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Alegoria

sexta-feira, 31 de julho de 2009

Aquilo que representa uma coisa para dar a ideia de outra através de uma ilação moral. Um bom exemplo em português é-nos apresentado pelo Padre António Vieira: “Notai uma alegoria própria da nossa língua. O trigo do semeador, ainda que caiu quatro vezes, só de três nasceu; para o sermão vir nascendo, há-de ter três modos do cair: há-de cair com queda, há-de cair com cadência, há-de cair com caso. A queda é para as coisas, a cadência para as palavras, o caso para a disposição. A queda é para as coisas, porque hão-de vir bem trazidas e em seu lugar hão-de ter queda; a cadência é para as palavras, porque não hão-de ser escabrosas, nem dissonantes, hão-de ter cadência; o caso é para a disposição, porque há-de ser tão natural e tão desafectado que pareça caso e não estudo: Cecidit, cecidit, cecidit.” (Sermão da Sexagésima, V, Obras Escolhidas, vol.XI, Sá da Costa, Lisboa, 1954, p.222).

Etimologicamente, o grego allegoría significa “dizer o outro”, “dizer alguma coisa diferente do sentido literal”, e veio substituir ao tempo de Plutarco (c.46-120 d.C.) um termo mais antigo: hypónoia, que queria dizer “significação oculta” e que era utilizado para interpretar, por exemplo, os mitos de Homero como personificações de princípios morais ou forças sobrenaturais, método que teve como foi especialista Aristarco de Samotrácia (c.215-143 a.C.). A alegoria distingue-se do símbolo pelo seu carácter moral e por tomar a realidade representada elemento a elemento e não no seu conjunto. Muitas vezes definida como uma metáfora ampliada, ou, como dizia Quintiliano, no Institutio oratoria, uma “metáfora continuada que mostra uma coisa pelas palavras e outra pelo sentido”, a alegoria é um dos recursos retóricos mais discutidos teoricamente ao longo dos tempos. A mesma correlação é estabelecida por Cícero no De Oratore, onde a alegoria é vista como um sistema de metáforas. Uma forma de distinguir metáfora e alegoria é a proposta pelos retóricos antigos: a primeira considera apenas termos isolados; a segunda, amplia-se a expressões ou textos inteiros.

Na tradição grega mais antiga, uma aplicação possível da proto-ideia de alegoria é o ensino dos pitagóricos, cujo sistema filosófico, apoiado em relações numéricas simbólicas, contém associações de natureza alegórica. Tal acontece, por exemplo, na doutrina do dualismo essencial entre limite e ilimitado, que se funda na composição de dez pares de opostos, alguns alegóricos como Luz/Trevas e Bom/Mau.

Regra geral, a alegoria reporta-se a uma história ou a uma situação que joga com sentidos duplos e figurados, sem limites textuais (pode ocorrer num simples poema como num romance inteiro), pelo que também tem afinidades com a parábola e a fábula. Seja o exemplo seguinte de uma fábula de Esopo: “O leão e a rã”: Certa vez, um leão, ao passar perto de um pântano, ouviu uma rã coaxar muito alto e com muita força. Dirigiu-se então na direcção do som, supondo que ia encontrar um animal grande e possante, correspondente ao barulho que fazia. Por isso, ao avançar, nem reparou na pequena rã e pôs-lhe a pata em cima. “Vê lá onde pões os pés!”, gritou a rã. O leão olhou, admirado, e disse: “Se és assim tão pequena, porque é que fazes tanto barulho?” Se substituirmos a rã por “o Orgulho” e o leão por “o Poder”, transformamos a fábula numa alegoria; se em vez da rã colocássemos “o Ministro Sem Pasta” e em vez do leão “o Pai Severo”, teríamos uma parábola, que esconde personagens reais por detrás de uma máscara alegórica. De notar que é usual na alegoria o recurso a personificações ou prosopopeias, em especial de noções abstractas, prática muito comum sobretudo na literatura medieval.

A decifração de um alegoria depende sempre de uma leitura intertextual, que permita identificar num sentido abstracto um sentido mais profundo, sempre de carácter moral. Dizer que a alegoria é um desenvolvimento de uma fábula pode não ser suficiente. Vejamos, por exemplo, o enigma da Esfinge, no mito de Édipo. A questão central é esta: «Qual é o ser que, tendo uma única voz, ora caminha com dois pés, ora com três, ou ainda com quatro, e que é tanto mais fraco quantos mais pés tiver?» Quando Édipo chega a Tebas, resolve o enigma, respondendo: «É o homem, que gatinha a quatro patas enquanto é criança, caminha erecto nas suas duas pernas quando é jovem, e se encosta a uma bengala na velhice.», a Esfinge, derrotada, suicida-se. O desenvolvimento da fábula da Esfinge grega depende de duas condições essenciais para se constituir como alegoria: não estar limitada a um fim didáctico, como todas as fábulas (sem a conclusão do enigma, a tragédia de Sófocles não poderia progredir); não jogar com a significação metafórica, isto é, não produzir mais do que uma leitura do sentido abstraído, porque é próprio da alegoria não fazer uso da ambiguidade ou da plurissignificação, sob pena de se perder a ilação moral procurada. Uma alegoria necessita de um certo imobilismo do sentido, facto que será utilizado, pelo menos até ao Romantismo, para governar de alguma forma certas interpretações de textos clássicos, estando em primeiro lugar a Bíblia. As primeiras exegeses alegóricas concentraram-se nas epístolas de S.Paulo, onde se compara a Igreja a uma noiva. Santo Agostinho contribuiu decisivamente para esta interpretação, na sua A Cidade de Deus (XVII, 20). A fábula da Esfinge torna-se alegórica apenas no acto hermenêutico, como acontece, aliás, com os textos bíblicos. Este tipo de hermenêutica levou um poeta como Boccaccio a comparar a teologia à poesia, precisamente por intermédio da alegoria. No seu tratado sobre mitologia, De Genealogia Deorum, Boccaccio defende que teologia e poesia são a mesma coisa ou têm a mesma natureza: “Afirmo que teologia e poesia podem ser quase consideradas como a mesma coisa, quando o assunto é o mesmo; digo até que a teologia não é outra coisa senão a poesia de Deus. Que é ela senão uma ficção poética, quando, na Escritura, chama a Cristo ora leão, ora cordeiro, ora verme, e ainda por vezes dragão ou rocha, e ainda muitas outras coisas que omito por uma questão de brevidade? Que vêm a ser as palavras do Salvador nos Evangelhos senão um sermão que não significa aquilo que parece significar? É o que nós chamamos, para empregar um termo bem conhecido - alegoria.”

Numa alegoria, é também necessário que as abstracções que determinam o sentido alegórico procurado sejam de imediata compreensão: o enigma da Esfinge é a história do drama existencial humano. Se introduzíssemos algum dado que pudesse desviar o leitor desta conclusão, construiríamos uma metáfora e não uma alegoria. A linguagem alegórica não possui o mesmo dinamismo que a linguagem metafórica, que é susceptível de variações semânticas mais profundas, ao ponto de não suportar a repetição de um mesmo significado nem depender de significados pré-fixados. Em todas as alegorias das narrativas clássicas, podemos encontrar sentidos mais ou menos fixos em certas representações como os hieróglifos, por exemplo, cujas figuras obedecem sempre a um processo inalterável de descodificação: um olho simbolizará sempre Deus e um abutre designará a Natureza. Por outro lado, o entendimento das possibilidades significativas da alegoria só poderá ser alargado quando as exegeses não estiverem ao serviço de colégios hermenêuticos, mas sim do poder criativo de leitores descomprometidos. A longa história da literatura alegórica é também paralela à história das interpretações dessa literatura, que sempre tentaram fixar um sentido único. A abertura do sentido da alegoria é uma conquista apenas da teoria da literatura do século XX.

Entre os exemplos clássicos de grandes alegorias, podemos apontar o mito de Orfeu e Eurídice como alegorias da redenção e da salvação; o mito da caverna na República de Platão, que, por um processo alegórico, mostra como a alma passa da ignorância à verdade (embora deva ser notado que Platão sempre se opôs às interpretações alegóricas dos mitos antigos como parte da educação dos jovens, porque “quem é novo não é capaz de distinguir o que é alegórico do que não é.” (República, II: 378d); as parábolas do semeador e do joio (Mateus, 13:1ss), que contêm matéria alegórica; O Asno de Oiro, de Apuleio, que recupera os mitos de Cupido e Psique; a Psicomaquia, de Prudêncio, que mostra o conflito entre a virtude e o vício na alma do crente, num texto que será estudado e imitado na Idade Média em toda a literatura teológica, numa época em que predominam as moralidades que se servem da alegoria para lições edificantes; a alegoria erótica que será recuperada pós-modernamente por Umberto Eco, Le Roman de la rose, começado por Guillaume de Lorris e concluído por Jean de Meung em c.1277, que personifica o Amor, a Virtude, o Vício, etc.; a Divina Comédia de Dante, a obra-prima das alegorias teológicas; Os Triunfos de Petrarca, que especula filosoficamente sobre o Amor, a Castidade, a Morte, a Fama, etc.; o Horto do Esposo, que apresenta a Sagrada Escritura através da imagem alegórica de um jardim maravilhoso; o Boosco Deleitoso, que narra a peregrinação da alma desterrada no mundo dos homens até Deus a chamar a si; todas as moralités francesas e as morality plays inglesas do século XV, a que podemos juntar o Auto da Alma de Gil Vicente, que recorre à alegoria para recontar a parábola do Samaritano em tom moralista; o Pilgrim’s Progress, de John Bunyan, alegoria da salvação de Cristo para traduzir a peregrinação terrestre do homem sujeito a provações para poder conquistar um lugar no Céu; The Faerie Queene, de Edmund Spenser, uma glorificação da rainha Elizabeth I; Absalom and Achitopel, de John Dryden, que usa personagens bíblicas para fazer sátira política; todas as figuras do Sermão de Santo António aos Peixes, de António Vieira, que incluem, por exemplo, o polvo como alegoria da hipocrisia e da traição; o Endymion, de John Keats e o Prometheus Unbound, de Shelley, embora sejam textos românticos de matéria simbólica, podem ser lidos como alegorias sobre o destino do poeta no mundo e a luta do homem pela sua própria liberdade, respectivamente; O Mandarim, de Eça de Queirós, que é inspirado nas alegorias renascentistas; O Doido e Morte, de Teixeira de Pascoaes, Jacob e o Anjo e O Príncipe com Orelhas de Burro, de José Régio e o Render dos Heróis, de José Cardoso Pires, são exemplos na literatura portuguesa do século XX; Between the Acts, de Virginia Woolf, Animal Farm, de George Orwell, Watership Down, de Richard Adam, O Processo e O Castelo, de Kafka são exemplos na literatura universal contemporânea.

Até à Idade Média inclusive, a alegoria serviu de instrumento de defesa de teólogos, que recorreram às interpretações alegóricas da Bíblia para superarem todas as dúvidas heréticas. A própria Igreja foi muitas vezes referenciada na literatura teológica com nomes alegóricos como Cidade, Arca ou Aurora. Santo Agostinho ensinou que a Bíblia devia ser lida de forma alegórica: “No Velho Testamento, o Novo Testamento está dissimulado; no Novo Testamento, o Velho Testamento é revelado.”. Para o Autor de A Cidade de Deus, a alegoria não está nas palavras, mas deve ser encontrada nos acontecimentos históricos. Ao homem não é permitido o conhecimento literal e imediato das Escrituras, pois só por um sentido segundo o homem se poderá aproximar (mas nunca chegar totalmente) da Verdade divina. S. Tomás de Aquino estabeleceu uma distinção importante entre a alegoria teológica, que não é vista como um artifício retórico mas como uma visão do Universo, e a alegoria secular ou literária. Depois da escolástica, a teologia opta gradualmente por proceder a interpretações bíblicas que privilegiem o sentido literal das Escrituras. Mesmo na arte medieval, o processo de construção das grandes catedrais, como a de Chartres, por exemplo, obedece também a complicados esquemas alegóricos, pois acredita-se que tudo na Natureza significa algo mais do que o simplesmente observável.

A distinção fundamental entre a alegoria e o símbolo foi estabelecida durante o Romantismo, em Coleridge no Statesman’s Manual (1816 ) e em especial com Goethe e Schlegel. Ao princípio de Schlegel que defendia que toda a obra de arte devia ser uma alegoria, começou Hegel por contrapor: “Isso só será assim se significar que toda a obra de arte deve representar uma ideia geral e implicar uma significação verdadeira. Ora, pelo contrário, o que nós aqui designamos com o nome de alegoria é um modo de representação secundária tanto no conteúdo como na forma e só de um modo imperfeito corresponde ao conceito de arte.” (Estética, trad. de Álvaro Ribeiro e Orlando Vitorino, Guimarães Eds., Lisboa, 1993, p. 226). De uma forma geral, podemos dizer que a crítica romântica da alegoria não é de carácter rigorosamente científico e rege-se mais por critérios de gosto de escola, embora tenha sido recebida com tal entusiasmo que ainda hoje a desconfiança com que se olha a alegoria como processo criativo pode dever-se a essa tradição. Goethe distinguiu assim os dois procedimentos retóricos: “A simbólica [die Symbolik] transforma o fenómeno em ideia, a ideia em imagem, e de tal modo que na imagem a ideia permanece sempre infinitamente eficaz e inatingível e, ainda que pronunciada em todas línguas, continuaria a ser indizível. A alegoria transforma o fenómeno num conceito, o conceito em imagem, mas de tal modo que na imagem o conceito permanece limitado e susceptível de ser completamente apreendido e usado, e pronto para ser expresso por essa mesma imagem.” (Máximas e Reflexões, trad. de José M. Justo, in Obras Escolhidas de Goethe, vol.5, Círculo de Leitores, Lisboa, 1992, pp.188-189). Goethe entende que o símbolo é dotado de maior amplitude de significação em relação à alegoria e chega mesmo a defender a tese de que a distinção entre ambos é a prova de fogo para qualquer aspirante a poeta. Esta posição está de acordo com o princípio geral romântico que vê a alegoria como uma mera tradução de ideias abstractas, ao passo que o símbolo parte sempre de imagens poéticas para construir a sua significação final. É assim que Coleridge coloca a questão em Statesman’s Manual: “Hoje a alegoria não é mais do que uma tradução de noções abstractas para um quadro linguístico que em si próprio não é mais do que uma abstracção de objectos sensíveis; (…) Por outro lado, um símbolo (…) caracteriza-se por uma diafaneidade do particular no indivíduo, ou do geral no particular, ou do universal no geral. Acima de tudo, pela diafaneidade do eterno através do e no temporal.” (Samuel Taylor Coleridge, ed. por H. J. Jackson, Oxford University Press, Oxford, 1985, p.661).

A discussão sobre as diferenças entre símbolo e alegoria continua no século XX, salientando-se as reflexões de Walter Benjamin, Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Paul de Man. Todos tentam, de uma forma ou de outra, estabelecer a conciliação de ambos os conceitos, que está negada pelos românticos.

Walter Benjamin, em Ursprung des deutschen Trauerspiels (Origens do Drama Trágico Alemão, 1928), traz a alegoria para o campo exclusivo da estética. Partindo do sentido etimológico do termo, Benjamin viu a alegoria como a revelação de uma verdade oculta. Uma alegoria não representa as coisas tal como elas são, mas pretende antes dar-nos uma versão de como foram ou podem ser, por isso Benjamin se distancia da retórica clássica e assegura que a alegoria se encontra “entre as ideias como as ruínas estão entre as coisas”. Por isso Benjamin fala da alegoria como expressão da melancolia: “Quando o objecto se torna alegórico sob o olhar da melancolia, deixa escapar a vida, fica como morto, fixado para a eternidade. Assim se depara ao artista alegórico, a ele destinado para a glória ou infortúnio; quer dizer, o objecto é totalmente incapaz de irradiar sentido ou significado, apenas lhe cabendo como sentido aquele que o alegórico lhe conceda.” (Ursprung des deutschen Trauerspiels, R.Tiedemann, Frankfurt, 1963, p.204). O filósofo alemão distinguiu dois tipos de alegoria: a “cristã”, que se atesta no drama barroco e que nos dá a visão da finitude do homem na absurdidade do mundo, e a “moderna”, atestada na obra de Baudelaire, colocada ao serviço da representação da degenerescência e da alienação humanas. É importante a distinção que Benjamin faz entre alegoria e símbolo, recuperando a oposição romântica: a primeira, enquanto revelação de uma verdade oculta - ou “uma verdade escondida sob bela mentira”, na célebre definição de Dante, no Convívio -, é temporal e aparece como um fragmento arrancado à totalidade do contexto social; o símbolo é essencialmente orgânico. O exame da relação entre o simbólico e o alegórico no Romantismo alemão será continuado por Lukács, na sua Estética, em diálogo distanciado com Benjamin, investigando o conceito de alegoria à luz de um dos paradigmas marxistas: a ideologia.

Heidegger estudou a natureza da obra de arte como sendo constitutiva de uma realidade alegórico-simbólica indivisível: “A obra de arte é, com efeito, uma coisa, uma coisa fabricada, mas ela diz ainda algo de diferente do que a simples coisa é, ‘allo agoreuei’. A obra dá publicamente a conhecer outra coisa, revela-nos outra coisa: ela é alegoria. À coisa fabricada reúne-se ainda, na obra de arte, algo de outro. Reunir-se diz-se em grego symballein. A obra é símbolo.” (A Origem da Obra de Arte, Edições 70, Lisboa, 1992, p.13). Na sua magnum opus, Wahreit und Methode (1960), Hans-Georg Gadamer estabelece as semelhanças entre alegoria e símbolo: ambos se referem a algo cujo sentido não consiste na respectiva aparência externa ou imagem acústica, mas numa significação que os supera; em ambos, uma coisa quer dizer outra. E conclui que a principal diferença reside no facto de o símbolo se opor à alegoria da mesma forma que a arte se opõe à não-arte.

Paul de Man reapreciou também o debate romântico sobre a alegoria e o símbolo e, em Allegories of Reading (1979), apresentou as suas próprias leituras como alegorias, observando que o exemplo de Rousseau pode contrariar o senso comum que vê o Romantismo como a afirmação do símbolo em detrimento da alegoria. Paul de Man expõe a diferença entre ambos os termos desta forma: “Enquanto o símbolo postula a possibilidade de uma identidade ou identificação, a alegoria designa acima de tudo uma distância em relação à sua própria origem, e, renunciando à nostalgia e ao desejo de coincidência, fixa a sua linguagem no vazio desta diferença temporal.” (“The Rhetoric of Temporality”, in Blindness and Insight, 2ª ed., Routledge, Londres, 1989, p. 207).

O próprio exercício da teoria e da crítica literária se tem servido de processos alegóricos: Ruskin escreveu o tratado clássico Queen of the Air (1869), onde define o mito como uma história alegórica; as obras de Freud e Jung fizeram escola na interpretação alegórica de sonhos e mitos; os doze volumes do estudo comparado de religiões Golden Bough (1911-15), de James Frazer, fornece interpretações alegóricas de mitos primitivos que se tornaram referências fundamentais no género; Walter Benjamin, no ensaio “O narrador” (in Illuminationen, 1969), distingue alegoricamente dois tipos ideais de narrador: o marujo, que nos permite aproximar de lugares distantes e exóticos, e o velho camponês, que conta histórias antigas; Cleanth Brooks, em The Well Wrought Urn (1947), alegorizou todos os poemas que leu de forma a transformá-los em parábolas para a própria natureza da poesia; a chamada crítica arquetípica defende, como o faz Northrop Frye em The Anatomy of Criticism (1957), que toda a análise literária deve ser alegórica.

ANAGOGIA; APÓLOGO; BESTIÁRIO; CRÍTICA ARQUETÍPICA; EMBLEMA; EXEMPLUM; METÁFORA; MITO; SÍMBOLO

Bib.: A. D. Nutall: Two Concepts of Allegory (1967); A. Katzenellenbogen: Allegories of the Virtues and Vices in Medieval Art (1939); Angus Fletcher: Allegory: The Theory of a Symbolic Mode (1964); C. S. Lewis: The Allegory of Love: A Study in the Medieval Tradition (1936); Charles Hayes: “Symbol and Allegory: A Problem in Literary Theory”, Germanic Review, 44 (Nova Iorque, 1969); David Adams Leeming: Encyclopedia of Allegorical Literature (1996); Deborah L. Madsen: Rereading Allegory: A Narrative Approach to Genre (1994) e Allegory in America: From Puritanism to Postmodernism (1996); Dinko Cvitanovic et al.: Estudios sobre la expresion alegorica en España y America (1983); E. D. Leyburn: Satiric Allegory: Mirror of Man (1956); Edwin Honig: Dark Conceit: The Making of Allegory (1959); Flávio R. Kothe: A Alegoria (1986); Francis Fergusson: Trope and Allegory: Themes Common to Dante and Shakespeare (1977); Friedrich Gaede: “Allegorie”, in Dieter Borchmeyer e Viktor Zmegac (eds.): Moderne Literatur in Grundbegriffen (1994); G. Lukács: Ästhetic I. Die Eigenart des Äesthetischen (1963); G. P. Caprettini: “Alegoria”, in Enciclopédia (Einaudi), vol.31 (1994); Gerhard Kurz: Metapher, Allegorie, Symbol (1982); H. R.Jauss: Genèse de la poésie allégorique française au Moyen Âge (1180 à 1246) (1962); Hans-Georg Gadamer: “The Limits of Erlebniskunst and the Rehabilitation of Allegory”, in Truth and Method (2ª ed., 1993); Jean Charles Payen: “Genèse et finalités de la pensée allégorique au moyen âge”, Revue de Metaphysique et de Morale, 78 (1973); Jean Pépin: Mythe et allégorie: Les origines grecques et les contestations judéo-chrétiennes (1958); John Jr. Gatta: “Coleridge and Allegory”, Modern Language Quarterly, 38 (1977); John MacQueen: Allegory (1970); Jon Whitman: Allegory: The Dynamics of an Ancient and Medieval Technique (1987); Joseph-A. Mazzeo: “Allegorical Interpretation and History”, Comparative Literature, 30 (1978); Kevin Matthew Gavin: «Toward a Theory of Epic Forms: Mimesis, Symbol, and Allegory», Tese de Doutoramento, Univ. de Michigan (1994); Manuel Frias Martins: “Para uma compreensão e fundamentação teórica do conceito de ‘alegoria literária’ ”, Colóquio-Letras, 79 (1984); Mark L. Caldwell: “Allegory: The Renaissance Mode”, ELH, 44 (Baltimore, 1977); Marlies Kronegger e Anna Teresa Tymieniecka (eds.): Allegory Old and New in Literature, the Fine Arts, Music and Theatre and Its Continuity in Culture (1994); Martin Heidegger: A Origem da Obra de Arte (1950); Maureen Quilligan: The Language of Allegory: Defining the Genre (1979); Michael Murrin: The Allegorical Epic: Essays in Its Rise and Decline (1980); Morton W. Bloomfield (ed.): Allegory, Myth, Symbol (1981); N. A. Halmi: “From Hierarchy to Opposition: Allegory and the Sublime”, Comparative Literature, 44, 4 (1994); Norbert Hopster: “Allegorie und Allegorisieren”, Der Deutschunterricht: Beitrage zu Seiner Praxis und Wissenschaftlichen Grundlegung, 23, 6 (1971); P. M. Bitsilli: “The Revival of Allegory”, TriQuarterly, 17 (Evanston, IL, 1970); Paul de Man: Allegories of Reading: Figural Language in Rousseau, Nietzsche, Rilke and Proust (1979) e “The Rhetoric of Temporality”, in Blindness and Insight: Essays in the Rhetoric of Contemporary Criticism (2ª ed., 1983); R. Hinks: Myth and Allegory in Ancient Art (1939); Robert Hill: “Pascal, de Man, and the Question of Allegory”, Cahiers du dix-septième, 6, 1 (Athens, 1992); Rosemond Tuve: Allegorical Imagery (1967); Stephen A. Barney: Allegories of History, Allegories of Love (1979); Stephen J. Greenblatt (ed.): Allegory and Representation (1981); Walter Benjamin: Ursprung des deutschen Trauerspiels (1928); Willi Erzgraber: “Zum Allegorie Problem”, LiLi: Zeitschrift fur Literaturwissenschaft und Linguistik, 30-31, (1978); William J. Kennedy: “Irony, Allegoresis, and Allegory in Virgil, Ovid and Dante”, Arcadia: Zeitschrift fur Vergleichende Literaturwissenschaft, 7 (1972); W. T. H. Jackson: “Allegory and Allegorization“, Research Studies, 32 (Pullman, WA, 1965).



Carlos Ceia

Acróstico

quinta-feira, 30 de julho de 2009

Composição poética que é disposta numa sequência de maneira que as letras iniciais de cada verso colocadas na vertical formem uma ideia, um nome ou uma frase. Já era praticado na Antiguidade pelos escritores Gregos e Latinos e na Idade Média pelos monges. Hoje em dia é fácil encontrar também o acróstico em jornais, revistas e puzzles.

Podemos dizer que o acróstico parece englobar três funções: 1) uma procura de virtuosidade própria dos poetas palacianos; 2) um carácter lúdico que designa todo um jogo de espírito subtil; 3) um certo gosto pelo secreto. Em Portugal, no séc. XV, meu pensamento”:



Vencido está de amor meu pensamento,

O mais que pode ser vencida a vida,

Sujeita a vos servire instituída,

Oferecendo tudo a vosso intento.



Contente deste bem, louva o momento

Ou hora em que se viu tão bem perdida;

Mil vezes desejando a tal ferida,

Otra vez renovar seu perdimento.



Com esta pretensão está segura

A causa que me guia nesta empresa.

Tão sobrenatural, honrosa e alta,

Jurando não seguir outra ventura,

Votando só para vós rara firmeza,

Ou ser no vosso amor achado em falta.



Neste caso a frase é Vosso como cativo, mui alta senhora, e constitui um duplo acróstico, composição difícil, na qual a leitura de duas séries de letras separadas forma uma frase significativa. Mas se relermos o repertório das curiosidades poéticas deparamos com o pentacróstico aue repete cinco vezes a mesma palavra, em cinco partes verticais dos versos (v. Tratatus de Executoribus de Silvestre de Morais, Tome II, Lisboa, 1730, p. 11).

O acróstico dissimula a palavra, que ele dá, escondendo-a; e requer do leitor uma certa esperteza para descobrir a sua subtileza. Relaciona-se com a adivinha e liga-se logicamente com ela pois existem enigmas em verso cujo nome figura em acróstico. Um autor pode assinar com um tipo de assinatura cifrada o seu próprio nome em acróstico. Vejamos como exemplo o poema de Ofélia Queirós dedicado a Fernando Pessoa:

Fazia bem em me dizer

E grata lhe ficaria

Razão porque em verso me dizia

Não ser o bom-bom para si...

A não ser que na pastelaria

Não lho queiram fornecer

D’outro motivo não vi

Ir tal leva-lo a crer.

Não sei mesmo o que pensar

Há fastio para o comer?

Ou não tem massa pr’o comprar?!



Peço porém me desculpe

Este incorrecto poema

Seja bom e não me culpe

Sou estúpida, e tenho pena

O Sr. é muito amável

Aturando esta... pequena...



ACRÓNIMO; LOGOGRIFO


Teresa Reis

Descentralização do sujeito

quarta-feira, 29 de julho de 2009

DESCENTRALIZAÇÃO DO SUJEITO (1)

Termo de aplicação universal nas ciências humanas e sociais, mas com um significado particular nas teorias pós-estruturalistas da literatura, onde serve para traduzir a distância que separa o sujeito do texto. A conferência que Jacques Derrida pronunciou em 1966, na Johns Hopkins University, “La structure, le sign et le jeu dans le discours des sciences humaines”, pode funcionar como ponto histórico de referência na discussão do conceito. De notar que essa conferência marca não só o primeiro momento do pós-estruturalismo nos Estados Unidos como se trata do primeiro texto de crítica ao estruturalismo literário e cultural, que claramente aponta um novo caminho e que, por pretender ultrapassar o estruturalismo e por não se ter encontrado melhor termo até à data, se convencionou chamar pós-estruturalismo. A esse ensaio juntaríamos um outro: “Force et signification”, ambos os textos incluídos na colectânea: L’Écriture et la différence (1967). Noutro livro fundamental aparecido no mesmo ano, De la grammatologie, Derrida continua a sua crítica ao estruturalismo observando que, no pensamento ocidental e particularmente no pensamento francês, o discurso dominante continuava a ser o estruturalismo, permanecendo preso da sua estratificação dentro da metafísica, caracterizada pelo logocentrismo. A figura tutelar da estrutura centralizada e o triunfo do conceito de centro ajudaram a fazer desta ideia um lugar comum, porque jamais se aceita que uma estrutura não possua um centro. No pensamento de Derrida, esta ideia do centro representa uma contradição esgotada: para concebermos um centro que constitua um ponto estável de uma estrutura, o centro que ser ao mesmo tempo parte dessa estrutura e estar fora dela. Qualquer que seja a forma que esse centro tomou na cultura ocidental o resultado foi sempre o de uma profunda contradição.

ALTERIDADE; DESCONSTRUÇÃO; DETERMINAÇÃO / INDETERMINAÇÃO; JOGO (1); PÓS-ESTRUTURALISMO; SENTIDO; SUJEITO

Bib.: Earl G. Ingersoll: "The Decentering of Tragic Narrative in George Orwell's Nineteen Eighty Four", Studies in the Humanities, 16, 3 (1989);Jacques Derrida: L'Écriture et la différance (1967); Kronfeld, Chana: On the Margins of Modernism: Decentering Literary Dynamics (1996); Linda Frost: "The Decentered Subject of Feminism": Postfeminism and Thelma and Louise" in Michael Bernard-Donals e Richard R. Glejzer (eds.): Rhetoric in na Antifoudantional World: Language, Culture, and Pedagogy (1998); Paul B. Dixon: " 'Decentering' a Discipline: Recent Trends in Latin American Literary Studies", Latin American Research Review, 31, 3 (1996); Perry Meisel: "Decentering Heart of Darkness", Modern Language Studies, 8, 3 (1978).



DESCENTRALIZAÇÃO DO SUJEITO (2)

Uma aplicação pós-moderna da ideia de descentralização do sujeito é o conceito e a prática do hipertexto ou texto electrónico: um texto não é mais um alinhamento linear/horizontal/hierárquico de palavras — agora, um texto é um espaço aberto a outros textos entrelaçados e interligados, que podemos navegar, des-construir, re-construir ou abandonar de várias formas. O tempo e o espaço de vida de um texto são marcados hoje pela instabilidade. O sujeito inscrito num hipertexto não mais funciona como o seu centro estável e referenciável, como acontece num texto impresso tradicionalmente. A virtualidade de um texto é então sinónimo do processo de descentralização do sujeito desse texto com o produto criado. O facto desse texto poder ser manipulado electronicamente por qualquer outro sujeito (leitor, autor ou ambos ou mesmo nenhum) conduz à possibilidade (não virtual) de simples destruição da marca de subjectividade original — o leitor de um dado hipertexto pode superar a marca de subjectividade nele anteriormente inscrita e colocar a sua própria marca, e assim indefinidamente. Este fenómeno acentua, naturalmente, a ideia de uma distância irreversível do sujeito com o texto.

HIPERTEXTO; PÓS-MODERNISMO; PÓS-ESTRUTURALISMO; SUJEITO

http://tempest.english.purdue.edu/NA/na.5.subjectivity.html



DESCENTRALIZAÇÃO DO SUJEITO (3)

Na teoria cultural de Habermas, o conhecimento é determinado pelas condições socio-históricas que o enformam. O indivíduo é parte de uma vivência universal e pertence a uma tradição cultural e linguística na qual está obrigado a participar. Esta vivência universal possui três dimensões: 1) o mundo objectivo dos factos que existem independentemente do homem e que constituem a referência fundamental para a determinação da verdade; 2) o mundo social das relações intersubjectivas; 3) o mundo subjectivo das experiências privadas. Para Habermas, a descentralização do sujeito conquista-se quando o indivíduo consegue diferenciar-se destes três modos de existência. A descentralização permite então compreender a diferença entre certos valores como a justiça, a verdade e o gosto, em vista das suas concretizações sociais e culturais. Comentando esta tese, Benjamin Endres, em "Habermas and Critical Thinking," (1997) (http://www.ed.uiuc.edu/PES/96_docs/endres.html), resume assim as limitações da teoria de Habermas: "Yet there seems to be a tension in Habermas's theory surrounding the concept of decentering. On the one hand, Habermas recognizes people as embedded in their personal and social history. On the other, his theory seems to ask that rational and moral people give up these prior commitments and consider them hypothetically when arguing with others about the acceptance of a norm. Yet how far does Habermas think people can go in giving up personal and cultural identities in favor of "the force of reason?" In some places, he is adamant about the historically and culturally defined nature of human action. Habermas sees himself clarifying everyday intuitions that are themselves socialized and historically grounded. (...) Though he does not sacrifice the primacy of social-historical contexts in determining our knowledge, he places especially rigorous expectations on individuals within particular contexts to achieve a disinterested perspective. Furthermore, he proposes informal logic as a model for human reasoning, which combines the consideration of substantive content with the requirements of logical validity. By adopting this formal methodology, he believes that participants in argumentation are able to assume the perspectives of everyone else affected by the practice. This universal exchange of roles requires that individuals step outside of their own perspectives to consider the needs of others while attuning themselves to the requirements of logical reasoning.". Para a continuação deste debate, ver o artigo de Mark Weinstein "Decentering and Reasoning", em resposta a Endres (http://www.ed.uiuc.edu/PES/96_docs/weinstein.html).

DESTERRITORIALIZAÇÃO; TEORIA CRÍTICA

Bib.: Jürgen Habermas, The Theory of Communicative Action, vol. 2: Lifeworld and System: A Critique of Functionalist Reason (1987)



Carlos Ceia

Belles lettres

terça-feira, 28 de julho de 2009

A palavra latina litterae (cujas significações históricas se acham sinteticamente apresentadas no verbete literatura), bem como seus equivalentes nos vernáculos modernos, ao longo da história da cultura ocidental tornou‑se objeto de várias adjetivações que visavam a estabelecer distinções conceituais entre tipos diferentes de discursos.

Até onde pudemos apurar, a adjetivação mais antiga deu origem à expressão humaniores litterae, isto é, "letras mais humanas", acerca da qual nada encontramos além de registros sumários. É de supor‑se, porém, que a expressão tenha surgido no latim medieval, podendo‑se ainda deduzir que designava certo tipo de escritos por oposição provavelmente a duas outras modalidades. Uma delas poderia recobrir‑se através do hipotético termo humanae litterae, pois, afinal, se existem as "letras mais humanas", deve haver também as "letras [apenas] humanas"; sem empregar o último termo, uma definição do primeiro, não obstante a listagern de elementos heterogêneos e anacronicamente aproximados, nos fornece as noções a que parece corresponder cada um deles: "... humaniores litterae (...) designava a atividade da imaginação, diferenciada em poesia, prosa, teatro, ensaio, eloqüência, retórica, por oposição aos textos científicos ou filosóficos" (Moisés, 1978, p. 61). A outra modalidade de discursos a que, segundo parece, as humaniores litterae deviam opor‑se seria constituída por escritos religiosos, o que implicaria em distinção na linha daquela entre litteratura e scriptura, encontrada em Tertuliano e Cassiano (século II d. C.), distinção a que se fez referência no verbete literatura.

Uma segunda adjetivação suscitou a expressão litterae humanae (efetivamente documentada, e que, por isso, para efeito dos argumentos aqui desenvolvidos, não se deve confundir com a hipotética humanae litterae antes referida), segundo René Wellek (1982, p. 13) ocorrente no renascimento, juntamente com lettres humains (século XVI). Sua origem com certeza se funda na tradição aristotélica medieval de segmentação dos saberes: Avicena (século X‑XI) fala de uma "ciência superior", a que chama "metafisica, filosofia primeira ou ciência divina"; Domingo Gundisalvo (século XII) divide as ciências em "humanas ou filosóficas" e "divinas ou da revelação"; Roberto Kilwardby (século XIII) distingue entre “Filosofia das coisas divinas" e “Filosofia das coisas humanas" (cf. Ferrater Mora, 1971, v. 1, p. 288). Tais especulações filosóficas, ao que tudo indica, acabam instrumentalizadas, a partir do século XVI, para o reconhecimento de classes discursivas distintas, estabelecendo‑se oposição bastante clara entre o que se chamou "letras humanas'' e "letras divinas" (ou "ciências humanas" e "ciências divinas", equivalência perfeitamente normal numa época anterior à separação entre ciência e literatura (ver, a esse respeito, o verbete competente).

Essa terminologia, espelhando distinções conceituais construídas com critérios alheios às nossas recentes preocupações relativas à especificidade do discurso literário, acha‑se bem documentada em espanhol e português. Cervantes (1547‑1616), na primeira parte do Dom Quixote (1605), no famoso discurso sobre as armas e as letras (capitulos XXXVII e XXXVIII), assim caracteriza a distinção em apreço: "O fim a que as letras se dirigem (e não falo agora, das divinas, que aspiram sòmente a encaminhar as almas para o céu, fim êste tão sem fim,, que nenhum outro se lhe pode igualar), quero dizer, as letras humanas, é estabelecer com clareza a justiça distributiva, e dar a cada um o que é seu, e o procurar fazer, que as boas leis se guardem e se cumpram: fim por certo êste generoso, e digno de grande louvor (...)" (tradução dos Viscondes de Castilho e de Azevedo. São Paulo: Edigraf, 1960. V. 2, p. 429, grifos nossos). E Francisco Manuel de Melo (1608‑1666) qualifica o destinatário do seu Hospital das Letras (escrito em 1657 e publicado em 1721) — o "sapiente varão Daniel Pinário" — como professor, ora de "letras divinas e humanas", ora de "ciências divinas e humanas".

Sobre as motivações da terceira adjetivação, que redundou na expressão francesa bonnes lettres (documentada, ainda conforme René Wellek [1982, p. 13], no renascimento), bem como no equivalente inglês good letters (segundo a mesma fonte ainda corrente até fins do século XVII), também não encontramos esclarecimentos mais significativos. René Wellek, na passagem já referida, dá a expressão — que situa como sincrônica e equivalente a litterae humanae e lettres humains — como fruto da "clara consciência de uma nova literatura secular" que surgiu com o renascimento, donde é possível concluir que as bonnes lettres ("nova literatura secular") também nomeavam aquele conjunto de discursos definido por sue diferença quanto às "letras divinas". As bonnes lettres, por conseguinte, em relação de sinonímia com lettres humains, não tornam concebível a classe hipotética — digamos — das "letras malignas" (nenhum vislumbre de então impensáveis Fleurs du mal), apenas distinguindo‑se — isto sim — das "letras divinas". Assim, um critério ético iguala as qualidades expressas nos adjetivos boas e humanas — o que é humano é bom e vice‑versa — , equação aliás presente na passagem do Dom Quixote já citada: "O fim [das] letras humanas [...] é procurar fazer, que as boas leis se guardem e se cumpram [...]” (grifos nossos). Para concluir a notícia sobre essa terceira adjetivação a que se prestou a palavra letras, assinale‑se que um dicionário de 1789 atesta a ocorrência em língua portuguesa da forma boas letras (consultamos a segunda edição: Antonio Moraes da Silva. Diccionario da lingua portuguesa. Lisboa: Typographia lacerdina, 1813. 2 v.).

Enfim, venhamos à quarta adjetivação historicamente atribuída ao vocábulo letras, única que compõe expressão ainda não de todo obsoleta: belles lettres. René Wellek situa‑lhe a emergência no século XVII, também como equivalente de lettres humains. Em abono do que diz, lembra que Charles Perrault, em 1666, propõe a criação de uma Academia que contasse com uma seção de belles lettres, que incluiria gramática, eloqüência e poesia (cf. 1982, p. 13‑4). Pode‑se, contudo, entrever nessa preferência que se desloca dos adjetivos humanas e boas pare belas mais do que simples reforma de nomenclatura. Nesse sentido, numa época em que os discursos se acham sob controle da disciplina retórica, é possível supor que belas, como atributo caracterizador de certa modalidade das letras, indicia a supervalorização de uma das virtudes da elocução segundo aquela disciplina — o ornato — em detrimento das demais (pureza, clareza, correção, boa colocação). Essa interpretação do ornato retórico como exigência de beleza parece compor‑se ainda com a garantia de um lugar para o "coração" na pedagogia das letras, superando‑se desse modo a referência única ao "espírito" (em outros termos, a inteligência concede parceria à sensibilidade na formação literária). Sinal dessa espécie de consórcio entre a beleza e a sensibilidade no trato com as letras encontramos cristalizado no título de obra publicada em 1726‑28, reunindo conferências proferidas por Charles Rollin em 1688 no Collège Royal de Paris: De la manière d'enseigner et d'étudier les belles‑lettres, par rapport à l'esprit e au coeur (cf. em Smith, 1985, p. 30).

Achamos necessário, agora, associar o rastreamento da expressão belles lettres com a do termo beaux arts, que lhe é tão próximo sob todos os aspectos. Embora tenhamos encontrado caracterização que o tome como "termo diferencial criado no século XVII" (Fontius, 1983, p. 98), o fato é que o primeiro registro que dele localizamos é de 1746: trata‑se do livro Les beaux- ­arts réduits à un meme principe, de Batteux. No entanto, independentemente da questão cronológica, convém fixar que o conceito de beaux arts introduzia novo princípio na classi£icação das artes. Assim, em vez da distinção medieval entre as artes mechanicae e as artes liberales — ou seja, entre ofícios servis e atividades intelectuais — , as beaux arts apontavam para uma outra esfera, em que a diferença entre perícia manual e proficiência racional se neutralizava numa atividade que as transcendia: "Antes que dança, música, escultura, arquitetura, pintura e poesia fossem integradas como um sistema conjunto de artes, teve de ser vencido o preconceito contra o trabalho manual, que se originou na classe dos donos de escravos. Enquanto vigorava a tradição do sistema antigo das artes liberales, que repousava no desprezo contra o trabalho manual, sinal de escravidão, não se podia falar em uma teoria estética abrangente. Para uma tal teoria, faltavam ainda as premissas básicas à Renascença, que elevou as artes visuais do estado de artes mecânicas para o de artes livres. O modo como Da Vinci defendia a pintura como 'ciência' deixa isto bem claro" (Fontius, 1983, p. 101). Ora, sem discordar dessa argumentação sociológica de Martin Fontius, julgamos que a rejeição, no que tange às artes, dos atributos “mecânicas" e "liberais", em favor de "belas", também se explica por um influxo sobre as artes da noção de beleza que começou a impor‑se originariamente no campo das letras. Assim, desde fins do século XVII, como vimos, a priorização da idéia retórica de ornato, que acaba então conduzindo à de belo enquanto predicado apreensível pela sensibilidade (e não mais, à maneira clássica, enquanto elemento inteligível situado no mesmo plano das demais virtudes da elocução — pureza, clareza, correção, boa colocação), parece ter transbordado do âmbito das letras para uma reflexão mais ampla, que acaba vislumbrando nas artes um setor privilegiado para consideração da beleza, donde a constituição do conceito genérico de belas artes. Estas então compõem um sistema cuja referência primeira parece terem sido as belas letras (conceito já naquela altura distinto de duas artes liberais suas antecessoras, gramática e retórica), e que absorve uma outra antiga arte liberal, a música (que então se afasta de seus pares do quadrivium — aritmética, geometria e astrologia), além de atrair outras artes que até aquele momento desconheciam maiores dignidades filosóficas: pintura, escultura, arquitetura e dança. Desse modo se perfaz, no século XVII, o conjunto que veio a charnar‑se belas artes, instaurando‑se assim a idéia moderna de arte: não mais ofício, profissão, perícia ou técnica, cujo domínio requer tão‑somente adestramento em regras, porém elevada manifestação das faculdades subjetivas de criar, sentir e perceber, aptas ao trato delicado da beleza. Para melhor documenter esse efeito expansivo das belas letras sobre as belas artes, vejamos uma seqüência de pontos referenciais dos séculos XVII e XVIII: 1 ‑ proposição por Charles Perrault de uma seção acadêmica denominada belles lettres (1666 [cf. Wellek, 1983, p. 13]); 2 ‑ conferências de Charles Rollin no Collège Royal de Paris (1688), depois publicadas sob o título De la manière d'enseigner et d'étudier les belles‑lettres, par rapport à l’esprit et au coeur (1726‑28 [cf. em Smith, 1985, p.30]); 3 ‑ Essai sur le beau (P. André, 1711); 4 ‑ Principi di una scienza nuova dintorno alla comune natura delle nazioni (Vico, 1725 e 1730); 5 ‑ Meditationes philosophicae de nonnullis poema pertinentibus (Baumgartem, 1735); 6 - Metaphysica (Baumgartem, 1739); 7 ‑ Les beaux‑arts réduits à un meme principe (Batteux, 1746); 8 ‑ Aesthetica (Baumgartem, 1750‑58); 9 ‑ Sur le beau (Diderot, 1751); 10 ‑ Analysis of beauty (Hogarth, 1753); 11 ‑ The sublime and the beautiful (Burke, 1756); 12 ‑ conferências de Hugh Blair na Universidade de Edimburgo (1759 [cf. em Smith, 1985, p. 29]), publicadas depois sob o título Lectures on rhetoric and belles lettres (1783); 13 ‑ conferências de Adam Smith na Universidade de Glasgow (1762‑63), recolhidas no manuscrito Notes of Dr. Smith's rhetorick (descoberto em 1958), depois publicado em 1963 sob o título Lectures on rhetoric and belles lettres delivered in the University of Glasgow by Adam Smith, reported by a student in 1762‑63; 14 ‑ De la belleza ideal (Artega, 1789); 15 ‑ Kritik der Urteilskraft (Kant, 1790).

As belas letras, assim, segundo a hipótese aqui esboçada, deflagradoras de um sistema no qual depois se integram e se consolidam — sistema dito "estético", a partir da palavra cunhada por Baumgartem em seu opúsculo de 1735, e que se tornaria título de sua obra de 1750‑58, já referidos —, apontam, desde fins do séulo XVII e sobretudo ao longo do XVIII, para uma nova partilha do campo das letras: o critério teológico‑ético que fundamentou partilhas anteriores — humaniores litterae, litterae humanae, letras humanas, letras divinas, boas letras — se retrai em favor de um critério estético, que passa a distinguir de maneira cada vez mais nítida entre as letras consideradas belas (em que prevalece o ornato assimilado a beleza e sensibilidade) e as letras que poderíamos chamar filosóficas ou científcas (em que predomina a clareza entendida como apanágio da razão objetiva).

A expressão belas letras, porém, não se revelaria longeva. Desde o início do século XVIII começa a sofrer a concorrência da palavra literatura, a qual, já na segunda metade daquele século — e sobretudo a partir do século XIX — impõe‑se na maioria das línguas ocidentais para designar certo segmento dos discursos escritos a que poderíamos chamar — num gesto de simplificação que julgamos aceitável para nossos objetivos — as letras artísticas, caracterizadas por contraste com as letras filosóficas e as letras científicas.

Ao contrário, no entanto, dos demais ancestrais do termo literatura, belas letras, como já afirmamos, é o único não de todo obsoleto. Se excetuarmos suas raras utilizações residuais na acepção tradicional (por exemplo, Kayser, 1967 [1948], v. 1, p. 9), permanece empregado apenas como expressão pejorativa, num processo de degradação semântica análogo ao que se passou com a palavra retórica, com a qual aliás, segundo demonstramos, está relacionado. Assim, desde o romantismo belas letras veio tendo sua propriedade semântica crescentemente posta em xeque, mediante várias experiências de pendor revolucionário e como tal contrárias a qualquer consenso quanto à idéia de beleza e sua identificacão com a de arte. Passou, assim, a prestar‑se a um emprego irônico e depreciativo, voltado para a desqualificação de concepcões artísticas que se consideram, quando muito, apenas corretas e bem comportadas, porém sempre produtos diletantes, conservadores, frívolos e reacionários.

BIB.: Baumgartem, [Alexander Gottlieb]. Reflexiones filosóficas acerca de la poesia. Madrid: Aguilar, 1964; ‑‑‑‑‑‑. Estética; a lógica da arte e do poema. Petrópolis [Rio de Janeiro]: Vozes, 1993; Ferrater Mora, José. Ciencias (classificación de las). In: ‑‑‑. Diccionario de filosofía. Buenos Aires: Sudamericana, 1971. V. 1, p. 287‑90; Fontius, Martin. Literatura e história: desenvolvimento das forças produtivas e autonomia da arte. In: Lima, Luiz Costa, sel., introd. e revisão técnica. Teoria da literatura em suas fontes. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983. V. 1, p. 84‑187; Kayser, Wolfgang. O objecto da ciência da literatura. In: ‑‑‑. Análise e interpretaçdo da obra literária. Coimbra: Arménio Amado, 1967. V. 1, p. 5‑14; Moisés, Massaud. Belles‑Lettres. In: ‑‑‑. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 1978. p. 61; Smith, Adam. Lectures on rhetoric and belles lettres. Indianapolis [USA]: Liberty Classics, 1985; Wellek, René & Warren, Austin. Natureza da literatura. In: ‑‑‑. Teoria da literatura. Lisboa: Europa‑América, 1962. p. 25‑34; Wellek, René. The attack on literature. In: ‑‑‑. The attack on literature and other essays. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 1982. p. 3‑18.
Roberto Acízelo de Sousa

Cânone

segunda-feira, 27 de julho de 2009

O termo deriva da palavra grega "kanon" que designava uma espécie de vara com funções de instrumento de medida; mais tarde o seu significado evoluiu para o de padrão ou modelo a aplicar como norma. É no século IV que encontramos a primeira utilização generalizada de cânone, num sentido reconhecidamente afim ao etimológico: trata-se da lista de Livros Sagrados que a Igreja cristã homologou como transmitindo a palavra de Deus, logo representado a verdade e a lei que deve alicerçar a fé e reger o comportamento da comunidade de crentes. Após a rejeição de certos livros denominados apócrifos, o cânone bíblico tornou-se fechado, inalterável, distinguindo-se neste aspecto do outro referente do cânone teológico, o conjunto de Santos Padres a que a Igreja Católica periodicamente acrescenta novos indivíduos através de um processo chamado canonização. Importante para a história posterior do conceito é, pois, a ideia de que canónica é uma selecção (materializada numa lista) de textos e/ou indivíduos adoptados como lei por uma comunidade e que lhe permitem a produção e reprodução de valores (normalmente ditos universais) e a imposição de critérios de medida que lhe possibilitem, num movimento de inclusão/exclusão, distinguir o legítimo do marginal, do heterodoxo, do herético ou do proibido. Neste sentido, torna-se claro que um cânone veicula o discurso normativo e dominante num determinado contexto, teológico ou outro, e é isso que subjaze a expressões como "o cânone aristotélico", "cânones da crítica", etc.

Acompanhando o processo de secularização da cultura em marcha desde o Renascimento, o conceito e o termo vieram progressivamente a ser aplicados ao domínio da literatura, muitas vezes sob a forma de expressões como "os clássicos" ou "as obras-primas". No entanto, pode afirmar-se que o núcleo semântico-ideológico posto em uso pela Igreja medieval se manteve relativamente intacto, o que autorizava, por exemplo, Carlyle, no século XIX, a dizer que "Shakespeare e Dante são Santos da Poesia; e, pensando bem, canonizados, pelo que se torna ímpio intrometer-se neles". O cânone literário é, assim, o corpo de obras (e seus autores) social e institucionalmente consideradas "grandes", "geniais", perenes, comunicando valores humanos essenciais, por isso dignas de serem estudadas e transmitidas de geração em geração. Tal definição é válida, quer se trate de um cânone nacional, onde se presume que o povo se reconhece nas suas características específicas, quer se trate do cânone universal (de Homero a...), o que significa de facto, dada a própria origem histórica da categoria literatura, um cânone eurocêntrico ou, quanto muito, ocidental.

É possível fazer remontar o estabelecimento do cânone literário enquanto instituição social à escolarização da literatura moderna, que ocorre durante o século XIX, primeiro à margem das universidades, onde se privilegiava o estudo dos clássicos da Antiguidade canonizados por séculos de imitação e comentário, depois, já no início do século XX, na própria academia, onde se concretizava através de listas de textos a serem lidos e interpretados pelos alunos. Com a generalização da escolaridade obrigatória nas sociedades ocidentais, a escola passou a funcionar como o factor determinante de fixação e transmissão de cânones. Mais recentemente, porém, o conceito de cânone adquiriu visibilidade crítica no seio dos estudos literários organizados como disciplina e acedeu, de forma espectacular, à condição de problema central, não só do campo de conhecimentos, como também da estrutura institucional que o suporta.

Tal fenómeno, que fez do cânone simultaneamente um termo técnico e uma fonte de disputa, tem origens diversas, se bem que inter-relacionadas, entre as quais: a desvalorização da grande literatura como componente do capital cultural das sociedades pós-modernas (obrigada a competir com outros saberes e produtos culturais), a nova reivindicação de representatividade cultural por parte de estratos sociais discriminados (mulheres, minorias étnicas) e a sua repercussão no meio académico, a ascensão de modelos funcionalistas e relativistas do conhecimento na filosofia e outras áreas do saber.

Do ponto de vista da teoria literária, este último aspecto é talvez o mais interessante. Refere-se ele a todas as propostas recentes, explicita ou implicitamente inspiradas na filosofia de Wittgenstein, de problematização da concepção essencialista ou ontológica da literatura sobre a qual repousam as noções canónicas e canonizantes da obra de arte imortal, dos valores estéticos universais, etc. Resumindo, é possível provar que a categoria literatura não se define através de propriedades objectivas, referenciais ou formais que distingam de uma vez por todas certos discursos inerentemente literários de outros não-literários. Sendo assim, o literário é uma classificação de uso, descreve todos os discursos que uma comunidade de utentes considera como tal em função de critérios que são antes do mais sociais e históricos, pelo que um texto não nasce necessariamente literário e muito menos canónico, nem tem que se manter perenemente literário, posição esta que tem justificado recentes reivindicações de recanonização e descanonização. Como diz Terry Eagleton, "Tudo pode ser literatura e tudo o que é visto como inalteravel e inquestionavelmente literário, Shakespeare, por exemplo, pode deixar de ser literatura" (Literary Theory: An Introduction, 1983).

Paralelamente a esta afirmação da socialidade e historicidade da categoria literatura, outro desenvolvimento que contribuiu para a relativização do cânone das grandes obras foi a prática - iniciada pelo estruturalismo e pela semiótica, mas já prenunciada pelos Formalistas russos - de estudar, lado a lado com a literatura canónica e em ambiente interdisciplinar, todo o tipo de actos e objectos simbólicos, desde os mitos, os contos populares, a literatura para crianças, a moda, a culinária, a banda desenhada, a publicidade, etc., de modo que nenhum sistema de signos, nenhum género ou tipo de texto, nenhuma forma discursiva é considerado "indigno" de ser investigado ou ensinado. Tal filosofia "descanonizante" preside à metodologia e à prática da nova disciplina de Estudos Culturais, que se tem estabelecido e rapidamente crescido um pouco por todo o mundo, mas com particular expressão nas culturas anglófonas (v. a este respeito Antony Easthope, Literary into Cultural Studies (1991) e "The Death of Literature", Literature Matters, 14 (1993)). Outra área em que se pode verificar o forte impacto do assalto ao cânone tradicional é na reorganização curricular e programática dos cursos universitários. Em "Canons A(nd)Cross-Cultural Boundaries (Or, Whose Canon Are We Talking About?" (Poetics Today, 12 (1991)), Walter Mignolo transcreve a lista de leituras de um curso de humanidades na Universidade de Columbia em 1937, composta por 16 obras da Antiguidade e 19 clássicos da cultura europeia de Stº Agostinho a Goethe, em comparação com a bibliografia activa de um curso sobre "A Europa e as Américas" da Universidade de Stanford em 1988, onde a lógica reside inteiramente na representação da multiplicidade e confrontação de pontos de vista, de modelos textuais e genéricos, de fontes periodológicas e geoculturais.

Do acima exposto decorre que hoje em dia é possível encarar o cânone de dois modos distintos: enquanto objecto de investigação e enquanto tema de controvérsia. 1) Na primeira perspectiva, os conceitos de cânone e canonização têm sido apropriados pelas teorias sistémicas da literatura e da cultura, onde servem para descrever um dos processos privilegiados de funcionamento dos sistemas literários. Um sistema pode ser definido como uma totalidade auto-regulada composta por elementos em inter-relação. De acordo com os estudos empíricos da literatura, com origem na obra do teórico alemão Siegfried Schmidt, são quatro os elementos básicos do sistema de comunicação literária: produtores, intermediários, receptores e agentes de transformação. É a estes últimos (críticos, tradutores, imitadores, adaptadores, etc.) que cabe o papel sistemicamente central de canonizadores. A teoria do polissistema, primeiro desenvolvida em Israel por Itamar Even-Zohar, opera com os conceitos de centro e periferia, respectivamente a literatura canónica, legitimada pelos estratos sociais dominantes e a literatura marginal (popular, de massas, etc.). O acesso ao cânone, fonte de evolução do sistema, faz-se pela migração ou transferência de textos e normas estéticas da periferia para o centro. Finalmente a teoria do sociólogo francês Pierre Bourdieu divide o "campo de produção literária" em dois grandes subsistemas: o campo de produção restrita, que se caracteriza pela denegação "vanguardista" do lucro imediato e das motivações económicas dos produtores, que se dirigem prioritariamente aos seus pares, e o campo de produção em larga escala, impulsionado pelas leis do mercado e produzindo para o público em geral obras de consumo fácil. No campo de produção restrita, a acção sistémica de um certo número de instituições, como as casas editoriais, a crítica, os prémios literários, a escola, é responsável pela "consagração" de autores e de obras, isto é, da sua canonização e sequente estatuto de "mercadorias" economicamente lucrativas. Com base nestes modelos teóricos se tem produzido muita investigação descritiva e empírica sobre a construção de cânones, por exemplo, estudando os critérios do discurso crítico-avaliativo, a constituição diacrónica de um cânone nacional, por vezes com recurso a instrumentos estatísticos. Alguma desta investigação pode ser encontrada na revista Poetics, que se publica em Amsterdão.

2) A segunda perspectiva surge nos anos 80, com particular incidência nos Estados Unidos, em parte por razões intradisciplinares - a imensa influência do discurso teórico na restruturação metodológica e curricular dos estudos literários -e em parte por razões sociais - o acesso à consciência de uma identidade própria por parte de grupos étnica e sexualmente definidos: os afro-americanos, os hispânicos, os homossexuais, as mulheres. É de salientar, a propósito, o êxito com que os estudos feministas arrancaram ao esquecimento dos arquivos tantas obras escritas por mulheres num passado remoto ou recente e que hoje circulam em edições de bolso e são estudadas nas escolas e lidas pelo público em geral.

Neste ambiente multicultural, o cânone das grandes obras e autores é visto como um instrumento de repressão e discriminação ao serviço de interesses dominantes, do poder branco e masculino e de uma ideologia de contornos patriarcais, racistas e imperialistas. A menos radical das reivindicações surge, então, sob a forma de revisão e abertura do cânone a textos representativos de saberes, classes e minorias tradicionalmente excluídos, numa espécie de suprimento da representatividade imperfeitamente assegurada pelas instituições políticas.

Este vasto movimento que vem agitando e transformando as universidades norte-americanas tem sido objecto de análises e críticas provenientes de pontos de vista opostos. A posição mais rigorosa é sem dúvida a de John Guillory que, em Cultural Capital (1993) e em artigos dispersos, argumenta, por um lado, que os defensores da abertura do cânone se esquecem que historicamente a exclusão não é resultado de uma conspiração política da classe dominante, antes ocorre ao nível dos meios de produção cultural, nomeadamente no acesso diferenciado à literacia; por outro, que o ataque à grande tradição é um sintoma do declínio das humanidades no mercado dos valores culturais. Outra posição, esta de contestação ao processo descanonizante, vem de sectores conservadores das próprias universidades, de associações políticas e meios de comunicação social e critica as suas motivações políticas e o que vê como a dissolução moral e pedagógica das instituições escolares, ao mesmo tempo que propõe um regresso à pureza dos valores da civilização ocidental e cristã. O mais influente e interessante porta-voz da atitude pró-canónica é certamente Harold Bloom, que em The Western Canon (1994) defende a supremacia estética de um conjunto de obras constitutivas de um cânone ocidental perene e permanente centrado em Shakespeare, "o escritor mais original que alguma vez conheceremos".



CORPUS; OBRA



Bib.: Hazard Adams, "Canons: Literary Criteria/Power Criteria", Critical Inquiry 14 (1988); Isabel Caldeira (org.), O Cânone nos Estudos Anglo-Americanos (1994); Milan Dimi_, "Why Study Canonization?", Canadian Review of Comparative Literature (1993); Douwe Fokkema, "The Canon as an Instrument for Problem-Solving", János Riesz et al. (eds.), Sensus Communis: Contemporary Trends in Comparative Literature (1986); Douwe Fokkema, "Research or Criticism? A Note on the Canon Debate", Comparative Criticism, 15 (1993); Jan Gorak, The Making of the Modern Canon (1991); Robert von Hallberg (ed.), Canons (1984); Frank Kermode, "The Institutional Control of Interpretation", The Art of Telling (1983); Frank Kermode, "Canons", Dutch Quarterly Review 18 (1988); J. J. A. Mooij, "The Canonizers and the Canonized", Win Verhoeven (ed.), Rewriting the Dream: Reflections on the Changing American Literary Canon (1991); V. Nemoianu and R. Royal (eds.), The Hospitable Canon (1991); C. J. van Rees, "How a Literary Work Becomes a Masterpiece" Poetics 12 (1983); "The Remaking of the Canon", Partisan Review (Spring 1991); "Review Symposium on Harold Bloom", History of the Human Sciences 9 (1996); Lillian S. Robinson, "Treason our Text: Feminist Challenges to the Literary Canon", R. C. Davis and R. Schleifer (eds.), Contemporary Literary Criticism (1989); Zohar Shavit, "Canonicity and Literary Institutions", E. Ibsch et al. (eds.), Empirical Studies of Literature (1991).


João Ferreira Duarte

Fenomenologia

sábado, 25 de julho de 2009

O termo tem história recente, tomando sua acepção moderna a partir do filósofo Edmund Husserl. A fenomenologia é uma espécie de método que faz a mediação entre o sujeito e o objeto ou, dizendo de outro modo, entre o eu e a coisa. A partir da perspectiva que se deseja emprestar à realidade, ou à coisa, se podem distinguir três grandes linhas na fenomenologia: a transcendental, husserliana, a existencial, a partir de Jean-Paul Sartre e Maurice Merleau-Ponty, e a hermenêutica, cujos representantes maiores seriam Hans George Gadamer e Martin Heidegger.

No artigo “Da ficção”, publicado em 1966, Vilém Flusser explica a fenomenologia a partir de uma mesa simples, entendendo que ela pode ser percebida como uma ficção chamada “realidade dos sentidos”. Sob outra perspectiva, a mesa seria um campo eletromagnético e gravitacional praticamente vazio. Essa perspectiva é igualmente fictícia, ou seja, formula uma hipótese sobre o objeto a partir da chamada “realidade da ciência exata”. Do ponto de vista da Física é a mesa aparentemente sólida, mas de fato oca, e do ponto de vista dos sentidos é a mesa aparentemente oca, mas de fato sólida, nos termos da vivência imediata. Na verdade, não é produtivo perguntar qual destes pontos de vista é mais “verdadeiro”.

Se fosse possível eliminar os pontos de vista possíveis, deixando-os entre parênteses para contemplar a essência da mesa, restaria, para a fenomenologia, apenas o que vai chamar de “pura intencionalidade”. A rigor, a mesa seria a soma dos pontos de vista que sobre ela incidem, a soma das ficções que a modelam, ou quiçá o ponto de coincidência de ficções diferentes. Para Edmund Husserl, conhecido como o fundador da fenomenologia moderna, todos os fenômenos, da mesa mais simples ao evento mais complexo, são reais à medida em que compreendidos pela consciência. O conhecimento da própria consciência é o único conhecimento possível: a intencionalidade investida sobre os objetos os constitui. O algo de que a consciência tem consciência, o objeto do pensamento, Husserl chamaria noema, enquanto que a visada da consciência, o ato mesmo de pensar, ele chamaria noese, mas os dois termos são inseparáveis, se ninguém pensa sobre o nada. Se a consciência é sempre consciência de alguma coisa, então a consciência é intencionalidade e não há noese sem noema, cogito sem cogitatum, amo sem amatum e assim por diante: encontramo-nos entrelaçados com o mundo. A intencionalidade é um objetivo mas também uma doação de sentido; o isso – o mundo – integra a consciência.

Para não ficar entalado no solipsismo, Husserl recorre à intersubjetividade transcendental, supondo que as essências e as significações de um sujeito podem, por analogia, ter aspecto parecido com as dos demais. O outro é para si próprio um Eu; sua unidade não se encontra na minha percepção, mas nele próprio. O outro é experimentado por mim como estranho porque é ele mesmo, tanto quanto eu, fonte de sentido e de intencionalidade. Paul Ricœur dirá que há fenomenologia quando se trata como problema autônomo a maneira de aparecer das coisas, ou seja, quando se coloca entre parênteses a questão do ser. Uma fenomenologia é diluída quando não percebe, e portanto não tematiza, o ato de nascimento que faz surgir o aparecer. Em contrapartida, a fenomenologia será rigorosa se e somente se a dissociação dramática entre o ser e o aparecer for o objeto da sua reflexão, o que implica pôr em questão o ponto de vista, vale dizer: o filósofo.

Como Descartes, Husserl perseguia a certeza da filosofia, para tanto pretendendo que o seu pensamento não nascesse das divergências mas das coisas e dos problemas. A fenomenologia estabelece como postulado que o fenômeno seja lastrado de pensamento, isto é, que seja logos ao mesmo tempo que fenômeno. Um menino desenhando sem compasso poderá dizer que a forma oval que traçou em seu caderno é um círculo; sabemos que é apenas uma tentativa de círculo, mas sabemos também, junto com o menino, que é, sim, um círculo. A percepção do fenômeno se distingue da intuição da essência que se atribui ao fato materialmente percebido, o que permite identificar aquela forma como um círculo para além da sua expressão concreta. Platão já chamava eidos à intuição da essência condicionada à percepção do sensível: assim como há muitos homens e nenhum é O Homem, da mesma maneira há muitos círculos desenhados em muitos cadernos e nenhum será O Círculo, mas as essências deste e daquele estarão existindo, sim, como armadura inteligível do ser. O que Husserl não concorda é em situar tais essências num mundo inteligível de que o mundo sensível seria apenas derivado menor. As essências das coisas residem na consciência, sem com isso reduzirem-se a fenômenos psíquicos. Escapa desse beco psicológico recorrendo à noção de intencionalidade: os fenômenos não nos aparecem, são vividos.

É preciso mostrar que as leis lógicas são “puras”, isto é, construídas a priori. Da mesma maneira, os atos do pensamento, como a abstração, o juízo, a inferência, também não são atos empíricos, dos quais só se pode saber a posteriori, mas sim atos de natureza intencional. Para limpar o reconhecimento da intencionalidade das limitações do ponto de vista e escapar do escolho do relativismo, cumpre adotar a atitude de suspensão do mundo natural. Suspender o mundo natural equivale a colocar momentaneamente entre parênteses a crença, primeiro, de que o mundo natural existe, segundo, de que as proposições decorrentes dessa crença sejam verdadeiras. Essa suspensão se realiza através da epoché [conferir]. A epoché é o eixo da redução fenomenológica de Husserl, pela qual se suspende o juízo acerca do conteúdo doutrinal de toda filosofia. A epoché, porém, não é uma manifestação cética, uma vez que não nega a realidade do mundo natural. Husserl afirma que não há sujeito mais realista do que o fenomenólogo: tem certeza de que é um homem e tem certeza de que vive em um mundo real, do qual tem experiência efetiva – as evidências indubitáveis é que repõem a experiência como o maior dos enigmas.

O procedimento suspensivo da epoché implica a redução fenomenológica. Pela redução, deixamos de dirigir o nosso olhar para os objetos tomados em si mesmos em seu ser inacessível (a mesa, a árvore, a cidade) para dirigir a atenção para os atos da consciência que nos permitem chegar até eles (nossa visão da mesa, nossa lembrança da árvore, nossa imaginação da cidade). A redução fenomenológica é uma conversão do olhar que nos permite chegar ao objeto vivendo-o segundo seu sentido para nós, segundo o valor que lhe atribuímos e sobre o qual não negamos nossa responsabilidade. A redução, articulada à suspensão, é antes um processo de encaminhamento, um método, do que um conceito ou parte de um sistema teórico. É preciso mesmo que se rejeite a imposição de qualquer sistema; tamanha seria a riqueza dos fenômenos que se afiguraria falta de retidão e lealdade anteceder a humilde interrogação dos fenômenos de um sistema que a priori controlasse a interrogação para melhor submeter o objeto da atenção e, portanto, do controle. Nicolai Hartmann chegou a afirmar: “nada pode ser de proveito senão a tendência de abeirar-se dos fenômenos de tão perto quanto possível, para aprender a vê-los na sua multiplicidade e para só depois retornar de novo às questões gerais”.

Entretanto, contrariamente à dúvida cartesiana que a inspira, a redução husserliana não é provisória, negando o mundo para depois reconquistá-lo e à certeza; ela procura instalar-se num regime crítico de pensamento que é seu próprio fim, desejando um olhar despolarizado dos objetos que os libere da reificação ao percebê-los como unidade de sentido – como noema. O que se quer é converter todo fato bruto em essência vivida, abrindo campo para a epoché, ou seja, para aquela espécie de eclusa reflexiva que bloqueia a atitude ingênua e permite, ao olhar, olhar o próprio olhar.

De diferentes modos os nossos padrões mentais se modificaram depois do advento “Husserl”, porque a fenomenologia altera a própria concepção de conhecimento e, em conseqüência, a epistemologia moderna. O conhecimento, nos termos husserlianos, é uma relação concreta da qual o conhecedor e o que se conhece são, estes sim, extrapolações abstratas. O conhecimento é, ao contrário da impressão usual, um dos fatos concretos que fundam o mundo no qual vivemos, nossa Lebenswelt. O sujeito é uma hipótese, como já o demonstraram Nietzsche e Freud – ainda que hipótese indispensável. Da mesma forma, o objeto é outra hipótese – ainda que, novamente, hipótese indispensável. “Eu conheço esta mesa” denota uma intenção concreta e confirma que esse conhecimento, provavelmente compartilhado por muitos sujeitos, é ele mesmo concreto – no entanto, o “eu” e a “mesa” permanecem abstrações, ainda que necessárias.

Se sinto dor no estômago, apenas a dor é um fato concreto; “eu” e “estômago” não são mais do que extrapolações abstratas. Da mesma forma, se considero o nazismo como um mal, apenas o juízo de valor “mal” é um fato concreto; “eu” e “nazismo” são igualmente extrapolações abstratas oriundas daquela concretude. Como todas as nossas relações, estas sim concretas, implicam a existência simultânea da “coisa” e do “outro”, nada pode ser conhecido se não for experimentado e avaliado, assim como nada pode ser experimentado se não for conhecido e avaliado e nada pode ser avaliado se não for também experimentado e conhecido. A divisão tradicional das disciplinas em Ciência, Política e Arte (respectivamente, conhecimento, valor e experiência) é uma abstração da concretude derivada do mundo da vida, da Lebenswelt formada por relações e conexões intencionais. Conseqüentemente, a eterna querela metafísica entre o idealismo e o realismo se esfarela. A atitude científica se altera, se o que se mostra concreto em termos científicos é precisamente a co-implicação entre conhecimento, valor e experiência, isto é, a pura intencionalidade – a ciência passa a assumir que empresta o sentido (Sinngebung) ao mundo em que vivemos. Logo, da mesma forma que a ciência se dá conta da sua responsabilidade estética, também a arte se dá conta de que ela é uma fonte de conhecimento.

Nós nos apegaríamos à fé na realidade de mesas e mentes porque a concretude do mundo vivido é coberta por grossas camadas de preconceito que nos fazem acreditar em objetos e em sujeitos. É necessário remover ou reduzir essas camadas. Os objetos devem ser libertos para revelar o que são: nós abstratos de intenções. Esse é o processo conhecido como redução fenomenológica (isto é, do fenômeno). Da mesma forma que os objetos, o “eu” deve ser liberto para conhecer o que realmente “sou”: um outro nó abstrato do qual as intenções emanam – essa seria a redução eidética (isto é, do ser). Os dois movimentos tornam possível e consciente a Sinngebung (isto é, a doação do sentido), o que por sua aproxima decisivamente a fenomenologia da literatura e sua teoria.

CRÍTICA FENOMENOLÓGICA

Bib.: André Dartigues. O que é a fenomenologia? (1992). André de Muralt. A metafísica do fenômeno: as origens medievais e a elaboração do pensamento fenomenológico. Bárbara Cassin. Aristóteles e o logos: contos da fenomenologia comum. Edmund Husserl. Investigações lógicas. Edmund Husserl. Meditações cartesianas. Javier San Martín. Fenomenología y cultura en Ortega (1998). Jean-Claude Beaune (org). Phénoménologie et psychanalyse: étranges relations (1998). Jean-François Lyotard. A fenomenologia. José Ortega Y Gasset. Meditaciones del Quijote. José Ortega Y Gasset. Que es la filosofía? Maurice Merleau-Ponty. Fenomenologia da percepção. Robert Magliola. Phenomenology and literature: an introduction (1977). Vilém Flusser. A dúvida (1999). Vilém Flusser. Dinge und Undinge: phenomenologische Skizzen (1993).

Gustavo Bernardo

O herói

sexta-feira, 24 de julho de 2009

Do grego ‘hrvV, pelo latim heros, o termo herói designa o protagonista de uma obra narrativa ou dramática. Variando consoante as épocas, as correntes estético-literárias, os géneros e subgéneros, o herói é marcado por uma projecção ambígua: por um lado, representa a condição humana, na sua complexidade psicológica, social e ética; por outro, transcende a mesma condição, na medida em que representa facetas e virtudes que o homem comum não consegue mas gostaria de atingir. Para os Gregos, o herói situa-se na posição intermédia entre os deuses e os homens. Por isso, Hesíodo, distinguindo (Os Trabalhos e os Dias, 156-173) cinco idades da vida humana, numa perspectiva decadentista, intitula a quarta, a seguir à do ouro, da prata e do bronze, como a dos heróis, antes da de ferro, ou da suprema degradação. Por um lado, representam a degradação dos desuses; por outro, constituem uma promoção dos homens. Charles Baudoin, reconhecendo ao herói uma origem divina, caracteriza a sua existência a partir de uma infância misteriosa e oculta, em contraste com a sua vida adulta, constituída por provas libertadoras, como combates contra monstros, e com a obtenção da imortalidade. É toda uma projecção mítica e lendária que rodeia esta imagem solar e redentora. Héracles, filho de Zeus, pai dos deuses, e de Alcmena, simples mulher, protagoniza como nenhum outro este arquétipo do herói grego, o qual, após a vitória sobre os doze trabalhos, adquire a imortalidade olímpica. De resto, é esta faceta bélica que caracteriza sobremaneira o herói épico, como sublinha P. Miniconi, ao distinguir na epopeia: a preparação (apresentação do herói e descrição das armas); o combate (peripécias, espectadores, proezas); o desenlace vitorioso (despojos, injúria aos cadáveres inimigos, jogos fúnebres). Os próprios deuses não escapam ao conflito, envolvendo-se em teomaquia, Titãs (Hesíodo, Teogonia, 617-735) e Gigantes (Píndaro, Nemeias, I, 67), contra Zeus na demanda do Olimpo, e tomando partido por um dos lados do conflito humano (Ilíada, XI, 11-14). Deste modo, a epopeia, hermenêutica heróica por excelência, espelha o paradigma cosmológico da aventura humana.

A ambiguidade do herói grego patenteia-se num conjunto de características antagónicas: a força e beleza de uns (Héracles, Aquiles, Orestes, Pélope) contrasta com o aspecto teriomórfico ou deficiente de outros (Licáon, “o lobo”; Cécrope, o andrógino; Tirésias, o transsexual; Héracles, o travestido, com três filas de dentes). O seu excesso sexual (violação, incesto), a violentação sacrílega de deusas (Órion, Actéon, Íxion), reveladora da sua hybris, são traços de uma época primordial que os torna semelhantes aos deuses: são fundadores de cidades, inventores de leis, regras sociais e ofícios, são associados a ritos de iniciação e aos mistérios, tornam-se génios tutelares que protegem contra invasões, epidemias e outros flagelos, tornam-se imortais, sendo transportados às ilhas dos Bem-Aventurados ou ao Olimpo. O herói homérico não foge a este paradigma: Agamémnon é o chefe todo poderoso dos Aqueus, mas também o ávido instigador da cólera de Aquiles, que põe os Gregos em perigo e causa a morte de Pátroclo; Ulisses é, com Epeu, o astuto inventor do ardil do cavalo que conduzirá à ruína de Tróia, o corajoso e sábio viajante que ultrapassa os perigos do mar, das sereias, de Polifemo, mas também o desencadeador da cólera de Possídon e os seus homens os sacrificadores dos bois sagrados de Hélio, lamenta com saudade o afastamento de Ítaca e Penélope, mas não consegue facilmente desenvencilhar-se dos amores de Circe e de Calipso. A lição de Homero, segundo Mircea Eliade, é a capacidade de assumir e ultrapassar a finitude e a precariedade da vida humana: “viver totalmente, mas com nobreza, no presente. [...] Forçado que foi pelos deuses a não ultrapassar os seus limites, o homem acabou por realizar a perfeição e, portanto, a sacralidade da condição humana. Redescobriu, pois, dando-lhe forma definitiva, o sentido religioso da “alegria de viver”, o valor sacramental da experiência erótica e da beleza do corpo humano, a função religiosa de todo o júbilo colectivo organizado” (História das Ideias e Crenças Religiosas, T. I, p. 238).

Na época alexandrina, Os Argonautas, de Apolónio de Rodes (295-215 a.C.), numa síntese entre a Ilíada e a Odisseia, apresentam as aventuras de Jasão e seus companheiros, em demanda do velo de ouro, na Cólquida, Mar Negro. Herói humano, seduzido por Medeia, filha do rei Eetes, Jasão obtém, por seu intermédio mágico e traição familiar, o objecto tão ambicionado, guardado pelo dragão sempre vigilante na floresta. Irritado, Zeus infligirá aos aventureiros o castigo de um longo regresso, enquanto a paixão do herói pela feiticeira lhe trará, no seu país, trágicos dissabores.

Na mesma época, os Romanos são iniciados na poesia épica: as guerras púnicas, entre Roma e Cartago, são cantadas por Névio (Poenicum Bellum) e por Énio (Annales). Mas a romanidade adquire a sua expressão mais alta no poema Eneida, de Virgílio, cujo herói Eneias, filho de Vénus e do mortal Anquises, representa simbolicamente a fundação e a própria identidade de Roma e do seu povo, com os seus valores e limitações, sendo a sua figura historicamente actualizada no imperador Octávio César Augusto: a fides (do verbo piare, apaziguar, apagar uma falta), ou fidelidade à família, à gens e à pátria, expressa no prestígio religioso do Direito; a pietas para com os deuses (religião), para com a família (obediência), para com a cidade (civismo), para com o Outro, mesmo o estrangeiro (ius gentium). O sentido de missão que conduz Eneias das cinzas de Tróia, com o pai às costas e o filho Ascânio, transportando os Penates, estando também na origem da sua renúncia ao amor da rainha Dido, de Cartago, as suas lutas com Turno, rei dos Rútulos, e a sua aliança com o rei Latino, fundamenta o sentido político e civilizacional do Império, associado à pax romana: tu regere imperio populos, Romane, memento / (hae tibi erunt artes), pacisque imponere morem, / parcere subiectis et debellare superbos (Aen, VI, 851-853 – Tu, romano, sê atento a governar os povos com o teu poder / - estas serão as tuas artes – a impor hábitos de paz, / a popar os vencidos e derrubar os orgulhosos). Por sua vez, os heróis livianos da fundação de Roma estão eivados de marcas de grande ambiguidade moral: Rómulo assassina Remo, tornando-se único senhor da nova cidade; Tarpeia deixa-se corromper, entregando Roma aos Sabinos, em troca de promessas de ouro, sendo, por isso, apedrejada; a violação de Lucrécia por Sexto Tarquínio, a qual se suicida em defesa da honra, dá origem à queda da monarquia e à instauração da República. Por isso, Michel Serres encontra na tragédia o facto primordial que permite explicar o seu crescimento: “D’ un cadavre, toujours, naît quelque unité: groupe, classe, ville, règne, une ère nouvelle, une autre fausse nouveauté [...] La mort est le moteur perpétuel de ce répétitif, exactement son retour éternel” (Rome, le livre des fondations, 1983, p. 278). Lucano (39 a.C.-65), na sua Farsália, escolhe a guerra civil entre Pompeio e César para apresentar na figura de César um anti-herói, guerreiro e cínico, que combate outro anti-herói, envelhecido, desabituado, na paz, da função do protagonismo político. Roma, vítima desta divisão destrutiva, sofre as consequências do caos: à pax virgiliana, Lucano opõe a libertas. As Púnicas, de Sílio Itálico, Os Argonautas, de Valério Flaco, a Tebaida e a Aquileida, de Aquiles Estácio, retomarão, no fim do século I, o classicismo grego (o ciclo troiano voltará, no século IV), enquanto, entre os séculos III e IV, o herói romano será reafirmado na luta do Império contra os Bárbaros.

O poema védico Mahâbhârata, história da luta entre os cem filhos de Kuru (Kauravas) e os cinco filhos de Pandu (Pandavas), representa o conflito entre o Bem e o Mal, entre os deuses (devas) e os demónios (asuras), entre Indra (guerreiro demiúrgico, que personifica a energia vital) e o dragão Urtra (símbolo do caos), até à vitória do Bem, assegurada por Vixnu-Krixna. No poema Râmâyana, o casamento entre Râma e Sîtâ, avatares de Vixnu e Lakxmî, representa a união hierogâmica entre Céu e Terra. Os raptos, as lutas fratricidas, a hostilidade entre pais e filhos, a privação da herança patrimonial são marcas destes dois poemas hinduístas, que apontam para o restabelecimento da ordem cósmica (dharma), a partir da conjugação de esforços entre os heróis e os deuses, com a morte, fusão entre a alma individual (âtman) e a universal (brahman).

Na literatura chinesa clássica, o conceito de herói difere substancialmente nas duas principais correntes que sustentam a sua mundividência: o Tauísmo, expresso no livro Tau-Te-King, e o Confucianismo. Para o primeiro, o herói-santo é aquele que, inteiramente despojado da existência terrena (wu-wei), vive num êxtase permanente; para o segundo, os heróis-civilizadores Yau, Chun e os reis da dinastia Tcheu, Wen e Wu ilustram com o seu exemplo o modo de atingir o caminho do Céu, através da educação, da disciplina e da intervenção social: a bondade, a sabedoria, a coragem, a justiça, a religião.

Na literatura persa, Firdusi (932-1021), no seu Xahnamed (Livro dos Reis), compendia a tradição mítica do Memorial de Zarêr, na qual heróis de cinquenta reinos alternam vitórias com insucessos, como Djemxid, que cede o trono ao tirano Zohhak; ou Rustem, que recebe de uma ave a planta mágica com que fabricará a flecha com a qual matará Isfendiar; ou Iskender, que explorará e descobrirá o mundo com suas viagens; ou Kei Khosru, que, no apogeu da sua glória, desapareceu no deserto.

Na literatura africana, Zong Midzi, n’ O Mvett, cantado por Zvé Ngema, enfrenta, tal como Prometeu na mitologia grega, os imortais de Engong, mestres da metalurgia e da medicina. Ao tentar imortalizar-se, junto dos seus antepassados, acaba por morrer, incapaz de ultrapassar a fronteira entre as categorias ônticas do Universo. Por sua vez, na obra Chaka, de Tomás Mofolo, o protagonista, rei dos Zulos, munido de apoio mágico, domina até à exaustão todos os inimigos, numa ambição desmedida que atinge a própria demência.

Nas canções de gesta, o herói carolíngio recebe a sua glorificação do martírio, numa transformação do insucesso em vitória espiritual e temporal, na metamorfose da fatalidade em providência: os anjos transportam a alma de Rolando ao paraíso, enquanto Gabriel ajuda o imperador no seu duelo com Balignant (Chanson de Roland); Isembart, ultrajado pelo imperador Luís, seu tio, refugia-se na corte do rei viking Gormont, abjurando a sua fé, morrendo acusado pelos dois lados (Gormont e Isembart); os Sarracenos matam Viviano (La Chanson de Guillaume). A ambiguidade do herói, arquétipo da condição humana, também é notória: Rolando é orgulhoso e santo; o seu martírio redime o seu pecado, numa oferenda sacrificial a Deus e aos companheiros, transformando a epopeia em hagiografia.

Na canção dos Nibelungen, Sigfrid, filho do rei da Neerlândia, depois de matar dragões e libertar virgens, traz a infelicidade a Worms, sendo também ele morto por Hagen, às ordens da cunhada, por se haver apoderado do tesouro dos Nibelungen. A sua viúva, Kriemhild, desposa Etzel, rei dos Hunos, tornando-se assassina dos cunhados e acabando por ser morta. No poema Kudrun, Hagen, depois matar os monstros que o haviam prendido, casa com Ilda, filha do rei das Índias. A sua filha é raptada pelo rei Hetele; dessa união nasce Kudrun, que, por sua vez, também é raptada por Hartmut, depois de uma luta com Hetele, seu pai, durante a qual encontra a morte, sendo, mais tarde libertada pelo irmão e pelo noivo. O ouro, símbolo do poder, torna-se, assim, na epopeia germânica agente e móbil de maldição, atingindo uma família inteira, em gerações sucessivas, transformando heróis em anti-heróis, fascinados pelo excesso da perversão.

No século XII, o romance carolíngio é substituído na Aquitânia pela Matéria da Bretanha, na corte do rei Artur e dos cavaleiros da Távola Redonda, envolvendo raízes célticas com elementos cristãos, gnósticos e islâmicos. A Demanda do santo Graal, na versão da pós-vulgata, que dará origem a uma tradução portuguesa, constitui um dos mais belos repositórios da cultura cavaleiresca europeia, no contraste entre os heróis: da união adúltera de Lancelot e da rainha Genebra, esposa do rei Artur, nasce o cavaleiro virgem Galaaz, que realiza, com Boorz e Persival, o ideal humano da demanda da felicidade ou da perfeição.

Enquanto se multiplicam as obras influenciadas pelos ciclos épicos, em especial o carolíngio, a Espanha produz o Cantar de mio Cid, cujo herói, Ruy Diaz de Bivar, se salienta na guerra da reconquista cristã aos Mouros. O Poema de Rodrigo continuará esta gesta da reconquista, enquanto compilações em prosa nos reúnem fragmentos da epopeia oral, como Os Sete Infantes de Lara. Mas é o Romanceiro que, a partir do século XIV, transmite, de geração em geração, até à actualidade, a tradição oral do romance épico da Ibéria. Em Portugal, Garrett é o pioneiro, ainda que não fiel transmissor, desta gesta tradicional (Romanceiro), sendo continuado por Teófilo Braga.

Na Divina Comédia, de Dante, síntese da cultura medieval, em transição para o Renascimento, o narrador é conduzido por Virgílio, símbolo da cultura greco--romana, ao Inferno e ao Purgatório; mas o acesso ao Paraíso é-lhe vedado, sendo substituído por S. Bernardo, símbolo da teologia, e por Beatriz, sua dama, que surge gloriosa no carro da Igreja, recebendo, então a revelação da plenitude: a visão disfórica da sociedade da época cruza-se, na viagem iniciática, com a tensão anímica das aspirações profundas do ser humano, representado na figura do peregrino.

Até à sátira de Morgante Maggiore, de Luigi Pulci (1432-1484), em Itália e de Cervantes, no seu D. Quijote de la Mancha, em Espanha, o ideal cavaleiresco mantém a adesão do leitor renascentista, quer em relação a romances ou novelas dos séculos XIV e XV, como o Amadis de Gaula, atribuído ao português Vasco Lobeira, com múltiplas versões e traduções, ou o, quer em relação a obras do século XVI, como o Palmeirim de Inglaterra, de Francisco de Morais, em Portugal. No poema de Pulci, Carlos Magno é abandonado por Rolando e seu primo Renaud, enquanto o seu invencível companheiro, o gigante Morgante, morre, mordido por um caranguejo. Na obra de Cervantes (1611), é o próprio ideal cavaleiresco que, entontecido pela febre da leitura de novelas de cavalaria, é ridicularizado na figura grotesca do cavaleiro da triste figura, apaixonado por uma pretensa dama, Dulcineia del Toboso, que não passa de uma figura do povo, utopicamente apostado em esgrimir contra moinhos de vento ou exércitos de rebanhos de carneiros, em contraste com a rotunda e materialista figura de seu escudeiro, Sancho Pança, ambicioso de poder, nem que seja na fantástica ilha de Barataria.

Os ecos do ciclo carolíngio no Renascimento dão origem à composição de duas epopeias centradas no herói protagonista da Chanson de Roland: no Orlando Amoroso, de Boiardo (1441-1494), o protagonista, rodeado de magos, a tudo renuncia, por amor de Angélica, filha do rei do Cataio; no Orlando Furioso, de Ariosto (1474-1535), o herói enlouquece, ao dar-se conta de que Angélica, depois de presa por corsários e salva de uma orca pelo sarraceno Rogério, ama Medor, futuro rei do Cataio.

Num tom conciliador entre os paradigmas da epopeia clássica e a temática nacionalista e ainda numa atmosfera cavaleiresca, apoiada na ideologia de cruzada, n’ Os Lusíadas (1572) de Luís de Camões (c. 1524-1580), o herói colectivo do peito ilustre lusitano é metonimicamente representado pelo herói singular Vasco da Gama, o Capitão-mor das naus que demandaram a Índia, pela rota do Cabo, em 1497-98, dez anos antes descoberta por Bartolomeu Dias. Secundados por Vénus, mãe de Eneias, representante da civilização greco-romana (europeia, portanto), em oposição à resistência de Baco, identificado com as civilizações orientais (hinduísta e muçulmana), os novos argonautas, depois de enfrentarem mil perigos (da natura e da cultura), alcançam, por mares nunca dantes navegados, o porto perseguido, na mira de novos velos de ouro (as especiarias), mas também a edificação de novo reino, baseado numa nova proposta civilizacional e religiosa, sendo alegoricamente recompensados na ilha de Vénus, símbolo da glória apoteótica das armas e das letras, na síntese clássica (platónica e aristotélica) e cristã da virtus.

Igualmente, Torquato Tasso (1544-1595) propõe uma aliança harmoniosa entre a humanitas greco-latina e o nacionalismo, inspirado no ideal de cavalaria e de cruzada, nas epopeias Jerusalém Libertada (1575) e Jerusalém Conquistada (1593), acentuando nesta última a orientação pós-tridentina, figurando alegoricamente a alma humana no herói Godofredo, o corpo, nos soldados, as fasculdades em Tancredo e Renaud, as tentações em Armida e Ismen.

No século XVII (1667), destaca-se a epopeia Paradise Lost, de John Milton, centrada no paraíso terrestre, alegoria da condição humana, cujo herói, Jesus Cristo, vence a adversário, Satanás, restabelecendo o equilíbrio e a harmonia universais, perdidos pelo pecado original, de Adão e Eva.

No século XVIII, salientamos o poema épico de Voltaire, La Henriade (1728), que, inspirado na Eneida, de Virgílio, e na Farsália, de Lucano, canta os combates protagonizados por Henrique IV, impregnado, porém, do novo espírito racionalista das Luzes, da tolerância e do relativismo histórico.

O herói da tragédia clássica, mantendo, embora, em comum com o épico a dignidade da sua origem e da sua missão, distingue-se, todavia, dele pela carga do fatum, que condiciona a sua liberdade de acção e, sobretudo, o desenlace catastrófico da sua vida: o optimismo libertador do épico contrasta com o pessimismo caótico, aniquilador, do trágico; o efeito catártico sobre o leitor/espectador, a partir do terror e da piedade, na tragédia, tem como, compensação, na epopeia, a admiração e o êxtase do herói perante a maravilha e a transcendência do magnífico. Opostos e complementares, os dois tipos de heróis configuram, como diz Daniel Madelénat, duas representações do homem: “une hétérotélie conjoncturelle, opposition momentanée avec le monde (dans l’épopée); une hétérotélie structurelle, scission définitive entre le moi et le monde, et à l’intérieur du moi (dans la tragédie)” (1986, p. 126).

Herdeiro da epopeia, sobretudo da Odisseia e do Râmâyana, o romance, com tonalidades mais doces e maior variedade de aventuras, numa linguagem mais coloquial e vulgar (o próprio nome designa a língua românica, à semelhança do latim), consentânea com a prosa, configura um herói plenamente humano, complexo de virtudes e defeitos, mais caracterizado em termos psicológicos e na sua dimensão sociológica. A relação homem-mulher, na sua exploração erótica, adquire, no romance, sobretudo moderno, tal profundidade que, na linguagem corrente, tal relação passou a denominar-se, precisamente, romance.

O século XVII ibérico introduz a novidade do herói pícaro (Lazarrillo de Tormes, Guzmán de Alfarache, a pícara Justina, etc.), espelho de uma sociedade de contrastes entre aristocracia e plebe, entre fausto e miséria, entre realidade e aparência, entre honra e fanfarronice.

O herói romântico, por um lado, encontra no romance histórico a moldura idealizada para representar, com função pedagógica, o novo modelo, de acordo com o mítico regresso à idade de ouro medieval, que a sociedade liberal e burguesa pretende apresentar, em alternativa ao herói clássico; por outro, serve-se do drama, para expressar o arquétipo da sociedade da época, votado ao sofrimento e à perseguição trágica.

O herói naturalista, em oposição ao romântico, alicerçado em bases científicas, deixa a sua feição modelar para ser apresentado como objecto de estudo, fruto da hereditariedade, da educação e do meio, espelho dos conflitos psico-sociais e duma época em crise.

No século XX, o romance e o teatro existencialistas põe em causa a própria noção de herói, tanto numa perspectiva social como filosófica, já que o homem surge como um ser sem sentido, num mundo absurdo (Sartre, Beckett, Valle-Inclán, Virgílio Ferreira), enquanto o realismo socialista promove um novo tipo de herói: operário, sindicalista, comprometido no campo social e no político, denunciador da corrupção e da opressão, empenhado na sua transformação.

ANTI-HERÓI; PROTAGONISTA; PERSONAGEM

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António Moniz

Teoria da Literatura

quinta-feira, 23 de julho de 2009

É hoje em dia extraordinariamente vivo e dinâmico o campo disciplinar conhecido por Teoria da Literatura. Tão vivo e dinâmico que os livros e artigos com ela relacionados se sucedem a um ritmo impressionante, criando uma complexa genealogia do saber cujos índices de actualização se negam muitas vezes na própria ineficácia instrumental da abundância. Chegámos a uma fase em que se torna necessário publicar espessos volumes de referências bibliográficas (L. Orr, 1989), ou em que se multiplicam as Introduções, Antologias ou Selecções do tipo Reader’s Guide (veja-se, por exemplo, R. Selden, 1989).

Ao ser atravessada por um diversificado corpo de saberes sugeridos pelo reconhecimento da própria diversidade da literatura e da recepção da literatura, a teoria literária contemporânea afirma-se por interesses múltiplos e caminhos variados. Este é um campo de tal maneira vivo e dinâmico, são de tal maneira múltiplos e variados os seus caminhos, que só por ignorância ou presunção alguém se arriscaria a propor, nos nossos dias, uma definição de teoria literária. Paul de Man, que tinha pouco de presumido e ainda menos de ignorante, reconheceu esta mesma realidade num texto tão lúcido quanto mal compreendido pelo establishment académico norte‑americano. Nesse texto, Paul de Man tentava, muito simplesmente, «explicar porque é que o principal interesse teórico da teoria literária consiste na impossibilidade da sua definição» (1986: 3).

A diversidade dos seus caminhos, bem como a ausência de uma «pureza» científica para os cânones gerais de racionalidade que explicitam a sua configuração disciplinar, revelam a teoria literária segundo duas grandes figuras. Por um lado, a figura que nos mostra que é através de uma irrecusável força inclusiva que a teoria literária não só justifica a sua coalescência face a teorias particulares da literatura e da recepção da literatura, mas também oferece aos estudos literários uma base racional a partir da qual se pode articular a crescente variedade de áreas por eles cobertas. Por outro lado, a figura que nos assegura que é pela incondicionalidade do discurso impuro da teoria literária que não só se apresentam as ambivalências próprias à reprodução da realidade por parte da literatura e da leitura crítica da literatura, mas também se harmonizam as diferentes abordagens intelectuais suscitadas por essa mesma realidade.

Apesar do reconhecimento da natureza “impura” da teoria literária, creio que vale a pena indicar (arriscar) um entendimento genérico da sua funcionalidade no domínio dos estudos literários. Segundo creio, o entendimento mais simples é não só o mais eficaz, mas também o que mais perto se encontra do entendimento que dela tiveram progenitores canónicos como Boris Eixenbaum e René Wellek. Assim, por teoria literária pode entender-se a racionalização sistemática de um conjunto de assunções acerca das propriedades do texto literário e das relações deste com a sua cultura de origem, o seu autor e o seu intérprete.

Este entendimento apresenta três vantagens. Por um lado, salvaguarda a especificidade do objecto literário sem anular, no entanto, as suas várias vertentes psicológicas, sociológicas e históricas. Por outro lado, permite introduzir a problematização da crítica literária não só enquanto modo de leitura e interpretação dos textos, mas também enquanto conjunto de projecções imaginativas acerca da natureza da literatura. Finalmente, aquele entendimento traça fronteiras intelectuais entre aquilo que é o estudo da literatura como objecto comunicativo de uma cultura, e aquilo que é o estudo de uma cultura que encara a literatura como mera representação das estruturas de poder actuantes nessa mesma cultura. Dito de outra maneira e clarificando o meu objectivo, insistir na natureza intrinsecamente literária do objecto da teoria da literatura equivale a separar desde início a teoria literária da chamada teoria crítica, tal como esta é actualmente entendida.

1. Do pensamento literário à teoria literária

Aristóteles é quem normalmente protagoniza a figura de pai da teoria literária para muitos investigadores impregnados do espírito científico do nosso século ou continuado­res do espírito positivista por que a Literaturwissenschaft se afirmou no imaginário oito­centista. Centrando‑se, como observa Robert C. Davies, mais nas relações do que no sen­tido referencial (Davies, 1985: 51), as virtualidades estruturais da Poética parecem oferecer um fascínio irresistível às várias versões da «orientação teórica objectiva» dos estudos literários—recorrendo tacticamente a uma das quatro orientações (as outras são a mimética, a expressiva e a pragmática) em que M. H. Abrams divide a crítica literária, e que caracteriza do seguinte modo: «A orientação objectiva, que em princípio encara a obra de arte isolada de todos estes pontos de referência [o leitor, o artista e o mundo], analisa‑a como uma enti­dade auto‑suficiente constituída pelas suas partes nas suas relações internas, e dispõe­‑se a julgá‑la unicamente por critérios intrínsecos ao seu próprio modo de ser.» (M. H Abrams, 1953: 26).

Por exemplo, E. Stankiewicz, um eslavista formado na escola da linguística estrutu­ral impulsionada pelos trabalhos dos formalistas russos e checos (cf. Stankiewicz, 1978), depois de reconhecer que Aristóteles «foi o primeiro a manter que o valor da arte reside na própria arte» (1977:59), afirma inequivocamente que Aristóteles «é o fundador da poética teórica» (loc. cit.). No entanto, também se pode poderá afirmar, seguindo um investigador como John Jones (1980: 40‑1 e 50‑4), que a orientação aristotélica para sal­vaguardar o prazer que o homem tem na fruição de um discurso rítmico e melodioso (que assegura uma das modalidades de manifestação da ideia de que o valor da arte reside na própria arte) se articula, no quadro teleológico da filosofia aristotélica, com o reconhecimento mais substancial do poder persuasivo da poesia, sobretudo através da constituição desta em instrumento pedagógico pela capacidade que tem de imitar as acções humanas, encorajando as virtudes (eudamonia) e desencorajando os vícios. Ou seja, a orientação aristotélica situar‑se‑ia no âmbito disciplinar da retórica, embora já num quadro suficientemente elástico de modo a potenciar a fusão da própria retórica, juntamente com outros saberes, naquilo a que nos nossos dias se chama äcrítica literária.

Poder‑se‑á argumentar que não devemos esquecer nem escamotear o facto de que a importância de Aristóteles decorre sobretudo do reconhecimento que este autor revela de que a literatura tem uma estrutura interna muito própria. Neste sentido, não pode ser acidental a sua consideração da intriga (mythos) em termos como, por exemplo, «a união estrutural das partes» (Poética: 1451a 30) ou «um organismo vivo» (id.: 1459a 21), bem como os princípios de desenvolvimento que lhe são inerentes. Porém, será que estamos perante uma empresa autónoma na sua individuação teórica ou perante uma validação da obra poética através da sua especificidade de trabalho (poein), de modo a encontrar as bases necessárias a um julgamento estético? Se escolhermos a segunda resposta, como parece mais legítimo, então teremos que reconhecer, mais uma vez, a instância funda­mental da preocupação crítica de Aristóteles e, eventualmente, as linhas constitutivas de algo que vários séculos mais tarde irá ser designado por ciência estética.

Tenha‑se ainda em conta um outro aspecto. Aristóteles encarou a poesia sobretudo como technê, isto é, como uso prático do intelecto enquanto considerado no objecto produzido. Naturalmente, há condições neste aspecto do pensamento aristotélico para que ele seja apropriado pela orientação objectiva, na medida em que esta reconhece nesse pensa­mento o seu próprio princípio da autonomia da obra artística, isto é, aquele princípio tão caro às posturas críticas de uma modernidade anti‑expressiva ou pós‑romântica. Por isso encontramos três importantes investigadores a valorizarem Aristóteles exactamente pela distinção que ele teria operado entre estética e moral:

«Aristóteles foi o primeiro que tentou separar a teoria da estética da teoria da moral. Ele assegura coerentemente que o objectivo da poesia é um prazer requintado [.. ] e nunca permite que a finalidade moral do poeta ou que os efeitos morais da sua arte ocupem o lugar do objectivo artístico.» (S.H. Butcher, 1911, 1945: 238.)

«Quando Aristóteles se volta para a arte da poesia [poietike], ele está determinado a assinalar fronteiras e a estudar a natureza da arte independentemente das suas ligações morais e políticas.» (Monroe C. Beardsley, 1966: 54-55).

«Significativo é o seu [de Aristóteles] desafio da visão ética da poesia, a sua dis­cordante afirmação de que a função do poeta é sobretudo a de dar prazer. De tal maneira, que a partir dessa altura não havia desculpa [...] para confundir padrões esté­ticos com padrões morais para julgar a arte.» (A.J. W. Atkins, 1934, 1961: 1, 117).

No entanto, esta legitimação da orientação objectiva, através da qual estes autores invocam o prestígio de Aristóteles por uma compartimentação táctica do seu pensamento acerca da literatura, pode ser contrariada em três horizontes. Por um lado, pelo horizonte da própria perspectiva aristotélica que sublinha antes de mais ou tão‑só a mimese como a capacidade que a arte tem de se tornar uma imitação bem sucedida da estrutura da acção humana, de modo a alcançar o bem humano revelador do objectivo último não só da poesia mas de todas as esferas da acção ou da vida: «Qualquer arte e qualquer processo de inquirição, e do mesmo modo qualquer acção e qualquer busca, procuram alcançar um qualquer bem humano; e por esta razão o bem foi justamente declarado ser aquilo para que tendem todas as coisas. (Aristóteles, Ética a Nicómaco: 1094a).

Por outro lado, a contestação pode ser articulada a partir de dois outros horizontes, isto é, um que inscreve uma perspectiva que permite encarar aquela legitimação como decor­rendo de um anacronismo crítico pós‑kantiano, e outro que inscreve uma perspectiva que encara o pensamento literário aristotélico nos termos próprios da sua articulação com a teoria moral. Isaiah Smithson possibilita‑nos um exemplo da primeira perspectiva e G. M. A. Grube da segunda: «Há uma desculpa para confundir padrões estéticos com padrões morais depois de a Poética ter sido escrita—e a desculpa não é a relativa ausência do texto na Europa antes do Renascimento. A desculpa é que, ao contrário de Kant e de pensa­dores posteriores que discriminam aberta e claramente os julgamentos estéticos dos morais, Aristóteles não concebe uma tal separação. Em vez disso, e de um modo con­sistente com a visão que é afirmada na Ética a Nicómaco [...], Aristóteles investiga na Poética o bem particular que a tragédia tenta alcançar. (I. Smithson, 1983: 17). «Aristóteles tinha uma consciência clara de que uma arte deve ser julgada nas suas próprias premissas (‘adequação para um poeta não é a mesma que para um político’), mas que estas premissas fossem, no caso da tragédia, puramente estéticas, e portanto amorais, era algo que pura e simplesmente não lhe poderia ter ocorrido.” (G. M. A. Grube, 1958: Prefácio, XXII).

Consideremos ainda, e em reforço do que tenho vindo a defender, que os dados da reflexão aristotélica articulam a tragédia por uma finalidade catártica, a qual, como foi interpretada pelo século XVII, implica uma inequívoca dimensão moral (os valores implí­citos no exemplo) e ética (o apaziguamento das paixões). Este entendimento da finali­dade catártica não é, aliás, incompatível com a outra interpretação também dada para o termo catharsis, designadamente a que explica que no seu sentido fisiológico e médico a catarse seria uma medicação ou um remédio contra o exagero e o excesso. Mas independentemente da interpretação dada para o conceito de catarse, o que interessa sublinhar é que a importância atribuída à finalidade catártica sugere que o esforço de compreensão da tragédia desenvolvido por Aristóteles se orienta fundamental­mente num sentido normativo, o qual é corroborado por inúmeras expressões do tipo «A fábula não deve...», tornando, de facto, a orientação aristotélica marcadamente prescri­tiva. A verosimilhança, a unidade de acção, a unidade de tempo e lugar, a categorização das perso­nagens, etc., se decorrem de um paradigma de racionalidade interessado sobretudo em explicações e leis, assentam fundamentalmente em critérios avaliativos que fazem com que o texto aristotélico deva ser encarado menos pelo paradigma teórico e mais pelo paradigma estético—ou até, e mais convictamente, pelo paradigma da filosofia da literatura, se fizermos fé no entendimento que um autor como Lucien Goldmann propõe para a filosofia: «Por filosofia designamos todo o conjunto explicitamente ou implicitamente coe­rente de julgamentos que constatam e de julgamentos de valor [valorisants] sobre aquilo que é e sobre aquilo que deve ser e eventualmente sobre a natureza e o valor das criações imaginárias» (L. Goldmann, 1970: 130).

A partir do que acaba de ser exposto, pode‑se concluir que qualquer tentativa de encontrar uma tradição para a teoria como teoria acaba por se revelar como projecção dos interesses do presente numa tradição que, de facto, outra coisa não é senão uma tradição construída; ou como legitimação de programas próprios através da apropriação de alguns dos dados da herança cultural. Qualquer tentativa de construir uma tradição para a teoria como teoria acaba invariavel­mente por revelar a tradição como continuidade ilusória, exibindo simultaneamente nesse processo a realidade tantas vezes escamoteada de que a teoria se configura como uma forma de prática ou de interpretação, porquanto envolvimento intelectual situado num espaço muito próprio de desejos e com efeitos locais bem determinados. A teoria literária não é um espaço epistemológico neutro.

Isto não quer dizer que a teoria literária não tenha uma história institucional autónoma, e muito menos que ela não decorra de um vastíssimo trabalho intelectual que remonta à Antiguidade. Mas na história que decorre desse trabalho, e em nome de um conhecimento tanto quanto possível claro do campo em que estamos a trabalhar, não se pode confundir pensamento literário e/ou história da estética com teoria da literatura. Também neste domínio Jorge de Sena intuiu brilhantemente o cerne da questão. Vale a pena fazer fluir o discurso da sua inteligência: «A libertação da literatura, como da crítica, dos liames de outras disciplinas levou à criacão da ‘teoria da literatura’. Mas esta não é, ao contrário do que às vezes se supõe, uma teoria da crítica, ou uma história das doutrinas e dos métodos críticos. Sempre houve ‘teoria’ da literatura, e épocas existiram que se distinguiram pela fúria das discussões teóricas, como sucedeu no Renascimento e no Maneirismo sobretudo italianos. Mas essas discussões não se interrogavam sobre o que a literatura era, mas sobre o que ela deveria ser. Ainda quando a discussão se centrava na legitimidade de certa orientação estética, não menos a legitimidade era discutida em termos de norma. É óbvio que assim teria de ser: onde uma legitimidade é atacada ou defen­dida tê‑lo‑á de ser no confronto com outra que é julgada a única ou a preferível. A teoria da literatura corresponde porém a uma fase diversa, em que não é posta em causa a legitimidade de coisa alguma. Tudo o que foi literatura é o objecto próprio da pesquisa do que literatura seja (Jorge de Sena, 1977: 157-8).

Harold Bloom, por exemplo, parece confundir deliberadamente estas várias coisas quando sobranceiramente nos diz que «qualquer estudante contemporâneo da literatura, e da interpretação literária, sabe que os Gregos inventaram a teoria e a crítica literárias» (H. Bloom, 1985: I,1). Qual seria a reacção de um cientista à afirmação de que os Gregos inventaram a psiquiatria só porque, na linha da medicina de Galeno e Hipócrates, estudaram a saúde mental na sua relação com os humores existentes no conteúdo líquido do corpo?

2. Um arquitexto virtual

Tal como afirmei atrás, é inegável que a teoria literária contemporânea decorre de um vastíssimo trabalho intelectual que remonta à Antiguidade. No entanto, acredito que a ‘história’ institucional da teoria literária deve ser identificada a partir de um momento muito próprio da narrativa cultural do Ocidente, designadamente no momento em que se gerou um diálogo acidentado entre a crítica literária e uma nova disposição intelectual que não só colocou a plataforma teórica no centro das atenções dos estudos literários, mas também orientou o valor atribuído a essa plataforma num sentido conducente ao próprio processo de individuação da teoria literária. Esse momento é sinalizado pelos trabalhos dos vários autores envolvidos no chamado äFormalismo Russo.

A bibliografia crítica acerca desta postura intelectual nos estudos literários, partindo invariavelmente do trabalho pioneiro de Victor Erlich (vd. Erlich, 1965), é de tal maneira abundante nos nossos dias que qualquer reflexão detalhada sobre o Formalismo Russo corre o risco de se tornar repetição insípida. No entanto, acredito, no quadro em que tenho vindo a desenvolver a minha argumentação, que vale a pena manter e aprofundar a convicção de que é no sistema de generalidade conceptual em que os formalistas russos inscreveram a compreensão da literatura que devemos identificar o arquitexto virtual da teoria literária. Um arquitexto que, erguendo‑se pela consciência da necessidade de uma actividade reguladora dos estudos literários, instituiu o programa dife­rencial de um novo campo disciplinar (o da teoria literária) como sendo claramente dife­renciado não só de outros campos do saber, mas também do repertório de interesses que constituía o campo de estudos conhecido na altura por Litteraturwissenschaft—o qual, possuindo embora uma série unificável de tendências, não apresentava um modelo unificado de pesquisa. Ao fazê‑lo, os formalistas russos forneceram a chave que faltava ao pensamento literário para ultrapassar a sua dependência intrínseca da filosofia e da estética, e fechar assim o círculo aberto pela brilhante experiência teórica dos românti­cos—os quais tiveram o supremo mérito de inaugurar o absoluto literário pela projec­cão filosófica da literatura enquanto produtora da sua própria teoria (cf. Lacoue‑Labarthe & J L Nancy, 1978), embora sem instituírem a teoria literária pela consciência da necessidade da sua própria individuação, como vieram a fazer os formalistas russos.

É claro que os traços distintivos só por si não chegam para delimitar um campo dis­ciplinar. Se assim fosse, dificilmente se poderiam conceber os esforços interdisciplinares da teoria literária. É por isso que se revela sobremaneira importante a especificação que os formalistas russos (e, diga‑se em abono da verdade, em larga medida também os estrutu­ralistas checos) fizeram dos princípios que orientam a actividade teórica dos estudos lite­rários. Seguindo a perspectiva de David Gorman acerca das circunscrições de uma disci­plina (D. Gorman, 1986: 33), deve‑se afirmar que o conteúdo desses princípios inclui, em primeiro lugar, as categorizações que identificam o objecto ou a finalidade da disciplina—no caso dos formalistas, a sua identificação da äliterariedade e de todo o aparelho con­ceptual que dela resulta e que para ela converge. Em segundo lugar, inclui os critérios que determinam o sucesso ou o fracasso do próprio trabalho no interior da disciplina—embora podendo ser só vagamente definidos, no caso dos formalistas estes critérios encon­traram mesmo assim um eco importante nos vários investigadores envolvidos, como está patente, por exemplo, na insistência jakobsoniana na «análise científica objectiva da arte da linguagem» e nos resultados por ela proporcionados, bem como nas implicações (de inclu­são e exclusão de vários tipos de estudo) que decorrem da analogia que Jakobson esta­beleceu entre estudos literários/crítica literária e linguística pura/linguística aplicada. É certo que a especificacão daqueles princípios revela a dependência dos formalistas do modelo linguístico—bem como da äfalácia científica que invariavelmente a acompanha—e, consequentemente, aponta para a caducidade potencial da sua própria plausibilidade. Porém, o que importa considerar é menos essa dependência e mais a dimensão transdisci­plinar por que esses princípios se instituem em cânones gerais de racionalidade. É por esses cânones que se anuncia a particularidade de um projecto disciplinar que, no processo de evolução intelectual da cultura do século XX, veio a concretizar‑se através daquilo que se convencionou chamar Teoria da Literatura. É por esses cânones que podemos compreen­der as mutações históricas dos limites disciplinares da teoria literária ou as configurações pos­síveis que decorrem dos numerosos e acidentados caminhos por ela percorridos no nosso tempo. É por esses cânones, ainda, que se justifica a coalescência da teoria literária face à diversidade de teorias particulares que resultam da simultânea diversidade e especificidade, quer da literatura quer da experiência crítica da literatura. É por esses cânones, finalmente, que se prova que a teoria da literatura não nasceu, de facto, contra a crítica, mas como uma necessidade da crítica.

3. A institucionalização da disciplina

O fenómeno de popularidade da teoria literária tem, pelo menos de há vinte anos para cá, um forte sotaque norte-americano. Contudo, nem sempre foi assim. Na Europa, e muito particularmente na França dos anos Sessenta, a teoria literária, enquanto “teoria do texto” (recorrendo à expressão de R. Barthes) brotou naturalmente do impacte que a línguística teve no estudo das práticas discursivas de uma sociedade. Uns chamaram-lhe äestruturalismo, outros mudança linguística ou “linguistic turn”. A descoberta estruturalista da materialidade linguística do texto, da autonomia propriamente literária das multivalências da linguagem ou da äpolissemia textual, abriu naturalmente o caminho à redescoberta do protagonismo do leitor e à dissolução da importância do autor como instância explicativa da intenção semântica do texto. O chamado äpós-estruturalismo foi ou é, no essencial, o prolongamento natural desta atmosfera, sobretudo se a encararmos nos termos da fruição ou da äjuissance barthesiana, bem como da äindecidibilidade derridiana. Em suma, estavam criadas as condições para que as configurações textuais agenciadoras da leitura, da interpretação e da recepção se constituissem em núcleo aglutinador de uma prática intelectual que a universidade gradualmente absorveu e institucionalizou sob a designação de teoria literária.

Embora por vias diferentes, do lado americano chegou-se aos mesmo resultados a que se tinha chegado na Europa, ou pelo menos em França. Quando nos anos 40/50 os chamados New Critics (äNew Criticism) insistem na denegação da äfalácia intencional e da äfalácia genética, eles estão, de facto, a orientar também a atitude crítica fundamentalmente para fora do autor e para dentro do texto ou para aquilo a que chamaram äclose reading. O que se procurava era, no essencial, um conjunto de princípios estruturais e transculturais que pudessem dar conta dos traços específicos de qualquer obra literária. Esta concentração nas interrelações formais internas de uma obra literária, enquanto obra literária, criou condições para o aparecimento de uma consciência teórica. Dito de outra maneira, a insistência numa estrutura teórica de princípios universais de leitura que podiam ser aplicados a vários textos conduziu inevitavelmente a uma teoria geral da leitura desses mesmos textos. Estamos, assim, perante um impulso de engendramento de uma teoria dos textos literários que pretende sobretudo dar conta da sua diferença propriamente literária ou da sua äliterariedade.

Importa ressalvar neste momento que do lado americano este começo da teoria literária não teve necessariamente as mesmas consequências que do lado francês ou europeu. Enquanto na Europa, graças à dinâmica estruturalista, a teoria começava a ser estudada por si mesma, nos EUA a dinâmica do New Criticism implicava a teoria na crítica literária, isto é, a teoria existia para estar ao serviço da crítica literária, ao serviço de uma melhor leitura e interpretação dos textos literários. É só no final dos anos Sessenta, e exactamente através da influência francesa do estruturalismo e do pós-estruturalismo, que os EUA revelam um movimento para estabelecer a teoria literária como disciplina independente (Veja-se sobretudo a obra de Murray Krieger intitulada The Institution of Theory, 1994).

O exemplo português de institucionalização da disciplina é extraordinariamente curioso. A reforma da 1957 criou a disciplina de Teoria da Literatura como displina do 1º ano dos cursos de Letras, dando-lhe, portanto, um perfil introdutório, com um espírito semelhante ao que, a partir de 1974, se irá chamar Introdução aos Estudos Literários. Independentemente do seu perfil introdutório ou culminante (como acontecerá na reforma de 1969, na qual a Teoria da Literatura passou para o último ano), este reconhecimento académico da disciplina, em plena década de Cinquenta, não deixa de ser surprendente. Por duas razões. Em primeiro lugar, porque o carácter problematizador da disciplina dificilmente se articulava com o autoritarismo ideológico e político do regime salazarista. Em segundo lugar, a surpresa é ainda maior quando se pensa que a disciplina de Teoria da Literatura, enquanto disciplina autónoma dos estudos literários, tinha na altura uma tradição muito débil, conforme se depreende dos contextos internacionais que apresentei antes. Não pretendo aqui fazer conjecturas acerca das contradições que podem estar subjacentes a esta situação. Neste ensaio interessa-me unicamente referir que, no caso português, a noção de teoria da literatura faz há muito tempo parte do léxico intelectual e da formação académica de várias gerações de críticos e estudiosos da literatura. Aliás, creio mesmo que é essa situação que está na origem do aparecimento de obras como Teoria da Literatura, de Vítor Manuel de Aguiar e Silva, que constitui uma exaus­tiva exposição científico‑didáctica dos múltiplos dizeres da teoria literária, bem como Os Universos da Crítica, de Eduardo Prado Coelho, que constitui um pormenorizado diálogo com os diversos olhares do pensamento literário contemporâneo.

4. O fim da teoria literária?

Neste momento parece haver um movimento mais ou menos generalizado contra a teoria literária, embora ele adquira uma relevância muito especial nos EUA, particularmente nos EUA, mas também na Grã-Bretanha. Não atribuindo aqui qualquer importância aos que, em qualquer parte do mundo, são contra a teoria por ignorância, preguiça ou indigência intelectual, aquele movimento pode ser estrategicamente divido em três grandes blocos.

Por um lado, temos aquela espécie de rivalidade mimética com a teoria literária por que certas proclamações antiteóricas (se) revelam (n)a sua própria disposição teórica. Alguns dos seus exemplos mais interessantes podem ser encontrados nos ataques contra a teoria desferidos conjuntamente por Steven Knapp e Walter Benn Michaels em nome da defesa da «intenção do autor», bem como no conturbado anúncio do «fim da teoria literária» por parte de Stein Haugom Olsen com o consequente (res)surgimento redentor da «estética literária».

Por outro lado, temos a versão híbrida, extremamente contraditória, que é representada pelas várias formas do äMaterialismo Cultural e do äNovo Historicismo, ambos de inspiração marxista ou para-marxista. No essencial, o que é proposto é uma série de recuperações de um entendimento historicista do discurso literário no quadro mais geral dos múltiplos discursos de uma cultura ou das múltiplas formações discursivas que nela operam. Michel Foucault parece ser o pai espiritual destes autores para quem a literatura faz sentido sobretudo pela “energia social” (vd. Greenblatt, 1988) que atravessa os textos, e através da qual podem ser descobertas as correspondências entre as convenções literárias inscritas no texto e as forças políticas hegemónicas da sociedade. É claro que neste quadro de regulação ideológica da literatura a teoria literária, enquanto implicitação da primazia artística dos textos literários, faz pouco sentido.

Finalmente, encontramos o estranho movimento dos “arrependidos” da teoria, isto é, daqueles que, como Murray Krieger, Harold Bloom e Stanley Fish, mais fizeram por a institucionalizar, mas que se mostram perplexos (Krieger) ou horrorizados (Bloom) ou morbidamente entusiasmados (Fish) com as suas manifestações actuais. É com estes que vale a pena discutir o problema.

A perplexidade de Murray Kriger concentra-se sobretudo na constatação daquilo que pode ser considerado um certo anti-humanismo militante por parte da teoria actual. Tal facto torna aquele autor nostálgico dos tempos do New Criticism em que a “imaginação liberal” da pesquisa teórica se mostrava “sensível à voz do outro” (1994: 23).

É em nome daquilo a que chama “grande literatura”, bem como do prazer da leitura que o nosso tempo parece estar a matar com a ajuda da teoria, que Harold Bloom reúne as manifestações actuais da teoria literária na noção de Escola do Ressentimento (School of Resentment), e na qual inclui Feministas, Afrocentristas, Marxistas, Novos Historicistas e Desconstrucionistas. Uma estranha mistura que faz sentido sobretudo na visão apocalíptica de Harold Bloom acerca daquilo a que chama os “abridores do cânone” ocidental, e da intransigente defesa que faz desse mesmo cânone, muito particularmente do seu núcleo constitutivo, William Shakespeare (veja-se H. Bloom, 1994, 1997). Para Harold Bloom, todos estas orientações dos estudos literários—“em fuga do estético”, conforme ele afirma—estão a matar os estudos literários exactamente no seio da universidade, isto é, no seio da instituição que mais deveria fazer para os salvaguardar: “Não acredito que os estudos literários tenham futuro enquanto tal, mas isto não significa que a crítica literária vá morrer. Enquanto ramo da literatura, a crítica sobreviverá, mas provavelmente não nas nossas instituições de ensino. O estudo da literatura ocidental também continuará, mas na escala muito mais modesta dos nossos actuais departamentos de Clássicas. (...) Não vale a pena lamentar esta evolução, pois hoje em dia só uma mão cheia de estudantes entra na Universidade de Yale com uma autêntica paixão pela leitura. Não se pode ensinar alguém a amar a grande poesia quando esse alguém chega até nós sem esse amor. Como é que se pode ensinar a solidão? A verdadeira leitura é uma actividade solitária e não ensina ninguém a ser um cidadão melhor. (...) Embora sendo uma questão intrincada, não está para além de qualquer conjectura a exacta razão pela qual os estudantes de literatura se transformaram em analistas políticos amadores, sociólogos ignorantes, antropólogos incompetentes, filósofos medíocres e historiadores culturais sobredeterminados. É que todos eles se ressentem da literatura, ou se envergonham dela, ou simplesmente não estão muito dispostos a lê-la. (...) A líbido é um mito, e as “energias sociais” também o são. Shakespeare, escandalosamente condescendente, foi uma pessoa que viveu e teve a ideia de escrever Hamlet e Rei Lear. Esse escândalo é inaceitável para aquilo que hoje em dia passa por ser teoria literária. (Bloom, 1997: 519-521).

Quanto a Stanley Fish, este invoca o que julgo ser a saturação de (e com) o próprio camplo disciplinar da teoria literária. A metáfora que Fish utiliza para caracterizar o trabalho teórico é a do Yo-Yo (um carreto no qual está enrolado um cordel, e que as crianças lançam e tornam a enrolar). Vale a pena uma fazer uma outra longa citação: “A teoria só chegará ao fim quando tiver esticado o seu cordel, percorrido o seu caminho, quando as urgências e os receios de que é expressão se desvanecerem ou se exprimirem através de qualquer outra coisa. Isto já está a acontecer nos estudos literários (...). O esbatimento da teoria é sinalizado não pelo silêncio mas por mais e mais conversa, mais revistas, mais congressos e mais entradas na competição pelo direito a resumir a história da teoria. Um tempo virá em que essa é uma competição que ninguém deseja vencer; um tempo em que a divulgação de mais uma outra amostragem do método crítico é recebido não como uma promessa mas como uma ameaça; um tempo em que o anúncio de mais um outro Colóquio acerca da função da teoria nos nossos dias provocará apenas um suspiro de lamentação. Esse tempo pode muito bem ter já chegado: o dia da teoria está a chegar ao fim; a hora é tardia; e a única coisa que resta ao téorico é dizer isto mesmo (...)” (S. Fish, 1989: 340-341).

Todos estes argumentos fazem sentido; todos eles decorrem de diagnósticos acertados da cena intelectual contemporânea. Não vale a pena escamotear a sua legitimidade, e muito menos contrariá-los através de atitudes protectoras (ou pseudo-protectoras) da teoria que, no fundo, nada mais seriam que exercícios de um paternalismo anacrónico. O que importa é aceitar a discussão nos termos em que é colocada por aqueles três autores, procurando respostas para as suas posições problemáticas, bem como alternativas ou saídas (por mais provisórias que elas possam ser) para a própria crise interna da teoria que aquelas posições evidenciam.

Comecemos pela nostálgica posição de Murray Krieger. Será possível um regresso ao velho humanismo que pugnava pelo carácter contra-ideológico da literatura e, por extensão, da crítica literária, com a teoria a funcionar como a sua rede protectora? Julgo que não. Em primeiro lugar, porque vivemos hoje numa cultura de resistência ao privilégio do literário. Em segundo lugar, porque é hoje dificilmente defensável a ideia fundamentalista de uma partilha de valores humanos universais. A primeira razão abre-nos (ou deve abrir-nos) para o estudo de formas culturais que, ao se cruzarem com a literatura no imaginário cultural, obrigam a uma questionação do próprio estatuto institucional do literário. A segunda razão coloca-nos perante necessidades novas, designadamente a de problematizar a relação crítica com um texto enquanto relação fundada num conjunto de escolhas morais por parte do crítico num quadro pluralista mais vasto de envolvimentos éticos. A reflexão acerca de tudo isto cabe (ainda e sempre) à teoria literária. Mas cabe num contexto que não pode ser subsumido numa visão tradicional que encare as diferentes formas culturais (incluindo a literatura) como separadas ou mesmo independentes umas das outras, nem como estando sujeitas a uma hierarquia de valor cognitivo—que era o que acontecia com os New Critics.

Passemos agora à posição de Harold Bloom. Será que o teórico da literatura deve renegar a teoria para voltar à pureza imaculada da experiência estética, como Bloom pretende? Julgo que não, embora aqui eu tenha sentimentos contraditórios quanto a esta negativa. Cada vez mais me convenço que a identificação do belo decorre sobretudo de uma intuição profunda partilhada pelo homem, situando-se, por isso, mais ao nível do arquetípico e universal do que do contingente ou acidental. No entanto, não posso ignorar as condições da diversidade cognitiva por que se opera aquela partilha, e muito particularmente a sobredeterminação cultural e histórica das hierarquias do valor estético que invariavelmente a acompanha. Quero dizer com isto que apesar da sua eventual universalidade imediata ou intuitiva, a experiência estética é uma experiência qualitativa no sentido em que está dependente de graus qualitativos de conhecimento teórico da própria experiência estética. Não se cai necessariamente no relativismo vulgar se insistirmos na ideia de que nenhuma leitura crítica é inocente, pois nela estão sempre implícitos os preconceitos (ou as crenças e os valores) do próprio crítico. A teoria que estuda esses graus e os contextos que os definem, bem como esses preconceitos e os discursos por que eles se manifestam não pode, por isso, ser vista como inimiga do estético, mas antes como o seu duplo necessário. Hoje, tal como ontem.

Consideremos, finalmente, a posição de Stanley Fish. Será que o teórico se deve limitar a escrever a crónica da morte anunciada da teoria, como pretende Fish, cruzando os braços perante a inevitabilidade dessa morte? Julgo que não. A razão para tal parece-me simples. O regime intelectual da produção teórica não é de tipo autoritário mas, antes, pluralista, na medida em que corresponde ou surge em consonância com a heterogeneidade das narrativas que compõem a cultura. No que à literatura diz respeito, essa heterogeneidade resulta dos próprios movimentos que cada época executa em direcção a épocas anteriores, transformando os dados do passado, tornando-os presente, inaugurando o futuro. Também as coisas literárias mudam de acordo com as circunstâncias, desafiando posições intelectuais, levando os teóricos a jogar o jogo da arbitrariedade das circunstâncias históricas e, ao mesmo tempo, a ser por elas jogados. Isto tem como consequência que a teoria da literatura está “condenada” a subsistir não só para narrar a história da sua busca de diferenciação intelectual, mas também para mostrar a diferença da sua narrativa acerca de um objecto que constantemente se transforma e se redistribui pelos vários planos da cultura. Neste sentido, pode-se afirmar que a teoria é uma actividade sem destino, embora com uma orientação bem marcada pelas energias heterogéneas da literatura.

Sintetizando o comentário que acabo de fazer das várias posições anti-teóricas, julgo que o teórico da literatura deve aceitar as evidências da crise interna da teoria não como uma fatalidade mortal, mas como um desafio à capacidade meta-teórica da própria teoria. Por outro lado, é também essa crise interna que nos deve impulsionar com mais vigor para uma pesquisa no interior da literatura de modo a podermos encontrar novas circunstâncias que apontem para novos problemas. É exactamente isso que tentarei exemplificar a seguir. Passemos, então, a um novo estádio da exposição.

5. Os novos horizontes da teoria literária

Na medida em que acredito que a evolução do pensamento literário nunca se fez independentemente da evolução da literatura, qualquer inquirição teórica implica um entendimento específico do que a literatura foi, é e sobretudo poderá vir a ser. O meu entendimento é o seguinte.

1º) Independentemente das questões de valor estético, julgo que é à presença da ficcionalidade (ou à representação/interpretação ficcional da realidade) que se deve a identificação milenar da literatura. Neste sentido, sem ficção nunca houve, não há nem haverá literatura. A partilha cultural deste denominador comum, quase intuitiva na sua universalidade, prova-o amplamente.

2º) Apesar daquela universalidade, aquilo que é ou não é autêntica literatura esteve desde sempre dependente de códigos epocais dominantes. Embora mutáveis, esses códigos marcaram e marcam fortemente a evolução literária ou o diálogo intra-literário entre diferentes gerações de escritores e leitores. Isto quer dizer que os dispositivos expressivos da literatura se modificam e se transformam em função das modificações e das transformações da sociedade humana.

3º) Aquilo que sinaliza mais intensamente tanto a ideia genérica que hoje temos do nosso presente como as nossas congeminações acerca do futuro podem ser epitomizadas no extraordinário horizonte de possibilidades abertas à humanidade pela informática e, no âmbito daquilo que aqui interessa, pela comunicação multimédia e interactiva.

Estas três componentes do meu entendimento da literatura, do processo literário e da tendência genérica da cultura contemporânea, conduzem-me à seguinte reflexão. A comunicação multimédia e interactiva, que tão bem caracteriza o nosso final de milénio, tem vindo a introduzir alterações profundas no sistema de recolha, organização e experiência da informação. De tal maneira que são múltiplos os sinais que nos anunciam uma nova era onde o livro, tal como o conhecemos, deixará de existir. São múltiplos os sinais que nos dizem que o “texto” electrónico irá implacavelmente «redefinir a escrita, a leitura e também a profissão literária» (Richard H. Lanham, 1989: 265). São múltiplos os sinais que nos asseguram que a literatura só terá lugar num espaço electrónico interactivo simultaneamente centrado em e descentrado por inúmeros desdobramentos de leitura.

As fundações culturais da literatura do futuro já foram avistadas na serenidade teórica da äpolissemia, e a sua arquitectura epistemológica continua a ser traçada na turbulência da äindeterminação textual. O edifício artístico anuncia-se agora na alegre festa interactiva da palavra que o leitor pode substituir, das personagens cujo papel o leitor pode trocar e de uma história sempre inacabada ou, melhor, acabada segundo a vontade, os interesses, as motivações de cada leitor. O chamado ähipertexto já se desenha no horizonte informático e com ele (através dele) as inúmeras combinações (re)criativas que o leitor é chamado a executar. Conforme já foi bem estudado por George P. Landwow (Cf. 1992, em especial pp. 2-34), é mesmo no sistema intertextual protagonizado pelo hipertexto que muitos dos mais importantes desideratos estruturalistas e pós-estruturalistas encontram finalmente a sua expressão mais fascinante.

Se acreditarmos nesta redefinição electrónica da comunicação, a noção de texto original perde-se na mutação da literatura que se anuncia. Os exemplos já disponíveis de ficção interactiva (veja-se R. Ziegfeld, 1989) provam que o “texto” não é mais um lugar autónomo que propicia uma fruição (leitura) condicionada por unidades fixas, mas sim uma totalidade onde leitor e autor, através de possibilidades abertas por «software» próprio, encetam diálogos criativos completamente novos. Neste novo mundo da palavra, o “texto” existe como entidade localizada dinamicamente para e a partir do leitor num jogo de hipóteses em permanente transformação.

A teoria literária não pode, de modo nenhum, estar fora desta fascinante mutação de paradigma que nos é dado viver. Ao contrário, é ela que melhor pode estudar e compreender essa mutação, tanto nas suas diferenças específicas como nas suas relações inevitáveis com as pulsões mais intemporais que levaram e levam o homem a construir e a querer fruir a palavra ficcional, os mundos possíveis que a ficção exibe ou a matéria negra agenciadora da heteronomia dos textos imaginativos (veja-se M. F. Martins, 1995). Se acreditarmos, como eu acredito, na redefinição da comunicação literária que será introduzida pela literatura interactiva, então a teoria literária não precisa de assumir um papel protector ou paternalista da literatura por oposição à äteoria crítica tão do desagrado de autores como Harold Bloom. O apelo do “outro” que interage no texto literário do futuro será, ainda e sempre, um apelo à teoria dessa mesma interacção, bem como à teoria das novas relações críticas que ela implica.

Em suma, é aqui, segundo creio, que mais um novo caminho se abre à teoria literária, confirmando-a também, aliás, como processo interrogativo do pensamento crítico. É por aqui que se descortina um eventual novo fim para a teoria que será qualquer dia anunciado num qualquer colóquio, conferência ou publicação, isto é, um novo começo de um novo estudo de um novo problema que a literatura (com este ou com outro nome) nos irá de novo colocar. Por isso, e para concluir, a teoria literária não chegou ao fim, mas vai a caminho, continuamente a caminho de um fim que não é nem nunca será verdadeiramente um fim. Até porque o fim, de facto, é sempre um início.

CRÍTICA LITERÁRIA; HERMENÊUTICA; LITERATURA; POÉTICA; RETÓRICA; TEXTUALIDADE

Bib.: Aristóteles: Ética a Nicómaco, Poética, Retórica; A.J.Atkins: Literary Criticism in Antiquity. A Sketch of its Development (1934, 1952); Boris Eixenbaum: “The Theory of the Formal Method” (1926), in Matejka & Pomorska, (1978); David Gorman: «Self-Consuming Disciplines? A Proposal Considered», in Explorations in Knowledge, III, 2: 33-42, (1986); Eduardo Prado Coelho: Os Universos da Crítica (1982); Edward Stankiewicz: «Poetics and Verbal Art» (1977); «Prague School Morphophonemics» (1978); G.M.A. Grube: Aristotle on Poetry and Style (1958); George P. Landow: Hypertext. The Convergence of Contemporary Critical Theory and Technology (1992); Harold Bloom (org.): The Art of the Critic: Literary Theory and Criticism from the Greeks to the Present, Vol. I (1985); O Cânone Literário Ocidental (1996); Isaiah Smithson: «The Moral View of Aristotle’s Poetics», in The Journal of the History of Ideas, Vol. LXIV, nº1 (1983); John Jones: On Aristotle and Greek Tragedy (1980); Jorge de Sena: Dialécticas Teóricas da Literatura (1977); Leonard Orr: Research in Critical Theory Since 1965: A Classified Bibliography (1989); Lucien Goldmann: Marxisme et Sciences Humaines (1970); M. H. Abrams: The Mirror and the Lamp: Romantic Theory and the Critical Tra­dition (1953); Manuel Frias Martins: Matéria Negra. Uma Teoria da Literatura e da Crítica Literária (1995); Murray Krieger: The Institution of Theory (1994); Paul de Man: A Resistância à Teoria(1986, 1989); Philip Lacoue-Labarth & Jean Luc Nancy (orgs.): L’absolue littéraire. Théorie de la littérature du romantisme allemand (1978); Raman Selden: A Reader’s Guide to Contemporary Literary Theory (1989); René Wellek & Austin Warren: Teoria da Literatura (1947, 1971); Richard H. Lanham: «The Electronic Word: Literary Study and the Digital Revolution», in New Literary History, Vol. XX, 2 (1989); Robert C. Davies: «The Case for a Post‑Structuralist Mimesis: John Barth and Imitation», in American Journal of Semiotics, Vol. III, nº 3 (1985); Roland Barthes: O Grau Zero da Escrita (1953, 1977); O Rumor da Língua (1984, 1987); Samuel H. Butcher: Aristotle’s Theory of Poetry and Fine Art (1902, 1979); Stanley Fish: Doing What Comes Naturally. Change, Rhetoric, and the Practice of Theory in Literary and Legal Studies (1989); Stein Haugom Olsen: The End of Literary Theory (1985); Stephen Greenblatt: Renaissance Self-Fashioning. From More to Shakespeare (1980); Stephen Knapp & Walter Benn Michaels: «Against Theory» (1985), in W.J.T.Mitchell (org.); «Against Theory 2: Hermeneutics and Deconstruction», in Critical Inquiry, Vol. XIV, nº1, (1987); Victor Erlich: Russian Formalism. History, Doctrine, 2ª ed. rev.(1965); Richard Ziegfeld: «Interactive Fiction: A New Literary Genre?», in New Literary History, Vol. XX, nº2 (1989); Vítor Manuel de Aguiar e Silva: Teoria da Literatura (1982, 4ª edição).

Manuel Frias Martins