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Gênero misterioso

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Como a sua própria designação aponta, este género centra-se no surgimento ou na prévia existência de um mistério que urge resolver, com particular relevo para a busca da respectiva decifração. Na grande maioria das narrativas integráveis no misterioso, o enigma é quase sempre resultante de (ou associado a) determinada ocorrência insólita que permanece por explicar ou envolta numa teia de secretismo, como a perseguição, o assassinato, o desaparecimento de uma pessoa ou a vingança tenebrosa. Daí, por sua vez, decorre em geral uma acção frequentemente rica em suspense ou, mesmo, atemorizante, ainda que nunca inclua, pelo menos de forma explícita, situações de algum modo conotáveis com o sobrenatural. Ao longo dela, encontrar a solução do enigma pelos mais diversos meios constituirá a preocupação dominante de certas personagens, uma das quais desempenha em regra uma função central no decurso da intriga.

Assim, as realizações possíveis do género estendem-se por um amplo espectro, conforme o teor insólito da acção evocada e a complexidade do que se pretende averiguar. Entre a vasta gama de textos por ele abarcada, contam-se a simples adivinha, o romance policial, o romance de espionagem, o thriller e, mesmo, as narrativas de terror não sobrenatural. Daí, naturalmente, decorrem narrativas com esquemas diegéticos muito diversificados. Surgem, assim, problemas de solução mais ou menos difícil, questões de vida ou de morte envolvendo indivíduos, instituições ou estados, bem como situações em que, por momentos, se tornará admissivel a intervenção de alguma entidade alheia à natureza conhecida. No tocante a estas últimas, o misterioso ronda uma zona imprecisa em que certos textos podem já revelar algumas semelhanças com o género estranho. A fronteira entre as duas classes de narrativas poderá ser delimitada de forma razoavelmente aproximativa mediante comparação entre The Hound of the Baskervilles (1902) de Arthur Conan Doyle e Ten Little Niggers (1939) de Agatha Christie. O primeiro romance, explicando racionalmente, após o climax, a presumível entidade sobrenatural, não deixa quaisquer dúvidas quanto ao facto de se circunscrever ao estranho. O segundo ( cuja acção, apesar da sua índole perturbante, em momento algum aparenta ostensivamente ser invadida por manifestações alheias à natureza ) situa-se numa área algo periférica do misterioso, onde também se integram as narrativas de terror não sobrenatural. A vertente enigmática do misterioso já surge em alguns dos textos mais antigos de várias literaturas como as adivinhas. De há muito correntes na tradição oral e perdurando até à actualidade sob diversas formas, aquelas propõem em regra charadas, expressões com significado oculto ou perguntas habilidosas e não raro enganadoras cuja decifração ou resposta adequada exigem elevados graus de perspicácia e imaginação. Por outro lado, tanto o mistério considerado insondável como o enigma a solucionar têm aparecido ao longo da história quase universalmente associados a mitos, divindades e religiões. Caso emblemático de profundo alcance literário e cultural, o mito de Édipo envolve não só o conhecido problema com que a esfinge confronta o herói, mas também o facto de este cometer crimes horrendos (parricídio e incesto) cuja índole monstruosa apenas mais tarde vem a descobrir.

Embora muito antigo, o interesse dos escritores pelas potencialidades estéticas do mistério acentuou-se assinalavelmente durante a vigência do Romantismo, em particular com a voga do romance gótico. No século XIX, Edgar Allan Poe terá sido a figura literária que delas se serviu de modo mais inovador, realizando superiormente o género. Tal sucede com textos de características não obstante algo diversas, entre as quais se contam “The Murders in the Rue Morgue” (1841), “The Mystery of Marie Roget” (1842), “The Purloined Letter” (1845), “The Cask of Amontillado” (1846) ou “Hop-Frog” (1849). Enquanto os três primeiros evidenciam os traços básicos da narrativa de detecção, mais conhecida por romance policial, os restantes, embora com eles mantenham óbvias afinidades genológicas, são típicas histórias de terror não sobrenatural.

De resto, a mesma diversidade se verifica em textos como, por exemplo, The Thirty-Nine Steps (1915) de John Buchan, The Long Good-bye (1953) de Raymond Chandler, “The Golden Girl” (1964) de Ellis Peters ou Tinker, Taylor, Soldier, Spy (1974) de John Le Carré. A extraordinária multiplicação das obras daqueles dois tipos, a par do thriller e das narrativas de espionagem ao longo do século XX, o seu não raro assinalável interesse estético e ideológico, assim como a respectiva diversidade temática e caractereológica, parecem plenamente susceptíveis de garantir ao género uma fecunda longevidade.

LITERATURA DE ESPIONAGEM; ROMANCE GÓTICO; ROMANCE POLICIAL; thriller

Bib.:Michael L. Cook, Mystery, Detective, and Espionage Magazines (1983); David I. Grossvogel, Mystery and its Fictions (1979); David Skene e Anne Skene Melvin (eds.), Crime, Detective, Espionage, Mystery, and Thriller Fiction and Film: A Comprehensive Bibliography of Critical Writing Through 1979 (1980)

Filipe Furtado

Movimento Futurista

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Movimento artístico e literário que teve origem no início do século XX, antes da Primeira Guerra Mundial, e que se desenvolve na Europa, sobretudo em Itália, com os trabalhos de F. T. Marinetti, que estudara em Paris, onde publicou La conquête des étoiles (1902) e Destruction (1904), livros que despertaram o interesse de escritores de créditos já firmados na época como P. Claudel. Como principais representantes da escola italiana de Marinetti temos : Paolo Buzzi (1874-1956), Ardengo Soffici (1879-1964), Giovanni Papini (1881-1956), Enrico Cavacchioli (1884-1954), Corrado Govoni (1884-1965), Aldo Palazzeschi (1885-1974), Luciano Folgore (1888-1966). Mas foi Marinetti o maior protagonista do futurismo e foi ele quem elaborou o primeiro manifesto futurista, publicado em Le Figaro, em 1909, cujo original em italiano contém as seguintes premissas:



1. Noi vogliamo cantare l’amor del pericolo, l’abitudine all’energia e alla temerità.

2. Il coraggio, l’audacia, la ribellione, saranno elementi essenziali della nostra poesia.

3. La letteratura esaltò fino ad oggi l’immobilità pensosa, l’estasi e il sonno. Noi vogliamo esaltare il movimento aggressivo, l’insonnia febbrile, il passo di corsa, il salto mortale, lo schiaffo ed il pugno.

4. Noi affermiamo che la magnificenza del mondo si è arricchita di una bellezza nuova: la bellezza della velocità. Un automobile da corsa col suo cofano adorno di grossi tubi simili a serpenti dall’alito esplosivo... un automobile ruggente, che sembra correre sulla mitraglia, è più bello della Vittoria di Samotracia.

5. Noi vogliamo inneggiare all’uomo che tiene il volante, la cui asta ideale attraversa la Terra, lanciata a corsa, essa pure, sul circuito della sua orbita.

6. Bisogna che il poeta si prodighi, con ardore, sfarzo e munificenza, per aumentare l’entusiastico fervore degli elementi primordiali.

7. Non v’è più bellezza, se non nella lotta. Nessuna opera che non abbia un carattere aggressivo può essere un capolavoro. La poesia deve essere concepita come un violento assalto contro le forze ignote, per ridurle a prostrarsi davanti all’uomo.

8. Noi siamo sul promontorio estremo dei secoli!... Perché dovremmo guardarci alle spalle, se vogliamo sfondare le misteriose porte dell’Impossibile? Il Tempo e lo Spazio morirono ieri. Noi viviamo già nell’assoluto, poiché abbiamo già creata l’eterna velocità onnipresente.

9. Noi vogliamo glorificare la guerra -sola igiene del mondo- il militarismo, il patriottismo, il gesto distruttore dei libertarî, le belle idee per cui si muore e il disprezzo della donna.

10. Noi vogliamo distruggere i musei, le biblioteche, le accademie d’ogni specie, e combattere contro il moralismo, il femminismo e contro ogni viltà opportunistica o utilitaria.

11. Noi canteremo le grandi folle agitate dal lavoro, dal piacere o dalla sommossa: canteremo le maree multicolori o polifoniche delle rivoluzioni nelle capitali moderne; canteremo il vibrante fervore notturno degli arsenali e dei cantieri incendiati da violente lune elettriche; le stazioni ingorde, divoratrici di serpi che fumano; le officine appese alle nuvole pei contorti fili dei loro fumi; i ponti simili a ginnasti giganti che scavalcano i fiumi, balenanti al sole con un luccichio di coltelli; i piroscafi avventurosi che fiutano l’orizzonte, le locomotive dall’ampio petto, che scalpitano sulle rotaie, come enormi cavalli d’acciaio imbrigliati di tubi, e il volo scivolante degli aeroplani, la cui elica garrisce al vento come una bandiera e sembra applaudire come una folla entusiasta.

(Le premier Manifeste du futurisme : édition critique avec, en fac-similé, le manuscrit original de F.T. Marinetti, Éditions de l’Université d’Ottawa, 1986)



Marinetti apelava não só a uma ruptura com o passado e com a tradição mas também exaltava um novo estilo de vida, de acordo com o dinamismo dos tempos modernos.

No plano literário, a escrita e a arte são vistas como meios expressivos na representação da velocidade, da violência, que exprimem o dinamismo da vida moderna, em oposição a formas tradicionais de expressão. Rompe-se com a tradição aristotélica no campo da literatura, que já estava enraízada na cultura ocidental. O futurismo contesta o sentimentalismo e exalta o homem de acção. Destaca-se a originalidade, que Marinetti procura pelo elogio ao progresso, à máquina, ao motor, a tudo o que representa o moderno e o imprevisto. No Manifesto Técnico da Literatura (1912), Marinetti evoca a libertação da sintaxe e dos substantivos. É neste sentido que os adjectivos e os advérbios são abolidos, para dar mais valor aos substantivos. A utilização dos verbos no infinito, a abolição da pontuação, das conjunções, a supressão do “eu” na literatura e o uso de símbolos matemáticos são medidadas inovadoras. De igual modo, aparecem novas concepções tipográficas ao surgir a recusa da página tradicional. Assim, procura-se a simultaneidade de formas e sensações e é na poesia que o futurismo encontra a sua melhor expressão.

O futurismo influenciou a pintura, a música e outras artes como o cinema. Neste aspecto, Marinetti sugeriu que se fizesse um filme futurista que surgiu com o título Vida Futurista (1916). Neste filme, levantaram-se problemas de âmbito social e psicológico. O cinema era então visto como uma nova arte de grande alcance expressivo.

Com o começo da Primeira Guerra Mundial, os valores do mundo tradicional são postos em causa e daí que se agrave um clima de tensão social que se vinha arrastando por alguns anos. Os valores ditos burgueses começam a serem questionados e o mesmo acontece às formas de arte que representam esse mundo. Consequentemente, o futurismo surge como resultado dessa ruptura na arte, assim como o criacionismo, o dadaísmo, o cubismo, o ultraísmo, o orfismo e o surrealismo. O futurismo foi responsável pelo aparecimento de numerosos manifestos e exposições que provocaram escândalos.

O futurismo sempre teve a sua faceta política. Marinetti fomenta o esplendor da guerra, do militarismo, do patriotismo, e depois torna-se um defensor convicto do fascismo italiano. O futurismo caracteriza a vida moderna na sua fragmentação, nos contrastes de classes, na agressividade social e por isso se serve dos manifestos para a retórica política.

O futurismo difunde-se em vários outros países, para além da Itália e da França, incluindo Portugal. Segundo Pedro Oliveira, o jornal português Diário dos Açores seria o único a reproduzir o primeiro manifesto futurista de Marinetti e a publicar uma entrevista do mesmo teorizador. Posteriormente, Mário de Sá-Carneiro e Álvaro de Campos aderem ao futurismo, assim como José de Almada Negreiros com o Manifesto Anti-Dantas (1916), onde se apresenta como poeta futurista do Orpheu. Apesar de só terem saído dois números desta revista, ela conseguiu escandalizar a burguesia, ameaçada pelo poder monárquico que podia derrotar as instituições republicanas. Daí o aparecimento da expressão “escândalo do Orpheu”, pela não aceitação das provocações de alguns elementos da revista. Apesar do desaparecimento do idealismo da Águia, o Orpheu garante um maior fortalecimento da estética futurista e da agressividade que lhe é inerente. De facto, Portugal ao entrar na Primeira Guerra Mundial justifica as “Exortações da Guerra” de Almada e o ano de 1917 é de grande importância para o futurismo, pois é nesse ano que ocorre a “Sessão Futurista no Teatro Republicano”, se divulga o “Ultimatum Futurista às Gerações Portuguesas do Século XX” de Almada e se lança a revista Portugal Futurista, que continha textos de Apollinaire, Almada e Álvaro de Campos. Importa destacar as condições em que Fernando Pessoa reconhece o futurismo nas sua própria poesia. Em carta ao Diário de Notícias, esclarece: “O que quero acentuar, acentuar bem, acentuar muito bem, é que é preciso que cesse a trapalhada, que a ignorância dos nossos críticos está fazendo, com a palavra futurismo. Falar de futurismo, quer a propósito do primeiro número do Orpheu, quer a propósito do livro do Sr. Sá-Carneiro, é a coisa mais disparatada que se pode imaginar. (...) A minha Ode Triunfal, no primeiro número do Orpheu, é a única coisa que se aproxima do futurismo. Mas aproxima-se pelo assunto que me inspirou, não pela realização - e em arte a forma de realizar é que caracteriza e distingue as correntes e as escolas.” (Carta datada de 4-6-1915, in Obras em Prosa, vol.V, org. de João Gaspar Simões, Círculo de Leitores, Lisboa, 1987, pp.208-209). Álvaro de Campos foi directamente influenciado por outra das grandes figuras de inspiração dos poetas futuristas, o norte-americano Walt Whitman. No Manifesto Futurista está a recusa da arte dominante que é o simbolismo, e, neste sentido, temos o anti-aristotelismo de Álvaro de Campos e o Manifesto Anti-Dantas de Almada. A revista Portugal Futurista sai logo de circulação pelo seu aspecto provocatório. De facto, o futurismo surge como um escândalo (ao gosto dos futuristas) e se as notícias nos jornais não foram muitas, elas foram suficientes para a transmissão do pensamento futurista e sua consolidação como movimento de vanguarda. Politicamente, vivia-se uma situação de intolerância ideológica que não foi atenuada com a subida ao poder de Sidónio Pais. Com o desaparecimento prematuro de Amadeo e Santa-Rita Pintor, em 1918, e com a dispersão de outras personalidades do futurismo, este acabaria por se dissipar.

Um outro país a sofrer a influência futurista foi o Brasil, onde se ansiava romper com os movimentos estéticos anteriores e, por outro lado, inovar no plano nacional.

No extremo oriental da Europa, a Rússia é um dos polos privilegiados no desenvolvimento do futurismo que surgiu com o manifesto Uma Bofetada no Gosto Público, assinado por D. Bourlyok, A. Kroutchoykh e V. Mayakovsky. Os futuristas russos opunham-se às vanguardas simbolistas e eram considerados como representantes de um importante aspecto do vanguardismo russo. Surgem grupos como o cubo-futurismo e o ego-futurismo. É de notar o papel determinante que o futurismo teve na literatura russa, pois é bem capaz de ter influenciado indirectamente o surrealismo, o cubismo, o expressionismo e o dadaísmo. O futurismo influenciou as teorias dos formalistas russos no manuseamento livre das palavras, no verso livre, na nova sintaxe. De facto, o futurismo inovou na poesia e na prosa ao caracterizar a arte de forma geométrica e abstracta. Queriam criar uma nova linguagem poética, liberta de todo o tipo de restrições e que fosse distinta das formas tradicionais de arte. Este tipo de atitude consiste num desafio ao que os escritores futuristas como Kamensky, Mayakovsky e Khlebnykov designam por sociedade burguesa decadente, aliada a uma autocracia czarista. Os futuristas russos estiveram ligados ao fascismo. Pode-se dizer que proclamavam uma utopia socialista, um novo paraíso terrestre e daí a adesão à Revolução. Depois da Revolução de Outubro deu-se a ascensão do fascismo e muitos futuristas começaram a destacar-se no plano oficial da literatura. Apesar da arte se comprometer com a política, o movimento morre na década de vinte.

MODERNISMO

Bibliografia: Cesare C. De Michelis: Il Futurismo Italiano in Russia 1909-1929 (1973); Enrico Crispolti: Il mito della macchina e altri temi del Futurismo (1969); Fernando Alvarenga: A Arte Visual Futurista em Pessoa (1984); Giovanni Lista: Futurisme, Manifestes, Proclamations, Documents (1973); João Alves das Neves: O Movimento Futurista em Portugal (1966); José Mendes Ferreira: Antologia do Futurismo Italiano (1979); Krystina Pomorska: “Formalismo e Futurismo” (1972); Malcom Bradbury e James McFarlane (eds.): Modernism: 1890-1930 (1983); Marjorie Perloff: The Futurist Movement. Avant-Garde, Avant Guerre and the Language of Rupture (1986); Maria Drudi Gambillo e Teresa Fiori: Archivi del Futurismo (1962); Id.: Le Futurism: 1909-1916 (1973); Nuno Júdice (org.): Poesia Futurista Portuguesa (1981); Nuno Júdice e Gustavo Nobre: Portugal Futurista (1990); Luciano de Maria,: Marinetti e il Futurismo (1973); Zbigniew Folejewski: Futurismo and its Place in the Developement of Modern Poetry: A Comparative Study and Anthology (1980).

http://users.iol.it/della.corte/futura/manifesto1909.htm

http://www.unknown.nu/futurism/manifesto.html

http://colophon.com/gallery/futurism/

Dina Moniz e Carlos Ceia

Uma elegia ao pathos

Na sua origem grega (elegeia), radicará quer a filiação formal de um género autónomo, nomeadamente face à lírica, quer a filiação temática orientada para o pathos, com os consequentes temas do lamento, da dor e da melancolia. Todavia, registos há de subgéneros distintos centrados tanto na moral (Sólon, Teógnis de Mégara) como no erotismo (Mimnerno). Será aliás por via deste último assimilada pela poesia romana (Catulo). Por seu turno, a dimensão bucólica existente na elegia grega poderá ainda estar na origem da vertente pastoral que ecoará, mais tarde, em Itália (Tasso , Ariosto). Devido à influência italiana, essa vertente surgirá em Espanha (Garcilaso de la Vega, Lope de Vega) e em França (Ronsard, Marot); através desta última abre-se caminho para a sua introdução em Inglaterra (Spenser). Orientada para o pathos , a elegia revelara-se, contudo, quer nos primórdios da literatura inglesa em Bewolf (o lamento sobre a morte do herói), quer em Chaucer (Book of the Duchess), vindo a conhecer, ao longo dos tempos, cultores de vulto (entre outros, e numa dimensão anglo-saxónica, Donne, Milton, Pope, Wordsworth, Tennyson, Hopkins, Swinburne, Hardy, Yeats, Auden, Thomas, Heaney). Nos Estados Unidos da América, elegia revela-se ainda em plena época colonial (Ane Bradstreet, Edward Taylor), tendo, todavia, atingido o seu momento mais alto, no século XIX, com Walt Whitman (“When Lilacs Last in the Dooryard Bloom’d”, elegia dedicada a Lincoln). Sob influência italiana, a elegia portuguesa (Sá de Miranda, António Ferreira, Camões, Diogo Bernardes) expandir-se-á para outros temas (o amor, o belo, a religiosidade, o patriotismo). Num plano mais geral, essa expansão para outros temas persistirá no século XX, nomeadamente ao abraçar o plano político (Owen, nas elegia sobre a I Guerra Mundial, Celan, nas elegia sobre as vítimas do Holocausto, ou Heaney, nas elegia sobre os mortos no conflito irlandês). Por outro lado, a elegia revelará ainda uma estratégia de auto-subversão do género (Thomas, “A Refusal to Mourn the Death, by Fire, of a Child in London”) e, sob a influência da psicanálise freudiana, de desmontagem do seu próprio objecto (Plath, “Daddy”). Por seu turno, a elegia de Lowell aos mortos da Guerra Civil americana (“For the Union Dead”), expõe um olhar onde a memória histórica e a individual (freudiana) se tornam indissociáveis. Ainda em Portugal, Eugénio de Andrade contaminará o pathos, na elegia ao pai, com a sedução pela imagem de alguém que apenas através dela se construiu e conheceu.

ODE

Bib.: A. F. Potts: The Elegiac Mode (1967); C. M. Bowra: Early Greek Elegies (1938); ELEGIA Camacho Guizado: La elegía funeral en la poesía española (1969); F. Beissner: Geschitdte der deutschen Elegie (1941; 2ªed., 1961); H. Potez: La’ Élégie en France avant le romantisme (1970); J. W. Draper: The Funeral Elegy and the Rise of Romanticism (1929); Mary Lloyd (ed.): Elegies, Ancient and Modern (1903).

Mário Avelar

Historiografia Crítica

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

História
Estevão de Rezende Martins
Universidade de Brasília
1. Cultura, ciência, teoria e filosofia

O séc. XX consagrou quatro abordagens da idéia de história. Essas abordagens lidam com duas acepções básicas de história. A primeira, e elementar, que se relaciona primariamente com o aspecto cultural e com a reflexão filosófica, considera a história como o processo temporal interpretado e vivenciado pelo homem — pelo agente racional humano — no presente, como sentido de que tem consciência. A segunda, construída pelas opções do método de investigação, é o fundamento da ciência histórica e de epistemologia, e toma a história como a reconstrução do passado humano, individual, grupal ou social, mediante procedimentos previamente convencionados de controle das fontes, se forma a que se elaborem interpretações explicativas fundamentadas do estado de coisas presente. A explicação fundamentada se estrutura em argumentos, expressos em formato narrativo. O estado de coisas presente é relativo ao tempo respectivamente elegido e delimitado como objeto de exame.

O termo "história", na língua portuguesa — como nas neolatinas, de modo geral — remete a três sentidos distintos, articulados com as abordagens mencionadas. O primeiro, e mais generalizado, refere-se ao conjunto das ações humanas no tempo, cuja efetuação se deve a razões e a decisões. Esse conjunto é habitualmente chamado de história, na linguagem comum e na especializada. O segundo sentido diz respeito ao procedimento formal de constituição do conhecimento científico relativo a partes desse conjunto. Também aqui se usa o termo "história", embora se tenha registrado mais recentemente o uso crescente das expressões "ciência histórica" e "história como ciência". Trata-se aqui de um esforço metódico de distinguir o caráter científico (controlável) do conhecimento obtido por procedimentos metódicos de investigação da acepção de senso comum. O terceiro sentido do uso do termo "história" tem a ver com o acervo produzido pela ciência histórica sob a denominação de "historiografia". Também a esse conjunto de documentos, majoritariamente em forma escrita (mas não exclusivamente, pois inclui por exemplo as diversas variações do documento visual composto, como os filmes, notadamente os documentários), se chama "história".

Esta reflexão lida com a história em duas das acepções lembradas acima: a) preliminarmente, a história como cultura — isto é, como pensamento e consciência da experiência do tempo elaborada e interiorizada pelo homem; b) a história como ciência, como especialidade cognitiva formalizada de maneira epistêmica para construir e enunciar uma interpretação explicativa fundada da experiência humana do tempo enquanto ação. Para a primeira como para a segunda, toma-se como base empírica a produção historiográfica notadamente da segunda metade do séc. XX.

Para pensar de forma fundamentada é necessário conhecer e dominar as regras e os princípios desse pensar, ou seja: um conhecimento que não se constitui sem que o pensamento reflita sobre si mesmo. Assim, a racionalidade do pensamento histórico requer, em seu procedimento científico, um saber metateórico, reflexivo, no estilo da teoria da história — enquanto teoria da natureza do conhecimento histórico em geral e de seu formato científico em particular. Esse objetivo epistemológico exige, por sua vez, a devida investigação dos fundamentos do pensamento histórico. Isso porque qualquer ciência impõe a seus praticantes prestar contas a si mesmos e a todos os demais sobre o respectivo modo de pensar A ciência da história inclui, por conseguinte, em seu cânone metodológico, a "teoria" como lugar dessa prestação de contas, e não faltam historiadores que tenham assumido essa obrigação (Cf., por exemplo, Vainfas e Cardoso 1997).

Como as ciências sociais em geral, a historiografia passou por um progresso extraordinário depois da segunda guerra mundial. É possível que tenha faltado, no entanto, impulso suficiente para criar o que o historiador alemão Jörn Rüsen chamou de a "matriz disciplinar" indispensável ao progresso global da historiografia como investigação social auto-suficiente e coesa. Embora não se possa afirmar que a história seja disciplina recente, os contornos que assumiu, nas duas fases decisivas do séc. XX, nos anos vinte-trinta e a partir dos anos cinqüenta, constituem uma renovação e mesmo uma redefinição contemporânea.
2. A época dos grandes paradigmas

No séc. XIX as concepções de história e de historiografia passaram por uma mudança gigantesca e decisiva. Consagrou-se assim o séc. XIX como "o século da história". Sem dúvida foi ainda mais decisivo — embora essa perspectiva nem sempre tenha estado presente — o salto dado no segundo terço do séc. XX e seus prolongamentos até nos anos setenta. Não obstante, a análise dos progressos da historiografia em nosso tempo deve ser feita mediante o contraste com o séc. XIX, sem o qual não se pode perceber o alcance das mudanças do séc. XX.

Se o séc. XIX tem, em todo caso, uma importância transcendental para as origens da disciplina da historiografia em seu estado atual tal se deve ao fato de que ocorreu durante ele um fenômeno único, de desdobramentos porém complexos. Trata-se do abandono das concepções relativas à investigação e à escrita da história que formaram a tradição européia praticamente desde o renascimento e talvez mesmo desde a antigüidade clássica. As diversas escolas e correntes historiográficas do séc. XX coincidem pelo menos em um ponto: deixam de considerar a história como uma crônica baseada nos testemunhos legados pelas gerações anteriores e entendem-na como uma investigação, pelo que a palavra história recupera seu sentido originário em grego (investigação).

A evolução decisiva da historiografia aparece com o que se pode chamar de fundamentação metódico-documental, basilar para a disciplina "acadêmica" contemporânea, produzida pelos tratadistas do séc. XIX e da primeira década do séc. XX. Tem-se aqui a origem da grande corrente historiográfica que se chamou — de forma algo exagerada mas não totalmente imprópria — de historiografia positivista, intimamente entrelaçada com a forte tradição do historicismo alemão. É no séc. XIX que aparecem os primeiros grandes tratados do que se poderia chamar de normativismo histórico, um tipo de reflexão novo sobre a história, chamado de Historik por Johann Droysen.

Essa mudança profunda e duradoura do horizonte dos estudos historiográficos, cuja influência se estende até os anos trinta do séc. XX, é habitualmente creditada às contribuições trazidas por uma corrente chamada, sem esforço maior de precisão, de positivismo. De outro lado, o historicismo alemão é amiúde considerado a maior contribuição do séc. XIX em matéria de concepções da natureza do histórico e da identidade da historiografia. Ambas etiquetas requerem cuidadosa modulação. Com efeito, o que se chama de "historiografia positivista" não deixa de estar interpretado por um equívoco persistente. Muitas vezes chama-se de positivista, sem mais nem menos, uma concepção da historiografia essencialmente narrativista, episódica (factual), descritiva, fruto de uma erudição bem à moda do séc. XIX. Na realidade, esse tipo de historiografia é o exemplo mais típico da "história tradicional", mas não tem porque ser necessariamente confundido com a historiografia "positivista". A historiografia positivista é a dos "fatos" estabelecidos mediante os documentos, indutivista, narrativa, por certo, mas também sujeita a um "método". A escola que se costumava chamar de "positivista" pode ser também denominada — com mais propriedade — de "escola metódica", já que sua preocupação número um é a de dispor de um método. Essa escola, que fundamentava o progresso da historiografia no trabalho metódico das fontes, sempre mostrou a mais ríspida aversão a qualquer "teoria" ou "filosofia". Isso não diminui todavia em nada sua dependência imediata da concepção positivista da ciência. Essa a razão pela qual pode ser chamada de escola pragmático-documental ou metódico-documental.

A "disciplina" da historiografia, no sentido moderno do termo, foi fundada, pois, na transição do séc. XIX para o XX, mediante um primeiro corpo de regras e normas metodológicas fixado sob influência do positivismo e do historicismo. Nas décadas de 1920 e sobretudo de 1930, no entanto, mudanças fundamentais se produziram tanto na maneira de considerar as formas constitutivas da historiografia quanto em muitos outros campos da criação intelectual. A transição da primeira concretização da disciplina historiográfica na linha metódico-historicista para as novas concepções que rejeitam os fundamentos postos pela historiografia do séc. XIX só vem a produzir-se no entreguerras, mais precisamente nos anos 1930, e sua consagração afinal ocorre apenas após a segunda guerra mundial, nos anos 1940-1950.

Os três grandes núcleos da inovação historiográfica que predominaram na segunda metade do séc. XX — a historiografia marxista, a escola dos Annales e a historiografia quantitativa — surgiram e se articularam, é certo, em torno de centros de interesse bem diversos e alcançaram graus muito distintos de coesão e homogeneidade. O paradigma relativamente unitário para a historiografia conformado no séc. XIX foi sucedido no séc. XX, não por um outro, mas por vários outros, criando uma situação nova. Parte substancial desta novidade está não apenas na multiplicidade de paradigmas, mas especialmente na circunstância de que os paradigmas operaram de modo praticamente simultâneo, sem constituir uma seqüência de substituições.

Desde a perspectiva com que podemos avaliar hoje essa história, pode-se ver que os anos posteriores à segunda guerra mundial representaram, no desenvolvimento da historiografia contemporânea, uma verdadeira revolução, paralela e conexa com fenômeno análogo ocorrido nas ciências sociais e nas ciências em geral. Existe contudo um pormenor diferenciador, neste período peculiar: enquanto o marxismo e o quantitativismo podem ser considerados núcleos paradigmáticos com ampla projeção no campo geral das ciências sociais, de onde evoluíram até alcançar a historiografia, no caso do marxismo por certo com determinadas conotações particulares, a escola dos Annales foi o primeiro movimento historiográfico do séc. XX que se origina no próprio campo da investigação histórica. (Costuma-se indicar o ano de 1929 como a data de nascimento da corrente de trabalho historiográfico que acabou por ser conhecida como a "escola dos Annales". Quanto a sua difusão, contudo, somente a partir de 1950 é que ela se torna referência. Neste ano realiza-se em Paris o 9.o Congresso Mundial das Ciências Históricas, durante o qual as novas concepções historiográficas tiveram, por assim dizer, sua efetiva estréia mundial. Foi nos anos 1950 que a historiografia brasileira começa a mostrar os primeiros sinais de recepção desta tendência.) O marxismo, por sua parte, foi a teoria das ciências humanas que deu à historiografia uma dimensão de maior alcance no campo teórico geral da realidade histórica.

A contribuição dos Annales significou um desenvolvimento extraordinário de temas novos e um interesse marcante pelo emprego de novos tipos de fonte. Ambas as tendências se reforçaram ao longo da evolução da escola, promovendo — o que é de particular importância — um relacionamento inteiramente renovado da prática historiográfica com as ciências sociais como a geografia, a sociologia, a antropologia, a economia. Esse relacionamento interdisciplinar, no período áureo de influência da escola, fê-la predominar ao ponto de poder falar em uma preeminência "imperial" dos Annales. É a alguns historiadores desta escola — como nos Écrits sur l'Histoire (1969) de Fernand Braudel, por exemplo — que se devem os primeiros passos de formulação do conceito de "história total", cunhado pela pretensão de abranger todos os aspectos da ação racional humana — ou pelo menos de deixar o mínimo deles de lado — por oposição aos conceitos, desgastados pela ilusão positivista, de "história universal" ou "história geral". Do interior mesmo da escola jamais saiu, todavia, uma aproximação sistematizada de uma teoria histórica da sociedade. Os Annales produziram, de modo prático (se não pragmático) trabalhos metodicamente inovadores, desbravaram campos longamente tidos por estranhos ao saber histórico, por assim dizer romperam com os escrúpulos de abordar setores do agir humano que parecessem escapar ao olhar histórico — notadamente a ruptura do tabu referente ao documento escrito. Poucos formularam, contudo, contribuições teóricas quanto à natureza do conhecimento histórico, à constituição da ciência histórica, enfim à história como disciplina por si mesma.

A influência do marxismo foi profunda na trajetória das ciências sociais, particularmente desde os anos 1930 e, em especial, dos decênios que e se seguiram à segunda guerra mundial. Essa expansão da metodologia marxista nas ciências sociais em seu conjunto teve, no caso da historiografia, um impacto talvez ainda maior, pela natureza mesma da construção teórica marxista, cujo fundamento é a análise da história. Nos países ocidentais falou-se de uma historiografia marxista francesa (Labrousse, Vilar, Lefebvre, Soboul, Bouvier), de uma inglesa (Dobb, Hill, Hobsbawm, Hilton, Thompson, Samuel, Anderson), de uma italiana (Sereni, Zangheri, Procacci, Romeo, Barbagallo), de uma espanhola (Fontana, Tuñón, Elorza, Pérez Garzón, Ruiz), de uma brasileira (Caio Prado Jr., Gorender, Nelson Werneck Sodré, entre outros). Diversamente da escola dos Annales, cujo âmbito é quase que exclusivamente francês, o marxismo possui uma difusão e uma importância de natureza supranacional. No entanto, através um conjunto de princípios comuns, deixa ela perceber a marca nacional concreta que inspira o desenvolvimento geral da filosofia e da teoria social marxista em cada caso.

O materialismo histórico se enuncia na obra de Marx e Engels na encruzilhada decisiva dos anos quarenta do séc. XIX. Sua primeira formulação elaborada aparece já na "Ideologia Alemã", escrita por Marx e Engels em 1845-46, mas publicada quase um século depois. Pierre Vilar recorda que a obra de Marx "introduziu a história no campo da ciência", embora o conceito de história desde uma perspectiva marxista ainda não estivesse acabado. Indicou também que Marx é o "primeiro estudioso que propôs uma teoria geral das sociedades em movimento", o que constitui, sem dúvida, uma brilhante forma de remeter a uma definição do histórico que faz justiça ao entendimento de Marx a esse respeito. Vilar insiste ainda que uma "teoria geral" não é uma filosofia.

O método de análise marxista de todo o processo histórico tem como eixo a dialética. Não é porém simples explicar o que se quer dizer com dialético, para além da idéia das contradições inerentes a toda realidade — tese e antítese — e sua superação em nova síntese. Para o marxismo, essas contradições não se produzem, como queria Hegel, em um movimento de idéias, mas sim nas condições materiais básicas. As "relações de produção" são a categoria absolutamente distintiva de cada estágio histórico. Tal relações de produção são um reflexo do estado da "forças produtivas", mas aquelas não estão necessariamente sujeitas a estas, de forma que em determinadas conjunturas históricas ambos elementos entram em contradição produzindo um conflito básico que dá lugar à mudança histórica. Os estágios históricos determinados pela natureza das forças e relações de produção existentes são pensados pelo marxismo como "modos de produção", que são tanto uma construção categorial e um modelo metodológico como, em termos reais, um estágio histórico. No plano das realidades históricas concretas, todavia, os modos de produção não se apresentam nunca da maneira que o modelo parece estabelecer, mas com peculiaridades que obrigam a introduzir o conceito de "formação social" específica.

Josep Fontana caracterizou o desenvolvimento do materialismo histórico, desde a morte de Friedrich Engels em 1895 até os dias de hoje como um "duplo processo de desnaturalização e de recuperação", em boa parte simultâneos. Com a morte de Engels sobrevém uma primeira crise, em cujo contexto se desenvolve um revisionismo como o representado por Eduard Bernstein na Alemanha. O marxismo, na realidade, levou muitos anos a chegar plenamente aos círculos acadêmicos, em especial no campo da historiografia.

A historiografia marxista francesa centrou sua atenção em determinados temas escolhidos: a história do movimento operário — tomando como referência inaugural a revolução francesa — abrindo assim o espaço das muitas variações conhecidas sob a designação genérica de história social. Um aspecto, enfim, que não pode ser deixado de lado é o da importância da história à luz da teoria marxista, ou os aspectos sociais da própria prática do historiador. Além de Vilar, recorde-se Balibar, na esteira de Althusser, G. Dhoquois e Jean Chesnaux, cujo texto sobre a impossibilidade de se ignorar o passado concreto trouxe importante corretivo à perspectiva marxista da utopia revolucionária.

Desde a segunda guerra mundial surge na Inglaterra uma extraordinária geração de historiadores que estavam em princípio ligados ao partido comunista britânico. Sob a inspiração e o ensino de Maurice Dobb e mais distante de R. H. Tawney, criou-se uma das "escolas marxistas" cuja contribuição para a historiografia social é das mais densas e coesas, sem estar entrevada por rigidez metódica e demonstrando possuir vasta capacidade de renovação. O marxismo foi determinante para a renovação da historiografia britânica enraizada, até a segunda guerra mundial em sua sempiterna tradição liberal (whig) cujos expoentes eram A. J. P. Taylor, H. Trevor-Ropper ou G. Elton.

Mesmo que se fale indiscriminadamente de uma historiografia marxista inglesa, é certo que estamos diante de autores diversos, cujas perspectivas historiográficas não coincidem monoliticamente. Um primeiro grupo pode ser visto nos historiadores que de uma ou outra forma estiveram ligados ao partido comunista e se exprimiram mais freqüentemente na New Left Review, dentre os quais se destaca Edward P. Thompson, certamente o mais original e criativo, responsável por marcante evolução no uso do aparato conceitual de inspiração marxiana, ao dedicar-se às questões culturais, desde um ponto de vista anti-estrutural, abordando as formas de representação e manifestação dos conteúdos de classe. O aspecto mais significativo desse conjunto de marxistas britânicos está sobretudo no que produziram em termos de fundamentação conceitual. A maioria dos historiadores vinculados a essa tendência influenciou tanto a pesquisa histórica concreta quanto a definição de processo histórico e dos fundamentos da disciplina. Destaca-se nesse grupo a obra de Eric J. Hobsbawm, sem a menor dúvida a de maior amplitude de visão e a mais abrangente de temas não umbilicalmente presos à história britânica. Destaque merece também a extensa e tanto ou mais influente obra de Edward P. Thompson, angular para a história do operariado inglês e determinante da redefinição dos termos de influência do pensamento marxista na historiografia, com sua Miséria da Teoria, em que polemiza duramente com Louis Althusser.

Thompson rechaça veementemente o que chama de "teoricismo" de Althusser quanto a uma história que concebe "assepticamente", ignorando o imperativo da base empírica da investigação, sem a qual nenhuma teoria toma assento. Trata-se ainda de uma polêmica acerca da perspectiva "culturalista" que Thompson adota em sua análise, questão por certo a mais discutida inclusive dentro do campo marxista. Thompson sempre insistiu no processo de criação de uma cultura específica de classe mediante as lutas sociais. Para ele, classe só surge no processo de combate social, ao longo do qual se constituem formas culturais peculiares nos e dos membros da classe. Classe não é, pois, uma estrutura mas uma cultura. É contudo equivocado ver nisso tudo um conflito irredutível entre dois marxismos, o inglês e o francês. A polêmica com Althusser fora precedida por outras entre os historiadores ingleses — sempre a propósito da interpretação da história da Grã Bretanha — e Thompson não oferece uma alternativa ao teoricismo que critica. Da crise geral do marxismo começou-se a falar no final da década de 1970. Até esse momento já se dispunha de um substancial acervo de produção historiográfica de inspiração marxizante. Os historiadores consideravam que o marxismo continuava sendo um instrumento de análise adequado, desde que depurado de seus dogmatismos e das amarras partidárias após profunda autocrítica. O marxismo dos últimos vinte anos do séc. XX abriu-se assim à diversidade e à pluralidade das ciências sociais, libertada das coerções de fidelidade partidária e inovadora na pesquisa e nos campos de aplicação.

O quantitativismo na historiografia é uma corrente que marcou a produção historiográfica dos anos 1960 e 1970 em muitos países, em especial nos Estados Unidos (mas também na França), afetando campos de estudo histórico amplos. Pode-se distinguir uma metodologia quantificadora aplicável a uma vasta área de estudos sócio-históricos, e não apenas ao âmbito próprio à historiografia, e um paradigma quantitativista da explicação do social, questão que apresenta implicações cognitivas muito mais fortes e abrangentes.

O movimento quantitativista iniciou-se na história econômica, na qual é essencial até hoje, pelo menos desde os anos 1930. No panorama atual da historiografia, raros são os setores de investigação cujo horizonte seja a quantificação ou, mais ainda, o quantitativismo, mesmo no caso particular da história econômica. Por isso convém proceder, na história chamada quantitativista, malgrado sutilezas de pormenor, de dois grandes grupos de orientação. Um é o representado pela cliometria, termo cunhado para referir o quantitativismo estrito, expresso na matematização de modelos específicos de comportamento temporal, pretendendo "explicar" formalmente os processos históricos de longo prazo. O outro se pode definir como uma história estrutural-quantitativista, que recorre em ampla medida à estatística, à informatização, à quantificação, enfim, de uso instrumental, subsidiando a especificação de "estruturas" econômicas, sociais ou culturais, no quadro de explicações mais complexas do fenômeno social da história, não redutível à linguagem formal da matemática. A época clássica da historiografia quantitativa foi, sem dúvida, a dos anos 1960. Para ela, os historiadores "científicos" aplicam ao estudo da história métodos quantitativos e modelos de comportamento elaborados pelas ciências sociais. A história "científica", por conseguinte, seria a que se integrasse plenamente aos métodos das ciências sociais, em especial aos da economia.
3. As crises dos grandes paradigmas

Ao final dos anos 1970, tornaram cada vez mais evidentes sinais de "esgotamento" dos três grandes modelos historiográficos predominantes no período subseqüente à segunda guerra mundial. A busca de novas formas de representação nas ciências sociais tem início nessa quadra de 1970. A crise já vinha aparecendo em algumas ciências sociais vizinhas, a começar pela antropologia. Não é de estranhar, portanto, que a influência dessa mudança na antropologia tenha influenciado alguns intentos inovadores na historiografia.

O inegável progresso historiográfico alcançado no período de 1940 a 1970 levou afinal a disciplina a um grau de desenvolvimento irreversível, mas dando sinais de saturação. O abandono das fórmulas historiográficas mais influentes nos anos 1960 não foi seguido do aparecimento de um novo paradigma abrangente. A multiplicidade de abordagens e práticas metódicas caracteriza os anos 1980 e 1990. A maior parte das novas propostas, os esboços de novos modelos historiográficos, concentram-se na apresentação de escritos de reflexão, de fundamentação, de método e de teoria, quando não de exortação e normalização.

Nos anos oitenta constata-se uma mudança no panorama das tendências e ensaios no campo da teoria e da pesquisa social em seu conjunto, incluída a historiografia em todas as suas variações. O panorama ao final do séc. XX pode ser caracterizado das mais diversas maneiras, mas certamente se impõe o aspecto de certa dispersão, rica em propostas inovadoras, fértil em modismos e abundante em "releituras". A época das grandes propostas paradigmáticas, como as do marxismo, dos Annales e do quantitativismo estrutural, que se estendeu dos anos 1940 até os 1980, cedeu à fase da crise dos paradigmas e da busca de novas formas de investigação e de expressão. Assim, ao encerrar-se o séc. XX, a grande linha de desenvolvimento que fez da história um inegável êxito cognitivo ao longo de mais de cinqüenta anos, parece ter sofrido uma forte inflexão, da qual resultou a perda de atrativo da história-ciência em benefício da história-ensaio.

No panorama de pesquisas aparentemente sem um norte definido emergem as buscas conscientes de novos modelos historiográficos. A tendência, pois, a articular padrões metódicos e bases teóricas abrangentes permanece um traço característico do esforço científico. Três campos historiográficos podem servir de exemplo dessa busca renovada de recentrar o objeto e o modo de o trabalhar. Um é o da chamada microhistória, cujo objetivo, entre outros, foi o de promover a volta do sujeito individual do histórico. Outro é o da nova história cultural, que incorpora as questões da representação e das formas lingüísticas de apreensão do mundo pelo sujeito individual ou coletivo. Um terceiro corresponde a uma forma de ressurgimento da história social e da sociologia histórica, que se rotula de ciência histórica sócio-estrutural.

O último quartel do séc. XX apresenta-se, em dúvida, como uma fase de grandes mudanças. Mudanças econômicas e políticas, mas igualmente mudanças do padrão metódico do conhecimento científico do homem e de seu agir. A evolução das ciências sociais inclui a historiografia que se formou entre os três grandes paradigmas do século: a dispersão algo narcisista dos Annales e de seus seguidores, o escolasticismo dogmático do marxismo (influente nas ciências sociais em geral) e o controvertido quantitativismo (também presente em outras ciências sociais). Formaram-se assim os descontentamentos com o que a historiografia vinha produzindo, de que é exemplo o intenso e algo disparatado debate sobre o pós-modernismo.

Ninguém contesta, por certo, que essas três grandes concepções da historiografia (em parte rivais), assim como suas bases crítica e técnica, deixaram ao menos um legado relevante e impossível de ignorar para qualquer progresso ulterior. Pretender abstrair delas é tão frívolo quão pouco plausível. No entanto, na historiografia contemporânea continuam existindo não poucos trabalhos que contêm fortes traços tradicionais da história "exemplar", descritora dos "bons" temas, fornecedora das análises "certas" e propositora da explicação "correta".

Sob a influência geral de uma atitude intelectual e artística nova, ampla e difusa, de uma sensibilidade cultural conhecida como pós-modernismo, a concepção da velha disciplina historiográfica parece ser arrastada para a uma espécie de criação literária, análise semiótica, exploração microantropológica, em direção a um relativismo geral que rejeita as pretensões anteriores de encontrar "explicações", mais ou menos apoiadas em teoria, do movimento histórico. A nova forma apropriada do discurso histórico seria, por conseguinte, de acordo com esses pontos de vista, a narrativa, na sua mais simples expressão de relato. A crise produziu, ao que parece, no mundo da historiografia, dois tipos de realidade. Uma delas é desvalorização dos fundamentos anteriores da prática do historiador, em função da qual se produziram buscas por caminhos externos à própria historiografia: a recepção da problemática pós-moderna em geral se encontra nessa ordem de reação. Outra é a resposta à crise produzida desde o próprio seio da historiografia e com seus próprios instrumentos, dada por historiadores mais imunes às influências externas, buscando "novas" concepções e campos da pesquisa histórica, dado o esgotamento dos antigos.

No primeiro conjunto de respostas é difícil — pelo menos atualmente — ver mais do que "revisões", "releituras", ou lampejos efêmeros, importados, produtos uma vez mais da influência de modismos ou mesmo de tendências mais duradouras, mas pouco praticantes do método disciplinar historiográfico, de cunho ensaístico. São as orientações pós-modernas. O segundo conjunto de respostas, produto da própria reflexão historiográfica, mas que recebeu também não poucas críticas externas, acarretou o aparecimento de propostas pragmáticas para novos enfoques da historiografia: enfoques temáticos, metodológicos, que assumem de novo traços de outros campos de investigação. Três dessas propostas merecem, seguramente, consideração especial: a da micro-história, a da história sócio-estrutural e a da história sócio-cultural.

O paradoxal, neste caso, é que uma disciplina como a historiografia, na qual a "teorização" do objeto sempre foi extremamente tênue, tenha visto nos anos 1980 o surgimento de uma forte tendência "antiteórica". Isso não pode ser mostra de cansaço ou esgotamento quanto a uma reflexão pouco praticada, ao menos pouco sistematizada. Antes, trata-se de uma evidência da pouca solidez teórica da história. Uma matriz disciplinar insuficientemente assentada levou à rejeição da história "naturalizada", cujo decalque do modelo das ciências naturais havia conduzido a histórias "problemáticas", o que por sua vez levou à valorização do "contar histórias", quase sem compromisso com garantias de verdade ou mesmo apenas verossimilhança, refugiado na liberdade literária. O pós-moderno construiu seu (relativo) sucesso sobre a crítica ao modelo racionalista, identificado com o projeto da modernidade, no formato do despotismo metódico tardio do séc. XIX. Seu equívoco, que transparece no final dos anos 1990 sob a forma de desencanto com os resultados obtidos, foi o de ter confundido a concepção de razão iluminista com a faculdade racional humana de reflexão crítica e de promoção do agir. A dispersão decorrente da nova liberdade plena de estilo teve duas conseqüências nefastas para a especificidade historiográfica. Uma foi a dissolução da abordagem histórica, sua instrumentalização pelas demais áreas de conhecimento. O segundo efeito consistiu numa perda de consistência da historiografia como fator explicativo da realidade social, cuja consistência era (e é) esperada tanto pelos estudiosos quanto pelos integrantes das respectivas comunidades, a partir de cujo passado se conta poder construir uma explicação consistente do presente e uma intelecção útil do futuro.

No último quartel do século 20 duas são as tendências mais marcantes e cuja identificação apresenta menos dificuldades para a historiografia: o abandono das posições marxistas e a influência polivalente da análise da linguagem. Em parte essa evolução se deve ao abalo causado pela crítica pós-moderna, que mostrou o quão frágeis eram as pretensões uniformizadoras dos modelos anteriores e chamou a atenção para a diversidade cultural multifacetada das idéias e as ações humanas.

Certas dimensões da posição pós-moderna influíram nas concepções gerais das ciências sociais, de forma que essa influência pode ser tida como um dos ingredientes mais fortes da "crise" por que passam estas. O pós-modernismo foi alimentado pela obra de alguns ensaístas sobre a cultura, filósofos, teóricos da literatura, lingüistas e antropólogos. Sua influência sobre o pensamento historiográfico é inegável, sobretudo na concepção do "discurso historiográfico". A análise crítica da incidência pós-moderna na prática e na reflexão historiográfica contemporânea não é tarefa fácil por causa da heterogeneidade desta corrente de pensamento.

É, no entanto, indiscutível que o debate relativo ao significado da história e acerca da natureza da "escrita da história", incentivado pelo pós-modernismo, está estreitamente relacionado com a questão de nossa "representação lingüística" do mundo, tomando como ponto de partida o que a filosofia contemporânea convencionou chamar de "giro lingüístico". Isso se reflete na preocupação com as formas da linguagem humana como definidoras da "realidade" e com a manifestação intelectual que veio a chamar-se de "pensamento fraco" e que impregna de alguma maneira o pós-modernismo em seu conjunto. O correto parece, pois, deter-se no giro lingüístico aparecido no pensamento filosófico em meados dos anos 1960.

O assunto que importa aqui especialmente é o da "explicação do mundo" como resultado da linguagem com que tentamos captá-lo e que foi muito além do estrito âmbito filosófico em que surgiu, atingindo a prática do campo completo das ciências humanas e sociais, incluindo por certo a historiografia. A análise da linguagem conduzira à análise do discurso, e desta à análise da escrita da história como uma forma de discurso. Essa forma especial que é a história escrita foi tratada dentro do problema geral da natureza e do significado da linguagem. O que o discurso, o texto, a escrita são, com relação à linguagem, nos remete ao problema do que tais coisas significam na intelecção do passado.

A escrita da história também ocupou lugar nas preocupações da lingüística pós-estruturalista e do desconstrucionismo, uma das variantes da primeira, que fala da necessidade de descodificar todo texto. É evidente que a discussão da natureza da linguagem humana, e a dos textos escritos, e de seu alcance exato para explicar o homem, têm certa incidência sobre a concepção do histórico e, consequentemente, sobre a idéia do que consiste a prática historiográfica. O desconstrucionismo apareceu, em certas ocasiões, como a expressão mais acabada desta ideologia do pós-modernismo como teoria da linguagem e da representação — ou de sua impossibilidade — mediante a linguagem. A questão é que o desconstrucionismo atinge a noção de "fonte histórica" e a idéia mesma da possibilidade da transmissão da imagem histórica. Afeta medularmente também a concepção habitual de "objetividade" do conhecimento expresso por uma linguagem. O desconstrucionismo implica, em suma, a não-diferença entre realidade e linguagem: todo o real, para o ser, tem de estar elaborado como linguagem.

Mas se bem podemos falar de uma especulação filosófica e lingüística sobre a historiografia a partir das posições do pós-modernismo, é mais difícil fazê-lo a partir de uma produção historiográfica específica que se possa chamar de pós-moderna. Não obstante, a influência cultural de tal forma de pensar deixa seqüelas claras, como propugnadora da morte da teoria. Uma historiografia pensada pelo pós-modernismo condena definitivamente o marxismo. Isso foi perfeitamente entendido por F. Jameson, ao qualificar o pós-modernismo como mais um dos produtos culturais emblemáticos do capitalismo tardio. É por isso que parece estranho que, enquanto os pós-modernos recomendam e louvam a morte da teoria, precisamente os fundadores da teoria crítica literária, à qual se filia boa parte das idéias pós-modernas, defendem uma "teoria da criação". Nesse meio tempo, a crítica literária pós-moderna, que antes sustentava coisas do tipo "a claridade é uma forma de opressão fascista", volta a recomendar a leitura dos textos "referenciados" ao mundo exterior.

Até que ponto esse complexo de atitudes pós-modernas afetou a historiografia ainda está por ser avaliado, como afirmou Jörn Rüsen. De imediato, isso significa o abandono de duas idéias tipicamente modernas acerca da história: a de que esta abarca todo o desenvolvimento temporal e a de que seu curso é o progresso da racionalidade. Por outra parte, o pós-modernismo é também uma demissão, com sua rejeição de toda teoria — especialmente do marxismo — sob o disfarce de buscar novas aproximações da ação humana. Para o pós-modernismo, alguém teria inventado — indevidamente — a idéia de que é possível "explicar" algo.
4. Novos modelos de historiografia?

Qual é realmente a verdade acerca da história (historiografia) hoje produzida? Essa pergunta se inspira do título de um livro recente de três historiadores da cultura, que colocam a questão da pertinência objetiva da história na era do excesso de dados, informações, pontos de vista. Sem dúvida a questão da verdade "na" história e "sobre" a história é uma das trazidas ao primeiro plano pela análise do discurso. A verdade deve ser restaurada como uma das especificidades do discurso histórico, perante a pretensão de uma história-ficção. Na historiografia de hoje como na mais antiga, nada menos problemático do que essa questão. O que não é pouco, pois — com a abundância e a variedade das fontes — há, por assim dizer, mais "história" do que antes.

Verdadeiramente nunca se dispôs de tantos livros de história como depois da segunda guerra mundial, com forte incremento a partir dos anos sessenta. Nunca os historiadores produziram tanto "stultifying trivial", como julga o historiador tradicional J. H. Hexter, em que se teria perdido muito do "rigor and sophistication of method". Parece claro, certamente, que a nova busca de novos modelos de historiografia é também uma das presenças sentidas numa época em que as buscas, e nem sempre as descobertas, são o que caracteriza inconfundivelmente o panorama.

São três as tendências que se destacam contemporaneamente: a microhistória e a nova história cultural, que têm relação explícita com diversas das idéias e posições do pós-modernismo, e a "ciência história sócio-cultural", expressão de ampla abrangência introduzido por Christopher Lloyd para abarcar a proposta historiográfica que se reclama dessas três esferas: ciência, história, sociedade e cultura (cf. Lloyd 1996). O certo é que nenhuma nova historiografia parece deixar de reconhecer a influência de uma sorte de cultural turn, o que representa uma nova concepção teórica abrangente da história como ciência integradora dos fatores de constituição da identidade subjetiva e objetiva dos agentes racionais humanos, individual e coletivamente (cf. Martins 2002, esp. cap. 1-3).

Estevão de Rezende Martins
Referências

* Vainfas, R. e Cardoso, C. F. (orgs.). 1997. Os Domínios da História. Rio de Janeiro: Campus.
* Lloyd, Chr. 1996. As Estruturas da História. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
* Martins, E. de Rezende. 2002. Cultura e Poder. Brasília: IBRI/FUNAG.

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O baile de máscaras da literatura

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

* Máscara

Todo o objecto que se coloca em frente à face, escondendo-a, em vários contextos, como, por exemplo, no Carnaval e em certas obras teatrais. Para muitos povos, as máscaras são consideradas objectos mágicos, dando aos seus utilizadores poderes especiais. As máscaras são ainda usadas em todo o tipo de rituais iniciáticos e outros, possuindo um simbolismo muito complexo, diferente de sociedade para sociedade. As máscaras fúnebres, usadas em muitas civilizações em pessoas normalmente de certa importância, pretendem conservar a imagem do defunto, representando uma certa ideia de permanência. À máscara associa-se normalmente esta ideia de permanência, mas também de esconderijo da pessoa e de identificação com aquilo que pretende representar, sendo esta última ideia a que subjaz à máscara teatral.

No teatro grego, a máscara servia para dar aos actores a sua personagem, a sua persona (= máscara). As máscaras eram tipificadas, correspondendo a um tipo de personagem pré-determinado, tendo também expressões faciais imutáveis que indicavam o destino último da personagem. Escondendo o rosto, os actores representavam usando apenas o tom de voz e o gesto. Ao longo do desenvolvimento do teatro, as máscaras foram sendo abandonadas, embora haja casos de reaparição, como na Commedia dell’Arte italiana. As máscaras cómica e trágica do teatro grego ainda hoje representam, em conjunto, o teatro: afinal, os actores, ao assumirem uma personagem, estão ainda a colocar uma máscara sobre si mesmos. De certa forma, a maquilhagem e o guarda-roupa mantém a ideia de máscara, ou seja, de substituição da pessoa do actor por uma persona durante o tempo que dura a representação. Ainda hoje, a máscara strictu sensu é usada em teatros de civilizações distintas da ocidental.

Na literatura em geral, a máscara, para além de tema de variados contos, romances e peças, é usada como símbolo da assumpção duma identidade diferente da original ou como símbolo do esconder dessa mesma identidade (lembremo-nos apenas das máscaras dos super-heróis da banda desenhada, que não só assumem uma identidade diferente usando máscaras, como escondem a anterior, mantendo-as separadas). Aliás, as palavras pessoa e personagem têm como base a palavra persona, máscara em grego. O termo persona designa hoje, tecnicamente, a personagem criada pelo autor para a criação poética e para as narrativas na primeira pessoa, lembrando que o autor no texto é sempre uma máscara, uma criação, mesmo quando o autor pretende identificar o narrador consigo próprio. Qualquer personagem numa obra é sempre descendente da máscara grega, é sempre uma construção duma identidade outra.

COMMEDIA DELL’ARTE; PERSONA; TEATRO

Bib.: Patrice Bollon: Morale du masque (1990)

Marco Neves

Os formalistas da literariedade

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

No início do século XX, um grupo de teóricos da literatura, mais tarde denominados formalistas russos (Cf. EIKHENBAUM, B. et alii. Teoria da Literatua. Porto Alegre: Globo, 1976) imaginou que seria possível constatar uma propriedade, presente nas obras literárias, que as caracterizaria como pertencentes à literatura. Para denominar esta propriedade, criaram o termo literaturnost, que foi traduzido para a língua portuguesa como literariedade. Mas será que esta propriedade existiria mesmo?

A resposta poderá ser decepcionante, para o leitor interessado apenas em opiniões definitivas e irrefutáveis, porque há argumentos tanto a favor de um sim quanto de um não.

A argumentação positiva sustentaria que existe a "literariedade", porque podemos verificar objetivamente a existência de propriedades ou características que, quando presentes em uma obra qualquer, permitem-nos não só classificá-la como literária, como também inscrevê-la em um estilo de época. A "literariedade" seria aquela propriedade, caracteristicamente "universal" do literário, que se manifestaria no "particular", em cada obra literária.

Contudo, é bom lembrar que, em vez de imaginar que a "literariedade" é um universal que se manifesta no particular, podemos também supor o contrário: a "literariedade" seria um particular que se pretende universal. Nesta perspectiva, "literariedade" seria um rótulo que receberiam os critérios socialmente estabelecidos para se considerar uma obra como pertencente à literatura. Assim, o pesquisador selecionaria, dentre todas as obras de natureza verbal, aquelas que possuíssem a tal "literariedade", para formar a lista das obras reconhecidas como literárias.

Por outro lado, a argumentação contra a existência de uma propriedade que possibilitasse a identificação de uma obra como literária afirma que o termo "literariedade" não teria um conteúdo permanente, mas variável. Em outras palavras, Roman Jakobson poderia ter-se equivocado, ao imaginar a "literariedade" como "aquilo que faz uma mensagem verbal uma obra de arte" (Ibidem, p. IX.), porque "aquilo" variaria de acordo com o momento. Poderia ser algo diferente, caso adotássemos o ponto de vista do Renascimento ou do Modernismo, por exemplo.

No entanto, se concebermos a "literariedade" como sujeita a mudanças, será que isto não significaria que não podemos mais determinar, com um certo grau de precisão, o que vem a ser literatura? Como então ficariam os estudos literários, se seu objeto não tem delimitação precisa?

Para começar, a própria mudança nos critérios e concepções sobre o que é literatura pode ser matéria de estudo para o estudioso da literatura. Quando se volta para o que o passado considerou literatura, ele confronta a sua perspectiva presente com as anteriores. Os modos de produção de sentido do presente interrogam os do passado, a formação social dele entra em contato com outra formação, às vezes profundamente diferente da sua. Mas, se podemos verificar, em diversos momentos, modificações nas concepções e critérios sobre o que é literatura, será que isto nos conduziria necessariamente a um ceticismo de tal ordem que passaríamos a duvidar da própria possibilidade de existência de um objeto de pesquisa, suficientemente delimitado? Não, pois a mudança não implica necessariamente caos ou anomia. Na verdade, em cada período histórico podemos observar uma certa ordem, a partir da qual se estabelecem, com maior ou menor rigidez, as fronteiras do literário.

LITERATURA

Bib.: Boris Eikhenbaum et alii. Teoria da Literatura (1976); José Luís Jobim: A poética do fundamento – ensaios de teoria e história da literatura (1996); Pavel Medvedev [M. Bakhtin]: The Formal Method in Literary Scholarship (1976); Frederic Jameson. The Prison-House of Language (1972)

José Luís Jobim

Ideologia! Eu quero uma pra viver...

terça-feira, 20 de outubro de 2009

O conceito de ideologia ocupa a posição de pedra angular no seio da arquitectura terminológica e conceptual do materialismo histórico. Dada a extraordinária influência exercida por Marx nos mais diversos campos das ciências humanas, este termo adquiriu um estatuto transdisciplinar dificilmente equiparável, pelo que o podemos hoje ver a permear outros discursos e práticas críticas. É devido a esse mesmo estatuto que as correntes de teoria literária pós-estruturalistas, nomeadamente aquelas que mais directamente tocadas foram pelas propostas foucaultianas e barthesianas, o vão recuperar e reequacionar junto de outros conceitos — como é, por exemplo, o caso da cultura, raça, história e inconsciente — com os quais ele dialoga e interage.

Para a sua abordagem não podemos partir de pré-conceitos erróneos resultantes do desgaste e erosão a que o termo tem vindo a ser submetido na retórica política quotidiana e pressupôr que ideologia mais não é do que sinónimo impreciso de manipulação política ou alienação religiosa. É certo que tais acepções terão a sua razão de ser histórica e não podem por isso ser escamoteadas (iremos, a seu tempo, revê-las). O perigo para que advertimos, todavia, habita precisamente nas zonas cinzentas da perspectivação redutora e simplista da teoria marxista e de um conceito que — note-se a ironia da História — acaba por ser vítima de si próprio, i. e., a ideologia vista pelos olhos da ideologia. Qualquer revisitação da sua origem, evolução e implicações ao nível da teoria literária impõe, desde logo, o derribar de obstáculos epistemológicos resultantes de vícios de pensamento e de hábitos irreflectidos e acríticos de olhar e interpretar os fenómenos sociais. Importa, por isso, chamar a atenção para os efeitos orbitais que a força gravitacional da ideologia opera sobre o homem social e, em particular, sobre o sujeito do conhecimento. Se o que nos interessa é, sobretudo, recuperar a ideologia enquanto conceito operatório chave de uma metodologia de análise literária que procura desvelar a complexa rede de relações que se estabelece entre o texto e o contexto, entre o produto e as condições de produção e recepção, então há que desconstruir o termo e expôr os múltiplos sentidos (alguns deles contraditórios) que lhe foram sendo atribuídos ao longo dos seus dois séculos de existência.

Embora no escrutínio do termo partamos do pressuposto de que a dicotomia operatória entre ciência e ideologia — ou melhor, entre um olhar objectivo e ideologicamente isento e um olhar cego às fronteiras da sua forma de pensar e agir — é válida e teoricamente possível, isso não implica que a primeira, tal como adverte Jürgen Habermas ou Paul Ricoeur, não possa vir a ser instrumentalizada (por exemplo, com o fim de legitimar um regime tecnocrático) pela segunda. O mesmo se poderá dizer em relação à própria reflexão da teoria literária. Caso esta erradicasse do seu vocabulário e da sua especulação este termo, correria o risco de permanecer insensível às armadilhas do dogmatismo metodológico, como ocorreu nas décadas de 50 e 60 com os estruturalistas em França, ou de ser seduzida quase acriticamente pelos ecos da terminologia da economia de mercado, como sucede presentemente com os adeptos do neo-historicismo norte-americano.

Mesmo este discurso, produto material sujeitável às engrenagens da distribuição e circulação da sociedade capitalista, deixará transparecer ao leitor mais avisado a ideologia a que nos submetemos. Não é apenas através da escolha do próprio tema, da selecção dos autores nele analisados, ou da prática de um ritual académico, que isso se torna visível. Também é por aquilo que suprime, eclipsa e ignora (no sentido freudiano). Inclusivamente o recurso ao vocabulário específico das ciências humanas e sociais, ainda que válido em termos operatórios e supostamente transparente (que o mesmo é dizer invisível), não deixa de se destinar a um público-alvo — neste caso a comunidade académica—, cuja especificidade do universo de referências culturais e de valores se demarca da dos restantes grupos sociais. E precisamente porque corrobora a exclusividade da linguagem em circulação nesse meio, este discurso também é um produto ideológico que serve fins ideológicos. Qualquer reflexão deste termo no «espelho diabólico» da História é um especular sobre o modo como se reflecte a si próprio, um mise-en-abîme teórico do qual não há fuga possível.

Não só porque a discussão do termo «ideologia» se encontra materializada nas diferentes práticas críticas distribuídas ao longo da História, mas também porque o conceito reage mutatis mutantis a essas práticas consoante condicionantes ideológicas de cada período de forma diferenciada, para a sua abordagem contribui a adopção de uma perspectiva diacrónica que dê conta da sua evolução.

Radica no iluminismo francês, mais precisamente na figura de Destutt de Tracy (1754-1836), a origem do termo «ideologia». Devedor das teses de Bacon (1561-1626) e de Condillac (1715-1780), de Tracy buscava fundamentar uma ciência que desse conta das leis e dos mecanismos universais conducentes à génese das ideias. A sua investigação processava-se não por via de uma reflexão de cariz metafísico, como à primeira vista poderia parecer, mas sim por via de uma reelaboração, ao abrigo do espírito das Luzes, do empirismo lockeano, que via na natureza receptiva dos sentidos a raíz do conhecimento. Pretendia-se então que este estudo sistemático e positivo das ideias (e, por extensão, da própria consciência), legítimo antepassado da psicologia, se constituísse como a ciência primeira da qual todas as outras dependeriam, dado que todo o conhecimento científico estaria baseado, em última análise, na elaboração e combinação de ideias. Todavia, o ambicioso projecto de de Tracy não se limitaria a conceber a ideologia como tendo apenas uma função de charneira a nível epistemológico. Também pretendia que o seu objecto de estudo se estendesse ao domínio social. Através da ideologia não só se acederia a uma melhor compreensão dos modos de pensamento do ser humano, mas também dos fenómenos de ordem social e política, donde seria possível conceber e planificar uma reorganização das estruturas sociais e políticas com vista à sua adequação às verdadeiras necessidades dos indivíduos. Que tal estudo fosse inserido, por muito paradoxal que nos possa parecer hoje em dia tal posição, como um ramo da zoologia no quadro taxinómico das ciências naturais, mais não era do que consequência da crença naturalista de que todos os seres humanos eram, tal como os restantes animais, parte integrante da realidade material e, como tal, sujeitos às mesmas condições de existência.Não obstante a radical transformação conceptual do termo operada décadas mais tarde por Marx e Engels, um dos postulados mais importantes dos ideólogos sobreviveu até hoje subliminalmente no seio das correntes de pensamento marxista, a saber: as ideias e a consciência são determinadas em última análise pelas condições materiais de existência.

A entrada do termo na gíria política e a sua utilização como arma demagógica foi da responsabilidade de Napoleão. Precisamente porque constituíam os ideólogos um dos baluartes do pensamento republicano que se opunha às aspirações autocráticas daquele, tornava-se necessária não apenas a sua contestação, como sobretudo o seu descrédito. Buscando um bode expiatório para as insuficiências do seu regime, Napoleão teria acusado de Tracy e os seus seguidores de contribuírem para a desestabilização política do país e para o clima de insatisfação então reinante no seio da sociedade francesa. Mais tarde, Marx e Engels, aproveitando-se da conotação negativa que o termo entretanto adquirira, reformularam-no à luz de uma crítica da filosofia política e utilizaram-no pejorativamente em A Ideologia Alemã (1845-6) para se referirem ao pensamento dos hegelianos. Nesta obra, propunham a camera oscura como metáfora ilustrativa (povoada de ressonâncias da caverna platónica) do modo como a ideologia invertia as imagens oriundas do real, condenando assim o sujeito social a habitar num mundo espectral e fantasmático, onde a sua relação com o material não era directa; antes se processava por via de ilusões. Consequentemente as ideias com que esse sujeito operaria no universo das relações sociais encontravam-se distorcidas e, uma vez que não correspondiam a uma representação exacta da realidade, acarretavam um conhecimento intrinsecamente erróneo da mesma. Toda a forma de consciência que ignorasse os procedimentos analíticos propostos pelo tipo de crítica filosófica cunhada por estes dois Autores era, portanto, falsa . Daí que a aparência de que os factos históricos e sociais estariam para além do controlo humano não só reforçaria o sentimento de impotência face à consumação dos mesmos, como também lançaria sobre eles o véu da naturalização , i.e., o tomar por natural o que é artificial, por autónomo o que é dependente da invenção humana. Ainda em 1886, escrevia a este respeito Engels: “[T]oda a ideologia, uma vez que surge, se desenvolve em conjunto com o material de ideias dado, desenvolvendo-o e transformando-o por sua vez; de outro modo não seria uma ideologia, isto é, uma elaboração de ideias concebidas como entidades com existência própria, com uma evolução independente e apenas submetidas às suas próprias leis. Tais homens ignoram forçosamente que as condições materiais da vida do homem, em cujo cérebro se desenvolve este processo ideológico, é que determinam, em última análise, o desenvolvimento de tal processo, pois que, se o não ignorassem, ter-se-ia acabado toda a ideologia.” (F. Engels, «Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã», in K. Marx e F. Engels, Textos Filosóficos, p. 90). Se ficou claro no discurso determinista e anti-idealista deste Autor que, por um lado, são as circunstâncias materiais a condicionar e a moldar as formas e os sistemas de pensamento dos diferentes grupos sociais, e, por outro, «a relação social [...] toma [...] a forma fantasmagórica de relação entre coisas», põe-se então a questão de saber quais as causas do processo de inversão. Como explicar a inversão se toda a actividade intelectual tem a sua génese nas condições materiais de existência? Em parte poderíamos aceitar a argumentação de que, uma vez que toda a consciência é prática, ou seja, possui uma determinada função política no palco da luta de classes, nomeadamente estabelecer relações de dominação e subalternidade entre elas, é essa consciência igualmente obrigada a comportar todo um conjunto de contradições insanáveis que resultam da confrontação, por um lado, da tentativa de legitimação do poder (que se quer eterno e imutável) do grupo social detentor dos meios de produção com o quadro mais vasto do devir histórico, por outro. Daí a necessidade de solucionar tais contradições por via de uma inversão da imagem do real. Isto, porém, não explica a unidireccionalidade que se pretendeu imprimir à relação realidade / ideologia, ou, para utilizar o vocabulário da Contribuição para a Crítica da Economia Política (1859), à relação base / superstrutura. Pois não é a ideologia também parte da própria realidade, i. e., não se reflecte ela nas práticas materiais da sociedade? Não é a sua existência que permite que determinadas estruturas económicas se mantenham inalteradas durante largos períodos de tempo?

Outro problema que igualmente se levanta é aferir o grau de autonomia do analista, da sua linguagem, e do estatuto do seu trabalho científico face ao contexto histórico e social em que se insere. Se é certo que, para Marx, toda a reflexão científica do social tem de contar com a instância última e absoluta da História, também não deixa de ser verdade que ela terá de se processar através da língua que mais não é, di-lo n’O Capital, do que um produto social. Nesta condição, cada palavra está constantemente sujeita — consoante as transformações das relações sociais — a oscilações semânticas que podem, se não mesmo pôr em causa, pelo menos interferir na desejada precisão terminológica. Além disso, não pode o trabalho científico (ou alegadamente científico) ser coisificado e utilizado como instância ratificadora de uma dada ideologia política? O fenómeno do racismo na Alemanha nazi (Rassenlehre enquanto excrecência pseudo-científica do Rassismus), ou a apropriação política do discurso do próprio Marx (cujo busto serviu, ironicamente, objectivos iconólatras) são disso exemplos eloquentes.

Como já se deve ter tornado evidente, o recurso à metáfora da camera oscura acabaria por ainda efectuar uma outra espécie de inversão, desta feita no campo da natureza conceptual do termo: a ideologia deixava de ser uma ciência como pretendia de Tracy e passava a ocupar o campo diametralmente oposto ao do materialismo histórico, cuja análise crítica, reflectida e distanciada dos fenómenos sociais e económicos — conducente a um conhecimento «verdadeiro», «científico» — seria a única forma de escapar aos efeitos ilusórios daquela.

Com György Lukács (1885-1971), pensador marxista húngaro que se notabilizou pela apologia do realismo socialista na arte e literatura e pelo seu manifesto repúdio do modernismo, o termo procurou desprender-se de algumas limitações a que Marx e Engels o haviam submetido. Em 1923, levantava algumas pertinentes objecções às teses daqueles dois filósofos. Em primeiro lugar, criticava Marx por querer desmistificar o carácter de objectividade das instituições sociais e reduzi-las a uma simples relação entre homens. Logo a seguir, contrapondo-se a Engels, acusava-o de pretender dar demasiado relevo à falsidade da consciência de classe sem se aperceber que esta também é parte integrante da totalidade histórica e nela participa activamente. Ora, uma das premissas da análise concreta que Lukács tencionava ver implementada passava precisamente por essa perspectivação (de índole hegeliana) da sociedade como um todo organicamente articulado: só assim poderia emergir uma nova consciência social capaz de ultrapassar as contradições da ideologia dominante da sociedade burguesa. Segundo este pensador, a consciência de classe emergia da racionalização da sua própria situação no processo de produção, do modo como procurava compreender e justificar o conjunto de relações que estabelecia quer com as estruturas económicas que a sustentavam, quer com as restantes classes sociais. Seria a partir dessa racionalização que se determinariam as «acções historicamente significantes» que marcavam indelevelmente a História. É certo que a consciência burguesa pretendia ver consolidada, numa teoria abrangente e unificadora, a coerência do seu ponto de vista ao mesmo tempo que visava a legitimação do seu estatuto de hegemonia. A sua visão do mundo, no entanto, era incapaz de dar conta dos «antagonismos irreconciliáveis entre a ideologia e a base económica», entre o ensejo de domínio dos processos económicos e as forças da História, entre a defesa dos interesses de uma minoria e a totalidade social. Para a ultrapassagem desta situação, o fenómeno da luta de classes revelava-se, para Lukács, indispensável: não só entravam em campo outras formas de consciência que poriam em causa os argumentos justificativos do estatuto de supremacia da burguesia, como ainda se libertaria todo um conjunto de forças incontroláveis que haviam sido reprimidas no inconsciente da ideologia dominante. Dada a situação de exclusão do proletariado de todas as formas de Poder na sociedade capitalista, este grupo social encontrar-se-ia numa posição privilegiada para detectar e corrigir as distorções causadas pelo estigmatismo ideológico burguês e inverter os papéis dominadores-dominados. Mas fá-lo-ia (e é aqui que reside a principal contribuição deste Autor para a evolução conceptual do termo), através da sua própria ideologia, reflexiva e crítica, agora entendida não como «escudo protector», mas sim como «arma» no processo de transformação radical da sociedade. A ideologia revolucionária passava, deste modo, a integrar as qualidades epistemológicas que Marx reivindicava para o materialismo histórico. As dúvidas que, entretanto, esta argumentação nos suscita residem, por um lado, nos processos através dos quais o proletariado adquire consciência da sua situação de classe e, por outro na manutenção da capacidade de discernimento crítico após a sua tomada do Poder, já que tal capacidade surgia precisamente de uma condição de marginalização das esferas de decisão política. O que Lukács parece obliterar do seu discurso é a possibilidade de o Poder subverter ou corromper os princípios e os objectivos políticos da classe operária.

Ao contrário de Lukács, outros intelectuais procuraram dedicar-se a uma abordagem menos politicamente comprometida da ideologia. Várias correntes sociológicas — desde a Escola de Frankfurt de um Marcuse, passando por um seu herdeiro, Habermas, até ao estruturalismo genético de Lucien Goldmann — apropriaram-se do termo e moldaram-no por forma a adequá-lo às suas metodologias de análise. Visava-se agora, bem entendido, uma leitura compreensiva do universo social e não, como pretendia Lukács, a sua transformação revolucionária. Neste domínio interessa-nos focar a figura de um dos seus colaboradores na Universidade de Budapeste: Karl Mannheim (1893-1947), fundador da sociologia do conhecimento, cujos princípios foram desenvolvidos em Ideologia e Utopia de 1929. Este pensador optou, tal como Lukács, por considerar a sociedade como um todo. Só deste modo é que seria possível levar a efeito uma interpretação abrangente dos fenómenos ideológicos e estabelecer os princípios de uma teoria das ideologias. Mannheim furtava-se a emitir juízos de valor sobre as manifestações ideológicas deste ou daquele grupo social, uma vez que a reflexão que pretendia levar a cabo deveria estar isenta de alinhamentos políticos. Tal como John B. Thompson faria décadas mais tarde em Ideology and Modern Culture, Mannheim distinguia, à partida, duas concepções para o termo «ideologia»: uma particular (polémica) e outra geral. A primeira, mais próximo da imagem invertida de Marx e Engels, resultava de uma situação de conflito entre duas posições ideológicas: o crítico, desacreditando a ideologia do oponente, procurava não só validar a sua postura epistemológica, como sobretudo «denunciar» e «expôr» os mecanismos de mistificação e engano a que o oponente voluntária ou involuntariamente se sujeitava. A segunda concepção, por seu turno, acarretava uma visão mais abrangente: o que estava em causa era (à semelhança de Lukács e, mais tarde, de Goldmann) tomar em consideração a totalidade das estruturas mentais colectivas em funcionamento num determinado momento do processo histórico-social e ver de que modo se processava a sua articulação e confrontação.

Apesar de distintas, ambas as concepções estavam intimamente interligadas. Contudo, Mannheim interessava-se em especial pela concepção geral da ideologia, dado que era esta que se instituía como ponto de partida para a tal sociologia do conhecimento. Só a perspectiva globalizante permitiria descortinar de que modo se processavam as variações de sentido com que a colectividade racionalizava (note-se mais uma vez a presença de Lukács) a História e a tornava inteligível. Não obstante, a exequibilidade da teorização a este nível suscita-nos algumas dúvidas. Até que ponto é possível aceder a essa totalidade, particularmente no seio das ciências humanas? Não é a nossa interpretação das variações de sentido também passível de ser integrada nessa totalidade que nós próprios estamos a analisar? Então, assim sendo, o sujeito do conhecimento, ao mesmo tempo que procura analisar as racionalizações «racionalizando-as», torna-se igualmente objecto de si próprio, i.e., torna-se o sujeito absoluto de que Hegel nos falava. Nesse caso, fica posto em dúvida se a objectividade e o distanciamento crítico alguma vez serão possíveis. Como dirá Ricoeur: «[a teoria social] não pode efectuar a reflexão total nem aceder ao ponto de vista capaz de exprimir a totalidade que a subtraia à mediação ideológica a que estão submetidos os outros membros do grupo social.» (P. Ricoeur, Do Texto à Acção, Rés Editora, s.d., p.319).É precisamente da noção lukacsiana de que a acção que a ideologia exerce sobre a História é algo inelutável e de que ela se constitui como elemento fundamental da totalidade social que parte Louis Althusser (1918-1990), filósofo francês de inspiração marxista que marcou indelevelmente toda a actividade da teoria e crítica literárias marxistas pós-estruturalistas. A sua concepção de ideologia, tal como exposta em Para Marx (1965), revela-nos a sua radicalização de posições, senão vejamos: “Ideologia é, enquanto tal, parte orgânica de todas as totalidades sociais. É como se as sociedades humanas não pudessem sobreviver sem estas formações específicas , estes sistemas de representações (aos vários níveis), as suas ideologias. As sociedades humanas segregam ideologia como o preciso elemento e atmosfera indispensáveis à sua respiração histórica e sua vida.” (L. Althusser, «Selected Texts», in T. Eagleton (ed.), Ideology, Longman, 1994, p. 88.). O recurso à catacrese biológica não é de todo inocente. Procura-se aqui reforçar a ideia de que a relação entre ideologia e sociedade não é uma simples relação de simbiose, pois isso acarretaria que um dos termos se poderia desenvolver exogenamente relativamente ao outro; significa antes que a ideologia é uma condição sine qua non da existência social e que a sua supressão acarretaria a dissolução da própria sociedade. Nem mesmo a ciência, cujo estatuto de autonomia face à ideologia Althusser procuraria mais tarde assegurar, a poderia substituir nessa sua função vital. No decurso desta ideia, a ideologia operaria exclusivamente a nível do inconsciente e não do consciente. Ela traduzia-se, por um lado, no modo como o indivíduo vivia o mundo e a própria História e, por outro, nos processos pelos quais ele impunha a sua vontade dentro das fronteiras invisíveis do universo ideologicamente cartografado. Mas este viver o mundo não queria dizer que a relação com a realidade se processasse de forma directa: era, antes de mais, uma relação «em segundo grau» (isto é, uma relação com outra relação) — tratava-se da maneira como os homens imaginavam a sua relação com as condições materiais de existência.

Um tal casamento entre a ideologia e o inconsciente não implicava, contudo, que o sujeito se comportasse de forma instintiva e regressiva face à sociedade. Como nos diria Lacan, «O inconsciente não é nem primordial nem instintivo; o que conhece acerca do elementar mais não é do que os elementos do significante.» Do mesmo modo como Lacan estruturara o inconsciente como uma linguagem, assim também Althusser concebia a ideologia como composta por estruturas de significantes passíveis de interpretação: «A ideologia é, de facto, um sistema de representações, mas na maioria dos casos estas representações nada têm a ver com o consciente: são geralmente imagens e ocasionalmente conceitos, mas é sobretudo como estruturas que elas se impõem à esmagadora maioria dos homens e não por via da sua “consciência”.»(Idem, p. 89). De que representações e estruturas falamos? A resposta encontra-se na sua leitura d’O Capital . Ao tentar definir o que ele entendia por causalidade estrutural, Althusser apropriou-se do conceito de Darstellung («representação») de Marx, que designava «o modo de presença da estrutura nos seus efeitos ». Antes de tudo mais, isto também implicava à partida que nenhuma ideologia (estrutura) poderia pré-existir às suas próprias manifestações materiais (efeitos) como causa ausente. Então se assim era, como quereria então legitimar a trans-historicidade e imutabilidade da ideologia, como o veio a fazer em Lenin e a Filosofia(1971)? Embora esta tentativa resultasse de querer forçar a homologia entre inconsciente e ideologia (reclamou para esta o estatuto de eternidade que Freud já havia atribuído àquele), Althusser resolveu este dilema estabelecendo a distinção (com ecos mannheimianos) entre ideologias, formas particulares de sistemas de representações de uma determinada classe social inserida num contexto histórico específico, e ideologia, omnipresente ao longo da História em todas as sociedades, e que seria objecto de análise de uma teoria geral da ideologia a que se sujeitariam quaisquer estudos sobre as ideologias. Contudo, a questão mantém-se. Se as condições de existência da estrutura não podem ser dissociadas dos seus efeitos, então qualquer estudo científico que se encete sobre a ideologia, porque realizado no meio de outras práticas ideológicas, comportará subliminalmente uma re-presentação daquilo que deveria ser ela própria e a sua trans-historicidade.

Uma outra contribuição de Althusser para a evolução conceptual do termo foi considerar que a ideologia possuía uma existência material uma vez que todo o sujeito gravava na prática material quotidiana as suas ideias e crenças: «a ideologia [existe] num aparelho ideológico material, [prescreve] práticas materiais governadas por um ritual material, cujas práticas existem nas acções materiais de um sujeito agindo conscientemente de acordo com a sua crença.» No sentido aqui empregue, «material» quer dizer não somente aquilo que é tangível mas também o que é audível, legível e cogitável, que mais não significa que o discurso só existe enquanto matéria . Nestes termos, poderíamos ir mais longe que Althusser e dizer que o próprio pensamento seria um efeito de uma estrutura material, logo, uma re-presentação da materialidade (completa-se, assim, um ciclo de evolução do termo: voltamos às bases empíricas de de Tracy).

A posição de Althusser relativamente a este ponto contribui decisivamente para os estudos culturais e, mais especificamente, para os literários, porquanto tem como consequência a proposição de que todo o discurso é analisável em termos da sua incidência sobre outras práticas materiais, inclusivamente aquelas ligadas à legitimação ou contestação do Poder. Torna-se assim possível adoptar uma metodologia de trabalho transdisciplinar que, em vez de privilegiar uma leitura hermética do texto literário, o considere como fazendo parte de um corpus mais vasto de manifestações ideológicas, condicionando-as e por elas sendo condicionado.

Num audacioso gesto de pioneirismo no universo da crítica literária portuguesa, António Sérgio (1883-1968), no prefácio da segunda edição de Ensaios , preconizava já em 1949 uma nova metodologia de abordagem da obra literária ao mesmo tempo que legitimava as suas posições críticas sobre Guerra Junqueiro e António Nobre. Mais do que pretender reflectir sobre as qualidades estéticas intrínsecas aos discursos literários produzidos por estes autores, visava o Ensaísta a adopção de uma perspectiva que privilegiasse a obra enquanto «coisa social» que dialogaria simultaneamente quer com o seu contexto histórico, quer com um público politicamente sensibilizado para a sua recepção. Destarte, dissociando-se de qualquer tentativa de avaliação judicativa dos aspectos estilísticos ou de elaboração temática patentes no texto, tencionava o Ensaísta, com tal processo de coisificação social do literário, instaurar uma crítica que estaria orientada para a análise dos mecanismos de impacte ideológico e político da obra no espaço social da sua emergência. Tal démarche, uma vez que acarretaria uma revisão teórica de alguns dos pressupostos que alicerçavam a crítica literária tradicional, levou a que o Ensaísta acabasse por denunciar o erro metodológico de se confundir o valor literário de uma dada obra com o seu valor social, assim como as incongruências exegéticas resultantes da falácia intencional, nomeadamente a identificação, apesar das manifestas discrepâncias, dos sentidos atribuídos a uma obra pelo escritor com aqueles gerados pelo público leitor. Preparava-se assim Sérgio para se dedicar exclusivamente ao exame dos modos historicamente localizados de recepção e de interpretação ideológica e política do texto literário, demarcando-se, contudo, de qualquer identificação com o materialismo histórico.

Não pomos em dúvida que tal posição confirma a grande consistência do pensamento sergiano relativamente às suas preocupações de índole pedagógica, historiográfica e sociológica. No entanto, o facto é que a ênfase no divórcio — decretado entre uma crítica literária vocacionada para as questões de teor estético e outra direccionada para o enraizamento de um dado texto naquela realidade histórica que assistiu à sua génese e divulgação — pode conduzir ao pressuposto errado de que os modos de produção artística (e literária, em particular) têm uma existência independente e autónoma, tanto de outros modos de produção, como da própria ideologia dominante e da História. Ora, se é certo que podemos identificar os códigos estéticos como estando imbricados na textura do discurso literário, também não é menos certo que esses códigos não podem ser considerados como tendo sido gerados somente a partir das estruturas textuais: antes se vêem modulados e condicionados pelas formações ideológicas de determinada época que os enquadram e os tornam inteligíveis. Poderíamos até ir mais longe e afirmar, tal como o fizeram esses dois representantes da crítica literária marxista pós-althusseriana, Balibar e Macherey, que «o efeito estético da literatura» mais não é do que «um efeito de dominação ideológica». Somos, então, levados a equacionar o problema da relação entre literatura, ideologia e História de um modo diferente daquele que Sérgio concebera.

A crítica literária marxista mais recente mais não fez do que estender até campos de investigação não explorados pela crítica marxista anterior a Althusser o debate em torno do binómio ideologia - literatura. As anteriores metodologias de leitura de um Caudwell, de um Lukács ou de um Benjamin, embora igualmente empenhadas quer no exame dos mecanismos de penetração do ideológico na esfera literária, quer nas potencialidades de instrumentalização ideológica do texto (o texto como «arma» contra os vícios da sociedade capitalista), preocupavam-se essencialmente em sancionar a superioridade da ideologia socialista — mesmo que isso implicasse o risco de se ser arrastado uma prática crítica ortodoxa e prescritiva. Não é de estranhar, portanto, que Lukács acabasse por superlativizar o realismo socialista e Benjamin o teatro épico brechtiano. A literatura e a arte supremas seriam concebidas como palcos onde, por um lado, se daria voz à denúncia do decadentismo burguês e, por outro, se desenrolaria o processo de desmascaramento dos modos de naturalização do olhar, assim abrindo as portas do público leitor a uma perspectiva mais «verdadeira», mais «socialista», da realidade. As preocupações pedagógicas são por demais evidentes: a obra-literária-qua-manual-escolar inculcaria no leitor o ensejo de aceder à consciência materialista histórica, estádio final da clairvoyance marxista. Contudo, aquilo que galvanizava as atenções destes críticos recaía mais sobre as condições e os modos de produção literária do que sobre os de recepção, uma vez que jamais se duvidaria que a obra, como uma espécie de roda dentada concatenada numa bizarra engrenagem de circulação, gerasse um efeito de sentido outro que não aquele para que estaria programada. O movimento seria centrípeto: o escritor conduziria o seu leitor para cada vez mais perto das suas teses políticas e este reconheceria, seduzido, a ética infalível daquele.O legado althusseriano da materialidade da ideologia e os estudos de Foucault sobre o discurso e o poder contribuíram para deslocar irreversivelmente o centro de gravidade e estabelecer novas coordenadas. Já não bastava apregoar o primado da função social redentora do autor-produtor benjaminiano. Foucault, habilmente invertendo essa imagem, desmistificá-lo-á: «Pode-se dizer que o autor é um produto ideológico, dado que o representamos como sendo o oposto da sua verdadeira função histórica.[…] O autor é, portanto, a figura ideológica através da qual se assinala o modo pelo qual nós receamos a proliferação do sentido.» (M. Foucault, «What Is an Author?», in D. Lodge (ed.), Modern Criticism and Theory: a Reader, Longman, 1988, p. 209.) Se o autor é um produto ideológico em vez de um produtor ideológico, então toda a actividade interpretativa do texto literário dever-se-á centrar em torno das condições em que a ideologia determina e sobredetermina a constituição de sentidos (excluíndo precisamente aquilo que receamos) e os operacionaliza no quadro das relações de poder em vigor num dado período histórico. Esta mudança de perspectiva, levada ao seu extremo, pode acarretar a menorização ou a dissolução completa do indivíduo no conjunto de circunstâncias materiais que envolvem a sua prática, tornando-o um mero joguete no quadro de forças que ultrapassam a sua vontade, incapaz de discernir as contradições que resultam da fricção entre a sua ideologia e a História. Balibar e Macherey tentam atenuar os efeitos que poderiam resultar de uma tal radicalização de posições, reclamando para o escritor um estatuto de «agente material» e de «intermediário», para logo de seguida (veja-se a incongruência) o espartilhar «num espaço particular, em condições que não criou, sujeito a contradições que, por definição, não controla, através de uma divisão social de trabalho específica, própria da superestrutura ideológica da sociedade burguesa que o individualiza.» Intermediário de quê? A resposta fica por dar. Com efeito, estes dois Autores, embora rejeitando a noção de que o escritor mediatiza qualquer mensagem supra-individual, retiram-lhe autonomia crítica e fazem depender inexoravelmente a sua prática literária da ideologia dominante, das condições materiais de existência e dos meios de produção que a sociedade põe à sua disposição. Terry Eagleton, em «Towards a Science of the Text», vai mais longe e decide-se por suprimir, ou melhor, ignorar a figura do autor e não atribuir qualquer pertinência à do leitor no seu esquema de relações entre texto e ideologia. Não estaremos perante casos em que ideologia e literatura deixaram de existir em função das relações entre homens e surgem agora como «entidades com existência própria, com uma evolução independente e apenas submetidas às suas próprias leis», como acusava Engels?

A questão autoral constitui, portanto, um ponto incómodo na ordem de trabalhos do debate marxista sobre ideologia e literatura, tanto mais se pensarmos que o autor pode ser — retomando a voz de Foucault (disposto a abrir algumas excepções) — um dos tais «fundadores da discursividade», i. e., alguém cuja prática discursiva tenha tido um efeito de charneira sobre todas as outras práticas discusivas subsequentes e potenciado outras leituras do real, encontrando-se assim à margem da ideologia dominante, ou melhor, subvertendo-a e desvelando-a. Ignorar o papel do escritor na sociedade, a singularidade do seu discurso e a sua capacidade de transgressão do ideológico significaria então parar a História, impedir que formas «emergentes» (no dizer de Raymond Williams) e recalcitrantes de pensar e dizer o mundo pudessem vingar; seria, enfim, mais do que classificar como «arte degenerada» qualquer produção artística ideologicamente incorrecta, instaurar na sociedade a lei da eterna indizibilidade do novo. Se pensarmos, por exemplo, nas reacções à estreia em 1913 da Sagração da Primavera de Stravinsky e à primeira publicação em 1928 de Lady Chaterley’s Lover de D. H. Lawrence, constataremos que são bem testemunhos, entre muitos outros, da fricção ideológica entre as propostas artísticas do modernismo e o universo social em que emergiram.Uma vez que, de acordo com a crítica marxista, o escritor passa a ser um «agente material», para a interpretação do texto importarão mais as condições materiais de existência em que esse agente se insere, do que o seu estatuto enquanto sujeito criador. Balibar e Macherey, retomando os principais postulados materialistas, asseguram que toda a realidade material precede o pensamento e que este faz parte dessa mesma realidade. Assim sendo, para eles o texto literário mais não será do que um «reflexo material da realidade objectiva». A questão, todavia, não deve ser pensada em termos tão redutores: interessa igualmente descobrir o modo ideológico pelo qual essa realidade é veiculada pelo texto e como este se vai inserir nas práticas sociais enraizadas num determinado processo histórico. A literatura, é certo, acaba sempre por veicular através da língua, mais do que a realidade histórica que lhe está subjacente, a compreensão ideológica, anterior ao texto, dessa mesma realidade. Conferindo coerência e legibilidade à História e escamoteando as suas próprias contradições, esta ideologia não atravessa todavia o texto como se este de um corpo transparente se tratasse. Ao ser assimilada por este, sobre ela age todo um complexo conjunto de processos que decompõem os seus elementos constitutivos e os rearranjam através de variados mecanismos estéticos, gerando desta forma efeitos de sentido que não só a transmitem de uma forma distorcida, como também resultam na produção de uma nova ideologia (Eagleton chamar-lhe-ia «ideologia textual»). Podemos assim entender o texto, não como um mero reflexo da realidade objectiva, como pretendiam Balibar e Macherey, mas sim, como um complexo jogo óptico constituído por prismas e espelhos, lentes e diafragmas, filtros e, bem entendido, câmaras escuras que originam novas imagens a partir da imagem original. Eagleton, recuperando a ideia de «relação em segundo grau» inaugurada por Althusser, afirmará: “The particular production of ideology which we may term the “ideology of the text” has no pre-existence: it is identical with the text itself. What is in question here, indeed, is a double relation — not only the objectively determinable relation betwwen text and ideology, but also (and simultaneously) that relation as “subjectively” flaunted, concealed, intimidated or mystified by the text itself.” (T. Eagleton, Criticism and Ideology: A Study in Marxist Literary Theory, Verso, 1978, p. 80-81). Daí que Eagleton, para caraterizar essa sobredeterminação ideológica do texto, se lhe refira, fazendo uso de uma metáfora matemática, como sendo uma ideologia «elevada ao quadrado». Neste sentido, qualquer interpretação que se faça do texto terá de partir do pressuposto de que a literatura é, mais do que a simples textualização da História, ela própria instância de dupla inversão ideológica e, pelos silêncios que comporta, de instauração da ausência (que mais não é do que forma dissimulada de presença). Onde buscar então a «verdade» do texto se este é, ele próprio, gerador de distorções e ilusões?Dado que, com o apagamento do escritor e adoptando uma postura marcadamente anti-intencionalista, a crítica literária marxista elimina o último baluarte de resolução de sentidos do texto válido para crítica literária tradicional, Jameson e Eagleton irão defender a História como «horizonte absoluto» da leitura. Só ela pode servir de instância corroboradora de todo o acto interpretativo que vise a desmistificação das «ilusões», dos «feiticismos» e das «fantasmagorias», ao mesmo tempo que descodifica o modo de funcionamento dos efeitos ideológicos no texto literário. Absorvido por uma perspectivação monista, Jameson está convencido de que é no estudo da História que se encontra a resposta para toda a prática crítica porque nela está plasmado o interminável jogo da luta de classes e da oscilação do poder, e é a partir do conhecimento científico das regras aí operantes que será possível desmascarar a simbologia política do texto. Mas como garantir a inviolabilidade deste estatuto supra-textual da História se a percepção que dela temos só nos chega por via de artefactos textuais? Lembra-nos Paul de Man: “It would be unfortunate, for example, to confuse the materiality of the signifier with the materiality of what it signifies. This may be obvious enough on the level of light and sound, but it is less so with regard to the more general phenomenality of space, time or especially of the self: no one in his right mind will try to grow grapes by the luminosity of the word «day», but it is very difficult not to conceive the pattern of one’s past and future existence as in accordance with the temporal and spacial schemes that belong to fictional narratives and not to the world.” (Paul de Man, «Resistance to Theory», in D. Lodge (ed.), op. cit., p. 362.). Não será a leitura que o próprio Jameson faz da História uma forma de ceder à tentação de que de Man nos fala? De facto, é a partir da potencial tensão resultante entre a ficcionalização da História e a sua representação objectiva no processo de textualização, que se põe a questão de saber até que ponto se pode pensar o discurso historiográfico como isento da incidêndia do ideológico.



CRÍTICA MARXISTA; IDEOLOGEMA; PÓS-MODERNISMO



Bibliografia: Louis Althusser: Essays on Ideology (1971); Tim Dant: Knowledge, Ideology and Discourse: a Sociological Perspective (1991); Terry Eagleton: Criticism and Ideology: A Study in Marxist Literary Theory (1975); T. Eagleton (ed.): Ideology (1994); L. Feuer: Ideology and the Ideologists (1975); Jürgen Habermas: Técnica e Ciência como «Ideologia» [1968]; Leonard Jackson: The Dematerialisation of Karl Marx: Literature and Marxist Theory (1994); Fredric Jameson: The Political Unconscious: Narrative as a Socially Symbolic Act (1981); J. H. Kavanagh: «Ideology», in Critical Terms for Literary Study (1990); Karl Marx e F. Engels: Textos Filosóficos (s.d.); Francis Mulhern (ed.): Contemporary Marxist Literary Criticism (1992); P. Ricoeur: Do Texto à Acção [1986]; John B. Thompson: Ideology and Modern Culture (1990); Raymond Williams: Marxism and Literature (1977).

António Lopes