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ARQUILEITOR

sábado, 30 de janeiro de 2010

Conceito proposto por Michael Riffaterre para toda a recepção do texto literário. Uma história da crítica literária de uma obra em particular, por exemplo, ilustra a amplitude do termo. Considera-se o arquileitor uma forma de palimpsesto onde se vão registando todos os comentários e análises do leitor, incluindo os próprios exercícios de auto-interpretação e correcção do autor. Podemos falar deste conceito amplo como um sistema de intertextualidade crítica. Trata-se de um conceito de leitor ideal, de difícil concretização porque não considera as idiossincrasias que estão sempre presentes no acto de leitura de um mesmo texto. O próprio Riffaterre abandona esta proposta de um super-leitor na obra A Semiótica da Poesia (1978), agora privilegiando uma teoria global para a poesia e sua interpretação, que é controlada pela semiótica da leitura.

ESTÉTICA DA RECEPÇÃO

Bib.: M. Riffaterre: Essais de stylistique structurale (1971)

Carlos Ceia

Analogia

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Relação de semelhança entre duas coisas. De ampla aplicação na literatura, as analogias estabelecem-se entre textos, personagens, estilos, ideias, conceitos, autores, etc. Por esta capacidade de instaurar um princípio de identidade entre coisas que, genericamente, são desiguais, a analogia aproxima-se de figuras como a alegoria, a comparação, a metáfora e o símile. Diz-se que certos textos constituem analogias ou são análogos de outros, por exemplo, alguns contos de Chaucer de The Canterbury Tales (c.1387-1400) são versões análogas de outras histórias precedentes que se encontram no Decameron (1351-53) de Boccaccio ou no Confessio amantis (c.1386-1390) de John Gower. Um texto ou objecto é análogo de outro quando se estabelecem entre ambos uma determinada correspondência, mas não em todas as relações possíveis de determinar. Tomada isoladamente, a analogia não possui carácter probatório, daí que seja necessário completá-la com outras formas de conhecimento.

Da forte tradição filosófica do termo, interessará mais à literatura o procedimento analógico praticado por Platão, na República (VI, 508) e no Timeu (31b-32a). Na República, Platão estabelece uma analogia entre o Sol e o Bem: “É o Sol, que eu considero filho do Bem, que o Bem gerou à sua semelhança, o qual Bem é, no mundo inteligível, em relação à inteligência e ao inteligível, o mesmo que o Sol no mundo visível em relação à vista e ao visível.” (508b-508c). Esta analogia entre o Sol e o Bem estende-se à relação entre um pai e um filho, pois o Bem criou o Sol à sua semelhança. Aristóteles também se referiu à analogia como um dos modos de formação da metáfora, aquela que transporta “para uma coisa o nome de outra” (Poética, 1457b). A partir daqui, Aristóteles dá-nos vários exemplos de relações analógicas que assistem a esta forma de criação metafórica: “A ‘urna’ está para ‘Dioniso’, como ‘escudo’ para Ares’, e assim se dirá a urna ‘escudo de Dioniso’, e o escudo, ‘urna de Ares’. Também se dá a mesma relação, por um lado, entre a velhice e a vida, e por outro lado, entre a tarde e o dia; por isso a tarde será denominada ‘velhice do dia’, ou, como Empédocles, dir-se-á a velhice ‘tarde da vida’ ou ‘ocaso da vida’.“ (Ibid., id.). Aristóteles comentou ainda que a capacidade de bem estabelecer relações analógicas é prova da genialidade de um poeta.

Uma analogia procede sempre por identificação das semelhanças entre dois objectos genericamente diferentes; por isto se distingue da comparação, que pode estabelecer quer uma relação de semelhança quer uma relação de dissemelhança entre dois objectos. Estabelecemos uma analogia entre dois textos, por exemplo, para dizer o que os aproxima um do outro; se quisermos dizer o que os separa, mesmo na sua eventual similitude, estabelecemos uma comparação. O que é comum aos dois processos é a identificação de correspondências entre dois objectos. E, como observou John Stuart Mill, em A System of Logic (III, xx, 1-3), só quando o grau de similitude é muito grande e a diferença muito pequena, o procedimento analógico pode ser considerado uma indução válida.

Recorda Chaïm Perelman que “nunca ninguém contestou o papel heurístico das analogias: quando se trata de explorar um domínio desconhecido, de sugerir a ideia daquilo que não é cognoscível, um modelo extraído de um domínio conhecido fornece um instrumento indispensável para guiar a investigação e a imaginação.” Para além da função heurística da analogia, frequente no discurso científico, teológico ou oratório, podemos acrescentar uma função irónica, visível em textos argumentativos e/ou críticos.

Veja-se o seguinte caso de Eça de Queirós, em resposta aos críticos do seu romance Os Maias, em especial Fialho de Almeida a quem Eça se dirige desta forma que: “Os Franceses falam muito do espalhafato que faz Satanás quando o mergulham dans un bénitier. Eu nunca assisti a esta escandalosa afronta feita ao venerável pai da mentira; nem você também, suponho eu. No entanto, imagina você bem como Belzebu berrará e escoucinhará ao sentir o contacto untuoso do detestado líquido. Pois, querido amigo, assim eu escoucinhei e berrei, enquanto você, com mão dura e forte, me estava mergulhado na água benta da sua crónica sobre Os Maias. Você concordará que esta analogia é rigorosa. Eu, com efeito represento para você Satanás, o pai de toda a falsidade.” (“A crítica a Os Maias”, in Notas Contemporâneas, Obras Completas, vol.15, Círculo de Leitores, Lisboa, 1981, p.213). Enquanto na função heurística da analogia o que se pretende é alcançar uma certa forma de conhecimento, a função irónica pretende anular a validade do conhecimento ou de certos juízos de valor apriorísticos; nesta forma de analogia, não há geralmente restrições, podendo inclusive conter elementos de auto-destruição.

O raciocínio analógico é tão útil ao autor como ao leitor: ele dá a ambos a possibilidade de estabelecer semelhanças entre coisas. Podemos encontrar este tipo de raciocínio desde os primeiros registos literários portugueses. Diz D. Duarte na abertura do Livro de Ensinança de bem Cavalgar Toda a Sela (antes de 1433) que o coração do homem “é semelhante aa moo do moinho, a qual botada per força das auguas nunca cessa de seu andar, e tal farinha dá como a semente que moe.” No processo criativo, um autor terá também em consideração as personagens criadas e as personagens a criar, as personagens extraídas da vida real e as personagens nadas; no processo crítico, um leitor pode avaliar, segundo a sua própria perspectiva, não só a relação analógica conseguida pelo autor para esses casos como também outras relações que entretanto venha descobrir com base na investigação dos termos comparados. O mesmo é válido para todos os outros aspectos da criação literária. É frequente a crítica estabelecer analogias entre escritores. Alfred Harbage, em The Shakespeare-Dickens Analogy (1975), desenvolve este aspecto. Também o faz, por exemplo, Túlio Ramires Ferro entre Eça de Queirós e Voltaire: “Eça, autor de contos filosóficos, aparece-nos como uma espécie de ‘filósofo’ empirista, cético e amenamente irónico; discípulo de Voltaire; partidário do progresso e optimista quanto à capacidade de o homem realizar plenamente todas as suas virtualidades na história e pela história. Estas afinidades tornam-se mais evidentes, se nos lembrarmos que tanto Eça como Voltaire utilizaram o conto com os mesmos propósitos...”…(“O conceito de ‘civilização’ nos Contos de Eça de Queirós”, Estrada Larga, vol. 1, s.d.). Um outro aspecto também sujeito a estes esquemas analógicos é o tema, que, aliás, é o ponto de partida para esse ensaio. Por exemplo, se quisermos estudar o texto A Cidade e as Serras, de Eça de Queirós, e concentramos a nossa atenção na oposição cidade/campo, podemos encontrar analogias, sem sair da obra eciana, em O Conde d’Abranhos, onde o narrador Z. Zagalo se insurge contra a cidade, em A Capital, a cidade é igualmente repudiada pelo protagonista Artur, e, tal como Jacinto de A Cidade e as Serras, sentir-se-á degenerar, e em Os Maias, a oposição também pode ser identificada no citadino Carlos da Maia e no provinciano João da Ega. Também é frequente estabelecer analogias entre personagens. Recuperando estes exemplos de Eça, o Jacinto do conto “Civilização” assemelha-se ao Jacinto de A Cidade e as Serras, já que ambos são habitantes de cidades-capitais que abandonam para se refugiarem no campo e ambos partilham o mesmo pessimismo pela vida. As (muitas) diferenças entre os dois textos ecianos pertencem à literatura comparada, que tanto pode trabalhar as diferenças como as semelhanças; uma leitura analógica apenas se pré-ocupa do estabelecimento das semelhanças, portanto, por ser um método limitado, não possui verdadeiro valor científico. Tal como na lógica formal, também na literatura a analogia não tem (ou não deve ter) valor conclusivo ou demonstrativo, pois decorre sempre de uma probabilidade ou de registo de probabilidades.

alegoria; comparação; IMAGEM; metáforA; Símile

Bib.: Alfred Harbage: The Shakespeare-Dickens Analogy (1975); Antonio Carreno: “De conciertos y 'desconciertos': La analogía en la lirica del barroco: De Gongora a Sor Juana”, in Ysla Campbell (coord.): Relaciones literarias entre España y America en los siglos XVI y XVII (1992); David Fishelov: Metaphors of Genre: The Role of Analogies in Genre Theory (1993); Ernst Fuchs: “Die Analogie”, in Wolfgang Harnisch (ed.): Die neutestamentliche Gleichnisforschung im Horizont von Hermeneutik und Literaturwissenschaft (1982); Grevel Lindop: “Generating the Universe through Analogy: The Criticism of Northrop Frye”, PN Review, 3 (Manchester, 1977, 3); Herman M. Daleski: Dickens and the Art of Analogy (1970); Iacobus M. Ramirez: De analogia (4 vols., 1970); James Nohnberg: The Analogy of The Faerie Queene (1976); Joseph Wiesenfarth: Henry James and the Dramatic Analogy: A Study of the Major Novels of the Middle Period (1963); Kitty Datta: “Love and Asceticism in Donne's Poetry: The Divine Analogy”, Critical Quarterly, 19,2 (Manchester, 1977); L. M. Findlay: “Analogy and Allusion in Browning's 'Childe Roland' “, English Studies in Canada, 6 (1980); Michael G. Ballin; “D.H. Lawrence and William Blake: A Critical Study in Influence and Analogy”, Tese de Doutoramento, Universidade de Toronto (1974); Nilli Diengott: “Analogy as a Critical Term: A Survey and Some Comments”, Style, 19, 2 (1985); Raimo Antilla: Analogy (1977); Reeve Parker:” 'To William Wordsworth': Coleridge and the Art of Analogy”, in M. H. Abrams (ed.): English Romantic Poets: Modern Essays in Criticism (1975); Susan L. Hawk: “Shelley's Shadows: Studies in Analogy”, Tese de Doutoramento, Universidade de Yale (1971); Ulrich Weisstein: “Influences and Parallels: The Place and Function of Analogy Studies in Comparative Literature”, in Allemann Beda et al.: Teilnahme und Spiegelung: Festschrift für Horst Rudiger (1975); Victor Buescu: Analogias Temáticas nos Românticos Brasileiros e Romenos (1947); Walter S. H. Lim: “Adam, Eve, and Biblical Analogy in Paradise Lost”, SEL: Studies in English Literature (1500-1900), 30,1 (Houston, TX, 1990).

Carlos Ceia

LÉXICO

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

1. Conjunto das unidades significativas de uma dada língua, num determinado momento da sua história. Em sentido lato, é sinónimo de vocabulário. Alguns linguistas relacionam o par léxico/vocabulário com as oposições preconizadas por Saussure entre langue/parole. As unidades virtuais do léxico, actualizar-se-iam no discurso.

As unidades do léxico são os lexemas, por oposição às unidades da gramática, os gramemas ou morfemas gramaticais. Também podem ser designadas por monemas lexicais (O termo monema remonta a Frei e foi divulgado por Martinet, Escola Funcionalista) ou morfemas lexicais (Bloomfield, Escola Americana). Os monemas lexicais têm um conteúdo semântico que aponta para relações extra-linguísticas, por oposição aos morfemas gramaticais, cujo conteúdo semântico é intra-linguístico, ou seja, aponta para relações do foro gramatical. Por exemplo, mar é um lexema, e o chamado “género”, neste caso masculino, é um morfema gramatical. O “mesmo” lexema mar em francês, selecciona o “género feminino”, por isso dizemos que o conteúdo semântico dos morfemas gramaticais é intra-linguístico. Fala-se de estrutura lexical ou sistema lexical, para se referir o modo como as unidades do léxico de uma dada língua se organizam.

O léxico é o objecto de estudo da lexicologia. Diz-se comummente que as unidades lexicais constituem sistemas abertos (ou inventários ilimitados), ao passo que as unidades gramaticais constituem sistemas fechados. Nesta acepção, léxico opõe-se a gramática, dado que o léxico é um sistema aberto e a gramática um sistema fechado. Não obstante, as fronteiras entre estes dois domínios linguísticos nem sempre são facilmente identificáveis, começando as dificuldades na própria inventariação das unidades de cada sistema. Podemos identificar transferências de um campo a outro. Falamos de lexicalização a propósito de estruturas como fazer perguntas, fazer troça, dar apoio, dar mimo (que coexistem na língua com perguntar, troçar, apoiar, mimar ), onde o primeiro elemento é o chamado verbo suporte (opõe-se-lhe a noção de verbo pleno), semanticamente vazio ou quase, e cuja função é “carregar” os monemas gramaticais compatíveis exclusivamente com a classe verbal, também designados modalidades, que são o tempo e o modo . A carga semântica, por seu turno, está presente no substantivo. Falamos de gramaticalização ou deslexicalização, entre outros fenómenos, no que respeita ao funcionamento de verbos plenos como verbos suporte . Considere-se : 1- Dei um bolo ao João, 2 - Dei uma bofetada ao João. Em 1, dar funciona como verbo pleno, desempenhando a função sintáctica de predicado, um bolo, preenchendo a função sintáctica de complemento directo. Em 2, dar é um verbo suporte e só podemos identificar o predicado com a estrutura dar uma bofetada (esbofetear), sendo impróprio fazermos a identificação de uma bofetada como preenchendo a função de complemento directo. Atente-se ainda nos múltiplos factos linguísticos que se situam no limiar de ambas as disciplinas, dos quais são mero exemplo os problemas relacionados com unidades como bola-bolo, cesto-cesta, papo-papa, rola-rolo, sino- sina, etc.

Sublinhe-se também que o léxico não é um sistema homogéneo, e será mais legítimo falar de vários subsistemas do léxico, dado que no léxico coexistem palavras do quotidiano, da escrita, da oralidade, neologismos, arcaísmos, estrangeirismos, vocabulários técnicos, vocabulários regionais, sociais, etc.

Os léxicos de línguas diferentes não são meras listas de palavras que possamos relacionar biunivocamente de uma língua a outra. Uma mesma realidade extra-linguística (o referente) pode ser “traduzida” de modo muito diferente por duas línguas geneticamente aparentadas. Considerando línguas da família indo-europeia, de origem latina como o português ou o francês, vemos que há diferenças importantes ao nível da estrutura lexical. Dizemos em português fazer uma pergunta. Em francês já não podemos usar o verfo faire, tradução literal de fazer, pois na língua francesa, a estrutura lexical eleita é poser une question. Em português, temos os verbos almoçar, lanchar, jantar e cear, para referir várias refeições que se tomam ao longo do dia. Não temos, porém, um verbo para referir a primeira refeição do dia e somos “obrigados” a usar um grupo de palavras como tomar o pequeno almoço. No espanhol, contrariamente, existe um verbo específico para referir a acção de tomar o pequeno almoço : desayunar. Os exemplos poder-se-iam multiplicar ad infinitum, mas o nosso propósito é simplesmente sublinhar o carácter convencional dos lexemas e estruturas lexicais, e ainda o seu diferente valor de língua para língua dado que as unidades estabelecem relações opositivas e contrastivas ( ou se preferirmos, relações paradigmáticas e sintagmáticas) diferentes de sistema para sistema e isso determina, ou condiciona o seu valor.

Na gramática gerativa (ou generativa), o léxico tem um lugar de destaque, pois abrange a componente que contém todas as propriedades estruturais dos itens lexicais, isto é, a especificação morfofonológica, os traços sintácticos, categoriais e contextuais.

Diz-se unidade lexicalizada a entidade constituída por várias palavras gráficas que sofreu um processo progressivo de fixação: bater as botas (morrer), dar às de vila diogo (fugir), Há mar e mar, há ir e voltar.



2. Léxico (do grego lexis - palavra) pode ainda ser usado na acepção de dicionário de uma língua, ou seja, conjunto de palavras ordenado, “tesouro de palavras, disposto como está num dicionário ” (Saussure, 1986 : 305). De acordo com Mário Vilela, “o léxico é a parte da língua que primeiramente configura a realidade linguística e arquiva o saber linguístico duma comunidade” (1994 : 6). Tudo o que faz parte das vidas dos seres humanos tem um nome, nome esse que é parte integrante do léxico. O léxico abrange o saber linguístico partilhado pelos falantes e existe na sua totalidade no grupo formado pelos falantes da comunidade linguística em causa.



LEXICOLOGIA



Bib. : Assunção Júnior, António, 1986, Dinâmica Léxica Portuguesa, Rio de Janeiro, Presença; Coseriu, E., 1979, “A perspectiva funcional do léxico”, in AAVV, Problemas da Lexicologia e Lexicografia, Porto, Livraria Civilização-Editora; Cruse, D., 1987, Lexical Semantics, Cambridge, CUP; Galisson, R. e Coste, D., 1983, Dicionário de Didáctica das Línguas, Coimbra, Livraria Almedina; Lepschy, G., 1984, “Léxico”, in Enciclopédia Einaudi, vol. 2, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lüdtke, Helmut, 1974, Historia del Léxico Románico, Madrid, Gredos ; Martinet, A. (dir.), s/d, Conceitos Fundamentais da Linguística, Lisboa, Editorial Presença; Nascimento, F. et all. 1984, Português Fundamental, 3 vol., Lisboa, INIC-CLUL, Saussure, F. , 1986, Curso de Linguística Geral, Lisboa, Dom Quixote, ; Vilela, Mário, 1994, Estudos de Lexicologia do Português, Coimbra, Almedina; idem, 1995, Léxico e Gramática, Coimbra, Almedina;

Maria João Marçalo

MORFEMA

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Elemento da frase, por exemplo, um afixo ou uma desinência flexional, que representa uma relação entre um ser e um conceito. Na expressão "comprei livros", a forma final "-ei" (comprei) é um morfema porque indica a relação de 1ª pessoa e a partícula "-s" (livros) também é um morfema porque indica o plural. Neste caso, a raiz verbal "compr" é um semantema porque representa o acto e o conceito de comprar (adquirir mediante um determinado preço), assim como "livro" representa o livro e o conceito que temos dele.

CLASSEMA; LEXEMA; SEMEMA; SEMANTEMA



Carlos Ceia

ANAGRAMA

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

A linguagem é um jogo. A arte é lúdica. Como arte, a linguagem joga os signos, joga com os signos, embaralha os significantes. É precisamente na linguagem que o homo ludens pratica sua melhor capacidade de jogar: a partir do código da língua, a linguagem mistura os signos, desloca as palavras, revela combinações verbais, surpreende os termos, considerando que em uma só palavra - “ave, palavra!”, pode-se cantar com Guimarães Rosa (1908-1967), alquimista da linguagem - estão todas as palavras. O dicionário, realização do código da língua, será o paradigma de onde os sintagmas fazem a reverberação, a reversibilidade, o transtorno do eixo vertical, resultando uma salada, uma macedônia, um coquetel de letras. Cada verbo tem um verso e um reverso, como o espelho e a lua, que preservam, ciosamente, o segredo de seu outro lado. No vasto elenco das figuras de linguagem, o anagrama surge como o espaço em que melhor se opera o jogo da linguagem; anagramaticamente, ouve-se o desafio: decifra de quantas palavras cada palavra está grávida! Em Writing, a poeta estadunidense Emily Dickinson (1830-1886) extasia-se e nos faz extasiar-nos:

I know nothing in the word

that has as much power as a word.

Sometimes I write one, and I

look at it, until it begin to shine.



À força de olhar uma palavra, poderosa palavra, ela se vira de costas, volta-se do avesso, reverte-se, como o verso do poema. Um verso contém o Universo. Será o anagrama o nome do brilho que cada palavra, olhada insistentemente, emite. O contemplador da palavra força-a a dizer seus múltiplos nomes, seus nomes secretos, seus segredos significantes. Por seu turno, a poeta carioca Cecília Meirelles (1901-1964) exclama, num jogo intrincado de paradoxos e oxímoros, em “Palavras aéreas”, poema inserido no épico Romanceiro da Inconfidência (1953):

Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Ai, palavras, ai, palavras,
sois de vento, ides no vento,
no vento que não retorna,
e, em tão rápida existência,
tudo se forma e se transforma!

Sois de vento, ides no vento,

e quedais, com sorte nova!

Ai, palavras, ai palavras,

que estranha potência, a vossa!

Todo o sentido da vida

principia à vossa porta;

o mel do amor cristaliza

seu perfume em vossa rosa;

sois o sonho e sois a audácia,

calúnia, fúria, derrota...

A liberdade das almas,

ai! com letras se elabora...

e dos venenos humanos

sois a mais fina retorta:

frágil, frágil como o vidro

e mais que o aço poderosa!

Reis, impérios, povos, tempos,

pelo vosso impulso rodam...

Detrás de grossas paredes,

de leve, quem vos desfolha?

Pareceis de tênue seda,

sem peso de ação, nem de hora...

- e estais no bico das penas,

- e estais na tinta que as molha,

- e estais nas mãos dos juízes,

- e sois o ferro que se arrocha,

- e sois o barco para o exílio,

- e sois Moçambique e Angola!

Ai, palavras, ai palavras,

leis pela estrada afora,

erguendo asas muito incertas,

entre verdade e galhofa,

desejos do tempo inquieto,

promessas que o mundo sopra...

Ai, palavras, ai, palavras,

mirai-vos: que sois agora?

-Acusações, sentinelas,

bacamarte, algemas, escolta;

- o olho ardente da perfídia,

a velar na noite morta;

- a umidade dos presídios,

- a solidão pavorosa;

- o duro ferro de perguntas,

com sangue em cada resposta;

- e a sentença que caminha,

- e a esperança que não volta,

- e o coração que vacila,

- e o castigo que galopa...

Ai, palavras, ai, palavras,

que estranha potência, a vossa!

Perdão podíeis ter sido!

- sois madeira que se corta,

- sois vinte degraus de escada,

- sois um pedaço de corda...

- Sois povo pelas janelas,

cortejo, bandeira, tropa...

Ai, palavras, ai palavras,

que estranha potência, a vossa!

Éreis um sopro na aragem...

- sois um homem que se enforca!

Já a poeta gaúcha Lia Luft tem na palavra seu mistério de silêncio: “Nem acredites se pensas que te falo: palavras são meu jeito mais secreto de calar”.

Qual será o anagrama do anagrama? A um menino, que surfa as ondas todas de Saquarema-RJ, perguntei, por mero acaso, o que era anagrama, ao que me respondeu, incontinenti: “Há na grama”. Portanto, o anagrama guarda em si mesmo a sua desconstrução, reconstruindo novas significâncias, pois que toda palavra é um seio úbere: matrix/motrix.

Para empreender uma pesquisa mais virtual sobre o anagrama (antes da era da informática, pesquisava-se em dicionários de anagramas; agora, programas de computador, como ”Anagram Genius”, "anagram servers", "anagram solvers" ou "anagrammers", oferecem uma potencialidade infinda muito mais rápida do que o papel e a caneta...), recorri ao Internet Anagram Server, inscrevendo o termo “anagrama”, de que encontrei as quinze variáveis infra, onde chama a atenção a recorrência do substantivo “man” (“homem”, “ser humano”), do artigo indefinido “a” (“um”, “uma”) e de “am” (“sou”), primeira pessoa do presente do indicativo do verbo to be (“ser”), o que leva a uma significação abscôndita: “eu sou um ser humano”, identificando, pois, a palavra ao ser de linguagem, homo loquens:.

Raga Man
Agar Man
A Mag Ran
A Gram An
A Nag Ram
A Nag Mar
A Nag Arm
A Rang Ma
A Rang Am
A Rag Man
A Gar Man
Rag Ma An
Rag Am An
Gar Ma An
Gar Am An

Buscando, no mesmo sítio, anagramas para o meu nome completo – Latuf Isaias Mucci -, obtive esta resposta: “4086 found. Displaying first 1000”, uma lista quase infindável, que se inaugura com este florido sintagma: Acacia If Stimulus. Já para o meu primeiro prenome – Latuf, adjetivo árabe, que se traduz, em vernáculo, por “gentil”, “meigo”, “doce”, “generoso” (quanto investimento batismal do meu pai libanês!) - obtive apenas um par de correspondentes: fault e at flu; o primeiro anagrama muito me agradou, porque muitas vezes assino “Latufalho”, num gesto búdico, que considera o ser humano como falho por natureza; mas a segunda versão me fez pensar em resfriado, gripe, ou, quem sabe, na abreviatura do time de futebol carioca “Fluminense”. Definitivamente, o anagrama demonstra que há muitíssimo mais coisas dentro de um nome do que possa imaginar nossa vaidade semiológica. O anagrama reforça, ainda, o postulado da cultura árabe, segundo o qual no nome da pessoa está inscrito o seu destino, um maktub. Em minhas elucubrações anagramáticas, descobri, fascinado, que as datas de nascimento e morte de Jorge Luis Borges são exatamente correspondentes, bastando trocar de lugar os números, revirar de cabeça para baixo o 6, que vira 9: 1899-1986. Note-se que o título do sítio de buscas – Internet Anagram Server, anagramaticamente, Rearrangement Star Vein” ou “Vegetarians Remnant Err” – surge dançando na tela iluminada e configura uma frase: I, rearrangement servant (“eu, servidor dos rearranjos”), que estrutura uma mise en abyme dos signos, ao mesmo tempo que demonstra a disponibilidade infinita da Internet - nova Biblioteca de Alexandria e incomensurável Babel, feita de letras, números, programas, ícones...

Um anagrama (do grego ανα/ana-, "para trás", e γραφειν/graphein, "escrever") é um jogo de palavras, um artifício lingüístico, um estratagema literário, que consiste em rearranjar as letras de uma ou mais palavras e obter uma ou mais novas palavras diferentes, sem adicionar ou subtrair letras. Sem empreender uma incursão pelos complexos aspectos matemáticos e informáticos dos anagramas (do ponto de vista da matemática, da informática e da teoria da linguagem, uma palavra, uma locução ou uma frase é um elo ou, equivalentemente, uma disposição com repetição em torno do alfabeto das letras que a compõem. A relação “ser anagrama de” é uma equivalência. Para os matemáticos e os pesquisadores da informática, Roma é anagrama de Roma), convém frisar que, foco da atenção de psicanalistas, poetas, antigos e contemporâneos, Ferdinand de Saussure (1857-1913), paralelamente ao trabalho teórico, postumamente publicado na obra Cours de Linguistique Générale (1916), realizou, entre 1906 e 1909, um outro estudo que é comumente chamado de Cahiers d’anagrammes, onde perscrutou um corpus de poemas clássicos para tentar provar a existência de um mecanismo de composição poética – “un secret de fabrication”-, baseado na análise fônica das palavras, mecanismo este formado pelo anagrama e pelo hipograma: o hipograma, fundado, não mais na letra, mas na sílaba, subjacente, palavra-tema, é o nome de um deus ou de um herói diluído foneticamente no poema. O anagrama, por sua vez, é o processo que propicia a diluição do hipograma nos versos, a disseminação do que estava, até então, dissimulado. O anagrama seria o princípio de base da técnica poética indo-européia ; com efeito, encontram-se anagramas nos poemas romanos, que proferem o elogio dos mecenas e dos heróis ; o lingüista genebrino criou também o paragrama, espécie de anagrama livre : o texto, de acordo com Saussure, é uma matriz de significantes, que permite significações infinitas, accessíveis por chaves ; o anagrama é uma figura de estilo que joga com o sentido oculto. Contrariamente ao anagrama tradicional, baseado na letra, são os fonemas o elemento fundamental nos anagramas saussurianos Os anagramas fônicos têm, na poesia homérica, na poesia e na prosa latinas, um papel mais importante do que a rima e a aliteração, por exemplo. No poema The Raven (1845), de Edgar Allan Poe (1809-1849), o refrão « Nevermore » tem no advérbio de tempo « never » um anagrama de « raven », título do poema. O Corvo (Raven) repete, ao longo do poema, no lamento monótono do refrão, a expressão Never more (Nunca mais). Ora, raven (RVN), demonstra Jakobson, é a inversão fonológica perfeita de Never (NVR). Nessa medida, a palavra Never, desolado refrão que o pássaro imutavelmente repete, constitui numa imagem invertida da própria palavra Raven (Corvo). O corvo não podia dizer outra coisa a não ser virar seu próprio nome pelo avesso Em Les mots sous les mots, les anagrammes de Ferdinand de Saussure (1971), Jean Starobinski estuda os anagramas saussurianos; a preposição francesa “sous” (“sob”) remete a palimpsesto, vale dizer, sob cada palavra há palavras, camadas de palavras; outra preposição seria “dans” (“dentro”), indicando que, no bojo de cada palavra, moram outras palavras. J. Starobinski cita estes versos de Le cimetière marin (1871), de Paul Valéry (1871-1945) : “la mer toujours recommence!/ Ô recompense après une pensée”, “onde o segundo verso se constrói sobre a imitação fônica de “recommencée”. William Camden (1551-1623), historiador e antiquário inglês, define, canonicamente, em sua “miscelânia” Remains Concerning Britain, o anagrama : "Anagrammatisme is a dissolution of a name truly written into his letters, as his elements, and a new connection of it by artificial transposition, without addition, subtraction or change of any letter, into different words, making some perfect sense applyable (i.e., applicable) to the person named”.
Perde-se na noite dos tempos, a gênese do anagrama, cuja criação, segundo consta, se atribui ao poeta grego do século III a. C. Licofrón de Cálcis, autor de anagramas encomiastas a reis; havia, inclusive, nas cortes, o cargo de anagramatista oficial. De acordo com Celspirius, teólogo luterano, em seu tratado De anagrammatismo (1713): “Deus é o pai do anagramatismo”. Na Cabala judia, que joga com os mistérios e segredos entretecidos nas letras, encontram-se anagramas no Sefer Ha Zohar (Sefer ha-Zohar Sefer ha-ZoharThe Book of Splendour: O livro dos esplendoresWhat is The Sefer ha-Zohar? The Zohar [radiance] is the greatest classic of Jewish mysticism.; Zohar – irradiação - é o maior clássico do misticismo judaico; trata-se de um It is a mystical commentary on the Torah, written in Aramaic, and is purported to be the teachings of the 2nd century Palestinian Rabbi Shimon ben Yohai. comentário místico sobre a Torah, escrito em aramaico, que se supõe ser o ensinamento, no século II, do rabino palestino Shimon ben Yohai, que viveu no século I ou II da era cristã. Legend relates that during a time of Roman persecution, Rabbi Shimon hid in a cave for 13 years, studying Torah with his son; During this time he is said to have been inspired by G@d to write the Zohar.Refere a lenda que, durante um tempo de perseguição romana, o rabino Shimon escondeu-se, por treze anos, em uma caverna, estudando a Torah com seu filho. Durante esse tempo, ele diz ter sido inspirado por Deus para escrever o Zohar. However, there is no real mention of this book in any Jewish literature until the 13th century. No entanto, não existe, até o século XIII, referência autêntica a esse livro em qualquer literatura judaica. In the 13th century, a Spanish Kabbalist by the name of Moses De Leon [1240-1305] claimed to discover the text of the Zohar, and the text was subsequently published and distributed throughout the Jewish world. No século XIII, um espanhol Kabbalist, conhecido pelo nome de Moisés De Leon [1240-1305] afirmou ter descoberto o texto do Zohar, que foi posteriormente publicado e distribuído em todo o mundo judeu). However de Leon denied authorship his entire life. Na França, Pierre Ronsard (1524-1585) criou, em Amours (1552), um dos mais célebres anagramas, inserido num epigrama, em homenagem à Virgem Maria: « Marie, qui voudroit vostre beau nom tourner / Il trouveroit aimer: aimez-moi donc, Marie », em que o substantivo próprio « Marie » (« Maria ») eclode o verbo « aimer » (« amar »). Ainda na rubrica do panegírico religioso, reza-se, na liturgia católica : « Ave Maria, gratia plena, Dominus tecum" (« Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco » ), que se « anagrama » em "Virgo serena, pia, munda et immaculata" (« Virgem serena, piedosa, pura e imaculada »). A lenda dá conta, segundo São Jerônimo (347-c.420), o tradutor da Bíblia do grego antigo e do hebraico para o latim – a Vulgata -, de que, quando Pilatos perguntou a Jesus Quid est veritas ? (« O que é a verdade ? »), obteve uma resposta que é um anagrama : « Est vir qui adest » (« É o homem que está diante de ti »). Também foi usado o anagrama para se evitarem problemas com a Inquisição, como no caso da correspondência entre Galileu Galilei (1554-1642) e Johannes Kepler (1571-1630), em que o físico, matemático, astrônomo e filósofo florentino inseria anagramas para comunicar ao colega astrônomo seus descobrimentos astronômicos - como o de que Vênus tem fases como a Lua -, contrários à ortodoxia da Igreja Católica.

O anagrama presta-se, ainda, a ocultar o nome do autor de uma obra literária ; no rol dos pseudônimos anagramáticos, são famosos : Gabriel Padecopeo, nome com que Lope de Vega Carpio (1562-1635) assinou seus Soliloquios amorosos (1629) ; em Gargantua et Pantagruel (1532-1552), François Rabelais (1494-1553) utilizou o pseudônimo Alcofribas Nasier ; já Marguerite Yourcenar (1903-1987), primeira mulher a ser membro da Académie Française de Lettres, lançou mão de um anagrama para assinar toda a sua obra, visto que seu nome completo é, precisamente, Marguerite Cleenewerck de Crayencour, onde o último sobrenome transforma-se em Yourcenar. Outros anagramas célebres : François Marie Arouet, mais conhecido como Voltaire (1694-1778) ; Arovet L.I, isto é, Arouet le Jeune (U=V, J=I) ; Boris Vian (1920-1959) : Bison ravi ou Brisavion ; Jean-Paul Sartre (1905-1980) : Jean Sol Partre ; Jim Morrison (1943-1971) : Mr Mojo Risin ; Salvador Dalí (1904-1989) : Avida dollars (apelido pejorativo, dado por André Breton, 1896-1966) ; Raymond Queneau (1903-1976) : Don Evané Marquy ou Rauque Anonyme ; Pablo Picasso ( 1881-1993 ) : Pascal Obispo.

Já no campo conturbado da política, registra-se o caso do nome do rei da Itália, Vittorio Emmanuelle Secondo, para quem os partidários criaram o anagrama « Roma ti vuole e Dio consente « (« Roma te quer e Deus o consente »), ao passo que seus inimigos forjaram um outro anagrama : « Ne Dio ne Roma te vuole costì » (« Nem Deus nem Roma te querem aqui »).

Na prolífera e profícua família das figuras de Retórica, o anagrama é irmão, quase gêmeo, do quiasmo (segundo Ana Paula Rocha, “do grego Khiasmus, «cruzamento», é uma figura de estilo que se traduz pela inversão da ordem das palavras - o que poderá conduzir à repetição das mesmas - e de duas frases que se opõem, permitindo não só diversificar o ritmo frásico, bem como levar à obtenção de certos efeitos semânticos, a partir da posição que as palavras ocupam no enunciado: «Pleasure’s a sin, and sometimes sin’s a pleasure.» - Byron)., e do palíndromo (de acordo com essa mesma pesquisadora, “classifica-se deste modo uma palavra, frase, linha em verso, ou número, que - se ignorados os espaços entre as palavras e/ou a pontuação -, permitam a sua leitura, mantendo sentido unívoco, uma vez lidas da esquerda para a direita, ou da direita para a esquerda. «Ovo», «Atai a gaiola saloia gaiata», «525», são exemplos de palíndromos. Alguns escritores poderão recorrer aos versos palíndrómicos como um mero exercício verbal que permita ao leitor o entretenimento mental, não são no entanto considerados como uma técnica que vise a enriquecer a literatura. Jogando com «One TS Eliot» obtemos «étoile steno», e outros exemplos seriam: «Go hang a salami, I’m a lasagna hog.» ou «I made tart surf net, for often frustrated am I»).

Eis uma lista, mais ou menos aleatória, mas totalmente curiosa, de anagramas: em português : Iracema/América (Iracema, de 1865, é o título de famoso romance romântico de José de Alencar, 1829-1887) ; Diana/Nádia ; Raul/Luar (palíndromo, também) ; ator/rota ; Roma/amor ; Milão/limão. Em espanhol : Roldán/Ladrón ; Monja/jamón ; lámina /animal. Em francês : baiser/braise ; cirque/crique ; nacre/carne ; Marion/romain, manoir, minora ; aimer/Marie/maire/ramie ; aube/beau ; chien/niche/Chine ; ordinateur/ rudération/ on durerait/ dorerait nu/dur notaire/ ration dure ; imaginer /migraine ; parisien/aspirine ; soigneur/guérison ; les misérables/ on les embrasse ; révolution française/un véto corse la finira ; Pierre de Ronsard/Rose de Pindare ; Napoléon Empereur des Français/un pape serf a sacré le noir démon ; Albert Einstein/rien est établi. Em inglês : Em inglês : God/dog ; Alan Smithee/ The Alias men ; semolina/ is no meal ; orchestra / carthorse; Eleven plus two / Twelve plus one; A decimal point / I'm a dot in place; The Germans soldiers/ Hitler's men are dogs ; Astronomers/no more stars; Funeral / real fun; George Bush/He bugs Gore; Madonna Louise Ciccone / Occasional nude income; William Shakespeare / I am a weakish speller; Roger Meddows-Taylor / Great words or melody; Margaret Thatcher / That great charmer; Alec Guinness /Genuine Class; Elvis Aaron Presley /Seen alive? Sorry, pal!; listen/ silent. Em italiano : attore /teatro; bibliotecario / beato coi libri.

Dado que toda palavra é uma senha, o cinema, no quadro do suspense e do enigma, joga com a potência misteriosa de toda palavra, que, com sua oblicuidade, remete a signos outros. Em seguida, alguns poucos exemplos do amplo espectro de anagramas cinematográficos : em Matrix (1999), dos irmãos Wachowski, o herói Neo sabe que é o « eleito » (One, em inglês). Em O segredo da pirâmide, "eh tar", guru da seita "rame tep", é o anagrama de sua verdadeira identidade : Rathe. Em O bebê de Rosemary (1968), título de um romance publicado em 1967, de autoria de Ira Levin e adaptado ao cinema por Roman Polanski e William Castle, a heroína descobre que o nome de Steven Marcato, encontrado em um livro de bruxaria, é o anagrama do nome de seu vizinho Roman Castevet. Em O código de Da Vinci, filme, de 2006, baseado no livro homônimo (2003) e dirigido por Ron Howard, a maior parte dos segredos e enigmas resolve-se através de anagramas : no solo da grande galeria do Louvre, aparece a mensagem: "O, Draconian Devil!. Oh, lame Saint", que significa "Leonardo Da Vinci, The Mona Lisa (A Mona Lisa); no quadro Mona Lisa encontra-se a frase : "So Dark The Con of Man" (Madonna of the Rocks). Cabe mencionar que no livro também aparecem anagramas, como o nome do editor, Jonas Faukman, que é anagrama de Jason Kaufman.

O anagrama coloca, ainda, a problemática do sagrado na língua, algo próximo do esoterismo, que o usa muito, bem como as práticas mágicas e os vaticínios. ; nos poemas do monge beneditino e teólogo alemão, autor, inclusive do cântico « Veni, Creator Spiritus » (utilizado na 8a. Sinfonia de Gustav Mahler) Rabanus Maurus Magnentius (c. 780-856) « De laudibus sanctae crucis « (« Em louvor da santa cruz ») por exemplo, a palavra incorpora louvor e verdade sagrada. Concebida como combinatória, a escritura dir-nos-á algo sobre Deus, sobre o universo, sobre nós mesmos. A já citada Cabala judia liga-se, na Renascença, à Cabala cristã, e confere uma grande importância às transposições, às migrações e aos deslocamentos de letras : o nome de Deus é uma condensação do movimento e da mutação das letras, bem como haverá uma analogia entre os átomos que compõem o universo e as letras do alfabeto.

Este verbete abriu-se tratando da potência e do brilho das palavras, que se convertem em outras, que se metamorfoseiam, que se deslocam, no jogo montado e remontado pelo anagrama. Mister é também apontar o sêmen e o sangue que cada palavra contém. Verdadeiro pharmakon, a palavra é, ao mesmo tempo, salvação e perdição. Do caráter extremamente venenoso da palavra, dá conta o extraordinário filme-documentário francês La langue ne ment pas ( Idiomas não Mentem, na versão brasileira), de 2003, de Stan Neumann, cujo enredo é o seguinte: durante o Terceiro Reich, como ficou conhecido o período entre a ascensão de Adolf Hitler até sua derrota no final da Segunda Guerra Mundial, a língua alemã passou por uma transformação. O dia-a-dia dessa mudança foi percebido e registrado em um diário por Victor Klemperer, então professor de Filosofia Românica na Universidade de Dresden; judeu, o professor-escritor sobreviveu ao holocausto graças a seus estudos. Narrado de forma como se ele próprio lesse seu diário, o filme intercala fotografias pessoais e imagens históricas a fim de contar como o governo de Hitler usou o idioma como um objeto de manipulação pública. Na época, todos os alemães - dos camponeses aos industriais, passando pelos oficiais do exército e até aos judeus reclusos nos campos de concentração – começaram a usar palavras ou expressões criadas e modificadas pelo governo. Tratava-se de sutis interferências, que foram inseridas ao longo dos anos com um único e claro propósito: difundir a ideologia nazista e disseminar o anti-semitismo na Alemanha. Se a linguagem é um jogo, se a arte é um jogo, se cada palavra é um jogo, esse jogo, lingüístico, artístico, literário pode ser vital ou letal. O uso decidirá o caráter e a finalidade da palavra, divina e diabólica, ao mesmo tempo. Quantos mistérios se incrustam na palavra, que o anagrama (re)vela!

HIPOGRAMA; QUIASMO; PALÍNDROMO

BIB.: CAMDEN Wiliam. Remains concerning Britain (1657). MEIRELES, Cecília. Romanceiro da Inconfidência (1953). STAROBINSKI, J. Les mots sous les mots (1971).

http://wordsmith.org/anagram/anagram.cgi?anagram=anagram&t=1000

http://www.servantsofthelight.org/QBL/Books/Zohar_1.html

Latuf Isaias Mucci

ENTIMEMA

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Forma de silogismo ou argumentação em que uma das premissas ou um dos argumentos fica subentendido. Na Retórica, Aristóteles descreve esta disciplina como constituindo uma contrapartida ou um ramo da dialéctica, à qual se liga porque trata de argumentos que não pressupõem o conhecimento de qualquer ciência em particular, antes podem ser utilizados e seguidos por qualquer indivíduo. A função da retórica não é “persuadir mas discernir os meios de persuasão mais pertinentes a cada caso” (Retórica, IN-CM, Lisboa, 1998, p.47). Os meios de persuasão são de duas espécies: os extra-técnicos, como o testemunho, a tortura e as provas documentais, portanto, meios vulgares que estão à nossa disposição em qualquer momento; os técnicos, ou seja os meios que necessitam de ser inventados pelo orador. Há três espécies de meios técnicos: aqueles que se baseiam no carácter do orador (para induzir o público a formar uma opinião favorável); aqueles que consistem em provocar um sentimento emocional nos auditores; e aqueles que fornecem a prova pela mera força do argumento. O terceiro meio de persuasão é privilegiado e possui duas subespécies: o exemplo (o equivalente retórico da indução) e o entimema (o equivalente retórico do silogismo). É este último que Aristóteles considera o método retórico por excelência, o "corpo da persuasão". Devido à sua concisão, o entimema facilita a expressão do pensamento e pode incluir uma demonstração ou uma refutação. Por exemplo, os seguintes versos de Alberto Caeiro ilustram a capacidade demonstrativa do entimema: “O defeito dos homens não é serem doentes: / É chamarem saúde à sua doença” (Poemas Completos de Alberto Caeiro, “XIX”, 1914, ed. crítica, Presença, Lisboa, 1994). Este tipo de construção, vulgar na obra de Fernando Pessoa e seus heterónimos, consagra o tipo de argumento que de obtém pelos contrários, que muitos retóricos depois de Aristóteles consideram ser a única característica do entimema. Para Aristóteles, “há duas espécies de entimemas: os demonstrativos de algo que é ou não é, e os refutativos; a diferença é igual à que existe na dialéctica entre refutação e silogismo. O entimema demonstrativo é aquele em que a conclusão se obtém a partir de premissas com as quais se está de acordo; o refutativo conduz a conclusões naquilo em que se está em desacordo.” (ibid., p.155).

Quintiliano e os retóricos latinos avaliam o entimema sobretudo em afirmações sustentadas ou em argumentações construídas por oposições lógicas. Outra explicação para o entimema apresentaram os modernos como Boécio, que o entende como um processo de raciocício do qual se subentende uma premissa ou a própria conclusão.



ARGUMENTAÇÃO



Carlos Ceia

LINGUÍSTICA COMPUTACIONAL

sábado, 23 de janeiro de 2010

Termo português para Computational Linguistics - área que é vista, segundo THOMPSON (1983), como um domínio científico convergente entre a linguística, a psicologia, a filosofia e a informática.

A linguística, até aos anos 50 do século XX, era etiquetada como uma “ciência social” com relações privilegiadas, por um lado, com a geografia e a história – sendo certo que, em Portugal, a convergência entre a linguística e as outras ciências foi, fundamentalmente, nestas duas áreas, originando a dialectologia e a linguística histórica – e, por outro lado, com a literatura, a sociologia e a psicologia. A partir dos anos 80, a linguística passou a enquadrar-se, de forma decisiva, no âmbito das ciências da cognição promovendo um trabalho de fronteira com a psicologia cognitiva, a biologia e a neurologia e também com a filosofia da linguagem, a lógica, a matemática e a inteligência artificial.

Com o advento das ciências da computação, a primazia dada à inteligência artificial e a consequente entrosão entre estas duas áreas do conhecimento humano e a linguística, esta última acabou por se desenvolver tanto num plano prático – através do armazenamento e processamento de grandes bases de dados linguísticos que possibilitam um trabalho mais analítico e apurado em linguística descritiva –, como num plano teórico – através da necessária elaboração de modelos teóricos sofisticados que permitam, da forma mais eficaz e real possível, dar conta dos processos cognitivos e linguísticos (aprender, conhecer e memorizar) que ocorrem na mente humana.

No domínio das aplicações, a linguística computacional ocupa-se da tecnologia linguística necessária à variada tipologia da aplicações:

· por um lado, no âmbito do Processamento da Linguagem Natural (PLN), a construção de interpretadores, analisadores ou geradores gramaticais necessários, por exemplo, à elaboração de programas de tradução automática ou à construção de algoritmos para o reconhecimento e síntese da fala humana;

· por outro lado, a elaboração de bases de dados lexicais (léxico geral e especializado), as bases de conhecimento lexical (lexical knowledge base) e as bases de dados lexicais (lexical database). Um bom exemplo deste tipo de aplicações são os corpora linguísticos que se desenvolveram quantitativa e qualitativamente graças às novas possibilidades de armazenamento e processamento dos dados oferecidas pelas ciências da computação.

GRAMÁTICA; LÍNGUA; LINGUÍSTICA; LINGUÍSTICA APLICADA; LINGUÍSTICA COMPUTACIONAL; LINGUÍSTICA TEXTUAL

BIB. Donald E. Walker, Antonio Zampolli, Nicoletta Calzolari (1995) Automating the Lexicon, Oxford: Oxford University Press. Henry Thompson (1983) “ Natural Language Processing: A critical Analysis of the structure of the field, with some implications for Parsing” in Automatic Natural Language Parsing, Chichester: Ellis Horwood. Jürgen Handke (1995) The Structure of the Lexicon, Berlin-N.Y: Mouton de Gruyter. Kirsten Malmkjaer (1991) The Linguistics Encyclopedia, London: Routledge.

http://www.iltec.pt/instituto/index.html

http://webs.uvigo.es/sli/paxinas/links.html

http://www-rohan.sdsu.edu/~gawron/compling/fsa/intro.html

http://linguistics.wwu.edu/links.html

http://www.tu-bs.de:8080/~intemann/coli.htm

Ana Mineiro Rodrigues

LITERATURA DE CORDEL

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

A literatura de cordel - poesia popular impressa em folhetos e vendida em feiras ou praças -, tal como é cultivada no Brasil até hoje (vésperas do Terceiro Milénio), teve origem em Portugal, onde por volta do séc. XVII se popularizaram as folhas volantes (ou folhas soltas) que eram vendidas por cegos nas feiras, ruas, praças ou em romarias, presas a um cordel ou barbante, apra facilitar suas exposição aos interessados. Nessas folhas volantes, de impressão rudimentar, registavam-se factos históricos, poesia, cenas de teatro (como o de Gil Vicente), anedotas ou novelas tradicionais, como O Imperatriz Porcina, Princesa Magalona ou Carlos Magno, textos que eram memorizados e cantados pelos cegos que os vendiam. Essas folhas volantes lusitanas, por sua vez, tiveram origem no grande caudal da Literatura Oral, tal como se arraigou na Península Ibérica, onde se formou o velho Romanceiro peninsular. Desta fonte primeva, sairam inicialmente os pliegos volantes que circularam na Espanha desde fins do séc. XVI e, destes, as folhas volantes portuguesas. Ambas as formas tiveram, como antecessora, a littérature de colportage, pequenos libretos surgidos na França no início do séc. XVI, com popularização da imprensa. Eram folhetos impressos em papel de baixa qualidade, em cor cinza ou azul (daí o nome genérico de “Biblioteca Azul”). Seus textos eram velhos romances, cantigas, vidas edificantes, factos históricos ... recolhidos da tradição ora e bastante simplificados em sua redacção.

Difundidos por toda a Europa, essa forma popular de literatura, chamada “de cordel”, foi transladada para o continente americano pela acção de seus descobridores espanhóis e portugueses, à medida em que se instalavam nas terras por eles conquistadas.

“Nas naus colonizadoras, com os lavradores, os artíficies, a gente do povo, veio naturalmente a tradição do Romanceiro, que se fixaria no Nordeste do Brasil, como literatura de cordel.” (Câmara Cascudo, 1973).

Nos países hispano-americano, essa literatura de cordel se difundiu com outros nomes: corridos (México, Venezuela, Nicarágua, Cuba ...) e hojas ou pliegos sueltos (Argentina, Chile, Paraguai, Uruguai, Peru ...). Textos esses em que predominava a forma poética.

“Enquanto não se difudiu a tipografia, foi essa a forma qua poesia popular encontou para se divulgar. Se na Idade Média, os jograis populares ou palacianos, cantando nas festas e animando o povo, constituiam a comunicação dessa poesia, com a transformação do tempo, tais formas também foram-se transformando.” (Manuel Diégues Júnior)

Foi no Nordeste do Barsil (da Bahia ao Pará) que essa literatura de cordel se arraigou mais profundamente e continua como forma viva de comunicação, tornando-se uma das características diferenciadores dos costumes dessa imensa região em relação às demais regiões brasileiras. Pela interpreterção do grande pesquisador que foi Câmara Cascudo, sabemos que, “No Nordeste, por condições sociais e culturais peculiares, foi possível o surgimento da literatura de cordel, da maneira como se tornou hoje em dia característica da própria fisionomia cultural da região. Factores de formação social contribuíram para isso: a organização da sociedade patriarcal, o surgimento da manifestações messiãnicas, o aparecimento de bandos de cangaceiros ou bandidos, as secas periódidas provocando desequilíbrios económico e sociais, as lutas de família deram oportunidade, entre outros factores, para que se verificasse o surgimento de grupos de cantadores, como instrumentos do pensamento colectivo e das manifestações de memória popular. (...) Se eram raras as obras impressas, vindas de Portugal ou dos centros mais adiantados do próprio Brasil, havia à mão os folhetos contando as velhas novelas populares, ás vezes, histórias de santo também. Não foi difícil à literatura de cordel introduzir-se neste ambiente. Tornou-se o meio de comunicação, o elemento difundidor dos factos ocorridos, servindo como que de jornal ao pôr a família ao corrente do que se passava: façanhas de cangaceiro, casos de rapto de moças, crimes, estragos da seca, efeitos das cheias, tanta coisa mais.

Afinal de contas, no Brasil, o mesmo quadro traçado por Bernardim Ribeiro ou Garrett, para Portugal.” (Manuel Diégues Júnior).

Devido à diversidade de assuntos ou temas cantados pela literatura de cordel, em todos os países ela tem sido classificada segundo seus “ciclos temáticos”. Tais classificações diferem bastante entre si, segundo os critérios usados pelos folcloristas. Em geral essas classificações abrangem duas grandes áreas-matrizes: a da Tradição (passado) e a das Circunstâncias (presente). Na Europa, existem importantes classificações, mas nenhuma definitiva. No Brasil, destacam-se as de Ariano Suassuna, Cavalcante Proença, Câmara Cascudo, Leonardo Mota, Manuel Diégues Jr., Orígenes Lessa e Roberto Câmara Benjamin. cada qual com sua contribuição, sem esgotar o problema. Uma das classificações mais simples e abrangentes é a de Manuel Diégues Jr., que cataloga o imenso acervo popular ou foclórico em três ciclos temáticos:

I. Temas tradicionais: a.) romances e novelas; b.) contos maravilhosos; c.) estórias de animais; d.) anti-heróis/peripécias/diabruras; e.) tradição religiosa. Entre os exemplos mais famosos desse ciclo, estão: Proezas de Carlos Magno, Histórias dos Doze Pares de França, Cavaleiro Oliveiros, Cavaleiro Roldão, Roberto Diabo, Helena de Tróia, Histórias da Imperatriz Porcina, Donzela Teodora ... e outros de origem bíblica: José do Egipto, Sansão e Dalila, Judas e histórias da Virgem Maria, Jesus , São Pedro, São Paulo ... No Catálogo da Casa Rui Barbosa, constam também contos maravilhosos: Ali Babá e os 40 Ladrões, Proezas de Malasartes, O Barba Azul, A Branca de Neve, A Bela Adormecida, O Ladrão de Bagdá e outros.

II. Factos circunstanciais ou acontecidos: a.) de natureza física (enchentes, cheias, secas, terramotos, etc.); b.) de repercussão social (festas, desportes,novelas astronautas, etc.); c.) cidade e vida urbana; d.) crítica e sátira; e.) elemento humano (figuras actuais ou actualizadas, como Getúlio Vargas, ciclo do fanatismo e misticismo, ciclo do cangaceirismo, tipos étnicos ou regionais, etc.

III. Cantorias e pelejas: Poemas que nascem oralmente, no calor dos “desafios” entre dois ou mais cantadores. Em geral, tais pelejas ou cantorias se perdem, pois ninguém se preocupa em registá-las por escrito. Mas algumas, devido à memória prodigiosa dos cantadores (e agora com os recursos electónicos) acabam escritas em folhetos de cordel e se tornam famosas, inclusive, devido ao complexo virtuosismo da estrutura poética que, por vezes, apresentam. É principalmente nestes casos que a literatura de cordel deixa de ser anónima (como é natural na literatura popular), pois sempre leva os nomes dos cantadores responsáveis.

Segundo os pesquisadores, o Brasil é o maior produtor de literatura de cordel, no mundo ocidental: em cem anos publicou cerca de 20.000 folhetos, embora em pequenas tiragens (entre 100 e 200 exemplares cada). (Joseph M. Luyten).

Há cantadores e cordelistas famosos (Leandro Gomes de Barros, João Martins de Athayde, Cuíca de Santo Amaro, pseud. de José Gomes, Rodolfo Coelho Cavalcante Raimundo Santa Helena; Francklin Machado; Paulo Nunes Batista, entre outros) que, além de cantarem e imprimirem os textos tradicionais, inventa cantorias com temas gerados pelas circunstâncias de seu tempo, pelo dia-a-dia do povo, e que servem de informação, deleite do ouvinte ou leitor, ou denúncia dos mal-feitos em prejuízo de alguém. A maioria dos cordéis é ilustrada pela técnica da xilografia (gravação em madeira, depois estampada à tinta no papel, e que tem evoluído muito, em subtilezas técnicas). Arte regional (no início minimizada como rudimentar), hoje constitui, juntamente com as “cerâmicas de Mestre Vitalino”, uma das experssões mais características da arte popular brasileira.

Com o correr dos tempos e o progresso urbano que, embora devagar, atingiu o Nordeste brasileiro, muitos costumes antigos desapareceram, mas a literatura de cordel resistente, mantém-se viva até hoje, concorrendo com a rádio, o cinema e a televisão, para o entretenimento do povo nas praças, ruas, feiras, mercados ou em qualquer lugar em que haja um cantador e sua viola ... Só que, cada vez com mais evidência, o interesse pelos cordéis antigos vem decrescendo em favor dos novos cordéis que falaam dos heróis - muito mais, anti-heróis - dos dias de hoje, e mais denunciando ou zombando do que inventando acontecimentos do novo Brasil e suas circunstâncias.



BIBLIOGRAFIA: Horacio Jorge Beco, Cancioneiro Tradicional Argentino, Buenos Aires, 1960; Sol. Biderman, Messianismo e Escatologia na Literatura de Cordel, São Paulo, 1970; Théophilo Braga, O Povo Português nos seus costumes, crenças e tradições, 2 vols., Lisboa, 1885; Luís Câmara Cascudo, Dicionário do Folclore Brasileiro, Rio de Janeiro, 1962; Mark J. Curran, A Sátira e a Crítica Social na Literatura de Cordel, Recife, 1960; Diccionario de la literatura hispanoamericana, 8 vols. Washington, 1958; Manuel Diègues Jr., “Literatura de Cordel”, in Revista do Livro, Rio de Janeiro, nº. 30, pp. 51-57 jul/set. 1969; id., “A Literatura de Cordel no Nordeste”, in Literatura Popular em verso, 2 vols., Rio de Janeiro, 1973; id., Literatura Popular em Verso-Catálogo, Rio de Janeiro, 1961; id., Literatura Popular em Verso-Antologia, Rio de Janeiro, 1964; Armando de Mária y Campos, La Revolución Mexiacana á través de los corridos, México, 1962; António José Saraiva, História da Cultura em Portugal, 2 vols., Lisboa, 1955; Marc. Soriano, “Littérature de Colportage”, in Guide de littérature pour la jeunesse, Paris, 1975.

http://www.sectec.rj.gov.br/redeescola/especialistas/portugues/tema04/por-tm04.html

Nelly Novaes Coelho

A tal da licença poética

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Liberdade concedida a um artista, não necessariamente um poeta, para se expressar criativamente, sem obediência rígida a um cânone, a uma gramática, a um código ou a um modelo convencional de escrita. Ao sabor deste tipo de liberdade, é possível encontrar os mais diversos desvios à norma poética, desde rimas falsas a versos de métrica irregular, desde temas obscenos em épocas de contenção moral a mistura de várias formas de expressão literária na mesma composição. Aristóteles tolerou na Poética (1460a, 26) este tipo de liberdade, encorajando os poetas a aproximarem-se das “coisas possíveis” pela verosimilhança: “De preferir às coisas possíveis mas incríveis são as impossíveis mas críveis”. O importante, para validar aos olhos do público leitor a legitimidade da licença poética, é que os fins da poesia livre sirvam os meios utilizados. Uma das mais enigmáticas personificações de Fernando Pessoa, o Professor Trochee, num didáctico texto, “Ensaio sobre Poética: Escrito para edificação e para a instrução dos pretensos poetas” (s.d.), comenta: “Espero escapar ao ridículo universal ao afirmar que, teoricamente, a poesia é susceptível de escansão. Gostaria, porém, que ficasse claro que concordo com o Sr. A. B. quando afirma que a escansão estrita não é de todo necessária para o sucesso e mesmo para o mérito de uma composição poética. E creio não parecer excessivamente pedante se procurar no armazém do Tempo, para citar como autoridade, algumas das obras de um certo William Shakespeare ou Shakspere que viveu há alguns séculos e que desfrutava de alguma reputação como dramaturgo. Esta pessoa tinha por hábito cortar, ou acrescentar, uma ou mais sílabas nos versos das suas numerosas produções, e se era inteiramente permitido naquela época de beleza quebrar as regras do bom senso artístico e imitar algum obscuro escriba, ousarei recomendar ao principiante o prazer desta liberdade poética.” (Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa, trad. de Luísa Medeiros [Atribuído inicialmente ao Dr. Pancrácio], Teresa Rita Lopes, Estampa, Lisboa, 1990). Da Idade Média ao Modernismo, pudemos assistir ao compromisso que o poeta tinha com a retórica e com as artes poéticas que disciplinavam a escrita dos versos. Também conhecida em outros momentos por licença métrica, não estranhamos que a maior parte das liberdades consagradas para infringir a norma são de natureza prosódica ou retórica (quando ocorrem sinalefas, diéreses, sinéreses, síncopes, apócopes, etc.).

Dada a dificuldade natural em respeitar todas as regras escolares, que obrigavam o poeta a conter a sua imaginação criativa a formas programadas e controladas por códigos complexos de poética e retórica, a licença poética serviu muitas vezes para esconder a impossibilidade de tais regras serem infalíveis e totalmente reguladoras da poesia, como se pode testemunhar em Shakespeare, citado por Pessoa, mas também em Luís de Camões e em todos os poetas clássicos, românticos e ultra-românticos, por exemplo. Nestes casos, é quase sempre a questão da rima (e da métrica) que é discutida. A partir do mometo em que o modernismo inaugura praticamente o fim das artes poéticas e dos códigos de retórica, para que a poesia se pudesse expressar com total liberdade formal, torna-se difícil falar de licença poética, a não ser quando se utiliza uma fórmula clássica, o soneto, por exemplo, sem obedecer às suas regras canónicas. As recentes teorias sobre o género têm sido das mais interventivas na crítica às regras que outrora colocavam na autoridade de um crítico erudito o poder extraordinário de declarar os limites da licença poética. Hoje aceita-se que nenhuma forma de expressão literária pode estar sujeita a regras castradoras da sua concretização artística.

Bib.: Marjorie Perloff: Poetic License: Essays on Modernist and Postmodernist Lyric (1990).

Carlos Ceia

DOU-LHE DOIS SORVETES SE ME DISSERES O QUE VEM A SER UM ENIGMA

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Termo sinónimo ou próximo de charada, cifra, criptograma, adivinha, hieróglifo, mito, que em poesia é utilizado para traduzir o texto que constitui uma mensagem de significado oculto ou dissimulado. Não deve ser confundido com a dificuldade de interpretação que pode assistir na leitura de um texto literário complexo por várias razões. O enigma, enquanto género literário, é um texto premeditamente figurado no sentido, jogando com os diferentes níveis de significação de uma imagem, de um símbolo ou de um conceito plural. Neste sentido, o enigma é uma das mais antigas formas literárias, podendo ser encontrada no Rigueda, em sânscrito, no Talmud, em hebraico, ou na Bíblia, desde as suas primitivas versões textuais. É na Idade Média que o enigma enquanto género literário mais se desenvolve, desde Enigmata, de Aldhelm (640-709) até à tradição árabe, persa e latina a partir do século X. Mais tarde, encontraremos uma insistência no enigma literário na lírica barroca, em particular na literatura do Siglo de Oro espanhol e em obras como Recueil des énigmes de ce temps (1655), atribuída a Cotin.

De notar que o enigma foi sempre interpretado como uma forma de dito sapiencial, porque só os mais inspirados podiam construir um discurso que despertasse a curiosidade geral e desafiasse a capacidade de raciocínio. Resolver um enigma não era um sinal de menos sabedoria, porque só alguém igualmente iluminado podia resolver uma mensagem enigmática. É assim que a rainha de Sabá submete Salomão a uma prova de enigmas (1Rs 10,1; 2Cr 9,1).

Partindo quase sempre de uma pergunta, directa ou indirecta, o enigma constrói-se com uma descrição nunca explícita de um facto ou de uma situação, bloqueando desde logo a possibilidade de resposta imediata, por força da contradição que deve presidir aos elementos que constituem o enigma. Seja o exemplo de um dos mais famosos enigmas da literatura grega antiga: na tragédia Antígona (442 a. C.), relata-se o enigma da Esfinge, um monstro que dominava Tebas. A Esfinge exigia a cada transeunte tebano que passava que respondesse a um enigma, e quem não fosse capaz de responder morria estrangulado pelo monstro. O enigma da Esfinge era o seguinte: «Qual é o ser que, tendo uma única voz, ora caminha com dois pés, ora com três, ou ainda com quatro, e que é tanto mais fraco quantos mais pés tiver?» É Édipo quem chega um dia a Tebas e resolve o enigma, respondendo: «É o homem, que gatinha a quatro patas enquanto é criança, caminha erecto nas suas duas pernas quando é jovem, e se encosta a uma bengala na velhice.» Derrotada, a Esfinge suicidou-se. Édipo é aclamado rei de Tebas e desposa Jocasta, sem saber que era sua mãe. A tragédia Rei Édipo apoia-se neste mito; Antígona dá conta do que se passou depois da morte de Édipo. Este tipo de enigma é de raiz folclórica, mas o enigma estritamente literário não se distingue muito do funcionamento da metáfora. Aristóteles fez a comparação, dizendo que o enigma serve para exprimir factos em condições impossíveis (cf. Poética, 22; Retórica, 3.2, 10), o que constitui um género adequado à compreensão de um facto desconhecido através de um código conhecido, que, uma vez compreendido, nos permitirá a revelação. De notar ainda que o enigma se serve também da alegoria, como o enigma da águia e da vinha que podemos ler no Livro de Ezequiel (17, 2).

ADIVINHA; CÓDIGO

Bib.: A. Taylor: The Literary Riddle Before 1600 (1948); A. Welsh: Roots of Lyric (1978); Ana Hatherly: O divertimento proveitoso: enigmas barrocos portugueses Colóquio-Artes, nº 76(1988.

Carlos Ceia

CÍRCULO HERMENÊUTICO

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Expressão que aparece frequentemente na discussão hermenêutica actual, quer no âmbito filosófico quer no âmbito teológico. Refere a lógica interna da comprensão hermenêutica, isto é, a regra segundo a qual é necessário compreender o todo de um texto a partir das suas partes e estas a partir do todo.De acordo com H.-G.Gadamer, esta é uma regra cuja origem remonta à antiga retórica e que penetrou na hermenêutica moderna através da problemática protestante das condições de legibilidade e inteligibilidade do texto bíblico.A esta ideia de círculo hermenêutico subjaz, de facto, a apropriação hermenêutica moderna da retórica clássica e com ela um pressuposto que devemos caracterizar do seguinte modo: compreender um texto é, antes de mais nada, poder-ser por ele interpelado, de tal modo que uma antecipação de sentido conduz sempre a nossa comprensão.Interpretar não é partir de um grau zero mas, pelo contrário, de uma pré-comprensão que envolve a nossa própria relação com o todo do texto, embora apenas se torne compreensão explícita quando, por sua vez, as partes que se definem a partir do todo, definem este mesmo todo.

O processo de compreensão distingue-se de outros processos intelectivos, nomeadamente do explicativo, porque parte de um efeito da palavra ( narração), procede segundo um movimento circular, aquele que vai da pré-compreensão do todo à compreensão das partes e da compreensão destas até ao sentido do todo .A compreensão hermenêutica alcança a sua justeza quando o seu primeiro critério é a concordância de todos os detalhes com o todo e isto significa que a falta de congruência acarreta necessariamente o fracasso da compreensão.

Devolver ao texto o acento justo sempre foi a missão da hermenêutica que nunca pretendeu confundir a sua tarefa com a de uma pura detecção lógico-técnica do sentido, prescindindo de toda a verdade do dito. Daí todo o seu esforço em alargar, segundo o modelo de círculos concêntricos, a unidade do sentido comprendido, num vaivém contínuo do todo à parte e da parte ao todo, isto é, rectificando sempre que é necessário a expectativa com que começa. O círculo hermenêutico distingue-se, assim, pela sua origem retórica do círculo vicioso em sentido lógico.

Esta ideia de círculo aparece, pela primeira vez, no contexto filosófico da hermenêutica com F. Schleiermacher( 1769-1834), que o recebe de F. Ast, e ao qual dá uma orientação subjectivista que vai marcar a própria hermenêutica de W. Dilthey. Schleiermacher, pensador romântico e fundador da hermenêutica filosófica, introduz algo de novo no âmbito da tradição hermenêutica - uma ruptura histórica de âmbito universal - já que ao contrário da primeira fase, não filosófica, da hermenêutica (cf. hermenêutica) não admite a recepção da tradição como base sólida de toda a necessidade de interpretação. O fio condutor desta será doravante um outro: o pensamento singular de quem se exprime através de uma língua comum. Neste novo contexto, marcadamente romântico, o círculo da parte e do todo adquire toda uma dupla vertente: subjectiva e objectiva. Sendo o texto o resultado da apropriação de uma língua comum e da expressão de um pensamento singular, cada palavra pertence, é claro, ao conjunto da frase, cada texto ao conjunto da obra do respectivo escritor e esta, por sua vez, ao conjunto do género literário ou da literatura correspondente.Mas, por outro lado, enquanto manifestação de um momento criativo, o texto pertence ao conjunto da vida anímica do autor. Só esta totalidade psíquica permite realizar plenamente a compreensão.

Neste mesmo sentido, Dilthey falará de “estrutura” e de “convergência segundo um ponto central” no qual a compreensão do todo encontra o seu real fundamento.Institui-se, assim, a ideia da reconstrução da intenção mental como verdadeiro critério hermenêutico.

Será com M.Heidegger que a problemática hermenêutica do círculo da compreensão adquirirá todo um novo e importante significado, aquele que ainda hoje lhe damos.

Em Ser e Tempo, o autor retoma a temática do círculo hermenêutico reconhecendo expressamente nela não só a lei fundamental da comprensão hermenêutica como a estrutura básica de toda a possibilidade humana de intelecção. Quer isto dizer que, enquanto a teoria hermenêutica do séc. XIX detectava no círculo a estrutura da compreensão histórica e literária, concebendo-a sempre no quadro da relação formal entre a parte e o todo do texto e o seu reflexo subjectivo (a antecipação intuitiva do todo a que se segue a explicitação do detalhe), para Heidegger a estrutura circular da compreensão hermenêutica não pode, de maneira nenhuma, desembocar num acto puramente psicológico ou adivinhatório, que permita um acesso directo ao autor e a partir do qual se atinja uma plena compreensão dos textos. Pelo contrário, o que agora acontece é o seguinte: toda a compreensão humana está determinada, de um modo permanente, pelo movimento de antecipação próprio do ser marcado por uma pré-compreensão.O círculo hermenêutico corresponde à estrutura existencial do existir humano no mundo,que é um ser simultaneamente encarnado, finito e inteligente, isto é, sempre já marcado por uma relação ao sentido.

Para Heidegger, e aqui reside a sua novidade, o círculo não descreve apenas a estrutura metodológica da compreensão hermenêutica, mas, pelo contrário, a própria natureza da inteligibilidade humana, isto é, o que sempre acontece quando o homem - já não sujeito omnipotente mas ser finito e histórico - compreende. E o que é que isto significa? Significa o seguinte: porque a existência humana é inteligente, uma compreensão originária acompanha-a sempre em toda e qualquer compreensão particular que realize.É esta a sua condição fáctica inultrapassável. E isto implica que uma tal compreensão - a estrutura ontológica básica do acto humano de ser - precede a própria dualidade metodológica clássica da compreensão dos textos e da explicação da natureza, sendo a própria condição de possibilidade de toda a interpretação.

Neste contexto, claramente não metodológico, aquele que quer compreender um texto antecipa sempre um esboço do conjunto, logo que lhe aparece um primeiro sentido no texto.A sua compreensão consiste no próprio aperfeiçoamento deste projecto prévio, sempre falível - porque finito - e sujeito a revisão por um ulterior aprofundamento do sentido.Interpretar é, assim, partir sempre de conceitos prévios que vão sendo substituídos por outros mais adequados. Heidegger sabe que, devido à sua finitude,quem tenta compreender expõe-se sempre ao erro das opiniões prévias que não se confirmam nas coisas. Logo, que a comprensão apenas se realiza verdadeiramente quando percebe que a sua primeira grande tarefa é proteger-se da arbitrariedade das opiniões particulares e dos hábitos de pensamento que passam despercebidos, em ordem a poder dirigir o olhar para as coisas mesmas. Uma consciência hermeneuticamente formada não pode entregar-se, de facto, desde o início, ao acaso das suas próprias opiniões prévias sobre o assunto.Deve, pelo contrário, estar disposta a que o texto lhe diga algo de novo. Mas esta alteridade só pode surgir quando ela própria põe em causa os pressupostos do intérprete, fazendo-os entrar em jogo. São, de facto, os pressupostos não percebidos aqueles que nos tornam surdos à novidade do texto.

Desenvolvendo esta nova caracterização ontológica do sentido do círculo hermenêutico, H.-G. Gadamer, discípulo de Heidegger e autor da conhecida obra Verdade e Método, vai ainda mais longe e caracteriza a pressuposição de sentido que acompanha toda a compreensão como “antecipação da perfeição”. É que, segundo o autor, o homem só compreende o que constitui uma unidade acabada de sentido. Partimos deste pressuposto da perfeição sempre que lemos um texto .De outro modo nem sequer o líamos. E só quando este pressuposto acaba por não se sustentar no decurso da leitura, quando o texto não é compreensível, é que o criticamos, duvidando da sua transmissão e procurando refazer o sentido do texto.

Para o autor, isto significa fundamentalmente que o processo de compreensão não se reduz a uma misteriosa comunhão de almas mas, pelo contrário, é participação num sentido comunitário (o que hoje ainda me interpela ), que o próprio presente ajuda a reconfigurar de um modo novo, segundo um processo histórico de contínua formação. A antecipação da perfeição, que guia a nossa compreensão, não é também neste caso apenas uma expectativa formal - que pressuponha ser inerente ao texto uma unidade de sentido, que orienta a compreensão do leitor - mas está fundamentalmente determinada por expectativas de contéudo. Pressupõe-se, antes de mais o seguinte: o texto fala verdade, pode dizer-nos algo de válido, entende mais do assunto que nos levou à leitura,do que nós prórios. O que significa, em última análise, que só quem tem uma pré- compreensão do assunto tratado no texto efectua,de facto, a sua leitura. Só quem confia no valor dos textos, porque tem expectativas marcadas pela abertura à alteridade (e não apenas pela imanência estreita da sua perspectiva singular), pode ser interpelado pela palavra e interpretar.A pré-compreensão, que deriva do ter que ver com o assunto abordado pelo texto, é assim a primeira de todas as condições hermenêuticas.



HERMENÊUTICA

Bib.: H.-G. GADAMER, Gesammelte Werke I. Hermeneutik I . Wahrheit und Methode_I. Grundzuege einer philosophischen Hermeneutik.Tuebingen, Mohr,1986; H-G..GADAMER, Gesammelte Werke 2. Hermeneutik II. Wahrheit und Methode- 2. Ergaenzungen. Register. Tuebingen,Mohr, 1986; M. HEIDEGGER, Sein und Zeit, Tuebingen, Max Niemeyer Verlag, 1979.
M. Luísa Portecarrero F. da Silva

VAI UM TROCADILHO AÍ?!!!!

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

É uma figura de retórica e consiste num jogo de palavras, ou jogo do equívoco, sendo que o mais comum é utilizar uma palavra recorrendo ao signo de uma outra, porque as duas são homófonas (por exemplo «conselho» por «concelho») ou servir-se de palavras ou expressões homónimas, utilizando a sua ambiguidade de sentidos. Esta figura de estilo constitui um jogo verbal para tornar animado, ou para avivar um determinado momento da escrita, tendo sido utilizado nas obras literárias, já no tempo de Homero (século VIII a.C.), e depois particularmente recuperado pelos poetas líricos do século XVII, considerado o século barroco. Camões, no século XVI utilizou profusamente o trocadilho, como por exemplo nesta passagem com a palavra pena, tomada por pena de asa, pena de escrever e pena que se sofre: «...Aviva os espritos/ Que, pois em teu favor sou,/ Esta pena que te dou/ Fará voar teus escritos./ E dando-lhe a padecer/ Tudo o que quis que pusesse,/ Pude, enfim, dele dizer/ Que me deu com que escrever/ O que quis que escrevesse.»

Alguns autores consideram que o trocadilho é uma forma de espírito pouco nobre, no entanto outros discordam desta opinião, utilizando esta forma de gracejar com as palavras, com o intuito de enfeitar um texto ou poema, animando passagens, ou tornando-as mesmo engraçadamente anedóticas. Camilo recorre neste passo ao termo «cadeiras», com o duplo sentido de «quadris do corpo» e «cadeira de sentar»: «Viera para a aldeia um médico, já idoso. O seu primeiro doente foi um lavrador que se queixava de fortíssimas dores de costas. O doutor receitou-lhe uma pomada para friccionar as cadeiras com força, à noite e de manhã. Passados oito dias, encontrando o doente diz-lhe o médico: -Então como tem passado? Já não tem dores? - Ai, senhor doutor, as cadeiras estão muito lustrosas, mas eu estou na mesma!»

Podemos distinguir oito modalidades de trocadilhos, das quais já foram exemplificadas as duas mais comuns: trocadilhos que partem de um equívoco entre dois sentidos diferentes do mesmo vocábulo, trocadilhos que derivam da semelhança morfológica dos homógrafos e ainda: trocadilhos baseados nos arcaísmos da linguagem, que só serão entendidos se não os desconhecermos, por exemplo «achaque» com o sentido de doença por «achaque» com o sentido de pretexto ou ocasião; trocadilhos criados por questões fonéticas que se prendem muitas vezes com a pronúncia, por exemplo «A Deus Nosso Senhor», e «adeus, nosso senhor»; trocadilhos que derivam de frases feitas e que apelam à perspicácia mental do leitor/ouvinte, como por exemplo na anedota do homem que pretende atravessar uma ponte que só suporta o peso de 70 quilos. Como o interessado só pesava 65 quilos, inicia a sua travessia, mas esta abate-se quando ele se encontrava a meio do percurso - a razão reside no facto de que «um homem prevenido vale por dois»; trocadilhos que originam da exploração do significado etimológico da palavra, mas que só obtêm o seu efeito se o leitor tiver esse conhecimento - jogando com a palavra «douto», o padre António Vieira escreveu: «Quem não é dócil não pode ser douto, antes a mesma docilidade é um sinónimo da ciência»; trocadilhos que se apoiam na semelhança fonética de duas palavras de categorias morfológicas diferentes ou iguais, como no exemplo das actividades profissionais: «o padeiro faz pão e o pedreiro faz pedras»; trocadilhos baseados na composição das palavras que frequentemente recorrem à troca dos elementos que constituem o grupo fraseológico ou os elementos do composto, como por exemplo quando Aquilino Ribeiro escreve: «Criticar um mestre-de-obras é uma obra-de-mestres», ou «Convencer o mestre-de-obras é de facto, um bico-de-obra».

PUN

Bib.: J. Dubois: Retórica Geral, Carlos Filipe Moisés (trad.), Cultrix, São Paulo, 1974; Marjorie Boulton: The Anatomy of Prose, Routledge and Kegan Paul, Londres, 1980.

Ana Paula Rocha

JOGOS FLORAIS

sábado, 16 de janeiro de 2010

O período entre 28 de Abril e 13 de Maio do calendário romano marcava a celebração dos Jogos Florais (ou Florálias - do latim floralia, ium), assim denominados por se tratarem das festividades em honra de Flora, deusa da Primavera, das flores, dos cereais, das vinhas e das árvores frutíferas. A lenda diz que Flora é uma das divindades sabinas introduzidas em Roma por Tito Tácio e adorada pela populações itálicas, em geral. Desde então, associa-se o mel à deusa, como um dos presentes que esta terá concedido ao Homem, o mesmo acontecendo com todas as flores que conhecemos.

Segundo Brandão (1993), nesta data as cortesãs reuniam-se e dançavam ao som de trombetas, num concurso em que as vencedoras eram coroadas do flores, tal como era hábito fazer-se nas cerimónias de adoração da própria divindade. Por influência desta tradição romana, em toda a Península Ibérica, embora com especial incidência na zona do Algarve, ficou até aos nossos dias o costume de colocar nas portas e janelas das casas flores de giestas, também designadas por Maias (nome que provém do facto de florescerem em maior abundância do quinto mês do ano). Mais ainda, no início do século era habitual escolher-se nas aldeias uma jovem que, vestida de branco, era coroada de flores tal como a deusa.

Um pouco mais tarde, a partir do século XIII, esta celebração passou a abranger uma esfera mais alargada, agora enquanto concurso literário: os poetas e amantes da escrita, em geral, tinham nesta data a possibilidade de apresentar as suas produções num concurso. Actualmente, algumas Câmaras Municipais (como a de Viana do Castelo, por exemplo) continuam a promover Jogos Florais, por altura das festividades locais, cujos procedimentos se regem por um regulamento com características específicas: os participantes podem optar por várias modalidades de escrita, sendo as mais comuns o poema lírico ou as quadra populares de tema livre, o soneto (tomando como inspiração um determinado assunto), poesia obrigada à utilização de um mote específico ou alegórica à própria cidade onde se realizam os Jogos e, finalmente, o tratamento de um adágio popular. O número de trabalhos por concorrente é ilimitado, sendo os seus autores obrigados a apresentar-se sob pseudónimo, para que os jurados não sofram qualquer tipo de influência durante a avaliação. Aos melhores trabalhos são oferecidos prémios, habitualmente três por modalidade. Por vezes, são ainda concedidas menções honrosas aos candidatos, cujos trabalhos, embora não sejam vencedores, são considerados dignos de destaque.

Embora este seja um costume que se tem vindo a desvanecer progressivamente com o passar do tempo, algumas cidades portuguesas esforçam-se por manter a tradição dos Jogos Florais, na tentativa de preservar os usos e costumes que, desde há séculos, fazem parte do nosso folclore e da nossa identidade cultural.



BIB. Junito de Sousa Brandão: Dicionário Mítico-Etimológico e da Religião Romana (1993); Silvério Benedito: Dicionário Breve da Mitologia Grega e Romana (2000); Almanaque 1996, ed. Ministério da Educação, Departamento de Educação Básica.



http:// www.folcloreonline.com/folhas/maio1.htm

http:// www.italonet.com.br/mitologia/romana.htm

http:// www.raizesdeportugal.com.br/cgomes/maios.htm

http://orbita.starmedia.com/~stargate2/proven.htm

Susana Rodrigues Alves

NOVO HISTORICISMO (NEW HISTORICISM)

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

1. O Novo Historicismo nasceu na academia americana, entre fins de 70 e começos de 80. Disseram no californiano alguns detractores, querendo derrogar uma situação em que a pretensão revolucionária ou simplesmente subversiva confinaria com a maior das autocomplacências e mesmo com o cinismo, por isso que academicamente garantida pelas condições de existência "utópica" do campus. Eu diria que não pode não aceitar se no liberalismo dos outros. De facto, estará presente no movimento o espírito de um lugar como a Berkley ainda na ressaca da revolta estudantil. Assim o diz Stephen Greenblatt, o fundador do movimento.

Tendo se graduado na Yale dos anos 60, em tempos ainda do domínio quase absoluto do New Criticism nos estudos literários, Greenblatt trabalharia em seguida em Inglaterra com Raymond Williams, um dos mais importantes críticos marxistas do nosso tempo; e depois viriam o regresso e a migração para Berkley.

Em geral, faz se coincidir o acto de nascimento do New Historicism com um número especial da revista Genre, de que Greenblatt foi o editor. O movimento teria o seu instante de refundação sobretudo em Shakespearean Negotiations (1988) e "Towards a Poetics of Culture" do mesmo autor. (1989)

Presentemente, a situação do novo historicismo é algo confusa. Se por um lado assistimos a uma consolidação das práticas (detectável tanto na qualidade invulgar da revista Representations, órgão oficial do movimento, como na extensão dos procedimentos novi historicistas ao estudo de praticamente todas as épocas "literárias"), cresce por outro lado um dissenso histórico e metodológico, interna e externamente perceptível. Assim H. Aram Veeser (1989) tem o movimento por bem fundado, enquanto Suzanne Gearhart lhe põe em perspectiva a ausência de reflexão metodológica e teórica. (1997) Assim, o co fundador Montrose vem manifestando um certo desconforto quanto à (in)definição da matriz teórica e metodológica do movimento, enquanto que num Greenblatt, e não sem equívocos, se pode detectar a sombra paradoxal de um determinismo global (um organicismo de teor historicista), graças porventura às importações de certos aspectos da antropologia cultural e à pervasividade do "poder", como Foucault o concebe — juntamente com outras formas de "circulação", entre as quais os "textos".

Aqui a anedota, não porque também eu esteja a fazer novamente história, mas tão só a bem da amenidade do verbete. Um dos mais convincentes new historicists é Walter Benn Michaels. O do Contra a Teoria.



2. Dedicado ao Renascimento (campo de estudos privilegiado do novo historicismo, sobretudo nos inícios), aquele número de Genre — as palavras são de Greenblatt — teria como novidade a consideração dos textos literários dos séculos dezasseis e dezassete no conjunto das práticas discursivas da cultura inglesa de então.

Assumindo se que tais textos não tinham sentido em si, senão que o teriam nas ligações estabelecidas com as crenças, com as práticas, e no interior das instituições da cultura renascimental, o movimento então nascente avançava perspectivas de estudo, que, por menos orgânicas, punham em questão os pressupostos historicistas:

*

crenças e práticas de uma mesma época podem ser contraditórias, não só em função das diferentes instituições que as promovem, mas no interior das mesmas instituições,
*

e autores e discursos manifestam atitudes ambivalentes face à autoridade, mostrando se o sentido semântico pragmático dos textos indecidível no que diz respeito aos valores do conformismo e da heterodoxia. (cf. 1982)

Na confluência destas duas recusas (formalismo e historicismo), o new historicism vai nomeando de outro modo a matéria dos textos literários, a qual confronta, não propriamente com um método ou com uma teoria, mas com um conjunto de posições críticas mais ou menos directamente saído dos problemas que — à medida que iria recusando a validade fundacional de posições estruturalistas e lato sensu realistas — a Teoria, ou, mais simplesmente, o pós estruturalismo, nos foi circunscrevendo. Entenda se por Teoria o capital cultural profissional dominante nos Departamentos de Inglês (e não só): não se trata já de Teoria da Literatura, mas de Adorno, Benjamin, Blanchot, Bourdieu, Derrida, de Man, Eagleton, Foucault, Jameson, Lyotard, etc.

O efeito prático é sobremodo interessante porque não corresponde em absoluto a perspectivas interdisciplinares mas a um processo de circulação entre disciplinas — ou antes, entre aquelas ressalvas críticas operadas pela Teoria sobre um certo número de problemáticas fundacionais. Cumulativamente, os novi historicistas circulam na prática entre épocas diferentes e entre diferentes textos e contextos, ao mesmo tempo que (reflexão teórica típica) consideram a 'circulação' como uma das características fundamentais do objecto 'textualidade' (e diga se, já agora, também do 'poder').

Assim começam as mudanças de nomeação: os textos literários serão os chamados textos literários, e os textos dos historiadores as chamadas histórias. O todo resulta unificado sob a figura inespecífica da textualidade, ou retoricamente abrangido pelo quiasmo, figura que é decididamente da predilecção especial dos escritos novi historicistas: desde logo, o inaugural The Forms of Power and the Power of Forms (Greenblatt) ou, o mais abrangente, the historicity of texts and the textuality of history (Montrose). O que o tropo adianta é aquilo que, ao mesmo tempo, o new historicism evitaria como questionamento: os tipos de reciprocidade específica (e a sua pertinência) entre o que se passa no campo literário e o que ocorre no campo histórico. O que não ocorre ao especialista, acode ao leigo com alguma facilidade: o literário não pode não ser histórico, mas este pode muito bem não ser aquele. Para que aquele quiasmo exista, têm ambos de pesar o mesmo em seu prato da balança. Serão, portanto, "texto". Cite se Montrose, um dos new historicists da primeira hora:



A orientação pós estruturalista para a história que presentemente emerge nos estudos literários pode ser quiasmaticamente caracterizada, como uma preocupação recíproca com a historicidade dos textos e com a textualidade da história. Pela historicidade dos textos, pretendo sugerir a especificidade cultural, o enraizamento social de todos os modos de escrita — não somente dos textos estudados pelos críticos, mas também os textos nos quais os estudamos. Pela textualidade da história, pretendo em primeiro lugar sugerir que não temos acesso a um passado pleno e autêntico, a uma existência material vivida, não mediada pelos vestígios textuais da sociedade em questão (…); e em segundo lugar que esses vestígios se acham também eles sujeitos a mediações textuais subsequentes quando são construídos como "documentos" sobre os quais os historiadores fundam os seus próprios textos, chamados "histórias". (Montrose, 1989: 20)



Esta amostra, hermeneuticamente correcta, é antes de mais significativa do escamoteamento da questão da reciprocidade entre os dois campos de estudo:

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ela existe apenas como preocupação do novi historicista, que deve conduzir os seus inquéritos naquelas duas frentes e
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desaparece de facto na figura comum dessa textualidade que não permite distingui los.

O confinamento da reciprocidade à "mente" do crítico, deixa porventura perceber que entre o contexto histórico de um lado e o texto literário do outro há "uma conexão de puro nada". (Liu, 1989: 743) O quiasmo seria assim a figura de uma analogia posta a caminhar em marchas forçadas das semelhanças percebidas entre texto e contexto até a um estado final de "simpatia": "uma acção quase mágica de assemelhamento" entre os dois (id.: 744) — de resto, e a crer em Foucault, muito renascimental.

O quiasmo, como equilíbrio formal, corresponde à noção greenblattiana de "economia mimética", porque mima retoricamente a circulação sobre a qual escreve; mas opera entretanto sobre um desequilíbrio inicial, porque (mesmo em contexto proto moderno) poria em causa a autonomia específica do literário e a existência de uma realidade histórica pré existente. (Thomas, 1991: 184)

Em qualquer caso, esta retórica corresponde bem a uma prática crítica que começa por aceitar se sem método e sem programa teórico, unificada apenas por um conjunto de preocupações:

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reconhecimento da ligação necessária entre os textos e os contextos culturais da sua produção, em paralelo com a recusa da autonomia estética dos primeiros e das relações de expressividade especular entre eles e os segundos, já não organicamente abençoados por coisas como o Zeitgeist, a visão do mundo, a ideologia de época ou de classe
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recusa tanto do determinismo como das posições humanistas que atribuem ao autor uma subjectividade autónoma e funcional
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consideração do potencial político dos textos literários
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incorporação de Teoria, e antes de mais de tudo quanto nela favorece a noção de que toda a experiência é de feição discursiva, desde sempre situada em sistemas de significação pré existentes a nenhum dos quais deve reconhecer se um carácter de necessidade, por isso que cada um situa e modela, e permite modelar e situar, o real de uma forma diferente de todos os outros
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e, mais especificamente ainda, incorporação progressiva de posições e objectos foucauldianos (as disciplinas, o poder saber, a identidade, o corpo, etc.), sem esquecer a técnica da "descrição densa" muito utilizada por Greenblatt, que foi pedida de empréstimo à antropologia de Geertz. (Montrose, 1989, 1993 e Greenblatt, 1980)

Assim, alguns aderentes do movimento (para continentais, com certa tocante candura) não só nele encontraram uma legitimação para o estudo e compreensão de textos literários canónicos através do uso de textos não literários (e, nestes, os de natureza política, habitualmente mais sujeitos a proscrição), como também nele acabam por descobrir as virtudes de uma misarquia textual generalizada: a nenhum texto será concedida precedência sobre outros textos, e os eventos históricos assumem um cariz textual que permitiria a sua "leitura". (cf. Kinney, 1993) Este tom algo encomiástico — o novo historicismo é libertador — não representará o pagamento de uma dívida de gratidão? E o que se agradece não será, pelo alargamento do cânone e do campo de estudos fora do cânone, uma nova land of opportunities de trabalho e de emprego?



3. Como se disse, o New Historicism teve a sua refundação em Shakespearean Negotiations (1988) e "Towards a Poetics of Culture" (1989). É justamente quando os objectos e os procedimentos foucauldianos são contrabalançados pela presença da antropologia cultural.

Com tudo isto mantém se o problema que, em 1992, o próprio Montrose reconhece como tal: o da ausência de um princípio de organização que determine as relações supostas na hipótese sobre que o new historicism, em tempos já da sua transformação numa poética da cultura, assentaria — a saber, que todos os aspectos de uma sociedade se encontram ligados entre si. Montrose, já não considerando como bastante a definição do movimento pela comunalidade de preocupações, e aceitando que nele se denota a incapacidade frequente de teorizar com rigor tanto o seu método como o seu modelo de cultura, recusa de algum modo a sua transformação em poética da cultura. Assim, é precisamente quando o movimento se teoriza que nele se reconhece a necessidade e a falência da teorização; e, assim, o novo historicismo é também agora o chamado novo historicismo (a designação surge entre aspas):



Procedendo na base de noções tácitas e talvez inconsistentes no que à dinâmica cultural diz respeito, os estudos "novo historicistas" parecem implicar por vezes que os objectos em análise se acham simplesmente ligados por um princípio de contingência cultural ou que o são a bel prazer do crítico ("conexão arbitrária"); ou, pelo contrário, que esses objectos mantém entre si uma relação necessária baseada num princípio de determinismo cultural. (Montrose, 1993: 36)



Mas, em Grenblatt, a comparação de textos a arbítrio deixaria de o ser na medida em que, sendo a cultura o medium de uma semiótica, os textos passam a ser causalmente expressivos de um código cultural gerador e restritivo: são formas ligadas organicamente entre si, e manifestam se numa estrutura de superfície que seria um verdadeiro sistema tropológico (Greenblatt, 1988 e Montrose, 1993) — responsável, de resto, pela própria possibilidade de uma descrição densa, a qual, ao dar conta de uma dada prática nos seus mínimos detalhes, manifestaria necessariamente o ethos da cultura a que pertence.

O que fica de fora é um tanto a história, mas seria, sobretudo, a noção de uma política da cultura, que assim perde obrigatoriamente precedência para a de uma poética da cultura: nestes termos, esta não pode não subsumir aquela na sua esfera perfeita onde toda a gente é unânime. (cf. Montrose, id.: 36)

Na verdade, o que Montrose nos mostra neste new historicism de segunda fase é uma convergência assinalável com os princípios do historicismo — convergência, aliás, que, pelo recurso à antropologia da cultura, tão sua congenial, seria razoavelmente previsível. Uma poética da cultura deveria necessariamente obedecer aos seguintes princípios antropológico historicistas:

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a cultura são culturas
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a cultura é colectiva, expressiva, intransplantável e configura se em padrões



e acarretaria no plano epistemológico, não menos necessariamente, as seguintes consequências:

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o abandono de posições valorativas e universalistas
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a afirmação de um pluralismo neutral e a tácita circunscrição da cultura pelo modelo "tribal": a cultura é comportamento uniforme, a uniformidade cultural é um padrão holístico, consistente e, no contraste com outras formações "tribais", incomensurável. (cf. Merquior, 1979: 43 e ss)



4. Do contacto com Williams decorreu decerto para Greenblatt a primeira percepção das fissuras ou dos estigmas no universo da "ciência normal" dominada pelo paradigma novi crítico. De facto, a própria designação new historicism não serve apenas à arregimentação de investigadores em oposição a um old historicism; polemiza também com aquilo que a designação new criticism significa. A primeira, construída sobre uma analogia com a última, e ao substituir criticismo por historicismo, reivindica a sua diferença característica no campo dos estudos literários. Uma definição de texto, como a de Arthur F. Kinney, torna se então muito representativa: "a) nenhum documento (nenhum texto) é abstracto, separado do tempo e do lugar onde foi produzido, b) qualquer autor tem uma intenção e nenhum texto é inocente, c) qualquer documento tem múltiplos leitores potenciais (seja ele lido, visto ou escutado), d) nenhum documento literário, no sentido estrito do termo, é uni dimensional." (Kinney, 1993: 37) O New Historicism corresponderia assim a um conjunto de posições no interior dos estudos literários unificadas (na medida em que é possível unificá las) por um certo tipo de recurso à História como princípio de explicação e de problematização dos textos literários.

Ora, tudo isto é algo que por inteiro caberia no domínio dessas falácias referenciais que o paradigma novi crítico repudiou como condição necessária para a sua emergência e definição. Grosso modo, para o new criticism são ilegítimas, nos domínios da descrição e da explicação, todas as utilizações de material extrínseco aos textos literários entendidos como ícones verbais, i. e., como objectos autotélicos, autobastantes, confinados a subtis operações de significação interna ou intrínseca, marcadas pela polissemia e pela ambiguidade. Greenblatt (e creio que essa posição é de há muito pacífica) justamente não reconhece que a distinção entre a produção artística e quaisquer outras formas de produção social (os contextos) seja intrínseca aos textos; antes que é sem cessar feita e desfeita por autores e leitores. (cf. 1982)

Pelo través desta indistinção, a natureza e o comportamento dos textos são batizados por um conjunto de metáforas de matriz económica: negociação, circulação, etc. E o new historicism (mas não só) acabará mesmo por pôr em causa senão a distinção entre texto e contexto, pelo menos o seu relacionamento tradicional: o texto artístico doravante já não é o que, por natureza (estética, digamos), se emancipa absolutamente do contexto.

Em conformidade, e previsivelmente, Montrose, num original de 1992, contestará a natureza extra discursiva do segundo, que seria antes de considerar como um conjunto de relações intertextuais e discursivas. (cf. Montrose, 1993) Deste modo, o contexto — ou melhor, a discursividade — surge como o lugar de emergência de textos e leitores; e tanto os primeiros como os segundos, a título de relações intertextuais e discursivas, não podem não tornar se "contexto" por seu turno.

Ora, não se vê muito bem — e insisto no tópico — como se pode escapar àquilo que, neste mesmo texto "maduro", Montrose critica, tanto em Greenblatt como numa poética da cultura: a orientação dos textos para a intertextualidade e da intertextualidade para a sincronia. (cf. id.: 36) Em suma, parece detectar se aqui uma debilidade de historicização. Nesta perspectiva, apenas o objecto seria histórico; e somente o seria porque de Quinhentos ou Seiscentos. Felizmente, as práticas de leitura, frequentemente inestimáveis, saem para fora do compasso teorético.

Neste ponto, interessa saber que algumas objecções ao movimento (e das mais impressivas) insistem na sua filiação novicrítica de facto: não tendo a ver com nenhuma espécie de historicismo, seria antes uma forma de close reading aplicada à comparação arbitrária de textos, (Hume, 1992) ou seria um formalismo da bricolage, em que polissemia e ambiguidade deixaram de ser os modos de funcionamento intrínseco do texto literário para passarem "a figurar as operações da história". (Liu, 1988)

Nestas condições, observa Alan Liu, o new historicism denotaria o embaraço histórico do intelectual pós moderno, demasiado consciente de si. Céptico quanto à possibilidade de conhecer o mundo e o outro (ou, mais, de aí intervir), encontrou no medium dos estudos históricos a oportunidade de se retratar na pose ansiosa de quem os busca; e, a bem da verosimilhança da atitude, far nos ia menção de sair do vaso perfeito do texto literário. De modo idêntico, a sua insistência no poder e na autoridade — problemática notoriamente foucaldiana — confessa nos, na mesma forma do embaraço, uma efectiva ausência de poder e de autoridade do intelectual academizado. (Liu, id.)

Estas críticas — dimensão pós moderna do intelectual crítico à parte — não parecem levar muito em linha de conta a reformulação geertziana do new historicism, empreendida por Greenblatt. (cf. Greenblatt, 1988) Em contrapartida, Hayden White pôde apreciar o conjunto e decretar lhe a falência teorética de facto, aferindo o por aquela mesma Teoria que o movimento privilegiou. O novo historicismo seria pré teórico (ou seja, situar se ia aquém do pós estruturalismo), por isso que denotaria a presença de três ilusões, a meu ver qualquer delas dependente de princípios historicistas, por isso mesmo que ou são ilusões ou, como a última (onde porventura cabem críticas como as de Liu), já próteses de organicidade:



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ilusão genética (ou seja, interpretação do texto à luz do seu contexto histórico)
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ilusão referencial (porque, ignorando da lição derridiana, se começa pela distinção texto contexto)
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ilusão textualista (segundo a qual a história é um texto, o social é uma função da cultura que não menos será um texto, e a relação entre esta e a literatura é de cariz intertextual). (White, 1989)



White assaca ao new historicism precisamente a ingenuidade epistemológica de que ele se quer emancipar. Mas faltou lhe observar que todas aquelas miragens são combatidas, ou, pelo menos, denegadas. Porque o new historicism, tomado no seu conjunto e nas suas contradições, quer de facto emancipar se delas.



5. A descrição densa vai representando em Greenblatt o teorético mais positivo e o mais forte compromisso com ele. Parece me que à vista daquela ressalva wittgensteiniana ao fundacionalismo teórico que é justamente a descrição. De resto, a tendência nominalista é dominante no que toca aos operadores mais globais, metaforicamente genéricos mas pouco específicos: energia social, negociação e circulação. As motivações desta configuração — e é isto que torna Greenblatt o autor mais exemplar de todos os new historicists — suponho eu que residam numa identificação temática de base, assentida embora repudiada (ou porque repudiada), entre determinar e conhecer. Ora, determinar, determinismo e afins (como teoria quando por eles definida), são termos proscritos na transformação pós estrutural do campo dos estudos literários. Assim, o new historicism pode descrever se como um conjunto de práticas de leitura permanentemente e em acto acompanhadas pela revisão verbal dos seus resultados (e devem considerar se estes instantes metatextuais como a mais autêntica manifestação da sua teoria e da sua metodologia). Segundo os seus bons princípios, o novi historicista tem de des conhecer; e cada triunfo em conhecer é uma derrota dos princípios. Em retrospecto, estamos condenados a este triunfo de Pirro: produzimos os objectos de estudo como determinados e conhecidos, e apenas podemos ressalvar que o não são. Quem nos crê? Muita gente.



NEW CRITICISM



Bib.:



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Greenblatt, Stephen

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Américo António Lindeza Diogo