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Chomsky, os estruturalistas e a fundação da linguística moderna

terça-feira, 14 de abril de 2009

John Passmore

À primeira vista, Noam Chomsky não é um estruturalista. Longe de afirmar que «o homem morreu», ele ataca a psicologia behaviourista, o capitalismo industrial e o socialismo estatista justamente pela sua falta de humanismo. Sendo um activista político, as suas simpatias vão para a ala anarquista do Humanismo Socialista, excomungado pelos estruturalistas. E o ponto de partida da sua teoria da linguagem não é a linguagem como fenómeno colectivo, mas a criatividade de cada um dos utentes da linguagem, a sua capacidade de produzir e compreender frases que nunca encontrou antes. Ao contrário dos estruturalistas, a linguagem é para Chomsky um meio para exprimir pensamentos e não um sistema social de comunicação através do uso de símbolos. E Chomsky enfatiza, ao passo que os estruturalistas desvalorizam, as diferenças entre as linguagens naturais e outros sistemas de símbolos.

Por que razão, então, de entre os filósofos anglo-americanos contemporâneos, se referem os estruturalistas com algum grau de respeito apenas a Chomsky (com a excepção do semi-namoro de Derrida com Austin)? Em primeiro lugar, ele formou-se na tradição da linguística estrutural; com efeito, o seu mestre Zellig Harris escreveu um livro (1951) com esse mesmo título. É verdade que linguística transformacional de Chomsky está, em muitos pontos, em clara oposição à linguística estrutural americana, uma vez que ele rejeita a tese de que as teorias linguísticas têm por objectivo caracterizar entidades linguísticas complexas em termos de entidades linguísticas de ordem inferior — frases em termos de palavras e palavras em termos de fonemas. Todavia, aquilo que ele deve a Harris e a linguistas pós-saussureanos como Jakobson é ainda bastante.

Em segundo lugar, [...] as suas teorias linguísticas propriamente ditas, tal como foram apresentadas no seu primeiro livro, Estruturas Sintácticas (1957), e desenvolvidas nos seus Aspectos da Teoria da Sintaxe (1965), são suficientemente formais, apoiadas em regras, matematizadas e indiferentes a idiossincrasias e intenções individuais para satisfazer os estruturalistas franceses mais exigentes.

Os estruturalistas franceses sentiram-se atraídos também pela distinção chomskiana entre «estruturas profundas» e «estruturas de superfície». Ela desempenhava em relação à linguagem, supunham eles, o papel que as teses de Freud tinham desempenhado em relação à mente e as de Marx em relação à sociedade. A «estrutura profunda», como Chomsky a definiu em «The Current Scene in Linguistics» (1966), é «a forma abstracta subjacente que determina o significado da frase». Em contraste com isto, a estrutura de superfície é uma representação do símbolo físico que produzimos ou ouvimos, como quando eu ouço alguém dizer «Entra!». A «estrutura de superfície» é «gerada» a partir da estrutura profunda por transformações como a combinação e a elisão, determinando a informação fonológica relevante os sons por meio dos quais a frase é pronunciada. («Gerada» não significa «causalmente gerada»: a gramática não nos diz por que razão uma pessoa diz «Abra!» em vez de «Entre!». O conceito chomskiamo de geração é de carácter matemático, como quando uma equação algébrica «gera» as suas várias soluções numéricas.) Assim, a estrutura profunda de «Entre!» conteria elementos como «Você», que está ausente da estrutura de superfície.

Apesar de estar intimamente ligada ao seu nome, quando escreveu Reflections on Language Chomsky tinha já abandonado a terminologia «estrutura profunda» e «estrutura de superfície», em parte por razões técnicas mas também porque tinha sido mal compreendido por aqueles que supuseram que as estruturas profundas eram «profundas» em algum sentido metafísico, e que as propriedades das estruturas de superfície eram, em contraste, superficiais, pouco importantes e assim por diante. Não era este o seu ponto de vista; a fonologia, que restringia a sua atenção às estruturas de superfície, podia ser tão universal e tão «reveladora» [...] como a sintaxe. De facto, como ele admite sem dificuldade, a fonologia é o ramo da «gramática» mais cabalmente estudado. (Chomsky usa o termo «gramática» de modo muito abrangente, de modo a incluir a semântica e a fonologia, para além da sintaxe.) De modo que os estruturalistas franceses, claramente, não ficaram muito reconfortados com as «estruturas profundas» de Chomsky. Mas há outro aspecto da teoria de Chomsky que os poderá atrair. O estruturalismo americano, tal como foi formulado no muito influente Language (1933), de Leonard Bloomfield, tinha rejeitado algo que era fundamental para Saussure, a ideia de que o signo significa um conceito. (As primeiras obras de Bloomfield tinham defendido uma versão deste ponto de vista, reformulado em termos da psicologia de Wundt, e desde então tem tido um ressurgimento.) Sob a influência do positivismo behaviourista, Bloomfield definiu o uso da linguagem como a substituição de uma resposta não verbal a um estímulo por um signo. O signo «significa», deste ponto de vista, aquilo que substitui. Num exemplo conhecido, Jill pede a Jack que suba a uma árvore e lhe traga uma maçã; o seu pedido, como resposta ao estímulo da fome, é um substituto da sua própria subida à árvore. Ao passo que os estruturalistas reagem contra a ênfase caracteristicamente francesa na importância da consciência individual, para Chomsky o behaviourismo ao estilo de Bloomfield é o inimigo, como a sua recensão de Verbal Behaviour (1959), do arqui-behaviourista B. F. Skinner, tornou bastante evidente. Mas ambos usam como arma contra os seus inimigos o conceito de modos de apreensão subjacentes que afectam as decisões individuais sem que o indivíduo esteja consciente desse facto, bem como (de um modo que não deriva completamente da sua experiência) os «estímulos» aos quais ele é sujeito.

Chomsky reage também contra a concepção empirista americana clássica da tarefa da linguística, que floresceu de modo natural nas circunstâncias especiais desse continente: a de que a linguística consistia em registar tão rigorosamente quanto possível as línguas faladas pelas tribos índias e, pelo uso de métodos de «descoberta», em generalizar a partir desses registos de modo a chegar à gramática dessas línguas — no sentido lato, chomskiano, de «gramática. Chomsky rejeita o ponto de vista de que haja um tal «método de descoberta». Uma gramática, tal como ele a vê, é uma teoria acerca de uma língua, que tenta explicar por que razão, nessa língua, apenas algumas frases, algumas transformações, algumas sequências sonoras, algumas combinações verbais são gramaticalmente permissíveis.

No lugar de um «procedimento de descoberta», ele propõe um procedimento de «avaliação». Os dados linguísticos que estão à disposição do linguista, tal como os dados que o cientista tem à disposição, permitem sempre mais do que uma explicação. Um «procedimento de avaliação» selecciona uma de entre as várias gramáticas possíveis por meio do uso de critérios como o da simplicidade. (Ele nega que o termo «simplicidade» tenha um significado único.)

Limitarmo-nos a registar uma língua, argumenta também Chomsky, implica incluirmos no nosso registo frases que são «aceitáveis» mas não gramaticais e excluirmos frases que podem nunca ser proferidas mas que são, no entanto, perfeitamente gramaticais. Uma frase, diz ele, pode, num contexto específico, ser «aceitável» no sentido em que ninguém põe em dúvida o significado que o locutor pretende exprimir através dela, mesmo que ela contenha um lapso linguístico ou um erro gramatical. Por outro lado, uma frase pode ser gramatical mas tão complexa que um ouvinte pode ser incapaz de a «aceitar», por a considerar ininteligível. O linguista está apenas interessado nas frases gramaticais, e em todas elas. A gramática não é, portanto, uma teoria do «desempenho» (performance) ou, em termos saussureanos, da «parole». A sua atenção centra-se naquilo a que Chomsky chama a «competência».

Ryle distinguiu entre «saber como» e «saber que» e identificou a competência com o «saber como». De facto, normalmente consideramos que a «competência» caracteriza a capacidade de uma pessoa para ter um certo desempenho. Chomsky sugere todavia que, no caso da competência linguística, o «saber como» (por exemplo «saber (como) falar inglês») tem de assentar num tipo especial de «saber que» — especial porque não é explícito. O gramático tenta revelar este «conhecimento tácito» do utente da linguagem, um conhecimento tácito que explica como pode ele distinguir o que é gramatical do que não é.

Por que razão havemos de supor que um utente da linguagem tem tal conhecimento tácito? Uma pessoa pode ser capaz de «apanhar» uma melodia, de cantar e até de compor canções sem ser capaz de dizer o que é uma escala, ou um compasso, ou uma nota. Normalmente supomos que as crianças assimilam a sua primeira língua de modo semelhante. É certo que uma criança não nos consegue dizer em que consistem as regras da sua língua; e se, como diz Aristóteles, é apanágio do homem que sabe, ser capaz de ensinar isso que sabe, então a criança não sabe essas regras.

Apesar de não rejeitar estes factos bastante óbvios, Chomsky rejeita totalmente a explicação popular e «empirista» da aquisição linguística. No seu Cartesian Linguistics (1966), ele associa-se, embora sem entrar em pormenores, a uma velha teoria racionalista acerca da mente humana, de acordo com a qual a experiência estimula a mente a fazer uso de um conhecimento que previamente já faz parte da sua estrutura, sendo «inato». Se não supusermos, argumenta ele em Reflections on Language, que os seres humanos são «especificamente programados» para adquirir a capacidade de dominar uma língua, não seremos capazes de compreender como, «com base em relativamente pouca experiência e nenhuma formação formal», pode uma criança aprender a usar um conjunto complexo de regras e princípios orientadores específicos de modo a comunicar os seus pensamentos e sentimentos aos outros». Os mecanismos a que o empirista recorre (generalização, analogia, condicionamento) para explicar isto são, na opinião de Chomsky, simplesmente demasiado fracos para explicar como alguém aprende a sua primeira língua. (Aprende, por oposição a ser ensinado, visto que o ensino é, a este respeito, de importância negligenciável.) É por isso que temos de supor que a criança já nasce com um conhecimento da língua (em algum sentido da expressão).

A sua «competência» não consiste, portanto, simplesmente em ele ser capaz de ter um desempenho competente; incorpora também o facto de que ele tem o domínio de certos princípios. Uma «faculdade inata» da mente — «representada», já que Chomsky não é um dualista, «de maneira ainda desconhecida, no cérebro» — cria uma estrutura cognitiva abstracta que faz então parte do «sistema de capacidades de agir e interpretar». Estudar a «competência» é estudar todo este conjunto de estruturas e processos mentais. Como Lévi-Strauss, Chomsky não tem problemas em admitir aquilo a que o primeiro chama «elaborações mentais ao nível do pensamento inconsciente». A linguística teórica explicita em que consistem tais elaborações. A linguagem, como Leibniz sugeriu, é «um espelho da mente»; a linguística teórica é uma teoria da mente humana, um ramo da psicologia cognitiva — e não, como para Saussure, da psicologia social.

Devemos supor que uma criança inglesa está especificamente «programada» para aprender inglês, e uma francesa para aprender francês? Claro que não; uma criança inglesa educada em França falará um francês perfeito em vez de inglês. A «competência» da criança é, para Chomsky, universal. Ela nasce com a capacidade de falar; e falará inglês ou francês ou chinês, se crescer no ambiente linguístico apropriado. Todavia, se supusermos que ela possui uma «gramática universal», temos de supor que essa gramática (uma vez que é uma gramática) tem de ser restritiva, excluindo certas línguas como humanamente impossíveis. Assim, escreve Chomsky em Language and Mind: «Quando nasce, a criança não pode saber que linguagem vai aprender, mas tem de saber que a sua gramática tem de ser de uma forma determinada, de tal modo que exclua muitas línguas concebíveis.» Dotado deste «conhecimento tácito», ela selecciona uma hipótese «permissível» sobre a gramática da língua que está a usar. E, corrigindo esta hipótese à luz da experiência, chega finalmente a ter um «conhecimento da sua língua», de modo a ser capaz de rejeitar parte da sua experiência linguística como «defeituosa e desviante», i.e., como desempenhos agramaticais. O caso da fonologia, afirma Chomsky, é aquele que mais fortemente sustenta esta análise. Apesar de outros sons serem fisicamente possíveis, todas as línguas fazem aparentemente uso de um conjunto limitado de sons. Não poderia haver uma língua que contivesse sons diferentes? Se houvesse, de acordo com Chomsky, não a poderíamos aprender tão depressa e tão eficientemente como aprendemos as nossas línguas. E, do mesmo modo, ele crê que fomos programados para aprender um certo conjunto de regras sintácticas e semânticas e apenas os membros desse conjunto.

As teorias linguísticas de Chomsky sofreram muitas alterações desde que foram apresentadas pela primeira vez, causando nessa altura uma «revolução na linguística». Diz-se por vezes que estão […] «em grande ebulição». Isto não o incomoda: «uma ciência imatura», argumenta ele, tem inevitavelmente ritmos de mudança acelerados, mesmo nos seus princípios mais gerais. Em todo o caso, ele continua a defender os seus princípios fundamentais: o de que uma gramática não é simplesmente uma descrição mas antes uma teoria explicativa; o de que investigá-la é estudar a «competência» e não o «desempenho»; o de que uma psicologia de pendor empirista é incapaz de explicar como uma criança aprende a sua primeira língua; o de que a linguística teórica é uma peça chave para a compreensão da mente. Este ataque ao empirismo e o ressuscitar de conceitos de tipo kantiano como o de estruturas mentais inatas que delimitam a forma que as nossas acções podem tomar foram os factores básicos da influência filosófica exercida por Chomsky.

John Passmore
Tradução de Pedro Santos
Texto retirado de Recent Philosophers, de John Passmore (Duckworth, 1988, pp. 33-38).

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