da Verdade recordada nos poemas são igualmente consequência do aparecimento da poesia lírica pela sua circunscrição ao indivíduo. Recusando a inquestionabilidade da Verdade expressa na poesia, a filosofia considera—a como mimese, prescrevendo-lhe uma série de princípios estéticos onde a verosimilhança seria o motor da representação do universal. O poeta não canta a Verdade, mas sim verdades possíveis. Segundo Aristóteles, o ofício do poeta é o de representar o que poderia acontecer, ou seja, o que seria possível de acordo com a verosimilhança, retirando assim à poesia a detenção da Verdade sobre o que realmente aconteceu.

Porém, as verdades da poesia revestem-se de um carácter indeterminado, enigmático, são verdades prometidas na linguagem do poema, passíveis de interpretação. A presença sensível dessas verdades enigmáticas leva a que a memória encerrada no poema seja reencontrada e reinventada. Assim, afastamo-nos do conceito de poesia como representação, porque a sua linguagem não representa, mas sim faz pressentir o indizível anterior à construção do poema. A poesia não é a expressão dos factos passados a partir de uma activação da memória, mas sim a suspensão desse indizível imemorial buscado pela linguagem poética. Estamos perante a inacessibilidade da Palavra originária.

Neste contexto do indizível, encontramos a ligação entre a memória e a tradição oral da literatura, constituindo-se esta última como uma aprendizagem transmissível de geração para geração. A transmissão oral implica a presença do destinatário, bem como a sua “visualização” do que é dito. Tal significa que a par do que é dito prevalece toda uma actividade motora desenvolvida pelo emissor, a qual corporiza e vivifica o dizer. A relação estabelecida entre os interlocutores é, portanto, marcada pela imaginação, prevalecendo a memória desses elementos indizíveis também eles constituintes da narrativa ou do poema.

Assim sendo, a memória é entendida como retenção de um dado conhecimento, mas também como activadora da imaginação e das capacidades de interpretação, problematização e reinvenção, as quais actuam sobre o que é recordado pelo sujeito. Nestes termos, é possível a aproximação à história literária, partindo dos conceitos de cultura, tradição e modernidade. Constituindo a modernidade um ideal de ruptura, esta implica a permanência do modelo com o qual pretende romper. A modernidade existe porque existem também os modelos tradicionais que a mesma deseja substituir. Se, por outro lado, os modelos modernos tendem a tornar-se tradicionais, no sentido em que são passíveis de reformulação por ideais de modernidade futuros, poder-se-á então falar do destino tradicional da modernidade e entender a falência dos vários movimentos vanguardistas da história literária. Assim, a memorização destes novos movimentos e a sua consequente aceitação como normas de gosto virão a impor novos movimentos de ruptura. Resumindo, qualquer movimento de modernidade recorre à memória e à tradição para se afirmar como ruptura face às mesmas e, simultaneamente, recorre à memorização para se impor como norma de gosto, deixando em aberto possibilidades de renovação futura. Por outras palavras, a modernidade é efémera.

Muitas vezes, porém, a modernidade é afirmada como um regresso a um passado perdido, a uma plenitude ancestral, cuja restauração permitirá, por sua vez, a recuperação dessa totalidade esquecida e, neste ponto, regressamos à ideia de uma linguagem em busca da Palavra originária, perdida no tempo, a uma linguagem que se busca a si própria. A memória é encarada como reminiscência utilizada na construção do futuro e, desta forma, a tradição e a modernidade coexistem na reinterpretação do arcaico, pela recuperação da memória esquecida.

Este conceito de modernidade como recuperação de uma plenitude perdida vai ao encontro da concepção freudiana do Homem como ser de desejos que constrói a cultura para substituir o objecto perdido. No entanto, sendo uma das características da cultura a sua acção como modelo (como estandarização das maneiras de pensar, sentir e agir), esta despertará o desejo de ruptura, de emergência de movimentos vanguardistas, não encarados obrigatoriamente como ruptura definitiva face ao modelo, mas como reinterpretação a partir do que ficou esquecido nas atitudes uniformizadas por esse mesmo modelo. Daí que uma das funções da cultura seja a proposta de modelos que têm no seu cerne a adaptação da tradição a novos modos de vida. Desta forma, estabelece-se um acordo entre o passado e o presente, visando o futuro e, neste projecto, a memória tem um papel preponderante como reminiscência e não apenas como memorização de várias experiências.

Quando aplicado no plural, o termo memória relaciona-se muitas vezes com a autobiografia, o diário e com a literatura confessional, em geral. Nestes casos, a narrativa é escrita na primeira pessoa e o relato das experiências pessoais funciona frequentemente como auto-revelação, na sequência do humanismo antropocêntrico do período renascentista que, encorajando a análise e a exploração da subjectividade, influenciou a produção de autobiografias. As memórias constituem-se igualmente como artifícios ficcionais, sendo o autor uma personagem de um universo essencialmente fictício. O romance Robinson Crusoe (1719) de Daniel Defoe é apontado como percursor deste artifício, pelo qual a autobiografia se torna ficção. O mesmo se poderá aplicar a Les Confessions (1781) de Rousseau, obra inserida no vasto género da literatura confessional que se caracteriza pelos relatos pessoais e subjectivos das experiências, crenças, sentimentos, ideias e estados de espírito, não deixando estes de se revestir de carácter ficcional. Assim, o romance confessional sugere um tipo de autobiografia ficcional, onde o autor poderá assumir uma personalidade que não é a sua. É o caso de La Chute (1956) de Camus.

autobiografia; IDENTIDADE; literatura confessional; memorabilia

Bib.: Adriano Duarte Rodrigues: “Tradição e Modernidade”, Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas — Identidade, Tradição e Memória, n.o9 (1996); Andreas Huyssen: Twilight Memories (1995); Aristóteles: Poética, trad. de Eudoro de Sousa (1990); Cassiano Reimão: “A Cultura Enquanto Suporte de Identidade, de Tradição e de Memória”, Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas — Identidade, Tradição e Memória, n.o9 (1996); José Augusto Mourão: “Tradição Oral e Literatura Bíblica”, Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas — Identidade, Tradição e Memória, n.o9 (1996); Julián Marías: História da Filosofia (1987); Karen Hobbes: “Memory”, Rethoric Resources at Tech. (1996); Silvina Rodrigues Lopes: “A Poesia, Memória Excessiva”, Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas — Identidade, Tradição e Memória, nº 9 (1996).

Sofia Paixão

Paraliteratura

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Termo com que se designam todas as formas não canónicas de literatura (auto-ajuda, folhetins romanescos, literatura cor-de-rosa, romance ultra-light, literatura de cordel, literatura oral e tradicional, banda desenhada, literatura marginal, pornográfica, policial e popular, etc.) que em regra não são aceites por certos eruditos, certas instituições académicas ou certos meios de comunicação. A vantagem da designação paraliteratura (em vez de infraliteratura) reside no tom não depreciativo que o prefixo para- tem, uma vez que remete para tudo aquilo que fica na margem de e não necessariamente tudo aquilo que não entra na categoria de um clássico, por exemplo. Também não fica garantido que um género paraliterário não se torne numa dada época um género maior de literatura. Os géneros principais (romance, textos de poesia e textos de teatro) não foram géneros maiores em todas as épocas. O que permanace hoje é a ideia de que todo o texto que se refugie numa categoria não convencional é porque pertence a um género marginal de literatura a que convém então o nome de paraliteratura. O problema é que muitas vezes esta classificação resulta da aplicação arbitrária de um critério de qualidade que não corresponde inteiramente ao rigor de uma classificação científica. Um romance policial, por exemplo, pode ter grande qualidade, pode ser uma obra-prima e pode rivalizar com qualquer outro tipo de romance no que respeita ao domínio das mais apuradas técnicas literárias. Ora, daqui se infere que atribuir a todos os romances policiais a categoria de paraliteratura pode ser uma atitude redutora e ideologicamente reprovável. Esta designação corre os mesmos riscos de todas as sub-classificações do texto literário que estão à mercê do juízo de comunidades de leitores. Por outro lado, pode-se argumentar que o que faz a literatura ser maior ou menor não é o juízo do leitor, porque a obra em si mesma transporta uma literariedade que é incompatível com juízos de valor subjectivos. Qualquer adversário da estética da recepção defenderá esta posição. Como a realidade nos mostra que muitas vezes a literatura existe enquanto for entendida como produto de difusão, desprezar o papel do leitor na decisão do que deve ser literatura e o que deve ser paraliteratura pode ser inconsequente. O caso da ficção científica pode ser pertinente: o género fixou-se de tal forma como espaço literário autónomo e perfeitamente resguardado de preconceitos em relação à sua índole literária que se torna difícil aceitar hoje que se trate de paraliteratura como sempre foi visto.

INFRALITERATURA; LITERATURA DE CORDEL ; LITERATURA ORAL ; LITERATURA POPULAR

Bib.: Alain-Michel Boyer: La Paralittérature (1992); Bernard MOURALIS, As Contraliteraturas (Coimbra, 1982); Daniel Couégnas: Introduction à la paralittérature (1992); Myrna Solotorevsky: Literatura¾Paraliteratura: Puig, Borges, Donoso, Cortazar, Vargas Llosa (1988); Marc Angenot et al.: La Paralittérature: textes (1974); Noel ARNAUD, Francis Lacassin e Jean Tortel (dir.), Entretiens sur la paralittérature (1970).

http://www.quarante-deux.org/archives_stellaires/roger_bozzetto/ecrits/textes_critiques/bilan/sf_lit_paralit.html

http://web.jet.es/enseres/des.htm



Carlos Ceia

Semiologia

sábado, 26 de dezembro de 2009

Em minha primeira visita ao espetacular Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo-SP, situada na artenovista Estação da Luz (estação ferroviária), uma jovem, que se dizia “deficiente” (mas qual ser humano não padece de alguma deficiência?), perguntou-me que disciplina eu ministro no curso de pós-graduação de minha universidade federal. Respondi-lhe: “semiologia”; interrogado, de novo, sobre o que seria “semiologia”, desfechei-lhe, em vernáculo, como um mágico que tira um coelho da cartola, a clássica definição do fundador da teoria dos signos, ou, semiologia, o genebrino Ferdinand de Saussure: “On peut concevoir une science qui étudie la vie des signes au sein de la vie sociale; elle formerait une partie de la psychologie sociale, et par conséquent de la psychologie générale; nous la nommerons sémiologie (du grec semion, signe). Elle nous apprendrait en quoi consistent les signes, quelles lois les régissent.” Face ao espanto de minha interlocutora, assegurei-a de que, mesmo com uma definição tão abstrata e abstrusa, a semiologia não é um bicho de sete cabeças e trata de uma imensa variedade de fenômenos do nosso mais prosaico dia-a-dia, fenômenos esses que têm um ponto em comum, na medida em que são considerados signos, isto é, algo que, em alguma circunstância, representa algo para alguém, sugerindo, para além deles próprios, o que quer que seja. Tratando do que há de mais cotidiano, a semiologia segue o exemplo da filosofia grega antiga, que ensinava nas praças públicas, nas feiras populares, observando tartarugas, assistindo a corridas de atletas, vendo arqueiros atirando flechas, montando espetáculos em cavernas (visitei, em Macau, a caverna em que Camões escreveu Os Lusíadas e imaginei um encontro, ali mesmo, entre ele e Platão, que filosofava em torno de sombras nas paredes de uma caverna qualquer). Também certos filósofos contemporâneos elaboram sua filosofia a partir do que há de mais comum em nossas vidas, como o francês Gaston Bachelard, que, meditando sobre a chama de uma vela, teceu considerações metafísicas. Embora constituída como ciência, ou método de pesquisa, apenas nos albores do século XX (o Curso de lingüística geral, de Saussure, data de 1916), a semiologia começou, como tudo, aliás, na cultura ocidental, na Grécia arcaica, com os filósofos denominados “Pré-socráticos”, que se inquietavam com signos e máscaras. Cada vez que alguém – continuava eu minha inesperada preleção sobre semiologia – olha como signos as palavras e as coisas está fazendo uma semiose, ou seja, traça uma interpretação que ultrapassa as meras aparências, as espessuras, a acusticidade, os odores, os sabores, tudo aquilo que a semiologia designa como “significante”; pela semiose, o leitor, o ouvinte, o espectador, o fuidor cria e recria significados, ou significações, como prefere o semiólogo francês Roland Barthes. Investir algo com a natureza de signo significa conferir-lhe o poder de produzir infindas significações. A partir de Charles Morris, a semiologia dividiu-se em três ramos: a sintaxe, a semântica e a pragmática; portanto, todo signo tem uma dimensão sintática, na medida em que faz parte de um sistema, ou combinação, não podendo existir isoladamente, já que um signo reenvia a outro signo (“palavra puxa palavra”, enuncia o poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade); em sua dimensão semântica, o signo produz uma significação, remete a uma idéia, um significado; o aspecto pragmático leva o leitor do signo a tomar uma atitude, a desenvolver certo comportamento, nem que seja o da pura omissão. Diante dos semáforos (ou sinais de trânsito, como se fala no Rio de Janeiro), o transeunte vê que o vermelho, o amarelo e o verde não existem separadamente, mesmo se falta um; os semáforos são lidos, ou decodificados: o vermelho sinaliza a parada, o amarelo alerta, o verde faculta a travessia; a partir dessa leitura, o sujeito assumira um comportamento, mesmo que transgressor com relação ao sistema sígnico com que se depara. Neste Museu da Língua Portuguesa – prosseguia eu minha improvisada aula de semiologia -, há, no primeiro andar, uma exposição em homenagem ao cinqüentenário da publicação do romance Grande sertão: veredas, do mineiro João Guimarães Rosa, o mais importante romance contemporâneo brasileiro, filho, direto e dileto, bastardo e abastado, de Macunaíma, o herói sem nenhum caráter (1928), do paulistano Mário de Andrade. A curadora da exposição, Bia Lessa, desmontou, literalmente, o romance homenageado, cujas páginas, em sua primeira edição, corrigida à mão pelo escritor, ignoraram o suporte tradicional do livro, a folha de papel; folhas de lona, numeradas, alçadas por cordas, que o visitante puxa para ler, balançam frases e rasuras. Na transcodificação, operada na exposição, as palavras fogem do papel, são inscritas em tijolos, na face de água, lidas por espelhos, focalizadas a partir de círculos, adivinhadas no topo de escadas, enfim, arma-se todo um circo, um canteiro de obras, que traduzem a magnificência sígnica do Grande sertão: veredas. Uma vertiginosa intersemiose circula na vasta sala da megalópole, subitamente transformada em sertão das Gerais. As palavras de toda raça, montadas pelo escritor-médico-diplomata, tornado, precariamente jagunço para poder escrever sobre a saga dos jagunços, viraram estátuas, instalações, desenhos, pinturas, reflexos, degraus, danças, configurando e constituindo todo um esplendoroso e reverberante universo de signos.

Estava eu no meio de minha propedêutica semiológica, oferecida a uma desconhecida, quando, na “Praça da Língua” começou um espetáculo em torno da palavra poética. Fecharam-se as portas do pequeno anfiteatro, em luminosa penumbra. Ouvíamos palavras, víamos imagens, líamos textos, numa apoteose de signos. O barroco poema “Verdade/Vergonha”, por exemplo, do baiano Gregório de Matos foi transcodificado para a linguagem do rap. Poemas em cenas vinham da verve absoluta de Fernando Pessoa, sob os heterônimos Alberto Caeiro e Ricardo Reis, e da libertina pena do pernambucano Manuel Bandeira, em “Onda”. A célebre “Canção do exílio”, do romântico maranhense Gonçalves Dias, recebeu semioses várias, como as do poeta mineiro Murilo Mendes e do eruditíssimo poeta paulistano José Paulo Paes. Na rubrica “Amor”, surgiu como signo máximo o soneto “Amor é fogo que arde sem se ver”, de Luís de Camões, traduzido parafrasticamente por Mário de Andrade, em “Lira paulistana”, pela paródia “Quadrilha”, de Carlos Drummond de Andrade, que suscitou sonora gargalhada da platéia, até aquele momento religiosamente silenciosa. Também fragmentos do romance roseano foram projetados como a poesia saída da prosa das veredas do sertão. Naquele espetáculo com poemas e formas, o expectador dá-se, cada vez mais, conta de que a linguagem verbal é, sem dúvida, a forma mais importante e mais articulada da expressão simbólica, ocupando, então, de iure et de facto, um lugar de relevo ímpar na semiologia.

Terminado o espetáculo na “Praça da Língua”, do Museu da Língua Portuguesa, não mais revi minha fortuita aluna de semiologia, que certamente terá ido para o segundo andar do Museu deliciar-se com telões que exibem sons, imagens, palavras em torno da plussignificativa e multiétnica cultura brasileira. Quanto a mim – “semiólogo de plantão”, como fui cognominado, certa vez, por alguém que carregava no sentido pejorativo do sintagma -, continuei minhas veredas, entusiasmado com o desafio e o gozo dos signos, o prazer da semiologia, enfim.

Intersemioticidade; Semiose; Semiótica; Signo

BIB: Ferdinand de Saussure, Cours de linguistique générale, p. 33 (1955). Gaston Bachelard, La flamme d’une chandelle (1961). Latuf Isaias Mucci, Palavra fatal, ao pórtico da semiologia ( 2002). Roland Barthes, Eléments de sémiologie (1965). Charles Morris, Signs, language and behavior, p. 217 ss (1946).

Latuf Isaias Mucci

Drama

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Significando «acção» em grego, a palavra drama vem associada à representação teatral na Poética de Aristóteles, por aí se distinguindo da epopeia, a outra forma literária igualmente assente na imitação (mimesis) de acções. Sendo esta obra aristotélica fundamentalmente uma poética do drama, é sobretudo a definição da tragédia que mais a ocupa, referindo o espectáculo (opsis) como o seu modo de imitação, e sendo os restantes cinco elementos que a compõem: a fábula (mythos), os caracteres (ethos) e o pensamento (dianoia) como constituindo a sua matéria; a elocução (lexis) e o canto (melos) configurando o seu meio de imitação.

Desde cedo, portanto, na teoria e na prática (da Grécia antiga), o drama surge nesta dupla articulação - com a literatura e com o teatro - embora a natureza, o sentido e a função dessa articulação tenham posteriormente variado de acordo com os tempos, as práticas artísticas e as proposições (e avaliações) estéticas. Decorrem no campo do literário das relações que se estabelecem entre os diferentes modos e géneros literários, e decorrem no campo do teatral do que se entende ser a especificidade deste e do grau de intercepção que pode (ou não) operar na matéria literária, bem como da arquitectura teatral e dos códigos de representação cénica dominantes.

Apesar dos matizes que marcam esta articulação, drama é geralmente entendido como um texto escrito para teatro, graficamente registando a diferença entre didascálias (ou indicações cénicas) e réplicas (ou falas das personagens), o que, na opinião de Roman Ingarden (Das Literarische Kunstwerk, 1930: 1ª ed., 1960: 2ª ed., 1965: 3ª ed.), organiza, respectivamente, o texto secundário e o texto primário. Enquanto este se manifesta na elocução dos actores, o primeiro usa códigos não verbais, como gestualidade, mímica, coreografia, música, adereços, maquilhagem (ou caracterização), cenografia, luminotecnia, etc.

Num determinado momento histórico - concretamente a partir do século XVIII, com Nivelle de la Chaussée, Diderot (Entretiens sur «Le Fils Naturel», 1757) e Voltaire - drama consistiu, porém, num género específico de texto «sério» para teatro que procurava ultrapassar a distinção clássica entre tragédia e comédia, conjugando aspectos característicos de ambos (em termos de personagens e tipos de acção), e criando, deste modo, um universo mais próximo dos interesses, gostos e preocupações de um novo público, burguês, que constituía o que então se designava por «terceiro estado». Em Portugal surgiu para designar uma obra de teatro como o Teatro Novo de Correia Garção (1760), e dez anos mais tarde a sua Assembleia ou Partida, generalizando-se depois, como designação menos restritiva, nos últimos anos do século. Foi posteriormente conceito fulcral do teatro romântico, com Victor Hugo e, entre nós, com Almeida Garrett, por unir o grotesco e o sublime, prescindir do verso e adoptar a linguagem do quotidiano, preferir a matéria histórica, e enaltecer o sentimento e a liberdade individual, entre várias outras características.

Na sua relação com a literatura em geral, drama vem referido ao modo dramático, compondo, juntamente com o lírico e o épico (ou narrativo), a tríade que foi, a partir do Renascimento e durante algum tempo, incorrectamente atribuída a Aristóteles. Trata-se, com efeito, de uma elaboração teórica posterior à sua Poética, mas tem sido a mais repetidamente glosada, embora seguindo diferentes critérios para a sua repartição, bem como para o reconhecimento do sentido e valor dos seus componentes.

Na confrontação com os outros dois modos literários, o dramático tem sido ora menorizado, ora engrandecido. Menorizado porque entendido como incompleto sem a realização cénica e, por isso, simples guião ou rascunho sem existência autónoma, ou então porque nele participam elementos não puramente literários, configurando, portanto, um caso-limite da obra literária. Mas poetas como John Keats ou T.S. Eliot, advogando, em tempos diferentes e por razões e modos não absolutamente idênticos, a impessoalidade da poesia, defenderam a importância da articulação de uma outra voz que não a assumida expressão directa do sujeito poético, definindo, por isso, a superioridade do dramático. Não significa, porém, que considerassem a escrita de peças como o único processo de realização do dramático, antes admitiam que ele pudesse e devesse invadir o campo tradicional do lírico.

Neste sentido torna-se clara a variabilidade de critérios de definição e de avaliação dos modos literários, o que não impede o reconhecimento de um modelo mais ou menos geral de realização do dramático, que constitui a sua definição convencional, embora tenha permitido (como é regra de qualquer «contrato») a sua repetida transgressão e reformulação.

Elementos como personagens, diálogos e acção (referida esta ao conflito ou colisão de forças quer externas, quer internas às personagens) são, nessa conformidade, os elementos básicos de um universo ficcional que, diferentemente do narrativo, é composto para ser representado em palco. Por razões que se prendem com essa vocacionalidade cénica e com as normais expectativas de um público quanto ao tempo de duração de um espectáculo, a acção é geralmente mais concentrada (do que numa narrativa), o que não implica forçosamente a aceitação da «regra» das três unidades (de acção, tempo e lugar), lei esta supostamente aristotélica, mas de facto de fabricação renascentista, e dominante sobretudo na composição do drama neo-clássico.

Essa ideia de concentração condiciona, de algum modo, a intensificação do conflito, o que favoreceu a ideia de que o drama representa exemplarmente, e de forma objectiva, uma colisão de forças e uma situação de crise e exaltação, como o definiram Hegel (Äesthetik, 1820-1829, edição póstuma em 1835) e Etienne Souriau (Les deux cent mille situations dramatiques, 1950). Este último posiciona, por isso, o drama entre a vida e a consciência, como momento de entrevisão de forças obscuras que as figuras estruturais presentes no microcosmos da peça deixam pressentir, enquanto Hegel localiza na tragédia a colisão de direitos e valores opostos mas igualmente legítimos. Outros consideram que o drama é uma forma privilegiada de comentar a natureza humana, pelo que por ele o homem se engrandece ao adquirir uma consciência mais lúcida (Pierre Aimé Touchard, Le théâtre et l’angoisse des hommes, 1968), ao identificar um pronunciamento a respeito das relações entre os homens (Ronald Peacock, The Art of Drama, 1957) ou ao reconhecer nele aspectos fulcrais definidores de uma determinada cultura (Francis Fergusson, The Idea of a Theater, 1949).

Para além do sentido e valor que ao dramático podem assim ser atribuídos, há ainda a considerar os aspectos formais que se prendem à sua definição convencional e que, necessariamente, se foram relacionando com a arquitectura da cena e modos de funcionamento do sistema teatral (condicionando a sua função social e os códigos quer de representação dos actores, quer de configuração do lugar cénico, por exemplo), bem como com modelos composicionais que os diferentes tempos, escolas e estilos foram praticando. Estes abrangem elementos como o decoro (seguindo as razões de Aristóteles e os preceitos de Horácio na sua Arte Poética), a peripécia e a catástrofe, o coro, a presença de um Prólogo e Epílogo no início e fim do espectáculo, o solilóquio, o aparte, o quiproquo, o efeito de distanciação (ou estranhamento), etc., mas também se reportam aos variadíssimos géneros e subgéneros que o dramático foi consentindo: tragédia, comédia, drama satírico, drama litúrgico, entremez, tragicomédia, sátira, drama histórico, farsa, comédia de costumes, comédia lacrimosa (larmoyante), melodrama, vaudeville, comédia de boulevard, comédia-bem-feita, drama estático, music-hall, teatro épico (decorrente da teorização de Erwin Piscator e Bertolt Brecht), comédia negra, farsa absurda, entre vários outros modelos.

Se no campo do literário o jogo de repartição e avaliação (de modos e géneros) oscila desta maneira, idêntica hesitação encontramos no campo do teatral quando se confronta o texto com os outros elementos que compõem o espectáculo. Sabemos que os momos medievais, os improvisadores quinhentistas da commedia dell’arte, os actores de pantomima, os participantes de happenings e de teatro de rua nos anos 60 do século XX, ou de outras formas de teatro visual e performances não obrigam à existência de um texto fixo para se dizer em cena, mas apenas a apontamentos, roteiro ou «cenários» que serão desenvolvidos (com maior ou menor grau de improviso) no decurso do espectáculo. Todavia, a tradição erudita do dramático no teatro ocidental privilegiou o elemento literário (numa clara tendência logocêntrica visível já em Aristóteles), o que só veio a ser contestado no momento em que surgiu com alguma autonomia a figura do encenador, no final do século XIX.

Assim Edward Gordon Craig (On the Art of the Theatre, 1911) defendia uma arte do teatro verdadeiramente criadora e não apenas uma técnica interpretativa de textos, visionando a criação de obras primas teatrais a partir de elementos cénicos de que o espectáculo dispõe, pela conjugação da acção (o trabalho interpretativo do actor), das palavras (o corpo da peça), da linha e da cor (o específico da cena) e do ritmo (a essência da dança). E, num idêntico sentido de valorização do cénico, propôs Antonin Artaud um «teatro de crueldade», (Le théâtre et son double, 1938) argumentando em favor das potencialidades visuais e expressivas do teatro, recusando a primazia da literatura e da palavra, e sobrevalorizando a fisicalidade do actor, para melhor cumprir a sua visão de um teatro metafísico.

Do lado do teatral, e para além deste tipo de reivindicação dos encenadores, que teve seguidores importantes a partir dos anos 60 do século XX, há ainda a considerar a actividade, cada vez mais generalizada no teatro ocidental, do dramaturgista (que nem sempre coincide com o encenador), que opera sobre os textos para a cena, o que tem vindo a promover outros modos de escrita que não o dramático. Embora não seja esse o caso dominante, é hoje possível encontrar espectáculos que se baseiam em textos líricos, em textos narrativos e até mesmo em ensaios do campo da filosofia, da psicologia ou da sociologia. Trata-se, afinal, de livremente interpelar todos os materiais que o teatro admite, tanto no campo do literário como no do teatral, num jogo que pendularmente convoca a aceitação e a subversão do horizonte de expectativa que o dramático institui.



Maria Helena Serôdio

Conhecendo um pouco de SEMÂNTICA

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Ciência linguística que estuda as relações das palavras com os objectos por elas designados, ocupando-se de concluir, pelo processo indutivo, quais as leis e de que modo se aplicam aos mesmos.

O termo ‘semantics’ (enquanto ramo da linguística) surge pela primeira vez, em 1894, numa folha da American Philological Association entitulada ‘Reflected meanings: a point in semantics’. A utilização inicial do termo serviu para referir o desenvolvimento e mudança do significado. No entanto, o surgimento da semântica como disciplina autónoma surge, em 1897, data da publicação do Ensaio de Semântica, da autoria de M. Bréal. A reflexão sobre o significado, de facto, sempre suscitou grande interesse pelos linguistas e gramáticos ocidentais. Aristóteles é o primeiro a atribuir o referente ao significado de uma palavra, referente esse que traduz sempre a mesma realidade. J. Locke opõe-se a esta definição, preterindo o reconhecimento do significado com a coisa. Só no século XIX, através de W. Humboldt, o significado passa a ser associado a um elemento da língua. Em oposição a estas teorias, Saussure atribui ao significado um carácter subjectivo e interno: passa a ser encarado como uma entidade pertencente à língua, mudando e definindo-se por ela. Na segunda metade do século XX, os estudos levados a cabo pela semântica modelaram as teorias anteriores, cujos critérios têm a ver sobretudo com a origem das unidades semânticas, as relações entre as mesmas e a disposição semântica dos enunciados.

O estudo da semântica (enquanto estudo do significado) é fundamental para o estudo da comunicação, exigindo esta cada vez mais pesquisa, devido à sua importância na organização social. Assim, o significado, essencial para que as interacções humanas se estabeleçam de forma perfeita, pode assumir diversos aspectos: o conceptual (lógico e cognitivo); o de conotação (referido pelo valor linguístico); o estilístico (perceptível pelas ocorrências sociais); o afectivo (patente nas emoções ou atitudes do escritor/falante); o reflectido (resultante da associação com outro sentido na mesma frase); o de colocação (quando tende a ocorrer noutra palavra); o temático (ilustrativo da maneira como a mensagem é transmitida no que respeita à ordem e à profundidade do assunto explanado).

Como acontece na maior parte das teorias, uma das condições essenciais da semântica resulta da necessidade da mesma ser falsificável para que possa ser empírica. Sendo assim, todas as teorias contrárias devem ser devidamente avaliadas com o objectivo de as falsificar. Para além disso, a teoria semântica deve obedecer a três preceitos: deve compreender a natureza da relação entre os significados; deve saber encontrar ambiguidades, quer em palavras, quer em sentenças; deve explicar as relações que se estabelecem entre palavras e sentenças – no fundo, trata-se das relações de sinonímia, acarretamento, inclusão lógica, contradição, etc. Por outro lado, uma das propriedades gerais que qualquer teoria linguística geral deve apreender consiste no carácter finito do conjunto de sentenças que representa a linguagem. Chomsky foi o primeiro a atribuir esta peculiaridade à linguagem, baseando-se na tarefa censurável do linguista de dar uma mera descrição das sentenças semânticas, sintácticas ou fonológicas. Assim, o mesmo linguista estipulou a possibilidade de um conjunto infinito de objectos ser descrito a partir de um conjunto finito de regras ou enunciados gerais. Quando aplicado à semântica este processo não interfere na atribuição do significado às palavras, porque as linguagens possuem somente um conjunto de palavras cujos significados podem ser referidos numa lista finita.

A teoria semântica descreve e explica o significado dos sons emitidos pelos falantes de qualquer língua. Trata-se de descrições estruturais necessárias e indispensáveis à comunicação oral e escrita. Através dos diversos tipos de semântica, toda a competência linguística é assegurada e sobretudo mantida: a semântica frasal estuda o significado das frases, ou seja, as funções dos seus constituintes; a lexical ocupa-se dos constituintes do léxico, descrevendo as suas relações; a formal analisa sistemas lógicos; a generativa encara a semântica como o princípio da estrutura sintáctica.

Tal como as outras disciplinas linguísticas, a semântica pode ser teórica (se estuda o conceito de significado), histórica (quando analisa o significado diacronicamente), descritiva (sempre que analisa o significado sincronicamente) ou comparativa (quando se opta por relacionar significados). Mas, quando se trata de um termo tão abrangente, como o que caracteriza a semântica, torna-se impossível não referir os ramos em que a mesma se divide. Uma das dessas subdivisões incide na semântica lógica, que estuda o significado, tendo por base a lógica matemática. Passou a ser designada por semântica pura, na continuidade de Carnap, sendo considerado um ramo especializado da lógica moderna.

Em oposição à semântica pura, surge a semântica linguística, a qual pode ser dividida tanto pela sua vertente teórica como pela descritiva. Ao passo que a semântica linguística teórica estuda o significado do ponto de vista da linguagem, já a semântica linguística descritiva tem por objectivo descrever ou investigar o significado das frases e dos enunciados das línguas.

Falar-se-á em semântica gerativa sempre o estudo incide sobre a estrutura interna dos lexemas – juízo defendido por Weinreich (1966) – por reflectirem a estrutura sintáctica das frases e dos sintagmas.

Dado o contínuo estado evolutivo da linguagem nas suas diversas considerações, a semântica diacrónica (ou histórica) estuda de forma atenta as variações linguísticas (social, geográfica e pessoal) e estilísticas, de modo a actualizar a investigação linguística, da qual depende a língua portuguesa. O estudo dos linguistas baseia-se na distinção feita por Sausurre entre a linguística diacrónica e a sincrónica, a a qual estuda a linguagem num determinado período ou época. Assim, os semânticos não só analisam o desenvolvimento e a mudança do significado, mas também a própria etimologia, que muitas vezes se torna essencial para um estudo mais aprofundado do termo em questão.



Uma das grandes dicotomias discutidas pelos linguistas e lógicos associa-se à natureza das regras semânticas e a relação entre as propriedades semânticas e as sintácticas de uma linguagem. Na opinião dos lógicos, a explicação sintáctica de uma linguagem associa-se à designação das formas lógicas de uma linguagem, isto é, a sintaxe das linguagens formais, bem como das linguagens naturais, conduz à formulação de generalizações semânticas. Os linguistas, pelo contrário, defendem a exposição do método estrutural na apresentação dos itens lexicais para formar sentenças como explicação sintáctica. De forma concomitante, a formulação das próprias representações semânticas começou a suscitar maior interesse nos linguistas, passando a rejeitar os princípios que as explicam.

No que diz respeito à análise dos psicólogos, a mesma difere em larga medida. Charles Morris autor de Signs, Language and Behaviour, foca a sua atenção nos signos e no seu significado. C. E. Osgood, G. J. Suci e P. H. Tannenbaum, na obra The Measurement of Meaning, tal como o próprio título indica, tentam ‘medir’ graus Do sentido. No entanto, o linguista interessa-se mais pelos acontecimentos quotidianos e a linguagem neles empregada do que pelas experiências psicológicas marcadas pelo artificialismo. Quer o filósofo quer o linguista recusam a linguagem observável, apesar de recorrerem a modelos aparentemente assentes na matemática. Quando se distingue ciência e filosofia da ciência, as diferenças tornam-se evidentes: o cientista explica os objectos do seu estudo estipulando regras científicas para os mesmos; ao filósofo cabe a tarefa de explicar como as teorias podem ser perceptíveis por si só.

A semântica influencia ainda o estudo da mente humana, no que diz respeito a processos mentais ou cognitivos, que estão intimamente ligados à maneira como classificamos a própria experiência no mundo, através da linguagem.



Bib.: S. Ullmann: Semantics: An Introduction to the Science of Meaning (1964); G. N. Leech: Semantics (1974); Ruth M. Kempson: Semantic Theory (1977); John Lyons: Semantics (1977); J. D. Fodor: Semantics: Theories of Meaning in Generative Grammar (1977); F. R. Palmer: Semantics a new outline (1979); H. C. Campos e M. F. Xavier: Sintaxe e Semântica do Português (1991); Angelika Linke, Markus Nussbaumer, Paul R. Portmann: Studienbuch Linguistik (1996); Monika Schwarz e Jeanette Chur: Semantik (2001).



Ana Rita Sousa

Ambiguidade

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Termo que traduz a ocorrência de mais do que um sentido em palavras, frases, proposições ou textos. Relaciona-se com as noções de ambivalência, anfibolia, anfibologia, asteísmo, double entendre e equívoco. Distingue-se das noções de indeterminação e de indefinição (em inglês, vagueness; em espanhol, vaguedad). Por exemplo, o "olhar" é um termo vago (quantos significados pode traduzir um olhar?), mas não é ambíguo, pois cada um dos sentidos da ambiguidade pode ser bastante preciso. Max Black, em "Vagueness: An Exercise in Logical Analysis", defende esta distinção entre indefinição (vagueness) e ambiguidade, pois a primeira refere-se a enunciados cuja aplicação não está definida e a segunda tem sempre um quadro referência determinável. C. G. Hempel, comentando a tese de Black em "Vagueness and Logic", concluirá que nenhum termo da linguagem natural está totalmente isento de indefinição. Note-se que um termo vago não implica que seja desprovido de significação, circunstância que pode explicar outros pontos de vista que tendem a ver a indefinição como um caso particular de ambiguidade (tese sustentada, por exemplo, por I. M. Copilowish, em "Border-Line Cases: Vagueness and Ambiguity"). Veja-se, por exemplo, o título do famoso ensaio de Jacques Derrida “Le facteur de la vérité” (Poétique, 21, 1975), que é um comentário do ensaio de Lacan “Le séminaire sur ‘La lettre volée’ ” (Écrits I, 1966), a propósito do conto “The Purloined Letter”. O título de Derrida joga com a ambiguidade do termo “facteur”, que em francês tem o duplo sentido de “carteiro” e “termo de uma operação matemática ou produto”, ambos servindo o objectivo do ensaio: questionar o postulado lacaniano de que uma carta chega sempre ao seu destino e, consequentemente, analisar o problema da destinação da verdade em psicanálise.

A ambiguidade na linguagem está associada aos fenómenos da conotação e da polissemia, embora no quadro lógico-linguístico moderno esta correspondência não seja aceite. O termo "vaga" é ambíguo porque pode referir-se (1) a uma elevação da superfície do mar ou (2) a um lugar disponível num hotel, escola, empresa, etc.. Quando um termo polissémico possui diferentes etimologias nas suas aplicações possíveis, os filólogos costumam tratá-lo como constituindo na realidade duas palavras diferentes; os filósofos tendem a compreender esse termo como um só; e os escritores exploram livremente todas as possibilidades de aplicação. Quando tomamos o sentido (2) de "vaga" pelo sentido (1), por exemplo, falamos de um equívoco. A ambiguidade lexical ocorre em certo tipo de palavras que encerram múltiplos significados como a palavra-ômnibus, por exemplo, "legal", e a palavra-portmanteau. Um exemplo corrente desta última é o neologismo introduzido por Jacques Derrida: différance - que significa ao mesmo tempo "diferição", "retardamento", "adiamento" (do fr. différer, "diferir") e "diferença", referindo-se ao acto de dissemelhança, ao diferente (não exactamente ao diferido). O termo cunhado por Derrida é propositadamente pronunciável da mesma forma nas expressões différance e différence, porque a escritura não copia exactamente a fala, pretende ser uma síntese deste duplo movimento de ser diferente/dissemelhante e diferente/retardado. A ambiguidade desta palavra-portmanteau resulta deste duplo sentido.

O mesmo é válido para a sintaxe e não apenas para termos isolados. Sejam as frases: (3) A Joana vê televisão. e (4) O Manuel fixou o olhar na Joana. Em (3) temos apenas um sentido, sem que certas informações sejam reveladas (por exemplo, a que horas, onde, que programas, etc.) - trata-se de uma frase indeterminada; em (4) temos várias possibilidades de significado para o olhar do Manuel, que pode conotar desejo, ódio, aprovação, reprovação, admiração, suspeita, etc. - trata-se de uma frase ambígua. De alguma forma, podemos dizer que qualquer frase que traduza uma realidade é indeterminada, pelo princípio de que não é possível uma frase conter todas as informações ou variantes de sentido que essa realidade suporta.

Em português, existem exemplos típicos de ambiguidade sintáctica que podem ser explorados didacticamente. Um problema conhecido é o do seguinte enunciado: (1) Deixo os meus bens a minha irmã não a meu sobrinho jamais será paga a conta do alfaiate nada aos pobres. Verifica-se que o apagamento da pontuação tornou a frase ambígua, não ficando explícito a quem é que o sujeito deixou os seus bens. Diferentes soluções de pontuação podem levar a diferentes atribuições desses bens: (1a) Deixo os meus bens a minha irmã. Não a meu sobrinho. Jamais será paga a conta do alfaiate. Nada aos pobres. (1b) Deixo os meus bens a minha irmã? Não. A meu sobrinho. Jamais será paga a conta do alfaiate. Nada aos pobres. (1c) Deixo os meus bens a minha irmã? Não. A meu sobrinho? Jamais. Será paga a conta do alfaiate. Nada aos pobres. (1d) Deixo os bens a minha irmã? Não. A meu sobrinho? Jamais. Será paga a conta do alfaiate? Nada. Aos pobres. Em termos linguísticos, podemos dizer que a estrutura de superfície (1) oculta várias estruturas profundas (1a; 1b; 1c; 1d), que constituem os sentidos exactos da frase ambígua (1). Esta tetra-significação da frase (1) mostra também que a ambiguidade não é uma circunstância fortuita da linguagem; que é possível exercer um certo poder sobre a ambiguidade (decidir por um dos destinatários); que não devemos desleixar o vazio aparente de sentido de uma frase ambígua nem nos determos apenas num sentido possível; que devemos excluir as hipóteses de sentido das soluções que não estejam em correlação (por exemplo, em (1), seria de excluir uma hipótese como (1e) Deixo os meus bens? Não a minha irmã e a meu sobrinho. Jamais será paga a conta do alfaitate. Nada aos pobres., porque nenhuma relação se estabeleceu entre os bens e os possíveis destinatários, acrescentando-se uma nova ambiguidade: será que eu quero deixar os meus bens a alguém? ).

Anfibolia, anfibologia e ambiguidade são termos que têm sido confundidos, pelo menos, desde Quintiliano, que em Institutio oratoria, assevera: "amphibologia id est ambiguitas" (VII, 9). A anfibolia (do gr. amphibolia, "ambíguo") é um termo da lógica que se refere a qualquer locução ou proposição de duplo sentido, sendo, neste caso, sinónima de anfibologia. Um exemplo de anfibolia na literatura portuguesa pode encontrar-se na fala da personagem alegórica Alma, do Auto da Alma de Gil Vicente, que diz: "Venho por minha ventura / amortecida." A palavra "ventura" tem, nas épocas arcaica e clássica, o sentido duplo de "má sorte" e "boa sorte". Neste caso, a anfibolia depende do contexto (não da estrutura sintáctica) para poder ser descodificada num só dos sentidos possíveis, que é, neste caso, "má sorte". Por sua vez, a anfibologia (do gr. amphíbolos, "ambíguo") é uma forma de ambiguidade do sentido numa construção sintáctica. Como termo lógico, a anfibolia traduz também o uso transcendente dos conceitos, segundo o sentido consagrado no sistema kantiano, falando-se então em anfibolia transcendental, conceito distinto, neste outro caso, do de anfibologia. Esta distinção entre anfibolia e anfibologia não é aceite por todos os dicionários, sendo a tendência geral o repúdio da forma anfibologia. André Lalande, no seu Vocabulaire technique et critique de la philosophie (15ª ed., 1985), propõe "utilizar de preferência ambiguidade para as palavras ou os termos, anfibolia para as frases ou as proposições, e equívoco no sentido geral." A validade desta proposta está fundamentada na distinção que o próprio Aristóteles faz nas Refutações Sofísticas entre anfibolia e homonímia. Por regra, considerava que a anfibolia é uma forma de expressão incorrecta, se não tiver um fim determinado, como acontece nas sentenças oraculares. Pesando a relação entre anfibolia e homonímia, Aristóteles assume primeiro que ambas são formas de refutação e fornece exemplos como: 1) de homonímia: "São aqueles que sabem que aprendem, porque os gramáticos aprendem as coisas que os seus discípulos lhes são ditam. Porque aprender é um termo ambíguo, pois é ao mesmo tempo compreender por meio do conhecimento e também adquirir conhecimento." (165b 1); 2) de ambiguidade: "Falar do silêncio é possível, porque 'falar do silêncio' tem um duplo sentido: pode significar que o locutor está em silêncio ou que as coisas de que fala estão silenciosas." (166a 1). A homonímia será, portanto, a ambiguidade de palavras e a anfibolia, a ambiguidade de construções. As anedotas recorrem com frequência à combinação de ambos os processos para obterem o efeito de cómico pretendido, por exemplo: “Que juros cobra?”, “Vinte por cento… “, “É carinho!”, “Pois é, eu para os amigos sempre fui muito carinhoso.”.

Um dos jogos de palavras que mais se presta à construção de enunciados ou termos ambíguos é o chamado pun, que James Joyce usou com abundância em Finnegans Wake (1939). A ambiguidade do pun resulta em particular de situações de homonímia, podendo ser relacionado com o tropo da paronomásia. Duas formas correntes de pun são o asteísmo e o equívoco. O asteísmo é uma figura de retórica que recorre à ambiguidade para distorcer, conforme a conveniência da situação discursiva, o verdadeiro sentido da mensagem. Está, pois, relacionado com todas as formas de double entendre, que geralmente comportam uma insinuação moderadamente irónica. O equívoco é uma forma especial de jogo de palavras.

O discípulo de I. A. Richards, William Empson, explicou a dificuldade da determinação do sentido com uma teoria da ambiguidade, que relançou a questão na teoria literária, sobretudo no interior do New Criticism. Empson publica Seven Types of Ambiguity (1930) aos 24 anos, e adopta um estilo de análise textual que recorre às leituras cerradas (close readings). O principal resultado da investigação de Empson foi o de considerar que a ambiguidade era afinal a primeira virtude da poesia, ao contrário do que até aí se supunha. A ambiguidade é então a origem da eficácia poética. Os sete tipos apresentados são: 1) A função multidireccional de um termo ou estrutura gramatical; 2) A fusão de dois ou mais sentidos num só; 3) A paronomásia, que determina que dois sentidos aparentemente desconexos ocorram simultaneamente; 4) A não concordância de dois ou mais sentidos que se combinam para tornar claro o estado de espírito do autor; 5) A descoberta que o autor faz das suas ideias no acto da escrita, ou quando não tem consciência imediata dessas ideias; 6) A produção de enunciados contraditórios ou irrelevantes que obrigam o leitor a inventar enunciados próprios susceptíveis de serem conflituosos entre si; 7) A contradição completa de um enunciado, os dois valores da ambiguidade, que marcam uma divisão na própria mente do autor. Enquanto o New Criticism separava o texto do contexto social, Empson insistiu em tratar a poesia como uma espécie de linguagem "comum", capaz de ser racionalmente parafraseada - tese já defendida por Wordsworth no prefácio à 2ª ed das Lyricall Ballads. Empson é um intencionalista puro e confesso, que apenas se interessa pelo sentido ditado pelo autor. Longe de existir como um objecto hermeticamente fechado entre si, a obra literária, para Empson, é aberta: a compreensão da obra envolve mais a compreensão dos contextos gerais, nos quais as palavras são usadas socialmente, do que a identificação dos padrões de coerência verbal interna. Esses contextos provavelmente serão sempre indeterminados, pois, assim acredita Empson, a linguagem conota pelo menos tanto quanto denota. No sentido em que a ambiguidade se pode associar a toda a construção plurissignificativa da linguagem, Empson pode dizer que a poesia é, por excelência, o lugar das "maquinações da ambiguidade". A teoria de Empson depressa despertou discussões animadas, sobretudo por causa do excessivo esquematismo da proposta. John Crowe Ransom, em "Mr. Empson's Muddles" (The Southern Review, 4, 1938), conta-se entre os comentadores mais críticos.

Se oposta a clareza, lucidez e inteligibilidade - atributos dos enunciados de natureza científica -, a ambiguidade pode ser vista como um erro de expressão e assim foi, pelo menos até ao modernismo. Contudo, quando intencional, como no caso mais evidente dos enunciados poéticos, pode funcionar como uma qualidade do discurso. A prática crítica de I. A. Richards chamou a atenção para este facto e Empson teorizou sobre as condições de ocorrência da ambiguidade sobretudo na poesia, na certeza de não poder nunca funcionar como recurso retórico (não é, a rigor, um artifício poético, como quer, por exemplo M. H. Abrams, que no seu A Glossary of Literary Terms (6ªed., Harcourt Brace College Pub., Fort Worth, 1993), apresenta a ambiguidade como um "poetic device"), como algo por que se possa optar arbitrariamente, porque se trata de uma função natural da linguagem apenas realçada pelas plurissignificações que relevam da poesia.

Para além da poesia, outras formas de expressão utilizam a ambiguidade nas suas várias realizações discursivas: o pun, o enigma, a adivinha e a anedota são enunciados que baseiam a interpretação da sua mensagem em representações indirectas de nomes, termos e ideias, jogando com sentidos duplos. Por exemplo, na seguinte anedota: "Como é que se distingue um pára-quedas alentejano?", "É o que abre com o impacte.", a ambiguidade baseia-se no jogo de pré-conceitos colectivamente assumidos por uma comunidade linguística (a falta de inteligência dos alentejanos e a lentidão dos seus movimentos), que se concretiza num jogo de palavras que leva o intérprete a esperar um determinado desfecho pelas informações do enunciado introdutório, sendo depois surpreendido pela impossibilidade lógica do segundo enunciado, criando um efeito de cómico. Este esquema simples é comum a muitos textos humorísticos. O humor depende invariavelmente de uma situação inesperada, o que se consegue com a introdução de elementos ambíguos ou deslocando elementos para contextos morfossintácticos diferentes.



adivinha; AMBIVALÊNCIA; anedota; ASTEÍSMO; CONOTAÇÃO; DOUBLE ENTENDRE; enigma; EQUÍVOCO; HOMONÍMIA; palavra-ômnibus; palavra-portmanteau; PARONOMÁSIA; PLURISSIGNIFICAÇÃO; POLISSEMIA; pun



Bib.: Actes du colloque "L'ambiguïté et la paraphrase" (Caen, 1988); Albert Poyet (ed.): L'Ambiguité (1992); Barbara Hardy: “William Empson and Seven Types of Ambiguity”, Sewanee Review, 90, 3 (1982); C. G. Hempel: "Vagueness and Logic", Philosophy of Science, 6 (1939); Catherine Atherton: The Stoics on Ambiguity (1993); Charles T. Samuels: The Ambiguity of Henry James (1971); Christopher Y. Tiller: Material Culture and Text: The Art of Ambiguity (1991); G. Lakoff: "A Note on Vagueness and Ambiguity", Linguistic Inquiry (I, 3, 1970); Graham Hough: “An Eighth Type of Ambiguity”, in Roma Gill-Roma e Moira Megaw: William Empson:The Man and His Work (1974); H. K.Ulatowska: “A Psycholinguistic Approach to the Study of Ambiguity”, Papers in Linguistics, 4 (Edmonton, Alberta, Canada, 1971); Hans Braendlin (ed.): Ambiguity in Literature and Film: Selected Papers from the Seventh Annual Florida State University Conference on Literature and Film (1988); I. M. Copilowish: "Border-Lie Cases: Vagueness and Ambiguity", Philosophy of Science, 6 (1939); Irène Rosier: L'Ambiguïté (1988); Isabel C. C. A. Ermida: "A ambiguidade linguística em The Comedy of Errors de Shakespeare", Tese de Mestrado, Universidade do Minho (1995); Israel Scheffler: Beyond the Letter: A Philosophical Inquiry into Ambiguity, Vagueness and Metaphor in Language (1979); James Jensen: “The Construction of Seven Types of Ambiguity”, Modern Language Quarterly, 27 (1966); Jan G. Kooij: Ambiguity in Natural Language: An Investigation of Certain Problems in Its Linguistic Description (1971); Jorge Hankamer: "Unacceptable Ambiguity", Linguistic Inquiry (IV, 1, 1973); Jorge Hankamer e Judith Aissen: "Ambiguidade", Enciclopédia (Einaudi), vol.2 (1984); Judith A. Payne: Ambiguity and Gender in the New Novel of Brazil and Spanish America: A Comparative Assessment (1993); Karelisa V. Hartigan: Ambiguity and Self-Deception: The Apollo and Artemis Plays of Euripides (1991); Margarida Garcez Ventura: "Ambiguidade da 'festa' na narrativa camoniana da estadia do Gama em Melinde", Actas da V Reunião Internacional de Camonistas, (São Paulo, 1987); Max Black: "Vagueness: An Exercise in Logical Analysis", Philosophy of Science, 4 (1937); Michael Kolarcik: The Ambiguity of Death in the Book of Wisdom 1-6 (1991); Monica Rector: "Ambiguidade na literatura de cordel", Sep. do Bulletin des Études Portugaises e Brasiliennes (1982); N. E. Collinge: “Ambiguity in Literature: Some Guidelines”, 2 (Arethusa, Buffalo, 1969); P. Postal: "On Certain Ambiguities", Linguistic Inquiry (V, 3, 1974); R. Landheer: Aspects linguistiques et pragmatico-rhétoriques de l'ambiguïté (1984); Roland Hagenbuchle: “The Concept of Ambiguity in Linguistics and Literary Criticism”, in J. Richard Watts e Urs Weidmann (eds.): Modes of Interpretation: Essays Presented to Ernst Leisi on the Occasion of His 65th Birthday (1984); Shlomith Rimmon-Kenan: The Concept of Ambiguity: The Example of Henry James (1974); Simone de Beauvoir: Pour une morale de l'ambiguïté (1947); Soon Peng Su: Lexical Ambiguity in Poetry (1994); W. V. Quine: Word and Object (1960); William Bedell Stanford: Ambiguity in Greek Literature: Studies in the Theory and Practice (1939); William Empson: Seven Types of Ambiguity (1930).



Carlos Ceia

Anacoluto

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Interrupção violenta ou progressão inconsistente da sequência lógica de uma frase, que continua ou finaliza em termos substancialmente diferentes do seu início. Por esta razão, também se chama ao anacoluto frase quebrada. Por exemplo: “O dia, esse bojo de linfa, uma vertigem de hélio - arcaicamente / como pretexto para luzirem / cortejos: animais, bárbaros crânios de ouro; / um branco suspiro, extenua as gargantas dos áruns; / pálpebras no granito despedem-se do mundo.” (Herberto Helder, Última Ciência, 1988, in Poesia Toda, 1990).

O anacoluto é comum na linguagem coloquial e também frequente na poesia e na oratória. Nas situações discursivas da oralidade que não respeitam as regras de concordância verbal ou a sintaxe, o anacoluto é considerado uma corrupção gramatical. São muitas as construções orais que constituem anacolutos, por exemplo: “O avião, não te disse, está atrasado.”, em vez de: “Não te disse que o avião está atrasado?” Este tipo de anacoluto não funciona, naturalmente, como recurso estilístico, por isso tende a ser considerado um mero problema de solecismo. Portanto, em termos restritos, pode-se considerar anacoluto apenas um problema de concordância: um sujeito inicial que fica sem predicado, para concentrar a atenção num segundo já acompanhado de predicado que não serve o primeiro. A tradição gramatical define ainda o anacoluto apenas como a utilização do pronome relativo sem antecedente, situação muito frequente nos provérbios: “Quem escuta de si ouve.” e na poesia: “Que uma coisa pensa o cavalo; / outra quem está a montá-lo.” (Alexandre O’Neill, “A história da moral”, Poesias Completas, IN-CM, Lisboa, 1990).



ZEUGMA



Bib.: Albertina Fortuna Barros: “Anacoluto”, Revista de Portugal, 31 (1966); Eunice Pontes: “Anacoluthon and 'Double Subject' Sentences”, in Proceedings of the XIIIth International Congress of Linguists (Tóquio, 1983)/Cadernos de Linguística e Teoria da Literatura, 7 (Belo Horizonte, 1982); Ludger Hoffmann: “Anakoluth und sprachliches Wissen”, Deutsche Sprache: Zeitschrift fur Theorie, Praxis, Dokumentation, 19, 2 (Berlin, 1991); Nils Erik Enkvist: “A Note on the Definition and Description of True Anacolutha”, in Duncan Rose Caroline e Theo Vennemann (eds.): On Language: Rhetorica, Phonologica, Syntactica (1988).



Carlos Ceia

Oxímoro

sábado, 19 de dezembro de 2009

[Dr gr. oxymóron, de oxýs = ‘arguto’ + morón = ‘estúpido’, donde deve ser pronunciado o cs i m ó r o .]

Na retórica, consiste na combinação e expressão de vocábulos paradoxais. Aproxima-se da antítese, porém no oximoro ambos os termos se excluem, a fim de revelar que a conciliação de contrários é possível e, por vezes, indispensável para se exprimir a verdade. Veja-se o caso da novela de Mário de Sá-Carneiro “Eu Próprio o Outro” ou do célebre “Amor é fogo que arde sem se ver, / É ferida que dói e não se sente” de Luís de Camões. Poder-se-á considerar este recurso estilístico como uma “antítese lexical”, isto é, o objectivo do oximoro é intensificar, ainda mais do que antítese, a junção paradoxal, vincando que o confronto de duas palavras ou ideias opostas e incongruentes permite valorizar a força expressiva, muitas vezes para despertar o efeito epigramático. Este recurso, apreciado em particular pelos poetas barrocos, românticos e modernistas, não é um obstáculo para o raciocínio, de tal forma que o possa conduzir a uma situação sem saída. Pelo contrário, é uma figura que se situa no campo do sentido conotativo, ajudando a definir determinados conceitos de difícil explicação. A expresão popular “ilustre desconhecido” exemplifica a sua utilização quotidiana e inconsciente.

ANTINOMIA; ANTÍTESE; APORIA

Carlos Manuel Serra

Literatura comparada

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Distingamos, em primeiro lugar, a atitude comparativa da disciplina de Literatura Comparada. Não que ambas não se relacionem entre si, pelo contrário: é evidente que a Literatura Comparada pressupõe a existência e a prática de um atitude comparativa que, no entanto, apresenta um âmbito e um escopo muito mais amplos e ambiciosos, se bem que metodologicamente menos consistentes. Por outro lado, a atitude comparativa é (e cada vez mais, como veremos) de consideração basilar para o entendimento do que, por facilidade de expressão, é designado como “literaturas nacionais”. Assim, se a atitude comparativa, bem como os pressupostos metodológicos (e até culturais) que ela implica, pode dizer-se que remonta a períodos e momentos históricos muito distantes, já no que respeita à história da disciplina, e da sua progressiva institucionalização, os marcos temporais são bem mais restritos. Na verdade, basta lembrar como a atitude comparativa foi central por exemplo para que a literatura e a cultura latinas se pensassem nas suas relações e especificidades face à literatura e cultura gregas; ou na forma como a Idade-Média integrou e reformulou essa herança clássica, diversificando-a através das específicas direcções que viriam a constituir as várias literaturas nacionais; ou ainda no modo como o problema dos antigos e modernos ciclicamente reaparece, sob formulações diferenciadas, no Renascimento, no início do Iluminismo e mesmo no interior do pensamento modernista, no início do século XX. Convirá reconhecer este conjunto de situações, para que não se proceda à generalização apressada de fazer remontar a disciplina da Literatura Comparada a todos estes “gestos” que, pressupondo uma comparação, não a integram no entanto como fundamentação epistemológica sistemática.

Em sentido próprio, pois, poderá dizer-se que o “élan” comparatista específico começa a formular-se, no século XVIII, em torno de uma situação cultural (e até política) que integra dois movimentos específicos e até correlatos: por um lado, o impulso cosmopolitista e inter-nacionalista a que o Iluminismo oferece um suporte filosófico e ideológico; por outro lado,a prática sócio-cultural, que cada vez mais repousa sobre a ideia-chave e o conceito de “nação”. Da convergência e mesmo do cruzamento entre estes dois movimentos, na aparência de sinal contrário, nascerá, a pouco e pouco, a proposta de uma disciplina que, nos estudos literários (mas, de forma mais vasta, a “vontade comparatista” conforma-se, na altura, em torno de inúmeras áreas do pensamento, desde a história à biologia ou mesmo a geografia, passando naturalmente pela filologia), represente a formalização e sistematização de uma metodologia comparativa: aquela que, não só recorre pontualmente ao confronto entre dois (e depois cada vez mais de dois) fenómenos literários mas, sobretudo, pensa o literário através do procedimento comparativo, ou seja, considera tal procedimento como fundador de uma área da reflexão. O conceito de Weltliteratur, proposto ainda no século XVIII por Goethe, corresponde assim a este intuito que pretende evitar um isolacionismo literário, sublinhando ainda a continuidade relativamente ao modelo anterior de uma “república das letras”, no interior da qual os presupostos nacionalistas eram relativamente pouco actuantes. Pelo contrário, a Literatura Comparada desenvolver-se-á e sistematizar-se-á adentro do que poderemos designar como um “paradigma nacionalista”, o que explica que ela seja considerada, frequentemente (veja-se a este respeito Baldensperger, 1921), como uma disciplina pela qual os gestos e as vontades de entendimento internacionalista encontram um canal quase exclusivo. É ao longo, então, do século XIX que se assistirá à progressiva implantação institucional da disciplina, quer através de cursos universitários que se reclamam do comparatismo quer através da publicação de obras que integram já esta designação quer ainda através da publicação de revistas em que a “literatura comparada” surge como propósito fundador. Entre os nomes que, um pouco por toda a Europa (França, Itália, Inglaterra, Alemanha, Hungria), contribuem para tal desenvolvimento, surgem os de Villemain, Jean-Jacques Ampère, Sainte-Beuve, De Sanctis, Arturo Graf, Hutcheson M. Posnett. Mas é na última década do século XIX que podemos reconhecer uma implantação institucional e académica da disciplina, com os nomes de Louis Paul Betz e Joseph Texte, que lançarão as bases daquilo que Baldensperger, em 1921, considerará ser, de forma paradigmática, a disciplina do futuro dentro dos estudos literários.

O paradigma comparatista assim progressivamente constituído, e que se prolongará como dominante até aos anos cinquenta do século XX, poderá assim ser brevemente caracterizado como de inspiração nacionalista (embora tal possa parecer paradoxal, mas veremos que o não é) e sublinhando, enquanto orientação metodológica, duas grandes áreas de investigação: a historicista e a tematológica. Vejamos, pois, como estes aspectos conformam, até meados do século XX, a conformação da disciplina. Por um lado, a metodologia expressamente convocada insiste nas “relações literárias internacionais”. Esta designação servirá muitas vezes, na realidade (e na prática), para constituir um cânone não-expresso (mas nem por isso menos poderoso) no interior das literaturas da Europa central e ocidental, jogando-se na distinção implícita entre “literaturas maiores” e “literaturas menores”, sendo as primeiras as que, por via de uma maior força quantitativa e qualitativa (hipostasiada), funcionariam como verdadeiros modelos ou “fontes” para as segundas, que se limitariam assim a um papel secundário, periférico, de integração de influências provenientes dos modelos. Esta tendência é entretanto mitigada por aqueles estudiosos que, como por exemplo Baldensperger, defendem o comparatismo como lugar de uma possível realtivização de uma hierarquia, no sentido em que permitiria contrariar um nacionalismo à outrance, considerado como pernicioso. As características mais visíveis deste fase da disciplina serão o seu europeísmo (que mais tarde, e já de uma perspectiva crítica, será correctamente designado como eurocentrismo), a sua preocupação em definir o seu objecto a partir das relações internacionais factualmente estabelecidas, a sua dependência face a uma história literária ainda concebida de acordo com um paradigma positivista e a insistência correlata no chamado estudo de fontes e influências, a que se junta a chamada “imagologia”, ou seja, o estudo das imagens culturais que um determinado povo provoca em uma outra literatura nacional. A subordinação à área da história literária associa-se, ainda, a um outro campo, que surge como preferencialmente escolhido para uma investigação de base comparatística: trata-se da tematologia (Stoffgeschichte), que se apresenta de algum modo como alternativa conteudística a um comparatismo de conformação histórico-factual. Através da tematologia os estudos literários abrem-se progressivamente a uma reflexão que encara os fenómenos literários não tanto a partir de dados históricos factualmente concebidos mas, sobretudo, a partir dos temas e motivos que os constituem. Tratando-se de uma área cuja importância no momento se deveu precisamente a tais razões (que podemos aliás considerar de inspiração paralela às orientações textológicas por exemplo do New Criticsm), o certo é que a sua implantação trouxe para o seio da disciplina outro tipo de problemas metodológicos, sobretudo relacionados com a indefinição epistemológica e teorética dos fenómenos literários assim constituídos. Tal indefinição explica, por um lado, que a tematologia tenha sido alvo, desde os anos 50 e até por volta dos anos 80, de um evidente descrédito, para parecer, posteriormente, ressurgir a partir de uma reconsideração que não exclui, já, uma reflexão de índole teórica (cf. Trommler, ed., 1995).

Por outro lado, a famosa distinção, proposta pelo comparatista francês Paul Van Tieghem (1931), entre “literatura geral” e “literatura comparada” (aquela abordando problemas de índole mais genérica e de síntese relativos ao mesmo tempo a várias literaturas nacionais, esta residindo sobretudo numa confrontação binária do problema) pode ser entendida como manifestação de que, por volta desse período, se manifesta um certo esgotamento dos princípios que até aí tinham sido considerados como básicos para a investigação comparatista, embora a resposta que Van Tieghem oferece para o problema se situe, nas suas grandes linhas, em torno de uma restrição “especializada” do domínio comparatista.

Os “ventos da história” já não sopravam, no entanto, por aí. O problema a que Van Tieghem aludia, e ao qual pretendia responder, provinha sobretudo de uma cada vez mais clara insatisfação com o modelo historicista e textológico que entre si parecia dividir o campo dos estudos literários, aparentemente obrigando a uma opção entre orientações que privilegiassem os “factos” literários (de conformação histórica) e aquelas que incidissem sobre os “objectos” literários (os textos propriamente ditos). Ora, no final dos anos 40 surgia, nos Estados Unidos, um livro cujo título (revolucionário) era Teoria Literária. Os seus autores, René Wellek e Austin Warren, designavam assim uma área que, se não pode considerar-se como nascendo no preciso momento em que tal formulação surge, representará o paradigma dominante que orientará a reflexão literária na segunda metade do século XX. A “resposta teórica”, essa sim, encontrará profundo eco na reconformação do campo de especulação comparatista, e um dos seus marcos de viragem deve-se ao próprio Wellek que, em 1958, no 2º Congresso da recém-criada Association Internationale de Littérature Comparée, polemicamente intitula a sua conferência “The crisis of comparative literature” (Wellek, 1959).

A “crise” diagnosticada e analisada por Wellek, e que ele faz radicar na fundamentação histoicista e positivista do modelo comparatista tradicional, levará a que, progresivamente, se assista a uma clara renovação dos objectos e métodos da disciplina, protagonizada pela crescentre importância da Teoria Literária nos estudos literários em geral e na Literatura Comparada em particular. Este esforço de renovação (que Claudio Guillén, 1985, acertadamente faz coinidir com a passagem da esfera de dominância francesa para a de dominância americana) leva efectivamente a uma reequacionação das áreas privilegiadas no domínio da Literatura Comparada, que surge cada vez mais como lugar de cruzamento preferencial entre reflexões provenientes de diversíssimos debates teóricos cuja conformação só muito dificilmente poderia ser, na realidade, considerada com especificamente nacional.

É então neste quadro genérico que, de uma perspectiva actual, se poderá fazer uma breve descrição do estado da disciplina e dos campos específicos de reflexão sobre que preferencialmente incide. Em primeiro lugar, deverá reconhecer-se o carácter fundador das relações estabelecidas com a Teoria da Literatura (visível por exemplo no facto de, em muitas Universidades, ambas darem origem a um departamento autónomo), carácter este compreensível se se pensar que é no domínio comparatista que pode ser formulada uma verdadeira consciência ao mesmo tempo supranacional e trans-histórica do fenómeno literário. No entanto, tal não deve ser confundido nem com a recusa da existência de conformações nacionais para certos problemas nem com a defesa de “universais” do literário. Pelo contrário, o conceito de supranacionalidade, que substitui (com inegável vantagem) o conceito de internacionalidade, integra ambos os pólos (nacional e supranacional) como aquilo a que Guillén (1985) chamará “dialécticas”, ou “consciência incessante de um problema”: o de que as fronteiras de uma nação não rasuram nem conseguem esbater as passagens culturais e mais especificamente literárias que estão na base de qualquer dita “literatura nacional” (e mesmo, radicalmente, a fundam). Por seu lado, esta iniludível fundamentação teórica levará, progressivamente, a uma renovação dos estudos relacionados com a História literária - e até com a História das mentalidades -, sobretudo a partir das perspectivas anti-historicistas que os estudos de recepção lhes farão abrir (Jauss, 1969). Na verdade, a plena integração do leitor no inteiro do sistema literário, com o concomitante reconhecimento dos seus “direitos de cidade”, permitirá uma diferente conformação histórica dos problemas comparatistas, entendidos aqui a partir de um ponto de vista de recepção sócio-cultural de um determinado fenómeno literário. Não deveremos, por outro lado, confundir a área dos estudos de recepção com o “velho” estudo de fontes e influências: não só porque a tónica não é já a da produção (o autor), mas sim a da recepção (o leitor e suas diversas configurações), mas sobretudo porque se passa a insistir quer no carácter dinâmico da história literária quer nas relações culturais que o literário pressupõe.

Relacionados de modo muito forte com esta área, os estudos de tradução afirmam-se progressivamente como zona cuja crescente impacto e fundamentação teórica tem inclusivamente levado à sua defesa como área comparatista privilegiada (Bassnett, 1992; Bassnett e Lefevere, eds., 1990). Na realidade, o fenómeno de tradução parece poder equacionar alguns dos elementos quer poético-retóricos quer sócio-históricos quer mesmo institucionais considerados como caracterizando a vida literária, pelo que oferece um campo de indagação muito fecundo para a análise das relações e seus efeitos entre diversas literaturas nacionais. Por outro lado, esta área reflecte ainda um outro movimento epistemológico cuja visibilidade, no interior dos estudos comparados, é sem dúvida significativa. Trata-se da gradual afirmação de um paradigma culturológico que, não podendo dizer-se que está em vias de substituição total e definitiva da orientação textológica, não obstante se cruza com ela na definição mais ampla de problemas atinentes ao fenómeno literário. Por ele se acentuam as zonas de fronteira e de passagem (zonas mistas por excelência e, por essa mesma razão, comparatistas por excelência) entre discursos e problemas de origem diversificada, sublinhando-se o modo como o “texto-em-si”, em tempos considerado como objecto único da investigação literária, é na realidade um objecto hipostasiado enquanto objecto absoluto. Se considerarmos que é a relação (sistemática e fundacional) que caracteriza a pesquisa comparatista, não será difícil de perceber como a orientação culturológica oferece aos comparatistas campos de indagação frutuosa e promissora.

Na mesma linha, deveremos sublinhar uma outra área que, embora com raízes no entendimento tradicional do comparatismo, tem também adquirido uma projecção e uma amplitude cada vez mais significativas: referimo-nos aos estudos interartes, designação que será preferível à (mais tradicional) “Literatura e Arte” ou “Literatura e outras Artes”. Com efeito, em ambas estas designações se partia do pressuposto de uma radical distinção entre “literatura” e “arte”, no que até poderia, de forma enganadora, levar a pensar que a “literatura” não era uma “arte”; por outro lado, as aproximações binárias, que (também aqui) foram predominantes até há algumas décadas atrás, foram sendo progressivamente substituídas por uma indagação mais radicalmente interdisciplinar e mesmo intersemiótica, acompanhando uma alteração paralela no domínio das pesquisas realizadas no âmbito de cada uma das disciplinas artísticas. A tónica volta portanto a ser colocada, não tanto naquilo que as separa (embora as especificidades técnicas e discursivas não devam ser rasuradas, evidentemente, do escopo desta reflexão), mas nas diferentes e específicas conformações que, de algum modo, parecem corresponder a uma indagação comum que lhes seria subjacente. Neste contexto, a perspectiva comparatista oferece um campo particularmente fecundo para a prossecução de tais trabalhos, permitindo a relacionação entre diversas manifestações da prática artística, como por exemplo as várias artes visuais, a música, a dança, o teatro ou o cinema, para lá evidentemente da prática literária propriamente dita e das osmoses a que se encontra também ligada, como por exemplo a questão da ekfrasis, a poesia experimental ou a poesia concreta.

Convirá ainda sublinhar uma outra área que poderá constituir, em anos futuros, uma confirmação de uma outra especificidade comparatista, e que a designação mais comum, “Estudos Leste-Oeste” (East-West Studies), talvez também não permita recobrir nem descrever no seu escopo mais amplo. Trata-se da formalização da tendência anti-eurocêntrica, já atrás referida, e cujo desenvolvimento se tem articulado sobretudo com a progressiva integração das culturas não-ocidentais nas preocupações comparatistas. Com efeito, a deslocação do centro de gravidade de uma “liderança” europeia para um predomínio americano, no seio da Literatura Comparada, não levou automaticamente ao esbatimento da formulação eurocêntrica do paradigma comparatista, até porque a cultura norte-americana rasurou de forma muito transparente, e durante muito tempo, as suas raízes não-europeias. No entanto, nas últimas décadas, e em parte por analogia com a progressiva afirmação das culturas ditas “minoritárias”, assistiu-se à emergência e à institucionalização dos estudos que têm como objectivo prioritário uma reflexão sobre conformações estético-literárias que não especificamente europeias. É neste âmbito que as culturas e as literaturas orientais (efectivamente recobertas pela designação Leste-Oeste) têm vindo a afirmar uma especificidade comparatista que não coincide, na realidade, com o fundo comum europeu que a tradição comparatista já reconhecia. Mas se pensarmos em outras áreas, veremos que tal designação não abrange, obviamente, todas as possibilidades de contacto: certas áreas culturais até ao momento pouco activas no âmbito da comparatística, do ponto de vista institucional, como por exemplo, e no que directamente diz respeito à literatura e à cultura portuguesas, a área da lusofonia, poderão e deverão ter um papel progressivamente mais importante para uma re-definição deste anti-eurocentrismo.

Em síntese, a Literatura Comparada parece poder surgir como espaço reflexivo privilegiado para a tomada de consciência do carácter histórico, teórico e cultural do fenómeno literário, quer insistindo em aproximações caracterizadas por fenómenos transtemporais e supranacionais quer acentuando uma dimensão especificamente cultural, visível por exemplo em áreas como os estudos de tradução ou os estudos intersemióticos. Daqui decorrem três tendências, que julgo centrais para o entendimento das perspectivas actuais do comparatismo: uma tendência multidisciplinar (e mesmo eventualmente interdisciplinar); uma tendência interdiscursiva, visível no desenvolvimento das relações com áreas como a história, a filosofia, a sociologia e a antropologia; finalmente, uma tendência intersemiótica, que tenta colocar o fenómeno literário no quadro mais lato das manifestações artísticas humanas. De todas elas ressalta um aspecto comum: o de que a Literatura Comparada se situa na área particularmente sensível da “fronteira” entre nações, línguas, discursos, práticas artísticas, problemas e conformações culturais. E esta colocação faz dela um campo de indagações particularmente fértil para a colocação de problemas que, se tomados em absoluto, dificilmente poderão encontrar uma formulação epistemológica significativa.

Bib.: Ferdinand Baldensperger, 1921, “Littératura comparée: le mot et la chose”, Revue de Littérature Comparée, 1(1), pp. 5-29; Susan Bassnett, 1992, Comparative Literature. An Introduction, Oxford, Blackwell; Susan Bassnett e André Lefevere (eds.), 1990, Translation, History and Culture, London, Pinter; Pierre Brunel e Yves Chevrel (eds.), 1989, Précis de Littérature Comparée, Paris, PUF; Tânia Franco Carvalhal e Eduardo Coutinho (eds.), 1994, Literatura Comparada. Textos fundadores, Rio de Janeiro, Rocco; Claudio Guillén, 1985, Entre lo Uno y lo Diverso. Introducción a la Literatura Comparada, Barcelona, ed. Crítica; Hans-Robert Jauss, 1969, “Literaturgeschichte als Provokation der Literaturwissenschaft”, ed. Ut.: “Literary history as a challenge to literary theory”, in Hazard Adams e Leroy Searle (eds.), Critical Theory since 1965, Florida State U.P., pp. 164-83; François Jost, 1974, Introduction to Comparative Literature, Indianapolis/New York, Pegasus; Manfred Schmeling, 1984, Teoría y Práxis de la Literatura Comparada, Barcelona, Alfa; Frank Trommler (ed.), 1995, Thematics Reconsidered, Amsterdam, Atlanta; Paul Van Tieghem, 1931 (1951), La Littérature Comparée, Paris, Colin; René Wellek, 1959, “The crisi of comparative literature”, in 1963, Concepts of Criticism, Yale U.P.

Helena Carvalhão Buescu

Personagens

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

PERSONAGEM PLANA

Estabelecida por E. M. Forster e Aspects of the Novel (1927), a distinção entre personagem plana (flat character) e personagem redonda (round character), v. personagem redonta), continua a ser um instrumento útil para a configurção de uma taxonomia das personagens, quer na narrativa quer no drama.

Segundo E. M. Forster, a personagem plana é construída em torno de uma única ideia ou qualidade. Daí deriva a sua falta de profundidade em termos de caracterização psicológica, e o facto de não evoluir ao longo da acção. E é justamente porque não evolui que a personagem plana tende a ser, simultaneamente, uma personagem estática.

Pra além disso, e na medida em que geralmente funciona como representação de um grupo ou de uma classe social sem se individualizar em relação aos mesmos, esta espécie de personagem é passível de ser definida como tipo.


PERSONAGEM REDONDA

Ao contrário da personagem plana (v.), a personagem redonda apresenta-se multifacetada e complexa no que respeita à sua caracterização psicológica.

Ao estabelecer a distinção entre personagem plana (flat character) e personagem redonda (round character) em Aspects of the Novel (1927), E. M. Foster aponta a acumulação de características ou qualidades como factor determinante da classificação de uma personagem como sendo redonda.

A sua complexidade e profundidade psicológicas transformam-na numa personagem passível de nos surpreender no decurso da acção, até porque ela tende a evoluir ao longo da mesma. Por este motivo, a personagem redonda é, por via de regra, uma personagem dinâmica. Simultaneamente, e já que o conjunto das sua características a destaca e autonomiza em relação ao grupo ou classe a que pertence, esta espécie de personagem pode também ser definida como indivíduo.



BIBLIOGRAFIA: E. M. Forster, Aspects of the Novel (1927); Philippe Hamon, “Para um Estatuto Semiológico da Personagem”, in F. Van Rossum et allii, Categorias da Narrativa (1977).



Maria Isabel Barbudo

Teoria Crítica

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

No domínio dos estudos literários, assiste-se há já algum tempo a uma confusa convivência entre a expressão “teoria literária” e a expressão “teoria crítica”. Contudo, porque são incómodos, os diferentes problemas que aquelas expressões encerram ou são recalcados ou, pura e simplesmente, transferidos para um plano mais ou menos etéreo do imaginário intelectual onde não parece haver diferenças nem contradições. Todos quantos se interessam por questões literárias já depararam com a situação muito frequente de se estar a ler um texto que se vai construindo pela designação de «teoria literária» para logo a seguir, e mais ou menos subrepticiamente, introduzir a expressão «teoria crítica» sem que, no entanto, se altere o contexto do discurso ou o plano conceptual em que este se desenvolve. Noutras versões, encontramos várias pessoas a referirem-se (pelo menos aparentemente) à mesma realidade através de nomes diferentes. Por exemplo, numa entrevista concedida a uma publicação literária, e relacionando a sua actividade teórica com a sua actividade de escritor, Malcolm Bradbury afirmava o seguinte: «Tenho vindo a desapaixonar-me cada vez mais com o estudo da teoria crítica contemporânea» (M. Bradbury, 1993: 40; sublinhados meus). Logo a seguir, no entanto, encontramos um dos seus três entrevistadores a dizer o seguinte: «É de opinião que a teoria literária e a criação autêntica estão a fazer a mesma coisa de maneiras diferentes?» (loc. cit.; sublinhados meus).

Aparentemente ambas as expressões parecem apontar para um mesmo objecto literário. No entanto, são muito diferentes os seus enquadramentos epistemológicos, assim como os contratos intelectuais em que se apoiam. A noção de teoria literária* já foi estudada noutro lugar. Aqui importa situar a especificidade da noção de teoria crítica, explicitar as derivas da próprLia expressão e, finalmente, comparar a legitimidade da teoria crítica actual com a da teoria literária.

1. A teoria crítica enquanto “teoria da crítica literária”

No universo anglo-americano dos estudos literários, a expressão “teoria crítica” não é nova. Desde I.A.Richards (Principles of Literary Criticism, 1926) até M. H. Abrams (The Mirror and the Lamp, 1953), a noção de “teoria crítica” existiu como sinónimo de “teoria da crítica literária”. A obra de M. H. Abrams tem mesmo um subtítulo esclarecedor e um primeiro capítulo ainda mais esclarecedor. O subtítulo é o seguinte: “A Teoria Romântica e a Tradição Crítica”, e o primeiro capítulo intitula-se “A Orientação das Teorias Críticas”. Estas, segundo Abrams, são fundamentalmente quatro: mimética (orientada para a natureza, o mundo ou o universo), pragmática (orientada para o leitor ou o público), expressiva (orientada para o autor autor ou o artista) e objectiva (orientada para a obra).

Neste quadro intelectual, o que se procurava era exactamente designar a teoria que validava o acto crítico enquanto expressão de um duplo entendimento teórico da literatura em geral ou de qualquer texto em particular. Por um lado, o texto era considerado como imutável nas estruturas internas de que se compunha (estando essas estruturas sujeitas, por isso, a um escrutínio crítico que podia ser objectivo). Por outro lado, acreditava-se que os sentidos textuais se mantinham universalmente presentes no texto e, consequentemente, à disposição de qualquer leitor com preparação suficiente para os encontrar e desvelar num quadro crítico de comprometimento com uma busca “desinteressada” típica da estética pós-kantiana, ou que aprofundava a fórmula kantiana da obra de arte como Zweckmässigkeit ohne Zweck. Este foi o entendimento da noção de “teoria crítica” nos estudos literários sobretudo durante os anos Trinta, Quarenta e Cinquenta.

Há indícios de que esta associação da “teoria crítica” com a “teoria da crítica literária” está em vias de ser recuperada, num quadro mais geral de marcação da sua diferença em relação à “teoria literária”. Ela merece, por isso, ser comentada, pois creio que contém não poucos equívocos.

Conforme afirmei no lugar próprio, encaro a teoria literária* pela sua força inclusiva. Quero dizer com isto que a vejo também como processo interrogativo do próprio pensamento crítico acerca da literatura. Consequentemente, e desde logo, não posso partilhar inteiramente a distinção que alguns estudiosos estabelecem entre aquilo que pode ser considerado teoria da literatura, isto é, a teoria que podemos defender acerca da natureza da obra literária, e aquilo que pode ser considerado teoria da crítica, isto é, a teoria acerca da natureza da crítica literária.

Reconheço que aquela distinção faz plenamente sentido e tem a suprema virtude de separar o preto do branco. No entanto, as virtudes desta solução escamoteiam dois problemas importantes. Por um lado, obscurecem o facto de que qualquer teoria acerca da crítica literária revela sempre, de um modo ou de outro, uma determinada concepção do texto literário e, consequentemente, revela-se sempre também como uma teoria da literatura. Por outro lado, obscurecem o facto de que qualquer discurso acerca da natureza da literatura se revela sempre como um projecto, num espectro de vários projectos possíveis, de leitura crítica da literatura. Neste sentido, a distinção é claramente artificial.

O recurso àquela distinção só se justifica, eventualmente, se quisermos, no âmbito da teoria da crítica, sublinhar um trabalho de reflexão acerca da crítica literária pela exclusividade de uma especificação da origem desta, dos seus procedimentos, das suas motivações, das razões da sua representatividade social, em suma, dos dados histórico-institucionais explicativos da sua existência. Em virtude desta exclusividade, o trabalho realizado resume-se, desde logo, a um conjunto muito restrito de questões. Ora, sabemos que quase todas as reflexões acerca da crítica literária alargam o âmbito das suas preocupações de modo a integrarem, cada uma à sua maneira, uma temática da crítica. Esta, no entanto, pela sua própria natureza, acaba por reflectir os interesses variados do estudioso, isto é, a crença deste acerca da natureza da literatura. E estamos, assim, na região daquilo que se pretendia evitar, isto é, na teoria literária. Quando muito, pode-se falar neste caso de uma crítica da crítica ou de uma criticologia. Mas, mesmo assim, será sempre uma solução que levanta mais problemas do que aqueles que tenta resolver, pois se é sempre possível reconhecer um sentido próprio a este tipo de trabalho, só muito dificilmente, em virtude dos envolvimentos inevitáveis com a (uma) crença acerca da natureza da literatura, se lhe pode reconhecer uma vida própria.

1.2 Teoria (da) crítica vs. teoria literária

A hesitação, ou a solução de compromisso, protagonizada por Murray Krieger, é particularmente significativa desta situação problemática em que vivem a teoria literária e a teoria (da) crítica. Num livro em que pretende estudar várias questões de teoria literária, Murray Krieger começa cautelosamente por dizer o que entende por teoria literária: “Por teoria literária (...) entendo a construção sistemática que explica e harmoniza as críticas individuais de obras literárias. Começamos assim, como leitores, com a obra literária; a racionalização da nossa leitura e da nossa resposta à obra tem como consequência o trabalho individual da crítica; e, com o tempo, a tentativa coerente de racionalizar os nossos comentários descontínuos torna-se a nossa teoria literária.” (Murray Krieger, 1976: 3-4).

Não se pode dizer que o entendimento que este autor faz da teoria literária seja particularmente claro—sobretudo se tivermos em conta a preocupação que também manifesta de propor o seu trabalho por uma defesa da necessidade da teoria literária: «Pode ser feita e, em nome de um estudo literário efectivo, deve ser feita uma defesa da teorização acerca da literatura» (id.: 5). Ao querer enunciar o processo de causalidade da teoria literária, M. Krieger acaba por obscurecer, quer o momento da leitura quer o da construção de um quadro conceptual do literário por que a teoria da literatura se distancia do gesto crítico. Esta deficiência, no entanto, esclarece-se quando algumas páginas depois encontramos, em fugaz nota de roda-pé, a confissão de que, afinal, talvez seja mais correcto falar de teoria da crítica em vez de teoria literária. De tal maneira que o próprio título do livro, Teoria da Crítica (Theory of Criticism) é justificado por aí - o que não deixa de ser bizarro, pois não é frequente encontrar-se o título de uma obra justificado numa envergonhada nota de roda-pé: “(...) A frase ‘teoria da crítica’ é um substituto mais imparcial para ‘teoria da literatura’. Normalmente, quando procuramos encontrar uma estrutura teórica para a literatura (quer ela seja a nossa própria estrutura quer a de outrem) estamos realmente em busca de uma teoria para explicar concepções (nossas e de outros) acerca das obras literárias. Por isso, falar de teoria literária é, talvez com mais precisão, falar de teoria crítica. É esta observação que explica o título deste livro.” (id.: 8).

1.2.1 Teoria crítica vs teoria literária

Aquilo que para Murray Krieger ainda era teoria da crítica passa no entanto a ser, alguns anos depois, clara e inequivocamente, teoria crítica. No texto lido em Abril de 1987 na inauguração do Instituto de Teoria Crítica (Critical Theory Institute), na Universidade de Irvine, em cuja criação M. Krieger teve um empenhamento assinalável e para cuja orientação tem vindo a contribuir com um dinamismo e uma competência não menos assinaláveis, este autor tenta apresentar os dados da diferença entre teoria literária e teoria crítica. Não se pode dizer que esse texto seja particularmente esclarecedor, pois, no essencial, repete os argumentos atrás citados, complicando não raras vezes a inteligibilidade das suas próprias posições. Há, no entanto, momentos de clareza como este: “A teoria não é mais teoria literária, mas tornou-se crítica, teoria que se volta contra si mesma. Em vez de um sistema filosófico exposto para juntar um grupo de textos de maneira a abri-los a uma crítica subordinada, ela [a teoria] tornou-se um modo de filosofia crítica, no sentido em que Hume ou Kant entendem a palavra crítica. Em vez de apresentar uma teoria fixa, ela [a teoria] não vai além de uma arremetida teórica que, crítica (devemos dizer «desconstrutiva»?) no seu funcionamento, desfundamenta a disciplina auto confiante que representa; que representa somente enquanto a assalta. Ela [a teoria] faz-nos ver aquilo que pretende ser uma actividade de um só sentido como sendo nada mais do que uma circular auto-sustentada, que já criou aquilo que se esforça por «descobrir». Este sentido da «teoria crítica» pode ser visto como uma versão alargada do uso dado a esta frase pela Escola de Frankfurt (...). De facto, este tipo de teoria, teoria crítica, subverte não só a crítica literária (...), mas também a própria teoria, no ponto em que ela era teoria literária, uma teoria que fundamentava a crítica de textos literários. Consequentemente, tendo em conta movimentos recentes, quando se exerce a teoria (once you bring theory to bear), não se pode continuar a sustentar a crítica; mas uma vez que se exerce a faculdade crítica (once you bring the critical faculty to bear) não se pode continuar a sustentar a teoria. Neste momento a «teoria crítica» é, na verdade, «crítica da teoria». (Murray Krieger, 1988: 93). Importa comentar com algum pormenor esta denegação da teoria literária e a simultânea apologia da teoria crítica.

Se bem interpreto aquela passagem, o que Murray Krieger nos diz é que a teoria só existe quando, de facto, deixa de existir como teoria, ou quando passa a existir como crítica de si mesma. Ou ainda: a teoria só existe na rebeldia epistemológica de nunca se cumprir como teoria. Ou ainda: a teoria existe não por uma função que eventualmente possa cumprir, mas pela disfunção que tem obrigatoriamente de servir. Ou ainda: a literatura ausenta-se do espaço propriamente literário da teoria, pois esta só existe pelas possibilidades processuais de a própria teoria se criticar a si mesma, instituindo-se como teoria crítica, mas nessa crítica desaparecendo como teoria para se assumir como crítica da teoria. Ora, na medida em que o dinamismo intrínseco da faculdade crítica não finaliza aqui o processo crítico, é de supor um novo estádio em que a crítica da crítica da teoria subverte a própria crítica da teoria. Duas hipóteses se perfilam a partir daí: ou esta lógica continua até culminar num reductio ad absurdum da crítica da teoria ou, então, pelos próprios movimentos de negação da negação da teoria crítica, aquela lógica acaba por fixar obsessivamente o rosto da teoria que inicialmente pretendia esquecer. No primeiro caso, estamos perante uma candura filosófica que recupera a metafísica por retoques desconstrutivos, embora sem o fôlego desconstrutivo que lhe dê uma coerência paradoxal propriamente metafísica—ao contrário do que acontece, por exemplo, com perspectivas semelhantes, embora anichadas no berço do estruturalismo, como a de Julia Kristeva quando nos garantia que «para a semiologia a literatura não existe» (1968: 95). No segundo caso, estamos perante uma dialéctica «imparcial» de afirmação da autoridade da teoria, embora, conforme decorre dos argumentos críticos de M. Krieger, sem a presença de uma credibilidade teórica que a sustente.

Mas a «imparcialidade» das palavras de Murray Krieger, designadamente quando este autor se refere à teoria crítica da literatura como um modo de filosofia crítica, tem a suprema virtude de revelar que a mais ou menos frequente alternativa da teoria crítica à teoria literária surge invariavelmente proposta sob a forma de uma clara dívida endémica da teoria crítica à filosofia. De facto, e independentemente das posições teóricas ou anti-teóricas dos vários autores envolvidos, à relativa popularidade que a expressão teoria crítica tem tido nos estudos literários (englobando nessa expressão tudo o que, em outros modelos, poderá ser objecto de teoria literária) não é estranho o sucesso obtido na comunidade literária pela «teoria crítica» (da sociedade) proposta pela chamada Escola de Frankfurt, e muito particularmente por Jürgen Habermas. É isto que importa agora considerar com alguma atenção, bem como com um distanciamento (crítico) que está ausente da precária justificação dada por Murray Krieger.

2. O sucesso da «teoria crítica da sociedade»

A ideia de “crítica” que hoje em dia subjaz à “teoria crítica” assenta num contrato intelectual bem claro. Sob inspiração da Escola de Frankfurt (v. David Held, 1990), o que a “teoria crítica” nos dá hoje é, no essencial, uma valorização daquilo que é crítico em detrimento daquilo que é literário. Ao apontar para uma relativização substantiva do literário, ou para uma desvalorização do carácter privilegiado do literário, a “teoria crítica” actual avança no sentido da demonstração de três coisas interligadas. Por um lado, destaca sobremaneira tudo quanto é política e historicamente contingente tanto no escritor como no intérprete. Por outro lado, procura sobretudo demonstrar no texto ou reconstruir a partir dele os discursos de instituições sociais e políticas, bem como os sentidos constitutivos da realidade social enquanto domínio estruturado simbolicamente. Finalmente, a pesquisa é acima de tudo orientada para a identificação do modo como o texto se torna crítico das instituições e das genealogias do poder que as servem e que delas se servem.

O sucesso obtido na comunidade literária pela «teoria crítica» (da sociedade) de Jürgen Habermas está exemplarmente patente num estudo realizado por John McCumber. Este autor propõe a «pragmática universal» de Habermas como «o quadro em cujos termos se toma em consideração o potencial emancipatório da experiência estética» (McCumber, 1985: 268). Transferindo para o campo literário a teoria da acção comunicativa de Habermas, aquele autor parte da premissa de que aquilo a que chama «interacção poética» deve ser vista pelos dados habermasianos de «uma linguagem em que somente a pretensão de inteligibilidade ganha força» (did.: 273), a fim de demonstrar como o programa da crítica habermasiana se pode cumprir na literatura por padrões de uma crítica das instituições: “O resultado da interacção estética revela-se paradigmática de uma espécie mais vasta de comunicação humana. (...) Chamo interacção poética a este modo mais vasto de linguagem.” (id.: 269); “Se a interacção poética é um tipo distinguível de comunicação humana, a questão que se coloca é a de saber se, enquanto acção comunicativa, ela pode fornecer padrões positivos para a crítica de instituições sociais existentes.” (id.: 273).

Obviamente, o resultado a que este autor chega é o de que a literatura «pode fornecer padrões positivos para a crítica de instituições sociais existentes». As contradições subjacentes a este projecto são, no entanto, inúmeras. Todas elas decorrem da dificuldade primordial de compatibilizar o discurso da literatura com um modelo de comunicação que, no entendimento habermasiano da acção comunicativa, pressupõe que a mensagem seja não só inteligível, mas que também seja verdadeira, apropriada às normas sociais e uma expressão verídica da intenção do falante (cf. Habermas, 1979: 1-68). Um mesmo que breve envolvimento com a problemática da literatura dá-nos conta de que estes não podem ser os termos de classificação e entendimento da mensagem literária. De tal maneira que é o próprio John McCumber que se vê na necessidade de afirmar o seguinte: “A interacção poética não é uma acção comunicativa no sentido de Habermas, pois nela uma realização linguística (utterance) não se reclama verdadeira, sincera ou apropriada.” (McCumber, op. cit.: 273).

Mas então qual é a eficácia do projecto deste autor quando se tutela pela acção comunicativa da teoria crítica de Habermas? A resposta fica a aguardar melhores dias para a teoria crítica nos estudos literários.

2.1 O efeito iluminador da «teoria crítica da sociedade»

Mais frequente do que uma relação de implicações directas, invariavelmente com resultados muito pouco convincentes, é o efeito iluminador da teoria crítica habermasiana da sociedade no usufruto que alguns sectores dos estudos literários fazem da noção de «teoria crítica». Vejamos três pormenores particularmente salientes.

Em primeiro lugar, o programa habermasiano de demarcação da teoria crítica (social) da estrita ciência empírico-analítica, localizando-a «entre a filosofia e a ciência» (cf. Habermas, 1973: 195-252), encontra um eco favorável na necessidade sentida nos estudos literários de libertar o trabalho de compreensão da literatura (e da história literária) das várias teses neopositivistas acerca do método científico. Jonathan Culler (veja-se sobretudo J. Culler, 1983) e Christopher Norris, nas suas frequentes sinalizações da teoria crítica enquanto estudo da literatura como construção retórica, fornecem-nos dois exemplos dignos de registo. As seguintes afirmações do segundo autor (veja-se também C. Norris, 1982), e independentemente do seu conteúdo programático particular, é representativa deste tipo de entendimento da teoria crítica: “Longe de aspirar a uma «ciência» do texto, a interpretação conduz, na sua fundamentação mais rigorosa (at its most rigorous), a uma consciência da distância entre ela e qualquer critério absoluto de verdade ou método. (...) A teoria crítica (...) é inevitavelmente conduzida a desvios figurativos que reconhecem tacitamente o seu estatuto textual (ou «literário»).” (Christopher Norris, 1981: 110).

Em segundo lugar, a insistência de Habermas na «lógica e na dinâmica de desenvolvimento de estruturas normativas» (Cf. Habermas, 1979: 95-129) encontra um eco favorável nos estudiosos preocupados sobremaneira com uma compreensão interpretativa da literatura pelos dados pré-estruturados do mundo social na relação de determinação que mantêm com as motivações subjectivas do escritor enquanto actor social. A teoria crítica subjacente quer ao chamado äNovo Historicismo norte-americano, particularmente à «poética da cultura» (poetics of culture) de Stephen Greenblatt, quer ao chamado äMaterialismo Cultural britânico, protagoniza um dos seus exemplos mais significativos. De facto, tanto o Novo Historicismo como o Materialismo Cultural não distinguem os sentidos textuais dos sentidos para que se orienta a acção social. Todos são indiscriminadamente encarados como sendo acima de tudo sentidos intersubjectivos constitutivos da matriz sociocultural em que os indivíduos se encontram e na (pela) qual agem (segundo Habermas: valores e visões do mundo recebidos, papéis institucionais e normas sociais, etc.; cf. id.: 98-106): “A literatura funciona (...) como uma manifestação do comportamento concreto do seu autor, como a própria expressão dos códigos pelos quais o comportamento é moldado e como uma reflexão acerca desses mesmos códigos. (...) A crítica literária (...) deve estar consciente do seu próprio estatuto enquanto interpretação e enquanto desígnio de compreensão da literatura como uma parte do sistema de signos que constitui uma dada cultura; o seu objectivo, por mais difícil que possa ser a sua realização, é uma poética da cultura.Uma tal abordagem (...) é necessariamente impura: as suas preocupações centrais impedem-na de estancar permanentemente um discurso do outro ou de separar as obras de arte das mentes e das vidas dos seus criadores e dos seus auditórios.” (Stephen Greenblatt, 1980: 4-5); “(...) A nossa crença é a de que uma combinação do contexto histórico com o método teórico, o comprometimento político e a análise textual oferece o maior desafio (...). «Materialismo» opõe-se a «idealismo», insistindo no facto de que a cultura não transcende (não pode transcender) as forças materiais e as relações de produção. A cultura não é um simples reflexo do sistema económico e político, mas também não pode ser independente dele. O materialismo cultural estuda, portanto, a implicação dos textos literários na história.” (Dollimore & A.Sinfield, 1985: Prefácio: vii-viii).

Finalmente, a incorporação na metodologia social habermasiana de uma crítica da ideologia surge como um dado particularmente importante para uma afirmação libertadora (ou mesmo libertária) da teoria. Aquela crítica, assentando no reconhecimento de «pressuposições gerais da acção comunicativa» (Habermas, op. cit.: 1), articula uma posição dupla. Por um lado, ela nega a utopia enunciada pela análise estrutural-funcional, segundo a qual a pesquisa social deve ser separada dos conteúdos ideológicos integrados nos sistemas de valor por que essa pesquisa é articulada pelos seus membros. Por outro lado, ela afirma quer a «autonomia do eu» na «interdependência das formas de identidade e das forma de integração» (cf. id.: 68-94), quer um sentido prático para a análise dos sistemas sociais no sentido de uma interpretação geral da sociedade (contemporânea) ou de uma reconstrução da crítica da sociedade capitalista em nome da «busca da felicidade» e de (futuras) «relações sociais em que a mutualidade predomina e em que satisfação não quer dizer o triunfo de um sobre as necessidades reprimidas do outro» (id.: 199).

Estes são princípios que encontram um eco favorável em duas vertentes importantes da investigação literária. Por um lado, na vertente que encara o intérprete pela afirmação de uma subjectividade que acredita nas motivações particulares que levam a encontrar interpretações dos textos enquanto interpretações adequadas devido à expresssão de um consenso mais geral que essa particularidade protagoniza. Por outro lado, naquela vertente que encara a obra literária e/ou a experiência estética sobretudo pelo poder que ela(s) revela(m) de criticar as instituições, bem como os estratos temáticos das várias «legitimações do poder». Stanley Fish, nas suas evidências da teoria crítica pelas localizações programáticas das comunidades interpretativas, fornece-nos, malgré lui, um importante exemplo da primeira vertente: “(...) O acto de reconhecimento da literatura não é forçado por algo existente no texto, nem emana de uma vontade independente e arbitrária; antes, ela deriva de uma decisão colectiva acerca daquilo que deve contar como literatura, uma decisão que continuará em vigor somente enquanto a comunidade de leitores ou crentes continuar a submeter-se a ela.” (S. Fish, 1980: 11).

Frederic Jameson (e, em grande medida, também os autores ligados ao Materialismo Cultural que referi atrás), na sua fixação da teoria crítica pela incorporação na análise da literatura do quadro objectivo da acção social e dos desenvolvimentos (económicos e políticos) a partir dos quais as tradições culturais mudam historicamente, fornece-nos um exemplo não menos importante da segunda vertente: “(..) Nos limites do nosso primeiro (...) horizonte (...) a obra individual é captada essencialmente como um acto simbólico. Na segunda fase (...) o horizonte semântico (...) alargou-se de modo a incluir a ordem social (...). Verificamos que o próprio objecto da nossa análise se transformou dialecticamente, e que já não é construído como um «texto» ou como uma obra individual (...) mas foi reconstituído sob a forma dos grandes discursos colectivos e de classe dos quais um texto pouco mais é do que uma realização ou parole individual. Neste novo horizonte (...) o nosso objecto de estudo mostra ser o ideologema, isto é, a mais pequena unidade inteligível dos discursos essencialmente antagonísticos das classes sociais. (...) Finalmente (...), tanto o texto individual como os seus ideologemas conhecem uma transformação final, e devem ser lidos em termos daquilo a que chamo ideologia da forma, isto é, as mensagens simbólicas que não são transmitidas pela coexistência de vários sistemas de signos que são eles próprios traços ou antecipações de modos de produção.” (F. Jameson, 1981: 76).

2.2. Crítica da soberania programática da «teoria crítica da sociedade»

A noção de teoria crítica fundada na análise historicamente orientada da Escola de Frankfurt em geral, ou no modelo histórico-hermenêutico habermasiano em particular, tem, portanto, condições para oferecer como que uma certa soberania programática da teoria crítica aos estudos literários. No entanto—e independentemente da importância que o pensamento de Habermas pode ter para os estudos literários--, embora sedutora na sua dinâmica de compreensão da realidade social, ou dos sentidos constitutivos da realidade social enquanto domínio estruturado simbolicamente, aquele entendimento da teoria crítica não pode nem deve ser mecanicamente transferido para o domínio literário. Por duas razões. Em primeiro lugar, porque o texto literário não é necessariamente uma condensação mediática das estruturas semânticas do poder. Em segundo lugar, porque o jogo de aparências que se desenvolve no interior do objecto imaginário que é a literatura impede uma representação verdadeira de normas consensuais.

É por aquelas razões que acredito que qualquer entendimento da teoria acerca da literatura pela valorização crítica do texto literário enquanto resíduo de discriminações sociais e políticas (o «inconsciente político» de que nos fala F. Jameson), ou enquanto interacção simétrica com os dados pré-estruturados do mundo social que sustentam a construção ficcional (tal como é proposto pelo Novo Historicismo norte-americano e pelo Materialismo Cultural britânico), condena o objectivo da pesquisa literária à reconstrução de discursos de instituições que, por mais importante que possa ser a sua força normativa (e até por mais completa que possa ser a informação que o texto nos dá acerca dessa força), nunca designa o literário na sua dimensão mais intensa. A essa dimensão tenho eu chamado matéria negra da literatura, isto é, o universo de pluralidade imanente que a literatura constantemente sugere para além das suas próprias formulações linguísticas (vd. M.F.Martins, 1995). Para a (uma certa) filosofia pode ser estimulante (re)construir na literatura as genealogias do poder, mas a teoria literária deve saber que a representação literária é sempre uma representação imperfeita, e se nela o poder se representa é sempre sob a forma de uma vontade prevertida de poder. Colocando a questão de um modo aforístico, e com certeza mais rico nas suas possibilidades explicativas, há mais coisas na literatura e na crítica da literatura do que aquelas que podem ser sonhadas pela filosofia.

A demarcação habermasiana da teoria crítica (social) da estrita ciência empírico-analítica pode sustentar também o entendimento da teoria crítica na literatura pelo espaço de libertação dos elementos retóricos da linguagem por que se constrói quer o discurso teórico, quer o discurso crítico—entendimento sinalizado, entre outros, por J. Culler e C. Norris, mas abrangendo os principais autores envolvidos no chamado desconstrucionismo americano. Esse entendimento tem a vantagem de destacar o potencial emancipatório de ambos os discursos, nomeadamente face aos vários equívocos gerados nos estudos literários pela tendência novecentista de canonizar o discurso científico como o único paradigma de racionalidade. Porém, ao se reificar nos discursos teórico e crítico os elementos retóricos do discurso literário estabelece-se uma confusão muito pouco produtiva de papéis entre o escritor e o teórico e/ou o crítico, entre a literatura e a crítica. Essa confusão é não raras vezes camuflada pelo argumento de que aquilo que verdadeiramente se pretende é orientar a reflexão no sentido do esbatimento das diferenças genéricas entre crítica literária e literatura, sinalizando ao mesmo tempo o caminho conduncente a uma crítica da metafísica. Mas o que acontece, de facto, é a supressão da possibilidade de compreender a literatura pelas razões particulares da sua própria retoricidade. Embora o problema seja colocado de outra maneira, vale a pena escutar Habermas: “Quem introduz a crítica literária no domínio da retórica a fim de neutralizar o paradoxo da sua auto-referencialidade, deixa que a lâmina da crítica literária fique embotada.” (J. Habermas, 1990: 199).

3. Teoria literária vs. teoria crítica

Voltemos ao ponto por onde começámos. Valerá a pena introduzir uma distinção entre teoria literária e teoria da crítica, ou entre teoria literária e teoria crítica? Seguindo a lógica destes últimos emblemas que referi, e que são reveladores da dívida endémica da teoria crítica à filosofia, verificamos que a distinção nos mostra menos uma vitalidade intrínseca dos estudos literários e mais a força poderosa da filosofia para absorver os estudos literários de modo a tornar a teoria crítica um mero capítulo do conhecimento filosófico. Seguindo a lógica dos primeiros autores que referi, e de todos aqueles que movendo-se sobretudo no terreno do literário pretendem, mesmo assim, sublinhar a diferença da reflexão acerca do gesto crítico, verificamos que a distinção entre teoria literária e teoria (da) crítica cria, de facto, mais problemas do que aqueles que resolve. A questão deve ser, portanto, colocada noutros termos.

Tal como referi no verbete respectivo, a teoria literária* é algo que se revela por um discurso impuro na sua própria natureza teórica, e é dessa impureza que ela retira a sua própria força intelectual. Enquanto tal, ela não tem necessidade de se sujeitar a hibridismos onomásticos ou a compromissos piedosos como a teoria crítica (e, por implicação, com a filosofia) para justificar o seu contacto (necessário) com outros saberes, outras disciplinas, outros interesses intelectuais. A teoria literária fala a partir do lugar próprio e específico dos estudos literários, e quanto mais forte for a consciência desse lugar tanto mais seguro será o discernimento da especificidade das relações que a teoria literária mantém com todos os outros discursos, e muito particularmente com o discurso da filosofia.

É certo que esse discernimento não pode esquecer que o discurso filosófico é, sem dúvida, o discurso mais poderoso de que dispomos ou, nas palavras de Derrida, «a mais poderosa formação discursiva, a mais extensa, a mais durável, a mais sistemática da nossa cultura» (Derrida, 1972, 1975: 103, nota 13). Porém, também não é menos certo que esse discernimento, porque discernimento fundamentado na consciência do lugar literário, não obriga (e até deve impedir) que o discurso da teoria literária se exerça pelas instâncias de um saber filosófico que defina o teórico da literatura pela centralidade desse saber. Aquilo a que aquele discernimento deve conduzir não é que o teórico da literatura trabalhe na dependência da decifração filosófica mas, sim, que oriente o seu trabalho no campo literário por uma apropriação das várias regiões do saber, e consequentemente também das regiões do filosófico, de modo a fazê-las contar uma histórica que de outro modo elas não contariam. Uma história em que a filosofia se narra segundo os interesses da teoria literária, sem máscaras, sem equívocos, com «preferências» assumidas e «em consonância com os desideratos» de cada teórico da literatura—conforme, aliás, o lúcido conselho de Richard Rorty num texto centrado exactamente nestas questões (Rorty, 1985: 1-2).

É por este conjunto de razões que julgo que atitudes como a que se cita a seguir podem estar recheadas de boas intenções, mas redundam, de facto, em confortáveis mistificações da natureza da teoria: “A «teoria», que é muitas vezes hispostasiada e excluída como sendo uma disciplina contida em si mesma, pode ser mais utilmente explorada não se a compartimentarmos, como se ela fosse qualquer coisa rarificada e especialista, mas se permitirmos que ela interaja com o máximo número de outros tipos de estudo que coexistem com ela; é neste sentido que ela é «crítica» tal como «literária».” (Kate Ince, 1992: 264).

A reconhecida interdisciplinaridade da teoria literária não obriga a este tipo de compromisso invertebrado com a teoria crítica. É claro que a teoria também pode ser «crítica». Mas não pelas razões apresentadas por aquela autora. Ao interagir com outros tipos de estudo, a teoria literária não está a ser crítica. Ao fazê-lo, ela está tão-só a revelar a sua disponibilidade para encarar o facto literário pelo sistema de dependências, de jogos e de cruzamentos (históricos, psicológicos, sociais, políticos, antropológicos, linguísticos, etc.) que o identificam como acontecimento cultural. Como qualquer outra actividade intelectual, o exercício da teoria nos estudos literários adquire, no entanto, tonalidades críticas. Isso acontece de cada vez que a teoria encara um problema (literário) não só pelas relações internas que o instituem como problema, mas também pela dinâmica de compreensão do discurso da própria resposta (teórica) a esse problema. Sem este olhar (crítico) para dentro de si mesma a teoria estaria condenada a transformar-se em mera ideologia.

Se não quisermos esquecer ou defraudar o objecto que derradeiramente orienta o nosso trabalho, temos de assumir a teoria pelas múltiplas «impurezas» intelectuais que se representam no literário ou que por ele se articulam. Porque é dele que se trata, de facto, sempre. Quando isto é esquecido, então temos o teórico da literatura travestido de filósofo. Essa situação pode agradar a espíritos carentes de rigor. Contudo, o desempenho intelectual que resulta dessa confusão de papéis não abona muito em favor da teoria. Faz sentido invocar a sábia prudência de Horácio: “Quem não as sabe terçar que se abstenha de jogar armas no campo, e quem não aprendeu a lançar a bola, o disco, o troco, deve ficar quieto, para que os círculos apinhados de espectadores se não riam impunemente.” (Horácio, Arte Poética: 379-382).

Insistir, tal como tenho vindo a fazer, nas «impurezas» intelectuais para caracterizar a teoria literária não equivale a defender que ela seja impura em virtude de uma identificação (por empatia, emulação ou simples rivalidade mimética) da teoria com o objecto literário. Esse é o alçapão em que se fecha o desconstrucionismo. O que eu pretendo dizer é que ela é impura porque do seu objecto emanam refracções múltiplas que não podem nunca ser reduzidas a um único plano de compreensão, mas que devem ser reveladas na dinâmica das suas próprias manifestações enquanto manifestações de uma realidade multímoda chamada literatura.

É isto, aliás, que também permite estabelecer uma das distinções principais entre a teoria literária e a crítica literária. A leitura crítica da literatura não é outra coisa senão o esforço de aplacar a força refractiva (isto é, agenciadora da ambiguidade, da polissemia, da indeterminação, etc.) da literatura, conduzindo-a, através da interpretação, a um plano unitário e nivelador. Ora, a tarefa da teoria literária é também a de estudar os movimentos de suspensão dessa força refractiva operados pela crítica literária. E na medida em que esses movimentos põem em evidência motivos, crenças, disposições intelectuais, valores, normas, etc., à teoria literária outra coisa não resta senão reconhecer, também por aí, que aquilo que nela existe de mais impuro pelas suas impossibilidades sistémicas ou metodológicas constitui, de facto, a razão mais pura da sua vitalidade, agora também enquanto possibilidade instrumental (de conhecimento) do próprio pensamento crítico.

Obviamente, a teoria literária também não está imune às evidências do seu discurso pela presença de motivos, crenças, disposições intelectuais, valores, normas, etc. Mas só a teoria literária é que tem condições para reflectir criticamente acerca de si mesma num esforço de problematização supremo que a marca, que a vivifica e, não raras vezes, que também a ameaça de morte.



ESCOLA DE FRANKFURT; ESTUDOS CULTURAIS; IDEOLOGIA; SOCIOLOGIA E LITERATURA; TEORIA DA CULTURA; TEORIA DA LITERATURA

Bib.: Christopher Norris: «Between Marx and Nietszche: The Prospect for Critical Theory», in Journal of Literary Semantics, vol. X, n.o 2, 1981; Deconstruction: Theory and Practice,1982; David Couzens Hoy: The Critical Circle: Literature, History and Philosophical Hermeneutics, 1978, 1982; David Held: Introduction to Critical Theory: Horkheimer to Habermas (1990); Frederic Jameson: The Political Unconscious. Narrative as a Socially Simbolic Act, 1981; Horácio: Arte Poética; I.A.Richards: Principles of Literary Criticism, 1926; Jacques Derrida: Posições (1972, 1975); John M. Ellis: The Theory of Literary Criticism — A Logical Analysis, 1974; John McCumber: «Critical Theory and Poetic Interaction», in Praxis Internacional, vol. V, n.o 3, 1985; Jonathan Culler: On Desconstruction. Theory and Criticism after Structuralism, 1982; Jonathan Dollimore & Alan Sinfiels (eds.): Political Shakespeare. New Essays in Cultural Materialism, 1985; Julia Kristeva: «La semiologie: science critique et ou critique de la science», in Théorie d’ensemble, 1968; Jürgen Habermas: Theory and Practice, 1973; Comunication and the Evolution of Society, 1979; O Discurso Filosófico da Modernidade (1985, 1990); Juri Tynjanov & Roman Jakobson: «Problems in the Study of Literature and Language» (1928), in Readings in Russian Poetics — Formalist and Structuralist Views (Ladislav Matejka & Krystina Pomorska, orgs), 1978; Kate Ince: «Theory in the Classroom» in Critical Survey, vol. IV, n.o 3, 1992; M.H.Abrams: The Mirror and the Lamp, 1953; Malcolm Bradbury, «An Interview with Malcolm Bradbury», in The European English Messenger, vol. II, n.o 1, 1993; Manuel Frias Martins: Matéria Negra. Uma Teoria da Literatura e da Crítica Literária, 1995; Murray Krieger: Theory of Criticism. A Tradition and its System, 1976; Words about Words: Theory, Criticism, and the Literary Text, 1988; Paul de Man: The Resistance to Theory, 1986; Richard Rorty: «Texts and Lumps», in New Literary History, vol. XVII, n.o 1, 1985; Stanley Fish: Is There a Text in This Class? The Autority of Interpretative Communities, 1980; Stephen Greenblatt: Renaissance Self-Fashioning. From More to Shakespeare, 1980.

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http://www.lake.de/home/lake/hydra/

Manuel Frias Martins