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Odeio essa tal de Ode da Odisséia

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Do grego odé e do latim õde (ou õda), originariamente, e desde Homero, um poema destinado a ser cantado, podendo igualmente significar qualquer forma de canto alegre ou triste ou o acto de cantar. Os seus vários significados abarcavam também o canto de louvor , o canto fúnebre, canto religioso, canto mágico, canto de guerra ou hino e pressupunha o acompanhamento de instrumentos musicais. O sentido da palavra modificou-se, todavia, passando a significar uma poesia rimada de assunto elevado, normalmente escrita em forma dedicatória de acordo com um estilo e sentimentos nobres.

A ode era, na antiguidade clássica, um poema lírico, normalmente de alguma extensão, e de assunto elevado e nobre, expressando sentimentos ilustres, em celebração de algum evento especial. Para além de sentimentos sublimes e majestosos, a ode apresentava também como principais características a elaboração estrófica, bem como formalidade e nobreza no tom e no estilo, o que a tornavam algo cerimoniosa.

Poder-se-iam distinguir dois tipos de ode: a ode pública e a ode privada. A primeira destinava-se às ocasiões de cerimónia, tais como funerais, aniversários e eventos estatais. A ode privada celebrava, normalmente, acontecimentos pessoais e subjectivos e tinha tendência para ser mais meditativa e reflectiva.

A ode aparece já em Álcman, mas as odes mais antigas que merecem destaque são as de Safo, que restringe as suas composições a um mundo subjectivo dos seus sentimentos pessoais, e as de Alceu, que retrata nas suas odes a vida da sua cidade e as canções festivas.

As odes mais importantes que se seguiram foram as de Píndaro, nativo de Tebas, que retoma a tríade constituída por estrofe, antítrofe e epodo de Estesícoro, tradicionalmente apontado como o inventor deste processo formal. Aos cantos e poemas de Píndaro que celebravam vitórias era dado o nome ode, seguido do nome do festival a que diziam respeito. Assim, poderiam ser odes Olímpicas, Píticas, Nemeias ou Ístmicas. Tendo como modelo as canções corais do drama grego, as odes Pindárica glorificavam uma vitória atlética e louvavam os vitoriosos nos jogos gregos, tendo o acontecimento apenas o fim aparente de elevar e exaltar os grandes valores morais, elogiados sob a forma de sentenças ou através de mitos, presentes já em Alcman, escolhidos pela sua ligação com a família do vencedor, a sua cidade natal ou com o local de vitória.

Também as odes de Anacreonte e as dos seus imitadores se destacaram durante este período e a sua redescoberta no Renascimento estabeleceu o modelo da denominada ode anacreontica.

Em Roma, o nome e o poema são de origem grega e a sua latinização deve-se a Horácio, o introdutor e principal seguidor da ode latina, sendo a ode horaciana a mais importante de toda a literatura romana.

A ode horaciana, posteriormente imitada em larga escala pelos humanistas, inclui temas sugeridos pelos poetas gregos antigos como Alceu, Safo, Anacreonte e seus imitadores e Píndaro, e pelos poetas helenísticos, nomeadamente os epigramatistas. A contrário das odes públicas de Píndaro, a ode horaciana é privada e pessoal. É de salientar que, quer Píndaro quer Horácio foram os geradores da ode clássica e influenciaram largamente o seu desenvolvimento no Renascimento europeu.

Alguns séculos mais tarde, a canso provensal e a canzone italiana aproximam-se igualmente da ode, que floresceu particularmente em Itália, França e Alemanha, mas também em Portugal e Inglaterra.

Em Itália os poetas renascentistas Tricinio, Minturno e Alamanni favoreceram esta modalidade poética, e Tasso, Chiabrera, Manzoni, Leopardi, Carducci e D‘annunzio seguiram-se-lhes, sendo os dois primeiros influenciados pelo poeta francês Ronsard.

Os membros da Pleiade em França, dos quais Ronsard foi o mais bem sucedido com sua obra Os Primeiros Quatro Livros de Odes de 1550, desenvolveram grandemente a ode, sendo Boileau, no século XVII, o seu seguidor mais acérrimo. O Romantismo favoreceu igualmente a ode com Lamartine, de Musset e victor Hugo. Mais recentemente destacam-se Verlaine e Valéry.

Na Alemanha, a ode foi estabelecida por Weckherlin no inicio do século XVII com Oden und Gesänge (1618/19). O uso dos modelos clássicos foi revivido no século seguinte por Goethe, Klopstock e Schiller. Também Hölterlin escreveu algumas odes.

As diferentes formas de ode, quer ao estilo pindárico quer ao estilo horaciano, têm sido imitadas de forma variada na literatura inglesa, desde o Renascimento com Epithalamion (1595) e Prothalamion (1596) de Spencer. Nos finais do século XVI e princípios do século XVII, William Drummond of Hawthornden, Samuel Daniel,Michael Drayton, Andrew Marvell e Abraham Cowley desenvolveram esta composição poética lírica, mas foi Ben Jonson o primeiro a escrever uma ode segundo a tradição pindárica: Ode to Sir Lucius Cary and Sir H. Morison (1629). Alexander‘s Feast (1697) de Dryden é considerada tambem uma ode importante que data igualmente deste período. Collins, Gray, Cowper e Pope foram os poetas de maior relevo da Augusten Age que seguiram esta modalidade poética, bem como Coleridge, Wordsworth, Shelley e Keats o fizeram no Romantismo. Mais recentemente, destacam-se Tennyson, Allen Tate, Auden, Matthew Arnold e Swinburne.

Em Portugal é através de Horácio, imitado e traduzido largamente pelos humanistas, que a ode ocupa o seu lugar de destaque desde António Ferreira, que a introduziu no século XVI.. Desde então, foram inúmeros os poetas que cultivaram esta forma, utilizando várias combinações estróficas, métricas e rimáticas, adequadas a uma multiplicidade de temas e assuntos, tais como Pero Andrade de Caminha e Camões. D.Francisco Manuel de Melo cultivou igualmente a ode durante o Barroco. Mas as regras elaboradas, a extrema formalidade e o decorum inerentes à ode atraíram, mais do que em qualquer outro período, os poetas do século XVIII, concretamente os da Arcádia Lusitana como Correia Garção e António Diniz da Cruz e Silva, e outros, como Bocage e Filinto Elísio.

Durante o Romantismo, a ode cai um pouco no esquecimento. São todavia de salientar as obras Lírica de João Mínimo (1829), que inclui algumas composições poéticas consideradas odes pelo tema e pela forma, e as Odes Modernas (1865) de Antero de Quental, título de um dos seus livros de poesia.

Mais recentemente destacam-se Eugénio de Castro, Fernando Pessoa, pelos heterónimos Ricardo Reis e Álvaro de Campos, este com Ode Triunfal e Ode Marítima, e Miguel Torga, que retoma alguns dos temas predominantes na ode, associando-os à actualidade.

Bib.: John D. Jump: The Ode (1974)

Ana Ladeira

NIHILISMO

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Termo que designa um fenómeno das sociedades ocidentais, reconhecível a partir das últimas décadas do século XIX, devido ao facto de o ideal cristão ter declinado irreversivelmente e em lugar dele não ter nascido outro ideal. Nihilismo significa, então, uma perda de ideal pelo desaparecimento de uma referência desejável e mobilizadora, que se revela por uma atitude meramente contemplativa do mundo e pelo desalento. Significa também a aceitação do jogo dos contrários de que o mundo é composto para o qual não se vislumbra uma solução satisfatória; significa também a negação das estruturas estáveis do ser num mundo tornado fábula. O nihilismo é parente de outros termos como perspectivismo e relativismo decorrentes da filosofia de Nietzsche. O nihilismo está associado à sensibilidade decadentista e estetizante pós romântica (por exemplo, de certa produção literária de Baudelaire) e finissecular oitocentista. A asserção de Nietzsche, “a forma é fluida, porém o “sentido” ainda é mais” (Para a Genealogia da Moral, 1887) sintetiza os contornos dessa sensibilidade. A desidealização pressuposta é, no entanto, um produto ambíguo porque nasce das condições do mundo moderno mas simultaneamente representa o desvanecimento de certos vectores positivos da modernidade. Por um lado, o nihilismo provém do desencanto causado pela profanização da cultura ocidental do mundo moderno emergente visto que as concepções religiosas se desintegraram em finais do século XVIII mas, por outro lado, o nihilismo surge numa espécie de segundo momento da modernidade (em arte, coincidente com o pós romantismo) marcada pela ausência de valores absolutos em relação a uma primeira fase, que é configurada de um modo positivo e construtivo pelo “horizonte de expectativa”. Trata se da expectativa característica dos tempos modernos, que se traduz pela renovação contínua com vista a um progresso evolutivo e aperfeiçoado das condições da existência humana. A sociedade moderna, no entanto, ao promover a igualdade entre cidadãos, torna os todos iguais pressupondo neles o desejo das mesmas coisas. A uniformidade e a homogeneização dos seres humanos pode estar na origem da falta de ideal e de objectivos. Para alguns, Nietzsche por exemplo, a democracia moderna conduz à apatia pela inexistência de diferenças entre os indivíduos, que são nivelados “por baixo”. De qualquer maneira, a transformação constante defendida pelos movimentos liberais e modernizantes em todo o mundo ocidental do século XIX sofre uma desaceleração em pouco tempo visto que os princípios basilares são postos em causa por vários núcleos de pensamento e de acção. Estamos a referir nos à crítica da modernidade iniciada por Marx, por Nietzsche e por Freud. Esta crítica afirma fundamentalmente que a razão, fundada no princípio da subjectividade, cria um conjunto de estruturas sociais configurador não da libertação mas da opressão, da exploração, do aviltamento do ser humano e, finalmente, da alienação. Marx avança o conceito de luta de classes, Freud os de inconsciente e de sexualidade, Nietzsche o da verdade como dissimulação e como vontade de poder.

O nihilismo é o que resta da descrença em relação à modernidade; é, em muitos textos literários, a camada residual de significações proveniente do estilhaçamento da noção de progresso unitário e supostamente universal, aparecendo como desenraizamento, secularização, antipositivismo, espiritualismo vagamente panteísta. Representa também o momento negativo da modernidade, ainda ligado a esta na medida em que o nihilismo é uma resposta pela negativa ao optimismo característico do racionalismo e do historicismo oitocentistas. As categorias da razão dominadora como a unidade, o fim e a substância são abandonadas em favor da ideia da incomensurabilidade do universo. A literatura entende o nihilismo como um conjunto de estruturas discursivas, que remete para a ausência de valores absolutos e de fronteiras claras entre contrários. Um dos processos literários preferidos, na época, é o fragmento. Neste sentido, o nihilismo faz parte da situação socio linguística característica do simbolismo e a do modernismo. As significações referidas, que remetem para o nihilismo, são encontradas, por exemplo, na poética de Gomes Leal (Claridades do Sul, 1875) e nas obras mais significativas de Raúl Brandão (por exemplo, Farsa, 1903 e Húmus, 1917). Aos olhos de uma certa tradição literária envelhecidamente neoromântica da transição do século XIX para o XX, o nihilismo aparece como sinónimo de satanismo, de imoralismo, eventuamente de amoralismo; pode, porém, assumir também a forma de um vitalismo. Almada Negreiros, autor do Manifesto anti Dantas (1916), deve ter sido percebido por Júlio Dantas como imoral e nihilista. O romance Maria Adelaide (1938) de M. Teixeira Gomes, autor de obras marcadamente estetizantes, pode ser avaliado como amoral devido ao vitalismo associal. O esteticismo vagamente decadentista, com laivos noviromânticos (evoluindo, no início do século XX, para os modernismos), pode ser considerado de coloração nihilista na medida em que problematiza a verdade, que surge, então, como convenção ou como projecção (não como adequação às coisas). A obra poética de Fernando Pessoa é uma declaração (de um modo implícito) da impossibilidade de um saber acerca da essência das coisas. Os heterónimos são a resposta a essa descontinuidade básica entre a realidade e o discurso que pretende representá la.

O influxo de Nietzsche nas obras portuguesas de matriz decadentista é breve, em parte motivado pela penetração tardia da sua influência efectiva através de traduções da sua obra, só surgidas no início do século XX. As vanguardas de expressão poética do século XX (futurismo, dadaísmo, surrealismo, abjeccionismo, construtivismo, abstractivismo, etc.), apesar de contrariarem as convenções vigentes, não são globalmente nihilistas porque visam transformar a obra de arte num acelerador do tempo (por isso são revolucionárias) e pressupõem valores remodeladores da vida decorrentes de experiências humanas ainda não configuradas pela arte. Na literatura portuguesa (de um modo geral, nas outras literaturas ocidentais), toda a conjuntura referida da transição de século, afecta a uma tonalidade nihilista, desvanece se fortemente na década de 30 devido ao interesse pelo realismo motivado pelo carácter precário da existência humana no período das duas grandes guerras. O realismo coexiste com vanguardas como a surrealista. No ponto de vista político e cultural, a tonalidade de teor nihilista reaparece no pós guerra sob a forma de pura negatividade em relação à realidade instituída de que À Espera de Godot (1952) de Samuel Beckett é um bom exemplo literário. Esta negatividade vista como moderna e, por essa razão, percebida por alguns como inevitável também tem vindo progressivamente a esbater se, não tanto porque a sociedade tenha encontrado uma positividade nova mas porque o nihilismo se tornou uma rotina configuradora de imobilismo. O momento presente, neste final de século, parece perceber que a modernidade tardia e radicalizada pressupõe um modelo social e cultural, que funciona de um modo autónomo. Trata se do paradigma democrático liberal, que tem vindo a generalizar se por todo o mundo. Visto que a sociedade não vê para além deste modelo instituído, estamos confinados ao “espaço de experiência” destituído do “horizonte de expectativa” presente no início da modernidade. Analisada de um modo mais positivo, a homogeneização seria um privilégio de cada um numa sociedade desenvolvida em que os seus membros já não têm que se preocupar com as questões políticas (em última análise, de sobrevivência pessoal) visto que alguém (os políticos profissionais) se encarrega desses aspectos por eles. Na literatura, esta tendência actual tem se traduzido pela redescoberta de um realismo sem programa, sem escola, e mesmo para além das gerações literárias. As obras romanescas de António Lobo Antunes e de José Saramago, afirmadas a partir da década de 80 do século XX, não tendo aspectos particulares em comum entre si, inscrevem se neste contexto sóciocultural de uma leveza vagamente realista e descomprometida. O nihilismo tem algo de trágico, que é um vector ausente da cultura do final do século XX.

Bib.:Abbagnano, Nicola, Nomes e Temas da Filosofia Contemporânea, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1990; Castro, E. M. de Melo, As Vanguardas na Poesia Portuguesa do Século XX, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Lisboa, 1980; Giddens, Anthony, As Consequências da Modernidade, Celta Editora, Oeiras, 1992; Habermas, Jurgen, O Discurso Filosófico da Modernidade, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1990; Marques, António, Perspectivismo e Modernidade o valor construtivo e crítico do perspectivismo de Nietzsche, Vega, Lisboa, 1993; Marques, António, “Introdução Geral às Obras Escolhidas de Nietzsche”, in O Nascimento da Tragédia ou Mundo Grego e Pessimismo, Primeiro Volume, Círculo de Leitores, Lisboa, 1996; Pereira, José Carlos Seabra, Do Fim De Século ao Tempo de Orfeu, Livraria Almedina, Coimbra, 1979; Vattimo, Gianni, O Fim da Modernidade Niilismo e Hermenêutica na Cultura Pós Moderna, Editorial Presença, Lisboa, 1987; Zima, Pierre V., Pour une Sociologie du Texte Littéraire, 10/18; Union Générale d’Éditions, 1978.

Eunice Cabral

Personagem

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Termo derivado do latim persona que significa máscara, e do grego prosopon que significa rosto e é utilizado no teatro como o jogo entre o verdadeiro e o falso. Na antiguidade clássica os actores entravam muitas vezes em cena disfarçados com máscaras que, à partida, marcavam a diferença ente o actor (pessoa) e o seu papel a representar , a sua personagem. No entanto na dramaturgia posterior a personagem vai passar por um processo de identificação progressiva com o actor contribuindo para a definirmos como um ser individual e personalizado. No entanto a personagem é sempre um ser que domina no hemisfério do imaginário, apresentado por um actor real que salienta e evidencia alguns aspectos visuais e auditivos da figura que pretende representar, acabando por lhe dar poderes que confundem muitas vezes o leitor ou espectador, ou seja discernir a verdade a partir da qual a personagem foi criada e o espaço que domina ,é muitas vezes uma tarefa árdua. A personagem acaba por ser uma figura coerente, uma vez que é criada a partir da observação do real, como tal, quem a cria pode atribuir-lhe um carácter rico e exemplar, uma vez que a sua esfera de acção, os seus actos são sempre limitados pelo mundo imaginário onde a acção se desenrola pela pena de quem a cria. Ficcionalmente as personagens são mais ricas que as pessoas reais, uma vez que neste domínio, as últimas são de somenos importância.
É através do nosso olhar enquanto observadores que o autor, criador das personagens, nos dirige até aos aspectos que ele próprio elaborou nessa figura de ficção, tornando-a em si só, uma fonte inesgotável e ao mesmo tempo insondável, visto que a sua capacidade de retenção do real é tão grande que tudo nela é permitido e esperado. A personagem assume assim uma condição universal que em nada reduz as suas capacidades enquanto ser necessário para o desenvolvimento de um enredo. Assim, o observador – leitor – contempla e ao mesmo tempo vive esse mesmo enredo, as mesmas vivências da personagem como se de um ser real se tratasse, desfrutando ao mesmo tempo de todo o prazer estético que nela se encerra. A ficção é pois esse lugar privilegiado em que o homem pode viver e contemplar através das várias personagens, a plenitude da sua própria condição.
Quando se fala de personagens não se pode deixar de referir a importância da vida que as mesmas vivem, as situações que têm de enfrentar, as linhas do seu próprio destino. A tudo isto se chama enredo, do qual dependem as personagens e sem o qual as mesmas não fariam sentido, ou a sua acção não seria concretizável. Unidos, enredo e personagem fazem parte de um todo consensual, onde a personagem deve parecer tão perto do real quanto possível, deve ter vida , ser um ser vivo aproveitando os limites da sua própria realidade, uma realidade cambiante, que se mascara e se deixa mascarar, sem nos permitir distinguir o seu verdadeiro rosto.

Já Aristóteles, o primeiro teórico a tentar responder ao enigma dos seres ficcionais (categorias integrantes e constituintes do universo narrativo), na sua obra Arte Poética chama a tenção para a estreita semelhança entre a personagem e a pessoa humana, ao afirmar que, sendo o sendo o imitar congénito ao homem “a poesia é uma arte de imitação ou representação” e “o objecto dessa imitação é constituído de homens que fazem ou experimentam alguma coisa” (David Daiches: Posições da Crítica em Face da Literatura, 1967,pp.32e ss.), no entanto este conceito de personagem não se esgota na representatividade desta, mas afirma também a necessidade de considerá-la enquanto produto dos meios e modos utilizados pelo poeta para elaboração da obra.

Tanto no que respeita o teatro como nos relatos narrativos, a personagem constitui o elemento dinamizador sobre o qual se desenrola toda a acção. A história do teatro e a vasta criação narrativa apresentam uma grande variedade de personagens que representam diversas realidades, ou seja há personagens que pela sua individualidade e características específicas, podem aparecer como representantes de uma conduta específica, de uma classe social ou de uma herança literária, como são o caso das figuras cridas por Gil Vicente nos seus autos, estereótipos de uma sociedade e de várias classes sociais que o autor caracterizou, ou ainda a figura do bobo que foi evoluindo de acordo com as épocas, tendo atravessado vários séculos do teatro europeu. Ainda dentro desta caracterização podemos encontrar aquelas personagens que são conhecidas como portadoras de um conjunto de características psicológicas e morais que o público identifica de imediato não só pelo seu aspecto físico como também pela sua conduta. Dentro deste contexto há ainda as personagens que se destacam pelo seu carácter individual e tanto na narrativa como no teatro podemos contar com a originalidade de figuras como D. Quixote, Hamlet ou Madame Bovary.

HERÓI; PROTAGONISTA; FIGURANTE;

BIB.: Antonio Candido et al.: A Personagem de Ficção (9ª ed., 1995); Beth Brait: A Personagem (6ªed., São Paulo, 1998); Edward Morgan Forster: Apects of the Novel (1927); Edward Morgan Forster: Apects of the Novel (1927); Konstantin Stanislavski: Building a Character (1975); António Cândido et al: A personagem de Ficção (1998); Michael J. Hoffman and Patrick D. Murphy: Essentials of the Theory of Fiction ( 2ª ed. 1996); William H. Gass: "The Concept of Character in Fiction", in Essentials of the Theory of Fiction, ed. por Michael J. Hoffman e Patrick D. Murphy (2ºed., 1996).

Rute Miguel

Sempre é bom voltarmos à teoria: Teoria da Literatura

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

É hoje em dia extraordinariamente vivo e dinâmico o campo disciplinar conhecido por Teoria da Literatura. Tão vivo e dinâmico que os livros e artigos com ela relacionados se sucedem a um ritmo impressionante, criando uma complexa genealogia do saber cujos índices de actualização se negam muitas vezes na própria ineficácia instrumental da abundância. Chegámos a uma fase em que se torna necessário publicar espessos volumes de referências bibliográficas (L. Orr, 1989), ou em que se multiplicam as Introduções, Antologias ou Selecções do tipo Reader’s Guide (veja-se, por exemplo, R. Selden, 1989).

Ao ser atravessada por um diversificado corpo de saberes sugeridos pelo reconhecimento da própria diversidade da literatura e da recepção da literatura, a teoria literária contemporânea afirma-se por interesses múltiplos e caminhos variados. Este é um campo de tal maneira vivo e dinâmico, são de tal maneira múltiplos e variados os seus caminhos, que só por ignorância ou presunção alguém se arriscaria a propor, nos nossos dias, uma definição de teoria literária. Paul de Man, que tinha pouco de presumido e ainda menos de ignorante, reconheceu esta mesma realidade num texto tão lúcido quanto mal compreendido pelo establishment académico norte‑americano. Nesse texto, Paul de Man tentava, muito simplesmente, «explicar porque é que o principal interesse teórico da teoria literária consiste na impossibilidade da sua definição» (1986: 3).

A diversidade dos seus caminhos, bem como a ausência de uma «pureza» científica para os cânones gerais de racionalidade que explicitam a sua configuração disciplinar, revelam a teoria literária segundo duas grandes figuras. Por um lado, a figura que nos mostra que é através de uma irrecusável força inclusiva que a teoria literária não só justifica a sua coalescência face a teorias particulares da literatura e da recepção da literatura, mas também oferece aos estudos literários uma base racional a partir da qual se pode articular a crescente variedade de áreas por eles cobertas. Por outro lado, a figura que nos assegura que é pela incondicionalidade do discurso impuro da teoria literária que não só se apresentam as ambivalências próprias à reprodução da realidade por parte da literatura e da leitura crítica da literatura, mas também se harmonizam as diferentes abordagens intelectuais suscitadas por essa mesma realidade.

Apesar do reconhecimento da natureza “impura” da teoria literária, creio que vale a pena indicar (arriscar) um entendimento genérico da sua funcionalidade no domínio dos estudos literários. Segundo creio, o entendimento mais simples é não só o mais eficaz, mas também o que mais perto se encontra do entendimento que dela tiveram progenitores canónicos como Boris Eixenbaum e René Wellek. Assim, por teoria literária pode entender-se a racionalização sistemática de um conjunto de assunções acerca das propriedades do texto literário e das relações deste com a sua cultura de origem, o seu autor e o seu intérprete.

Este entendimento apresenta três vantagens. Por um lado, salvaguarda a especificidade do objecto literário sem anular, no entanto, as suas várias vertentes psicológicas, sociológicas e históricas. Por outro lado, permite introduzir a problematização da crítica literária não só enquanto modo de leitura e interpretação dos textos, mas também enquanto conjunto de projecções imaginativas acerca da natureza da literatura. Finalmente, aquele entendimento traça fronteiras intelectuais entre aquilo que é o estudo da literatura como objecto comunicativo de uma cultura, e aquilo que é o estudo de uma cultura que encara a literatura como mera representação das estruturas de poder actuantes nessa mesma cultura. Dito de outra maneira e clarificando o meu objectivo, insistir na natureza intrinsecamente literária do objecto da teoria da literatura equivale a separar desde início a teoria literária da chamada teoria crítica, tal como esta é actualmente entendida.

1. Do pensamento literário à teoria literária

Aristóteles é quem normalmente protagoniza a figura de pai da teoria literária para muitos investigadores impregnados do espírito científico do nosso século ou continuado­res do espírito positivista por que a Literaturwissenschaft se afirmou no imaginário oito­centista. Centrando‑se, como observa Robert C. Davies, mais nas relações do que no sen­tido referencial (Davies, 1985: 51), as virtualidades estruturais da Poética parecem oferecer um fascínio irresistível às várias versões da «orientação teórica objectiva» dos estudos literários—recorrendo tacticamente a uma das quatro orientações (as outras são a mimética, a expressiva e a pragmática) em que M. H. Abrams divide a crítica literária, e que caracteriza do seguinte modo: «A orientação objectiva, que em princípio encara a obra de arte isolada de todos estes pontos de referência [o leitor, o artista e o mundo], analisa‑a como uma enti­dade auto‑suficiente constituída pelas suas partes nas suas relações internas, e dispõe­‑se a julgá‑la unicamente por critérios intrínsecos ao seu próprio modo de ser.» (M. H Abrams, 1953: 26).

Por exemplo, E. Stankiewicz, um eslavista formado na escola da linguística estrutu­ral impulsionada pelos trabalhos dos formalistas russos e checos (cf. Stankiewicz, 1978), depois de reconhecer que Aristóteles «foi o primeiro a manter que o valor da arte reside na própria arte» (1977:59), afirma inequivocamente que Aristóteles «é o fundador da poética teórica» (loc. cit.). No entanto, também se pode poderá afirmar, seguindo um investigador como John Jones (1980: 40‑1 e 50‑4), que a orientação aristotélica para sal­vaguardar o prazer que o homem tem na fruição de um discurso rítmico e melodioso (que assegura uma das modalidades de manifestação da ideia de que o valor da arte reside na própria arte) se articula, no quadro teleológico da filosofia aristotélica, com o reconhecimento mais substancial do poder persuasivo da poesia, sobretudo através da constituição desta em instrumento pedagógico pela capacidade que tem de imitar as acções humanas, encorajando as virtudes (eudamonia) e desencorajando os vícios. Ou seja, a orientação aristotélica situar‑se‑ia no âmbito disciplinar da retórica, embora já num quadro suficientemente elástico de modo a potenciar a fusão da própria retórica, juntamente com outros saberes, naquilo a que nos nossos dias se chama äcrítica literária.

Poder‑se‑á argumentar que não devemos esquecer nem escamotear o facto de que a importância de Aristóteles decorre sobretudo do reconhecimento que este autor revela de que a literatura tem uma estrutura interna muito própria. Neste sentido, não pode ser acidental a sua consideração da intriga (mythos) em termos como, por exemplo, «a união estrutural das partes» (Poética: 1451a 30) ou «um organismo vivo» (id.: 1459a 21), bem como os princípios de desenvolvimento que lhe são inerentes. Porém, será que estamos perante uma empresa autónoma na sua individuação teórica ou perante uma validação da obra poética através da sua especificidade de trabalho (poein), de modo a encontrar as bases necessárias a um julgamento estético? Se escolhermos a segunda resposta, como parece mais legítimo, então teremos que reconhecer, mais uma vez, a instância funda­mental da preocupação crítica de Aristóteles e, eventualmente, as linhas constitutivas de algo que vários séculos mais tarde irá ser designado por ciência estética.

Tenha‑se ainda em conta um outro aspecto. Aristóteles encarou a poesia sobretudo como technê, isto é, como uso prático do intelecto enquanto considerado no objecto produzido. Naturalmente, há condições neste aspecto do pensamento aristotélico para que ele seja apropriado pela orientação objectiva, na medida em que esta reconhece nesse pensa­mento o seu próprio princípio da autonomia da obra artística, isto é, aquele princípio tão caro às posturas críticas de uma modernidade anti‑expressiva ou pós‑romântica. Por isso encontramos três importantes investigadores a valorizarem Aristóteles exactamente pela distinção que ele teria operado entre estética e moral:

«Aristóteles foi o primeiro que tentou separar a teoria da estética da teoria da moral. Ele assegura coerentemente que o objectivo da poesia é um prazer requintado [.. ] e nunca permite que a finalidade moral do poeta ou que os efeitos morais da sua arte ocupem o lugar do objectivo artístico.» (S.H. Butcher, 1911, 1945: 238.)

«Quando Aristóteles se volta para a arte da poesia [poietike], ele está determinado a assinalar fronteiras e a estudar a natureza da arte independentemente das suas ligações morais e políticas.» (Monroe C. Beardsley, 1966: 54-55).

«Significativo é o seu [de Aristóteles] desafio da visão ética da poesia, a sua dis­cordante afirmação de que a função do poeta é sobretudo a de dar prazer. De tal maneira, que a partir dessa altura não havia desculpa [...] para confundir padrões esté­ticos com padrões morais para julgar a arte.» (A.J. W. Atkins, 1934, 1961: 1, 117).

No entanto, esta legitimação da orientação objectiva, através da qual estes autores invocam o prestígio de Aristóteles por uma compartimentação táctica do seu pensamento acerca da literatura, pode ser contrariada em três horizontes. Por um lado, pelo horizonte da própria perspectiva aristotélica que sublinha antes de mais ou tão‑só a mimese como a capacidade que a arte tem de se tornar uma imitação bem sucedida da estrutura da acção humana, de modo a alcançar o bem humano revelador do objectivo último não só da poesia mas de todas as esferas da acção ou da vida: «Qualquer arte e qualquer processo de inquirição, e do mesmo modo qualquer acção e qualquer busca, procuram alcançar um qualquer bem humano; e por esta razão o bem foi justamente declarado ser aquilo para que tendem todas as coisas. (Aristóteles, Ética a Nicómaco: 1094a).

Por outro lado, a contestação pode ser articulada a partir de dois outros horizontes, isto é, um que inscreve uma perspectiva que permite encarar aquela legitimação como decor­rendo de um anacronismo crítico pós‑kantiano, e outro que inscreve uma perspectiva que encara o pensamento literário aristotélico nos termos próprios da sua articulação com a teoria moral. Isaiah Smithson possibilita‑nos um exemplo da primeira perspectiva e G. M. A. Grube da segunda: «Há uma desculpa para confundir padrões estéticos com padrões morais depois de a Poética ter sido escrita—e a desculpa não é a relativa ausência do texto na Europa antes do Renascimento. A desculpa é que, ao contrário de Kant e de pensa­dores posteriores que discriminam aberta e claramente os julgamentos estéticos dos morais, Aristóteles não concebe uma tal separação. Em vez disso, e de um modo con­sistente com a visão que é afirmada na Ética a Nicómaco [...], Aristóteles investiga na Poética o bem particular que a tragédia tenta alcançar. (I. Smithson, 1983: 17). «Aristóteles tinha uma consciência clara de que uma arte deve ser julgada nas suas próprias premissas (‘adequação para um poeta não é a mesma que para um político’), mas que estas premissas fossem, no caso da tragédia, puramente estéticas, e portanto amorais, era algo que pura e simplesmente não lhe poderia ter ocorrido.” (G. M. A. Grube, 1958: Prefácio, XXII).

Consideremos ainda, e em reforço do que tenho vindo a defender, que os dados da reflexão aristotélica articulam a tragédia por uma finalidade catártica, a qual, como foi interpretada pelo século XVII, implica uma inequívoca dimensão moral (os valores implí­citos no exemplo) e ética (o apaziguamento das paixões). Este entendimento da finali­dade catártica não é, aliás, incompatível com a outra interpretação também dada para o termo catharsis, designadamente a que explica que no seu sentido fisiológico e médico a catarse seria uma medicação ou um remédio contra o exagero e o excesso. Mas independentemente da interpretação dada para o conceito de catarse, o que interessa sublinhar é que a importância atribuída à finalidade catártica sugere que o esforço de compreensão da tragédia desenvolvido por Aristóteles se orienta fundamental­mente num sentido normativo, o qual é corroborado por inúmeras expressões do tipo «A fábula não deve...», tornando, de facto, a orientação aristotélica marcadamente prescri­tiva. A verosimilhança, a unidade de acção, a unidade de tempo e lugar, a categorização das perso­nagens, etc., se decorrem de um paradigma de racionalidade interessado sobretudo em explicações e leis, assentam fundamentalmente em critérios avaliativos que fazem com que o texto aristotélico deva ser encarado menos pelo paradigma teórico e mais pelo paradigma estético—ou até, e mais convictamente, pelo paradigma da filosofia da literatura, se fizermos fé no entendimento que um autor como Lucien Goldmann propõe para a filosofia: «Por filosofia designamos todo o conjunto explicitamente ou implicitamente coe­rente de julgamentos que constatam e de julgamentos de valor [valorisants] sobre aquilo que é e sobre aquilo que deve ser e eventualmente sobre a natureza e o valor das criações imaginárias» (L. Goldmann, 1970: 130).

A partir do que acaba de ser exposto, pode‑se concluir que qualquer tentativa de encontrar uma tradição para a teoria como teoria acaba por se revelar como projecção dos interesses do presente numa tradição que, de facto, outra coisa não é senão uma tradição construída; ou como legitimação de programas próprios através da apropriação de alguns dos dados da herança cultural. Qualquer tentativa de construir uma tradição para a teoria como teoria acaba invariavel­mente por revelar a tradição como continuidade ilusória, exibindo simultaneamente nesse processo a realidade tantas vezes escamoteada de que a teoria se configura como uma forma de prática ou de interpretação, porquanto envolvimento intelectual situado num espaço muito próprio de desejos e com efeitos locais bem determinados. A teoria literária não é um espaço epistemológico neutro.

Isto não quer dizer que a teoria literária não tenha uma história institucional autónoma, e muito menos que ela não decorra de um vastíssimo trabalho intelectual que remonta à Antiguidade. Mas na história que decorre desse trabalho, e em nome de um conhecimento tanto quanto possível claro do campo em que estamos a trabalhar, não se pode confundir pensamento literário e/ou história da estética com teoria da literatura. Também neste domínio Jorge de Sena intuiu brilhantemente o cerne da questão. Vale a pena fazer fluir o discurso da sua inteligência: «A libertação da literatura, como da crítica, dos liames de outras disciplinas levou à criacão da ‘teoria da literatura’. Mas esta não é, ao contrário do que às vezes se supõe, uma teoria da crítica, ou uma história das doutrinas e dos métodos críticos. Sempre houve ‘teoria’ da literatura, e épocas existiram que se distinguiram pela fúria das discussões teóricas, como sucedeu no Renascimento e no Maneirismo sobretudo italianos. Mas essas discussões não se interrogavam sobre o que a literatura era, mas sobre o que ela deveria ser. Ainda quando a discussão se centrava na legitimidade de certa orientação estética, não menos a legitimidade era discutida em termos de norma. É óbvio que assim teria de ser: onde uma legitimidade é atacada ou defen­dida tê‑lo‑á de ser no confronto com outra que é julgada a única ou a preferível. A teoria da literatura corresponde porém a uma fase diversa, em que não é posta em causa a legitimidade de coisa alguma. Tudo o que foi literatura é o objecto próprio da pesquisa do que literatura seja (Jorge de Sena, 1977: 157-8).

Harold Bloom, por exemplo, parece confundir deliberadamente estas várias coisas quando sobranceiramente nos diz que «qualquer estudante contemporâneo da literatura, e da interpretação literária, sabe que os Gregos inventaram a teoria e a crítica literárias» (H. Bloom, 1985: I,1). Qual seria a reacção de um cientista à afirmação de que os Gregos inventaram a psiquiatria só porque, na linha da medicina de Galeno e Hipócrates, estudaram a saúde mental na sua relação com os humores existentes no conteúdo líquido do corpo?

2. Um arquitexto virtual

Tal como afirmei atrás, é inegável que a teoria literária contemporânea decorre de um vastíssimo trabalho intelectual que remonta à Antiguidade. No entanto, acredito que a ‘história’ institucional da teoria literária deve ser identificada a partir de um momento muito próprio da narrativa cultural do Ocidente, designadamente no momento em que se gerou um diálogo acidentado entre a crítica literária e uma nova disposição intelectual que não só colocou a plataforma teórica no centro das atenções dos estudos literários, mas também orientou o valor atribuído a essa plataforma num sentido conducente ao próprio processo de individuação da teoria literária. Esse momento é sinalizado pelos trabalhos dos vários autores envolvidos no chamado äFormalismo Russo.

A bibliografia crítica acerca desta postura intelectual nos estudos literários, partindo invariavelmente do trabalho pioneiro de Victor Erlich (vd. Erlich, 1965), é de tal maneira abundante nos nossos dias que qualquer reflexão detalhada sobre o Formalismo Russo corre o risco de se tornar repetição insípida. No entanto, acredito, no quadro em que tenho vindo a desenvolver a minha argumentação, que vale a pena manter e aprofundar a convicção de que é no sistema de generalidade conceptual em que os formalistas russos inscreveram a compreensão da literatura que devemos identificar o arquitexto virtual da teoria literária. Um arquitexto que, erguendo‑se pela consciência da necessidade de uma actividade reguladora dos estudos literários, instituiu o programa dife­rencial de um novo campo disciplinar (o da teoria literária) como sendo claramente dife­renciado não só de outros campos do saber, mas também do repertório de interesses que constituía o campo de estudos conhecido na altura por Litteraturwissenschaft—o qual, possuindo embora uma série unificável de tendências, não apresentava um modelo unificado de pesquisa. Ao fazê‑lo, os formalistas russos forneceram a chave que faltava ao pensamento literário para ultrapassar a sua dependência intrínseca da filosofia e da estética, e fechar assim o círculo aberto pela brilhante experiência teórica dos românti­cos—os quais tiveram o supremo mérito de inaugurar o absoluto literário pela projec­cão filosófica da literatura enquanto produtora da sua própria teoria (cf. Lacoue‑Labarthe & J L Nancy, 1978), embora sem instituírem a teoria literária pela consciência da necessidade da sua própria individuação, como vieram a fazer os formalistas russos.

É claro que os traços distintivos só por si não chegam para delimitar um campo dis­ciplinar. Se assim fosse, dificilmente se poderiam conceber os esforços interdisciplinares da teoria literária. É por isso que se revela sobremaneira importante a especificação que os formalistas russos (e, diga‑se em abono da verdade, em larga medida também os estrutu­ralistas checos) fizeram dos princípios que orientam a actividade teórica dos estudos lite­rários. Seguindo a perspectiva de David Gorman acerca das circunscrições de uma disci­plina (D. Gorman, 1986: 33), deve‑se afirmar que o conteúdo desses princípios inclui, em primeiro lugar, as categorizações que identificam o objecto ou a finalidade da disciplina—no caso dos formalistas, a sua identificação da äliterariedade e de todo o aparelho con­ceptual que dela resulta e que para ela converge. Em segundo lugar, inclui os critérios que determinam o sucesso ou o fracasso do próprio trabalho no interior da disciplina—embora podendo ser só vagamente definidos, no caso dos formalistas estes critérios encon­traram mesmo assim um eco importante nos vários investigadores envolvidos, como está patente, por exemplo, na insistência jakobsoniana na «análise científica objectiva da arte da linguagem» e nos resultados por ela proporcionados, bem como nas implicações (de inclu­são e exclusão de vários tipos de estudo) que decorrem da analogia que Jakobson esta­beleceu entre estudos literários/crítica literária e linguística pura/linguística aplicada. É certo que a especificacão daqueles princípios revela a dependência dos formalistas do modelo linguístico—bem como da äfalácia científica que invariavelmente a acompanha—e, consequentemente, aponta para a caducidade potencial da sua própria plausibilidade. Porém, o que importa considerar é menos essa dependência e mais a dimensão transdisci­plinar por que esses princípios se instituem em cânones gerais de racionalidade. É por esses cânones que se anuncia a particularidade de um projecto disciplinar que, no processo de evolução intelectual da cultura do século XX, veio a concretizar‑se através daquilo que se convencionou chamar Teoria da Literatura. É por esses cânones que podemos compreen­der as mutações históricas dos limites disciplinares da teoria literária ou as configurações pos­síveis que decorrem dos numerosos e acidentados caminhos por ela percorridos no nosso tempo. É por esses cânones, ainda, que se justifica a coalescência da teoria literária face à diversidade de teorias particulares que resultam da simultânea diversidade e especificidade, quer da literatura quer da experiência crítica da literatura. É por esses cânones, finalmente, que se prova que a teoria da literatura não nasceu, de facto, contra a crítica, mas como uma necessidade da crítica.

3. A institucionalização da disciplina

O fenómeno de popularidade da teoria literária tem, pelo menos de há vinte anos para cá, um forte sotaque norte-americano. Contudo, nem sempre foi assim. Na Europa, e muito particularmente na França dos anos Sessenta, a teoria literária, enquanto “teoria do texto” (recorrendo à expressão de R. Barthes) brotou naturalmente do impacte que a línguística teve no estudo das práticas discursivas de uma sociedade. Uns chamaram-lhe äestruturalismo, outros mudança linguística ou “linguistic turn”. A descoberta estruturalista da materialidade linguística do texto, da autonomia propriamente literária das multivalências da linguagem ou da äpolissemia textual, abriu naturalmente o caminho à redescoberta do protagonismo do leitor e à dissolução da importância do autor como instância explicativa da intenção semântica do texto. O chamado äpós-estruturalismo foi ou é, no essencial, o prolongamento natural desta atmosfera, sobretudo se a encararmos nos termos da fruição ou da äjuissance barthesiana, bem como da äindecidibilidade derridiana. Em suma, estavam criadas as condições para que as configurações textuais agenciadoras da leitura, da interpretação e da recepção se constituissem em núcleo aglutinador de uma prática intelectual que a universidade gradualmente absorveu e institucionalizou sob a designação de teoria literária.

Embora por vias diferentes, do lado americano chegou-se aos mesmo resultados a que se tinha chegado na Europa, ou pelo menos em França. Quando nos anos 40/50 os chamados New Critics (äNew Criticism) insistem na denegação da äfalácia intencional e da äfalácia genética, eles estão, de facto, a orientar também a atitude crítica fundamentalmente para fora do autor e para dentro do texto ou para aquilo a que chamaram äclose reading. O que se procurava era, no essencial, um conjunto de princípios estruturais e transculturais que pudessem dar conta dos traços específicos de qualquer obra literária. Esta concentração nas interrelações formais internas de uma obra literária, enquanto obra literária, criou condições para o aparecimento de uma consciência teórica. Dito de outra maneira, a insistência numa estrutura teórica de princípios universais de leitura que podiam ser aplicados a vários textos conduziu inevitavelmente a uma teoria geral da leitura desses mesmos textos. Estamos, assim, perante um impulso de engendramento de uma teoria dos textos literários que pretende sobretudo dar conta da sua diferença propriamente literária ou da sua äliterariedade.

Importa ressalvar neste momento que do lado americano este começo da teoria literária não teve necessariamente as mesmas consequências que do lado francês ou europeu. Enquanto na Europa, graças à dinâmica estruturalista, a teoria começava a ser estudada por si mesma, nos EUA a dinâmica do New Criticism implicava a teoria na crítica literária, isto é, a teoria existia para estar ao serviço da crítica literária, ao serviço de uma melhor leitura e interpretação dos textos literários. É só no final dos anos Sessenta, e exactamente através da influência francesa do estruturalismo e do pós-estruturalismo, que os EUA revelam um movimento para estabelecer a teoria literária como disciplina independente (Veja-se sobretudo a obra de Murray Krieger intitulada The Institution of Theory, 1994).

O exemplo português de institucionalização da disciplina é extraordinariamente curioso. A reforma da 1957 criou a disciplina de Teoria da Literatura como displina do 1º ano dos cursos de Letras, dando-lhe, portanto, um perfil introdutório, com um espírito semelhante ao que, a partir de 1974, se irá chamar Introdução aos Estudos Literários. Independentemente do seu perfil introdutório ou culminante (como acontecerá na reforma de 1969, na qual a Teoria da Literatura passou para o último ano), este reconhecimento académico da disciplina, em plena década de Cinquenta, não deixa de ser surprendente. Por duas razões. Em primeiro lugar, porque o carácter problematizador da disciplina dificilmente se articulava com o autoritarismo ideológico e político do regime salazarista. Em segundo lugar, a surpresa é ainda maior quando se pensa que a disciplina de Teoria da Literatura, enquanto disciplina autónoma dos estudos literários, tinha na altura uma tradição muito débil, conforme se depreende dos contextos internacionais que apresentei antes. Não pretendo aqui fazer conjecturas acerca das contradições que podem estar subjacentes a esta situação. Neste ensaio interessa-me unicamente referir que, no caso português, a noção de teoria da literatura faz há muito tempo parte do léxico intelectual e da formação académica de várias gerações de críticos e estudiosos da literatura. Aliás, creio mesmo que é essa situação que está na origem do aparecimento de obras como Teoria da Literatura, de Vítor Manuel de Aguiar e Silva, que constitui uma exaus­tiva exposição científico‑didáctica dos múltiplos dizeres da teoria literária, bem como Os Universos da Crítica, de Eduardo Prado Coelho, que constitui um pormenorizado diálogo com os diversos olhares do pensamento literário contemporâneo.

4. O fim da teoria literária?

Neste momento parece haver um movimento mais ou menos generalizado contra a teoria literária, embora ele adquira uma relevância muito especial nos EUA, particularmente nos EUA, mas também na Grã-Bretanha. Não atribuindo aqui qualquer importância aos que, em qualquer parte do mundo, são contra a teoria por ignorância, preguiça ou indigência intelectual, aquele movimento pode ser estrategicamente divido em três grandes blocos.

Por um lado, temos aquela espécie de rivalidade mimética com a teoria literária por que certas proclamações antiteóricas (se) revelam (n)a sua própria disposição teórica. Alguns dos seus exemplos mais interessantes podem ser encontrados nos ataques contra a teoria desferidos conjuntamente por Steven Knapp e Walter Benn Michaels em nome da defesa da «intenção do autor», bem como no conturbado anúncio do «fim da teoria literária» por parte de Stein Haugom Olsen com o consequente (res)surgimento redentor da «estética literária».

Por outro lado, temos a versão híbrida, extremamente contraditória, que é representada pelas várias formas do äMaterialismo Cultural e do äNovo Historicismo, ambos de inspiração marxista ou para-marxista. No essencial, o que é proposto é uma série de recuperações de um entendimento historicista do discurso literário no quadro mais geral dos múltiplos discursos de uma cultura ou das múltiplas formações discursivas que nela operam. Michel Foucault parece ser o pai espiritual destes autores para quem a literatura faz sentido sobretudo pela “energia social” (vd. Greenblatt, 1988) que atravessa os textos, e através da qual podem ser descobertas as correspondências entre as convenções literárias inscritas no texto e as forças políticas hegemónicas da sociedade. É claro que neste quadro de regulação ideológica da literatura a teoria literária, enquanto implicitação da primazia artística dos textos literários, faz pouco sentido.

Finalmente, encontramos o estranho movimento dos “arrependidos” da teoria, isto é, daqueles que, como Murray Krieger, Harold Bloom e Stanley Fish, mais fizeram por a institucionalizar, mas que se mostram perplexos (Krieger) ou horrorizados (Bloom) ou morbidamente entusiasmados (Fish) com as suas manifestações actuais. É com estes que vale a pena discutir o problema.

A perplexidade de Murray Kriger concentra-se sobretudo na constatação daquilo que pode ser considerado um certo anti-humanismo militante por parte da teoria actual. Tal facto torna aquele autor nostálgico dos tempos do New Criticism em que a “imaginação liberal” da pesquisa teórica se mostrava “sensível à voz do outro” (1994: 23).

É em nome daquilo a que chama “grande literatura”, bem como do prazer da leitura que o nosso tempo parece estar a matar com a ajuda da teoria, que Harold Bloom reúne as manifestações actuais da teoria literária na noção de Escola do Ressentimento (School of Resentment), e na qual inclui Feministas, Afrocentristas, Marxistas, Novos Historicistas e Desconstrucionistas. Uma estranha mistura que faz sentido sobretudo na visão apocalíptica de Harold Bloom acerca daquilo a que chama os “abridores do cânone” ocidental, e da intransigente defesa que faz desse mesmo cânone, muito particularmente do seu núcleo constitutivo, William Shakespeare (veja-se H. Bloom, 1994, 1997). Para Harold Bloom, todos estas orientações dos estudos literários—“em fuga do estético”, conforme ele afirma—estão a matar os estudos literários exactamente no seio da universidade, isto é, no seio da instituição que mais deveria fazer para os salvaguardar: “Não acredito que os estudos literários tenham futuro enquanto tal, mas isto não significa que a crítica literária vá morrer. Enquanto ramo da literatura, a crítica sobreviverá, mas provavelmente não nas nossas instituições de ensino. O estudo da literatura ocidental também continuará, mas na escala muito mais modesta dos nossos actuais departamentos de Clássicas. (...) Não vale a pena lamentar esta evolução, pois hoje em dia só uma mão cheia de estudantes entra na Universidade de Yale com uma autêntica paixão pela leitura. Não se pode ensinar alguém a amar a grande poesia quando esse alguém chega até nós sem esse amor. Como é que se pode ensinar a solidão? A verdadeira leitura é uma actividade solitária e não ensina ninguém a ser um cidadão melhor. (...) Embora sendo uma questão intrincada, não está para além de qualquer conjectura a exacta razão pela qual os estudantes de literatura se transformaram em analistas políticos amadores, sociólogos ignorantes, antropólogos incompetentes, filósofos medíocres e historiadores culturais sobredeterminados. É que todos eles se ressentem da literatura, ou se envergonham dela, ou simplesmente não estão muito dispostos a lê-la. (...) A líbido é um mito, e as “energias sociais” também o são. Shakespeare, escandalosamente condescendente, foi uma pessoa que viveu e teve a ideia de escrever Hamlet e Rei Lear. Esse escândalo é inaceitável para aquilo que hoje em dia passa por ser teoria literária. (Bloom, 1997: 519-521).

Quanto a Stanley Fish, este invoca o que julgo ser a saturação de (e com) o próprio camplo disciplinar da teoria literária. A metáfora que Fish utiliza para caracterizar o trabalho teórico é a do Yo-Yo (um carreto no qual está enrolado um cordel, e que as crianças lançam e tornam a enrolar). Vale a pena uma fazer uma outra longa citação: “A teoria só chegará ao fim quando tiver esticado o seu cordel, percorrido o seu caminho, quando as urgências e os receios de que é expressão se desvanecerem ou se exprimirem através de qualquer outra coisa. Isto já está a acontecer nos estudos literários (...). O esbatimento da teoria é sinalizado não pelo silêncio mas por mais e mais conversa, mais revistas, mais congressos e mais entradas na competição pelo direito a resumir a história da teoria. Um tempo virá em que essa é uma competição que ninguém deseja vencer; um tempo em que a divulgação de mais uma outra amostragem do método crítico é recebido não como uma promessa mas como uma ameaça; um tempo em que o anúncio de mais um outro Colóquio acerca da função da teoria nos nossos dias provocará apenas um suspiro de lamentação. Esse tempo pode muito bem ter já chegado: o dia da teoria está a chegar ao fim; a hora é tardia; e a única coisa que resta ao téorico é dizer isto mesmo (...)” (S. Fish, 1989: 340-341).

Todos estes argumentos fazem sentido; todos eles decorrem de diagnósticos acertados da cena intelectual contemporânea. Não vale a pena escamotear a sua legitimidade, e muito menos contrariá-los através de atitudes protectoras (ou pseudo-protectoras) da teoria que, no fundo, nada mais seriam que exercícios de um paternalismo anacrónico. O que importa é aceitar a discussão nos termos em que é colocada por aqueles três autores, procurando respostas para as suas posições problemáticas, bem como alternativas ou saídas (por mais provisórias que elas possam ser) para a própria crise interna da teoria que aquelas posições evidenciam.

Comecemos pela nostálgica posição de Murray Krieger. Será possível um regresso ao velho humanismo que pugnava pelo carácter contra-ideológico da literatura e, por extensão, da crítica literária, com a teoria a funcionar como a sua rede protectora? Julgo que não. Em primeiro lugar, porque vivemos hoje numa cultura de resistência ao privilégio do literário. Em segundo lugar, porque é hoje dificilmente defensável a ideia fundamentalista de uma partilha de valores humanos universais. A primeira razão abre-nos (ou deve abrir-nos) para o estudo de formas culturais que, ao se cruzarem com a literatura no imaginário cultural, obrigam a uma questionação do próprio estatuto institucional do literário. A segunda razão coloca-nos perante necessidades novas, designadamente a de problematizar a relação crítica com um texto enquanto relação fundada num conjunto de escolhas morais por parte do crítico num quadro pluralista mais vasto de envolvimentos éticos. A reflexão acerca de tudo isto cabe (ainda e sempre) à teoria literária. Mas cabe num contexto que não pode ser subsumido numa visão tradicional que encare as diferentes formas culturais (incluindo a literatura) como separadas ou mesmo independentes umas das outras, nem como estando sujeitas a uma hierarquia de valor cognitivo—que era o que acontecia com os New Critics.

Passemos agora à posição de Harold Bloom. Será que o teórico da literatura deve renegar a teoria para voltar à pureza imaculada da experiência estética, como Bloom pretende? Julgo que não, embora aqui eu tenha sentimentos contraditórios quanto a esta negativa. Cada vez mais me convenço que a identificação do belo decorre sobretudo de uma intuição profunda partilhada pelo homem, situando-se, por isso, mais ao nível do arquetípico e universal do que do contingente ou acidental. No entanto, não posso ignorar as condições da diversidade cognitiva por que se opera aquela partilha, e muito particularmente a sobredeterminação cultural e histórica das hierarquias do valor estético que invariavelmente a acompanha. Quero dizer com isto que apesar da sua eventual universalidade imediata ou intuitiva, a experiência estética é uma experiência qualitativa no sentido em que está dependente de graus qualitativos de conhecimento teórico da própria experiência estética. Não se cai necessariamente no relativismo vulgar se insistirmos na ideia de que nenhuma leitura crítica é inocente, pois nela estão sempre implícitos os preconceitos (ou as crenças e os valores) do próprio crítico. A teoria que estuda esses graus e os contextos que os definem, bem como esses preconceitos e os discursos por que eles se manifestam não pode, por isso, ser vista como inimiga do estético, mas antes como o seu duplo necessário. Hoje, tal como ontem.

Consideremos, finalmente, a posição de Stanley Fish. Será que o teórico se deve limitar a escrever a crónica da morte anunciada da teoria, como pretende Fish, cruzando os braços perante a inevitabilidade dessa morte? Julgo que não. A razão para tal parece-me simples. O regime intelectual da produção teórica não é de tipo autoritário mas, antes, pluralista, na medida em que corresponde ou surge em consonância com a heterogeneidade das narrativas que compõem a cultura. No que à literatura diz respeito, essa heterogeneidade resulta dos próprios movimentos que cada época executa em direcção a épocas anteriores, transformando os dados do passado, tornando-os presente, inaugurando o futuro. Também as coisas literárias mudam de acordo com as circunstâncias, desafiando posições intelectuais, levando os teóricos a jogar o jogo da arbitrariedade das circunstâncias históricas e, ao mesmo tempo, a ser por elas jogados. Isto tem como consequência que a teoria da literatura está “condenada” a subsistir não só para narrar a história da sua busca de diferenciação intelectual, mas também para mostrar a diferença da sua narrativa acerca de um objecto que constantemente se transforma e se redistribui pelos vários planos da cultura. Neste sentido, pode-se afirmar que a teoria é uma actividade sem destino, embora com uma orientação bem marcada pelas energias heterogéneas da literatura.

Sintetizando o comentário que acabo de fazer das várias posições anti-teóricas, julgo que o teórico da literatura deve aceitar as evidências da crise interna da teoria não como uma fatalidade mortal, mas como um desafio à capacidade meta-teórica da própria teoria. Por outro lado, é também essa crise interna que nos deve impulsionar com mais vigor para uma pesquisa no interior da literatura de modo a podermos encontrar novas circunstâncias que apontem para novos problemas. É exactamente isso que tentarei exemplificar a seguir. Passemos, então, a um novo estádio da exposição.

5. Os novos horizontes da teoria literária

Na medida em que acredito que a evolução do pensamento literário nunca se fez independentemente da evolução da literatura, qualquer inquirição teórica implica um entendimento específico do que a literatura foi, é e sobretudo poderá vir a ser. O meu entendimento é o seguinte.

1º) Independentemente das questões de valor estético, julgo que é à presença da ficcionalidade (ou à representação/interpretação ficcional da realidade) que se deve a identificação milenar da literatura. Neste sentido, sem ficção nunca houve, não há nem haverá literatura. A partilha cultural deste denominador comum, quase intuitiva na sua universalidade, prova-o amplamente.

2º) Apesar daquela universalidade, aquilo que é ou não é autêntica literatura esteve desde sempre dependente de códigos epocais dominantes. Embora mutáveis, esses códigos marcaram e marcam fortemente a evolução literária ou o diálogo intra-literário entre diferentes gerações de escritores e leitores. Isto quer dizer que os dispositivos expressivos da literatura se modificam e se transformam em função das modificações e das transformações da sociedade humana.

3º) Aquilo que sinaliza mais intensamente tanto a ideia genérica que hoje temos do nosso presente como as nossas congeminações acerca do futuro podem ser epitomizadas no extraordinário horizonte de possibilidades abertas à humanidade pela informática e, no âmbito daquilo que aqui interessa, pela comunicação multimédia e interactiva.

Estas três componentes do meu entendimento da literatura, do processo literário e da tendência genérica da cultura contemporânea, conduzem-me à seguinte reflexão. A comunicação multimédia e interactiva, que tão bem caracteriza o nosso final de milénio, tem vindo a introduzir alterações profundas no sistema de recolha, organização e experiência da informação. De tal maneira que são múltiplos os sinais que nos anunciam uma nova era onde o livro, tal como o conhecemos, deixará de existir. São múltiplos os sinais que nos dizem que o “texto” electrónico irá implacavelmente «redefinir a escrita, a leitura e também a profissão literária» (Richard H. Lanham, 1989: 265). São múltiplos os sinais que nos asseguram que a literatura só terá lugar num espaço electrónico interactivo simultaneamente centrado em e descentrado por inúmeros desdobramentos de leitura.

As fundações culturais da literatura do futuro já foram avistadas na serenidade teórica da äpolissemia, e a sua arquitectura epistemológica continua a ser traçada na turbulência da äindeterminação textual. O edifício artístico anuncia-se agora na alegre festa interactiva da palavra que o leitor pode substituir, das personagens cujo papel o leitor pode trocar e de uma história sempre inacabada ou, melhor, acabada segundo a vontade, os interesses, as motivações de cada leitor. O chamado ähipertexto já se desenha no horizonte informático e com ele (através dele) as inúmeras combinações (re)criativas que o leitor é chamado a executar. Conforme já foi bem estudado por George P. Landwow (Cf. 1992, em especial pp. 2-34), é mesmo no sistema intertextual protagonizado pelo hipertexto que muitos dos mais importantes desideratos estruturalistas e pós-estruturalistas encontram finalmente a sua expressão mais fascinante.

Se acreditarmos nesta redefinição electrónica da comunicação, a noção de texto original perde-se na mutação da literatura que se anuncia. Os exemplos já disponíveis de ficção interactiva (veja-se R. Ziegfeld, 1989) provam que o “texto” não é mais um lugar autónomo que propicia uma fruição (leitura) condicionada por unidades fixas, mas sim uma totalidade onde leitor e autor, através de possibilidades abertas por «software» próprio, encetam diálogos criativos completamente novos. Neste novo mundo da palavra, o “texto” existe como entidade localizada dinamicamente para e a partir do leitor num jogo de hipóteses em permanente transformação.

A teoria literária não pode, de modo nenhum, estar fora desta fascinante mutação de paradigma que nos é dado viver. Ao contrário, é ela que melhor pode estudar e compreender essa mutação, tanto nas suas diferenças específicas como nas suas relações inevitáveis com as pulsões mais intemporais que levaram e levam o homem a construir e a querer fruir a palavra ficcional, os mundos possíveis que a ficção exibe ou a matéria negra agenciadora da heteronomia dos textos imaginativos (veja-se M. F. Martins, 1995). Se acreditarmos, como eu acredito, na redefinição da comunicação literária que será introduzida pela literatura interactiva, então a teoria literária não precisa de assumir um papel protector ou paternalista da literatura por oposição à äteoria crítica tão do desagrado de autores como Harold Bloom. O apelo do “outro” que interage no texto literário do futuro será, ainda e sempre, um apelo à teoria dessa mesma interacção, bem como à teoria das novas relações críticas que ela implica.

Em suma, é aqui, segundo creio, que mais um novo caminho se abre à teoria literária, confirmando-a também, aliás, como processo interrogativo do pensamento crítico. É por aqui que se descortina um eventual novo fim para a teoria que será qualquer dia anunciado num qualquer colóquio, conferência ou publicação, isto é, um novo começo de um novo estudo de um novo problema que a literatura (com este ou com outro nome) nos irá de novo colocar. Por isso, e para concluir, a teoria literária não chegou ao fim, mas vai a caminho, continuamente a caminho de um fim que não é nem nunca será verdadeiramente um fim. Até porque o fim, de facto, é sempre um início.

CRÍTICA LITERÁRIA; HERMENÊUTICA; LITERATURA; POÉTICA; RETÓRICA; TEXTUALIDADE

Bib.: Aristóteles: Ética a Nicómaco, Poética, Retórica; A.J.Atkins: Literary Criticism in Antiquity. A Sketch of its Development (1934, 1952); Boris Eixenbaum: “The Theory of the Formal Method” (1926), in Matejka & Pomorska, (1978); David Gorman: «Self-Consuming Disciplines? A Proposal Considered», in Explorations in Knowledge, III, 2: 33-42, (1986); Eduardo Prado Coelho: Os Universos da Crítica (1982); Edward Stankiewicz: «Poetics and Verbal Art» (1977); «Prague School Morphophonemics» (1978); G.M.A. Grube: Aristotle on Poetry and Style (1958); George P. Landow: Hypertext. The Convergence of Contemporary Critical Theory and Technology (1992); Harold Bloom (org.): The Art of the Critic: Literary Theory and Criticism from the Greeks to the Present, Vol. I (1985); O Cânone Literário Ocidental (1996); Isaiah Smithson: «The Moral View of Aristotle’s Poetics», in The Journal of the History of Ideas, Vol. LXIV, nº1 (1983); John Jones: On Aristotle and Greek Tragedy (1980); Jorge de Sena: Dialécticas Teóricas da Literatura (1977); Leonard Orr: Research in Critical Theory Since 1965: A Classified Bibliography (1989); Lucien Goldmann: Marxisme et Sciences Humaines (1970); M. H. Abrams: The Mirror and the Lamp: Romantic Theory and the Critical Tra­dition (1953); Manuel Frias Martins: Matéria Negra. Uma Teoria da Literatura e da Crítica Literária (1995); Murray Krieger: The Institution of Theory (1994); Paul de Man: A Resistância à Teoria(1986, 1989); Philip Lacoue-Labarth & Jean Luc Nancy (orgs.): L’absolue littéraire. Théorie de la littérature du romantisme allemand (1978); Raman Selden: A Reader’s Guide to Contemporary Literary Theory (1989); René Wellek & Austin Warren: Teoria da Literatura (1947, 1971); Richard H. Lanham: «The Electronic Word: Literary Study and the Digital Revolution», in New Literary History, Vol. XX, 2 (1989); Robert C. Davies: «The Case for a Post‑Structuralist Mimesis: John Barth and Imitation», in American Journal of Semiotics, Vol. III, nº 3 (1985); Roland Barthes: O Grau Zero da Escrita (1953, 1977); O Rumor da Língua (1984, 1987); Samuel H. Butcher: Aristotle’s Theory of Poetry and Fine Art (1902, 1979); Stanley Fish: Doing What Comes Naturally. Change, Rhetoric, and the Practice of Theory in Literary and Legal Studies (1989); Stein Haugom Olsen: The End of Literary Theory (1985); Stephen Greenblatt: Renaissance Self-Fashioning. From More to Shakespeare (1980); Stephen Knapp & Walter Benn Michaels: «Against Theory» (1985), in W.J.T.Mitchell (org.); «Against Theory 2: Hermeneutics and Deconstruction», in Critical Inquiry, Vol. XIV, nº1, (1987); Victor Erlich: Russian Formalism. History, Doctrine, 2ª ed. rev.(1965); Richard Ziegfeld: «Interactive Fiction: A New Literary Genre?», in New Literary History, Vol. XX, nº2 (1989); Vítor Manuel de Aguiar e Silva: Teoria da Literatura (1982, 4ª edição).

Manuel Frias Martins

Sentindo o cheiro da noite

terça-feira, 24 de novembro de 2009

[De sin - + gr. aísthesis, «sensação» + - ia] Processo estilístico que consiste na associação, pela palavra, de duas ou mais sensações pertencentes a registos sensoriais diferentes. A utilização de tal figura de retórica permite a transposição de sensações, ou seja, a atribuição de determinadas impressões sensoriais a um sentido que não lhes corresponde. Por exemplo, na expressão “aquela cor é gritante”, a percepção visual (cor) como que é ouvida, processo que acentua a intensidade da mesma.

A sinestesia é uma figura de retórica que surge intimamente ligada à metáfora e à imagem, como o podem exemplificar os seguintes versos de Mário de Sá Carneiro – “Insónia roxa. A luz a virgular-se em medo./ O aroma endoideceu, upou-se em cor, quebrou/Gritam-se sons de cor e de perfumes”. Tal situação levou mesmo alguns linguistas a considerar este procedimento estilístico como um tipo de metáfora ou, até mesmo, um grau de metáfora, de acordo com o crítico J. Cohen , ideia à qual a retórica antiga não foi alheia, referindo-se à sinestesia como uma metáfora afastada.

Embora já fosse utilizada na literatura grecolatina, a sinestesia alcança maior notoriedade com os poetas barrocos e simbolistas, tais como Quevedo, Baudelaire, Rimbaud, Verlaine, etc. Durante o período barroco, esta figura de retórica foi inclusivamente considerada, juntamente com a hipérbole, a antítese e a metáfora, como uma das que melhor servia os ideais estéticos de deleite e deslumbramento do leitor. Recorde-se, a propósito, o conhecido soneto de Rimbaud – “ A noir, E blanc, I rouge, U vert, O bleu (...)” - ou os seguintes versos de Quevedo e de Tomás Pinto Brandão respectivamente- “Si mis párpados, Lisi, labios fueram,/ besos fueram los rayos visuales/ de mis ojos (...)”; “mostrando pura/Candidez, com afagos transparentes/Beija na face as flores e as murmura”.

Bib: Fernandes Agudo: Noções de Estilística (1945); Heinrich Lausberg: Elementos de Retórica Literária (1993); Jean Cohen: Estrutura da Linguagem Poética (1973); Michel le Guern: Semântica da Metáfora e da Metonímia (1974); Pierre Fontanier: Les Figures do discours (1977);

Carla Sofia Caneiro Escarduça

O sentido literário

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Termo polissémico utilizado numa grande diversidade de domínios. Designa habitualmente os dispositivos orgânicos responsáveis pela troca de informações com o meio ambiente, falando-se então dos sentidos da vista, do ouvido, do odorato, do tacto e do gosto. É utilizado para designar a direcção ou a orientação de um movimento, tal como nas expressões sentido único, sentido obrigatório, sentido giratório. No domínio afectivo, designa intuição, sentimento ou conhecimento imediato, como na expressão: «esta pessoa tem um sentido das coisas muito apurado». No âmbito da filosofia da linguagem, o sentido é um dos efeitos produzidos pelos enunciados. Existem, no entanto, tantas maneiras de entender estes efeitos da linguagem quantas as tradições filosóficas.

A principal característica do sentido, é a sua omnipresença: tudo aquilo que o homem experiencia tem sentido, mesmo que lhe pareça enigmático ou duvidoso. Até uma experiência absurda ou, como costumamos também dizer, sem sentido, continua a ter sentido, pelo menos o sentido de algo absurdo ou sem sentido.

Mas se todos reconhecem a omnipresença do sentido, já é mais difícil encontrar consenso acerca da determinação da sua origem e da sua natureza. Por razões de natureza didáctica, podemos agrupar as diferentes concepções do sentido em três perspectivas fundamentais: a que assimila o sentido à essência dos seres, a que o assimila ao conceito e a que o define como relação, como resultado ou produto da combinação de formas.

Estas três concepções estão associadas a correntes metafísicas que atravessaram a história do pensamento ocidental, retornando regularmente como tendências dominantes. É óbvio que, de cada vez que reaparecem, estas perspectivas se revestem de novas aparências, o que lhes confere uma aparência original.

É em Platão que encontramos, pela primeira vez, a perspectiva que associa o sentido à essência dos seres. No Crátilo, Platão rejeita tanto a concepção naturalista como a concepção convencionalista da linguagem, porque considera ambas as posições como o resultado de uma definição ilusória dos seres. Para Platão, só não é ilusório o conhecimento que provém da contemplação, do desvendamento (em grego: alhthia) das ideias eternas ou da essência escondida das coisas, essência que a alma já contemplara na eternidade, mas que a sua encarnação neste mundo de sombras as fez esquecer. São essas essências que a dialéctica, processo maiêutico que consiste no diálogo ou no quesdtionamento, tem por função recordar. Para esta tradição, o sentido é, por isso, o resultado de um processo de rememoração, de um desvendamento da essência una, imutável e eterna, escondida ou velada (em grego leth) pela diversidade dos entes, realidades aparentes, mutáveis e efémeras.

A perspectiva que associa o sentido com o conceito provém da crítica de Aristóteles à concepção essencialista do sentido que encontramos em Platão. Para Aristóteles, o sentido é o resultado da descoberta no termo do trabalho da razão. No termo do processo de abstracção, a razão descobre pela observação da diversidade dos entes, semelhanças e diferenças. Deste modo, concebe princípios racionais ou conceitos. São os conceitos que, por conseguinte, para o aristotelismo, subsumem os seres singulares e lhes dão sentido.

A definição formal do sentido começou por ser proposta pelos Estóicos e pelos Sofistas, mas dominou, na Idade Média, as controvérsias entre os realistas e os nominalistas ou terministas. Enquanto os realistas, pretendendo continuar fiéis à tradição aristotélica, defendiam a existência real dos conceitos ou dos universais que a razão descobre através da indagação lógica abstractizante dos seres, os nominalistas definiam o sentido como um mero efeito de linguagem, como uma espécie de fulgurância provocada pelos nomes que utilizamos para designar os seres singulares. A perspectiva nominalista retornou de novo, no nosso século, sob a influência da linguística estrutural.

Mas estas diferentes perspectivas possuem em comum o facto de confundirem o sentido com a significação. É esta assimilação que ultimamente tem vindo a ser questionada pela perspectiva pragmática do sentido. Ao contrário da significação, que tem a ver com a relação das unidades verbais com os conceitos para que remetem, o sentido não seria delimitado pela forma das unidades verbais; abarcaria os enunciados e as unidades textuais mais vastas e teria a ver com aquilo que os falantes visam ou entendem fazer com o uso dessas unidades. Deste ponto de vista, o sentido é uma noção muito próxima da noção de acto ilocutório, tal como foi definido por John Austin e tem vindo a ser reelaborado por vários autores e, em particular, por John Searle.

Assim, além de assegurar as funções designadora, expressiva e significante, a linguagem desempenha ainda a função de elaboração do sentido, processo muito próximo daquilo que os Estóicos consideravam como transformação incorporal dos corpos. Assim, por exemplo, quando o juiz, no exercício das suas funções, declara: «fica o réu condenado», o sentido é a transformação incorporal que este enunciado produz, ao transformar um réu num condenado. Situando-se dentro desta perspectiva estoicista, Gilles Deleuze acentuaria na nossa época a irredutibilidade ou a incomensurabilidade do sentido em relação à natureza sígnica da linguagem. O sentido estender-se-ia até ao limite do enunciado, abarcando a totalidade do discurso, embora se encontre todo em cada uma das suas partes, correspondendo por isso à orientação global do enunciado, à sua força ilocutória.

Bibl.: Gilles Deleuze, Logique du Sens, Paris, ed. de Minuit, 1966; Gilles Deleuze e Félix Guattari, Les Postulats de la Linguistique, in Mille Plateaux, Paris, ed. de Minuit, 1980; Platão, Crátilo.

Adriano Duarte Rodrigues

Tudo na literatura é simbólico?

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Registo da actividade humana, segundo em relação ao real (v.), em parte inconsciente, em parte consciente, ligado às regras da aprendizagem da fala, à função do significante(v.) e às leis da cultura. A psicanálise, ao estudar a estruturação mental do sujeito,(v.) pôs a nu a função simbólica nessa estruturação o que permitiu afirmar que “o inconsciente (o real do corpo) está estruturado como uma linguagem”(Lacan). Lacan partiu do registo mais próximo, o imaginário(v.), pelo seu estudo na organização da fase do espelho, recuando depois ao simbólico no trabalho sobre a cadeia significante, para chegar enfim à instância mais primitiva, o real pelo aprofundamento da relação sexual e da sua impossibilidade. O simbólico faz do homem um ser regido pela linguagem a qual determina as formas do seu laço social e das suas escolhas sexuadas. Não podemos saber ainda (saber-se-á alguma vez?) como se fundou o ser falante (parlêtre), mas onde quer que seja que as investigações encontrem seres humanos, os túmulos, o desenho, os signos esculpidos ou a escrita, assim como as leis de parentesco, de trocas, os dons, pactos e alianças, os rituais e os interditos, tudo indica a existência desde sempre de leis da fala.

Desde o nascimento que o pequeno ser mergulha num mundo da linguagem que lhe pré-existe. O discurso que o envolve desde a concepção, discurso do Outro que o retira da simbiose materna e que o projecta desde logo no futuro e como ser-para-a-morte, tem duas características. Por um lado só pode ser um discurso marcado pela cultura envolvente, a sua língua, as suas regras, regulações, os seus significantes.

Por outro lado esse discurso está marcado pela história e a estrutura daqueles que o dizem (em geral os pais) e que incarnam à sua maneira, segundo o momento da sua vida, essa cultura. Conotam assim com significantes fortes a expressão do seu próprio pedido e desejo relativo àquele que vem de nascer e que, nesse discurso ocupa fundamentalmente o lugar de objecto desse pedido e desse desejo. Desejo ambivalente e inconsciente dessa ambivalência de que o bébé permaneça nesse lugar e simultâneamente que saia dele para um lugar de sujeito, um lugar de um outro suposto saber responder às questões inconscientes dos pais. Assim o significante do pedido primitivo joga sem descanso sobre este equívoco e transporta-o para além da infância dando ao discurso do Outro inconsciente o seu lugar simbólico.

Eis porquê qualquer fala vai passar a ter uma dimensão onde, para além do que ela significa visa outra coisa que não é por definição articulável no pedido expresso e que designa na fala essa parte origináriamente recalcada. (Sobre esse recalcamento primitivo v. deslocamento). Esta é a base da disjunção do significante(v.) da sua função de significado. Eis o que, para além da sua função de nominação ou designação, institui na linguagem a dimensão simbólica.

Esta dimensão é a dimensão da literatura. Podendo parecer à primeira vista que é do imaginário que o escritor se serve, é no registo do simbólico que a literatura se elabora e que ela é lugar de transmissão de uma cultura. Por isso ela se perenisa e não perde valor, ainda que a língua, as forma, a sintaxe mudem. Eis porquê ela deu um contributo essencial à psicanálise e também recebe hoje desta um contributo de leitura.

“Sabe-se que é na experiência inaugurada pela psicanálise que se pode verificar qual a ponta do imaginário pela qual o simbólico agarra o organismo humano até ao mais íntimo. O nosso ensino sustenta que essas incidências imaginárias nada nos dão que não seja inconsistente a menos de serem relacionadas com a cadeia simbólica que as liga e as orienta. É a lei própria dessa cadeia que rege os efeitos determinantes para o sujeito: a forclusão(v.), o recalcamento, a denegação. Há que notar que esses efeitos seguem o deslocamento(v.) do significante tão fielmente que os factores imaginários, apesar da sua inércia, assemelham-se apenas a sombras e reflexos.” (Lacan)

É verdade que foram os contributos da época, de Saussure a Jakobson, aos quais Lacan não deixa de se referir regularmente, que lhe permitiram estes avanços na psicanálise. Mas também é verdade que Freud, a quem estes instrumentos faltaram, descreveu mecanismos como os do processo primário em que se estrutura o inconsciente que cobrem exactamente as funções que a linguística diz determinarem os mais radicais efeitos de linguagem, nomeadamente a metáfora(v.) e a metonímia(v.), ou seja os efeitos de combinação e substituição do significante.

Bib.: Jacques Lacan, La lettre volée e L’instance de la lettre dans le signifiant, em Écrits, Paris, Le Seuil, 1966; Les non-dupes errent, (seminário XXI – 1973-74), inédito; R.S.I. (Seminário XXII), Ornicar?, Paris, 1975.

Maria Belo

Semântica estrutural

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Teoria do significado desenvolvida sobretudo na Europa que tem por fundamento a fenomenologia de E. Husserl e Merleau-Ponty e a lingüística de Ferdinand de Saussure e Louis Hjelmslev. De caráter sincrônico, opõe-se à semântica diacrônica de Michel Bréal, embora lhe reconheça o mérito de ter sido o fundador da ciência. Dos vários nomes que podem ser citados como precursores da semântica estrutural destacamos os de A. Noreen e J. Trier. O primeiro divide os estudos semânticos em duas áreas (semântica descritiva e semântica etimológica), distingue entre significado ocasional e usual e, embora de forma diversa da glossemática (v. verbete), situa a oposição variante/invariante; já o segundo cria a teoria dos campos semânticos, cujos resultados são parciais, já que não ultrapassa o nível da palavra.

Mas foi somente na década dos sessenta, sobretudo a partir das obras de Bernard Pottier e Algirdas Julien Greimas que efetivamente surgiu a semântica estrutural como ciência, com seus próprios postulados e metodologia. Para tanto, emprestaram da lingüística os conceitos das dicotomias, sobretudo expressão/conteúdo, e o modelo fonológico, desenvolvido pelo Círculo Lingüístico de Praga (Trubetzkói e Jakobson, entre outros), estipulando um paralelismo entre formas de expressão (cujo elemento mínimo é o fema) e formas de conteúdo (tendo no sema seu traço mínimo) (v. semema). Se a linha de Pottier se volta mais propriamente para os estudos gramaticais, sem ultrapassar os limites da frase, Greimas parte do texto em sua maior abrangência e acaba por enveredar numa área de pesquisas bem mais ampla – a da semiótica (ou semiologia). Ainda inacabada, a semântica estrutural realiza esforços no sentido de estipular universais semânticos, passo indispensável para seu maior êxito. Vale lembrar, com obras significativas na área referida, os nomes de Apresjan, U. Weinrich, Katz e Fodor.

Bib.: A. J. Greimas: Sémantique structurale (Paris, 1972); A. J. Greimas & J. Courtés: Sémiotique (Dictionnaire raisonné de la théorie du langage) (Paris, 1979); B. Malmberg: Les nouvelles tendances de la linguistique (Paris, 1966); B. Pottier: Gramática del español (Madrid, 1970); B. Pottier: Lingüística general (Madrid, 1976).

Ramon Quintela

VALOR ESTÉTICO

terça-feira, 17 de novembro de 2009

O valor estético de uma obra literária não é algo que possa ser proposto como um absoluto em si mesmo, na medida em que circula por ordens muito próprias de existência social e cultural dos objectos considerados artísticos. A relação de dependência mútua entre o valor estético, a função estética e a norma estética foi brilhantemente estudada pelo checo Jan Mukarovský, durante as décadas de Trinta e Quarenta, no âmbito mais geral da pesquisa teórica e crítica levada a cabo pelo chamado Estruturalismo Checo*, e antes de Mukarovský cair no erro infeliz de, sobretudo a partir de 1951, negar toda a sua obra anterior em nome da adesão a uma triste ortodoxia comunista (veja-se R. Wellek, 1970).

É ainda operativo o quadro teórico por que Jan Mukarovský, o mais brilhante continuador do pensamento dos formalistas russos e um dos patronos incontestados, juntamente com Felix Vodicka, da estética da recepção alemã, colocou a problemática da literatura no quadro sociológico dinâmico de uma realização simultaneamente semiótica e comunicativa. Partindo da premissa de que «a obra literária é um signo, e portanto, pela sua própria essência, um facto social» (J. Mukarovský, 1936, 1977: 94), Mukarovský destaca a importância dos valores extra-estéticos contidos numa obra, tanto nos seus componentes formais como temáticos e, por aí, introduz o receptor como ser social, isto é, como uma figura cujos dados intelectuais, emocionais e volitivos globais se confrontam com os factos inscritos na obra: “As experiências que vibram no receptor graças ao impacto da obra de arte transmitem os seus movimentos à imagem global da realidade na mente do receptor” (loc. cit.).

É por esta relação entre a construção interna da obra e os paradigmas de conhecimento vigentes na colectividade que a recebe que Mukarovský propõe, por um lado, um entendimento da função estética como uma construção cultural variável no tempo e no espaço e, por outro lado, um entendimento da norma estética como critério estabilizador do valor estético—sujeita, por isso, a constantes violações e sucessivas alternâncias (vd. id.: 60-61). Se o estético não é uma característica real das coisas, nem tão pouco está relacionado de maneira unívoca com qualquer característica das coisas, a função estética também não está sob o domínio pleno do indivíduo: “A estabilização da função estética é um assunto da colectividade, e a função estética é uma componente da relação entre a colectividade humana e o mundo. Por isso, uma extensão determinada da função estética no mundo das coisas está relacionada com um conjunto social determinado. A maneira como este conjunto social concebe a função estética determina finalmente também a criação objectiva das coisas com o fim de conseguir um efeito estético e a atitude estética subjectiva em relação às mesmas” (id.: 56).

Por outro lado, a norma estética, que tende para uma obrigatoriedade sem excepções sem atingir nunca a validade de uma lei (isto é, sem se negar como norma), autolimita-se permanentemente, não só pelas possibilidades que constantemente existem de ser violada, mas também porque qualquer norma pode coexistir (e normalmente coexiste) com outras normas aplicáveis ao mesmo caso concreto. Ambas possuem o mesmo valor e ambas competem entre si: “A norma está (...) baseada numa antinomia dialéctica fundamental entre a validade incondicional e a potência meramente reguladora, e inclusive só orientadora, que implica a possibilidade da sua violação” (id.: 61). E ainda: “As normas que se enraizaram muito fixamente em qualquer sector da esfera estética ou em algum meio social podem sobreviver muito tempo; as normas novas estratificam-se paulatinamente a seu lado, e assim surge a convivência e a competição de muitas normas estéticas paralelas” (id.: 71).

A conceptualização do valor estético decorre naturalmente deste entendimento da existência da função e da norma. Partindo do princípio de que o cumprimento da norma não é uma condição indispensável do valor, Mukarovský desloca a problemática do valor estético para a validade e alcance da valoração estética, fazendo depender, no entanto, o estudo dessa problemática do reconhecimento fundamental da variabilidade da própria valoração estética: “O valor estético é (...) variável em todos os seus graus, sendo impossível que se mantenha numa imobilidade passiva. Os valores «eternos» mudam e transformam-se em parte mais lentamente, em parte de maneira menos perceptível do que aqueles que estão em níveis inferiores. Mas nem sequer o próprio ideal da durabilidade invariável do valor estético, independente das influências do exterior, constitui em todas as épocas e em todas as circunstâncias o mais alto e o único desejável” (id.: 82).

A variabilidade surge, assim, inscrita na própria essência do valor estético. Mesmo aqueles autores sinalizados pelos chamados «valores eternos», como por exemplo Shakespeare, não estão isentos desta inscrição. Por um lado, porque é possível observar, em relação ao drama shakespeariano, «oscilações» valorativas importantes. Por outro lado, e principalmente, porque há diferenças substanciais entre as obras de Shakespeare que cada tempo, cada lugar, cada espaço cultural sente(m) como «vivo», ou «histórico», ou «representativo», ou «escolar», ou «exclusivo» ou «popular» (vd. id.: 81).

Neste sentido, o valor estético, porque não é unívoco nem invariável, não será um estado (ergon) supra-social ou trans-histórico, mas um processo (energeia) decorrente da lógica da evolução social e do seu sistema de dominações. Por isso, ainda que se apresente sem mudanças no tempo e no espaço, o valor estético surge como um processo multiforme e complexo, manifestando-se, por exemplo, nos desacordos entre os críticos acerca de obras recém-criadas, na instabilidade dos gostos no mercado artístico, na valorização ou desvalorização súbitas de certos autores, etc. (vd. id.: 83).

Por outro lado, o valor estético também se encontra dependente da influência de instituições sociais que actuam directa ou indirectamente no sistema de valoração. Para além da acção institucional da crítica, o condicionamento da valoração estética surge desde logo na educação, em particular na educação artística, no mercado das obras e nos meios publicitários, nas exposições, nos museus, nos concursos e nos prémios públicos e, não raras vezes, na censura. Todas estas instituições, em conjunto com outras cuja acção é menos evidente mas não menos eficaz, representam tendências sociais específicas e, portanto, não só determinam que «o processo de valoração estética [esteja] relacionado com a evolução social» (id.: 84), mas também que «o carácter colectivo e incondicional da valoração estética se reflicta nos juízos individuais» (loc. cit.).

Função, norma e valor estéticos são assim entendidos por Mukarovský, nas suas múltiplas e complexas relações, como factos sociais, isto é, dependentes das contingências de diferentes formações sociais, de diferentes programas colectivos de conhecimento, de diferentes contextos históricos e culturais. A produtividade teórica e crítica destes aspectos nucleares do pensamento de Mukarovský mantém-se ainda viva e actuante.

Bibliografia:

Jan Mukarovský, Escritos de Estética e Semiótica del Arte; Jordi Lovet (org.), Barcelona, 1977.

Peter Steiner (org.), The Prague School. Selected Writings, 1929-1946, Austin, 1982.

René Wellek: “The Literary Theory and Aesthetics of the Prague School”, in Discriminations: Further Concepts of Criticism; New Haven, 1970.



Manuel Frias Martins

Paródia

sábado, 14 de novembro de 2009

Em definição simples, a paródia, enquanto termo literário, refere-se ao processo de imitação textual com intenção de produzir um efeito de cómico. A forma como se processa essa imitação, a motivação para o acto imitativo e as consequências esperadas para esse acto determinam a natureza literária da paródia. Por exemplo, a paródia é a forma privilegiada do exercício poético-ficcional da auto-reflexividade. Os romances de Italo Calvino, John Fowles, David Lodge, José Saramago, Mário de Carvalho ou Alexandre Pinheiro Torres podem tanto servir de exemplo como as Rãs de Aristófanes, a “Gesta de Mal-Dizer”, do trovador Afonso Lopes Baião, o Gargantua et Pantagruel (1532-64) de Rabelais, as Condensed Novels (1867), de Bret Harte, A Velhice da Madre Eterna (1885) de Xavier de Carvalho, o Eusébio Macário (1879) de Camilo Castelo Branco e ainda nos periódicos Punch, The New Yorker, etc., etc. Não sendo um recurso exclusivo de uma época, está suficientemente documentada no espaço que se convencionou chamar literatura pós-moderna para nos permitir distinguir a paródia também como paradigma desta época. A condição de auto-reflexividade é apenas uma forma de realização da paródia e não a sua definição final, como propõe, por exemplo, Margaret Rose em Parody//Metafiction (Croom, Helm., Londres, 1979).

É frequente a confusão, quase natural, entre o conceito de paródia e outros que vivem nas suas proximidades, sobretudo: a sátira, o pastiche, a paráfrase, a alusão, a citação e o plágio. Se conseguirmos estabelecer uma diferenciação lógica entre estes conceitos, já teremos dado um passo importante para a definição da paródia como paradigma de uma certa forma de fazer arte, que a seu tempo circunscreveremos à arte pós-moderna. Arrisquemos as seguintes proposições iniciais, sem a pretensão de as transformarmos em fórmulas científicas:



1. A paródia é a deformação de um texto preexistente.

2. A sátira é a censura de um texto preexistente.

3. O pastiche é a imitação criativa de um texto preexistente.

4. O plágio é a imitação ilegítima de um texto preexistente.

5. A paráfrase é o desenvolvimento de um texto preexistente.

6. A alusão é a referência indirecta a um texto preexistente.

7. A citação é a transcrição de um texto preexistente.



a) A paródia deforma, censura, imita (criativamente), desenvolve, referencia e não transcreve um texto preexistente.

b) A sátira censura e referencia, mas não imita, não deforma e não desenvolve um texto preexistente.

c) O pastiche imita criativamente, referencia e transcreve, mas não deforma, não censura e não desenvolve um texto preexistente.

d) O plágio imita ilegitimamente e transcreve, mas não deforma, não censura, não desenvolve e não referencia um texto preexistente.

e) A paráfrase desenvolve, referencia, mas não deforma, não censura, não imita e não transcreve (antes reescreve) um texto preexistente.

f) A alusão referencia, mas não deforma, não censura, não imita, não desenvolve e não transcreve um texto preexistente.

g) A citação transcreve, imita e referencia, mas não deforma, não censura e não desenvolve um texto preexistente.



Podíamos tentar completar estas proposições com outros factores de diferenciação menos acentuados, por exemplo, os critérios de ridicularização, ironia, ideologia e auto-reflexividade, que podem agrupar os conceitos de base da seguinte forma e reduzir a ambiguidade entre eles:



i) A paródia e a sátira são ridicularizações de textos preexistentes.

ii) O pastiche, o plágio, a alusão, a paráfrase e a citação não pressupõem a ridicularização de textos preexistentes.

iii) A paródia e a sátira usam a ironia como estratégia retórica.

iv) O pastiche, o plágio, a alusão, a paráfrase e a citação não usam a ironia como estratégia retórica.

v) O pastiche, a paráfrase, o plágio, a alusão, a paráfrase e a citação conservam a ideologia do texto-objecto.

vi) A paródia e a sátira não conservam a ideologia do texto-objecto.

vii) A paródia e a sátira suportam o exercício de auto-reflexividade.

viii) O pastiche, o plágio, a alusão, a paráfrase e a citação não suportam o exercício de auto-reflexividade.



Conquanto o pastiche, o plágio, a paráfrase, a alusão e a citação não participem de nenhum processo crítico de transformação dos objectos sobre que actuam, constituindo, por isso, recursos fotográficos que dispensam qualquer intervenção protestante (ou de apropriação de, se quisermos utilizar a terminologia formalista) para com os seus modelos, deixá-los-ei de lado nesta investigação sobre as possibilidades do paradigma parodístico. A paródia e a sátira implicam sempre uma atitude de protesto para com os objectos parodísticos e satíricos e será desta atitude que nascerá a condição pós-moderna que arrisco para uma renovada aplicação da paródia.

A paródia distingue-se do pastiche de um modelo preexistente por pressupor a ridicularização ou anedotização desse modelo, ao passo que o pastiche apenas se conforma com o decalque, sem qualquer intenção de interferir moral ou socialmente com o objecto decalcado. Toda a paródia exige a ridicularização como condição sine qua non para existir? Linda Hutcheon, logo na introdução à sua A Theory of Parody: The Teachings of Twentieth-Century Art Forms (Methuen, Londres e Nova Iorque, 1985), esforçou-se por dizer que a paródia nem sequer pressupõe o ridículo e a zombaria. Se retirarmos esta possibilidade de cómico à paródia, o conceito ficaria reduzido a quê? A mera repetição com distanciação, como quer Hutcheon? Se a paródia é uma deformação criativa de um texto tido historicamente por modelar, como eu a entendo, então necessita, invariavelmente da possibilidade de colocar em situação de cómico o texto que parodia. Esta função cumpre-se sempre que a paródia leva ao exagero um facto ou atributo que eram tidos, no texto-objecto, por exemplares e adequados às circunstâncias. É claro que a paródia da Odisseia no Ulisses de James Joyce não tem como objectivo a ridicularização do texto de Homero, por isso talvez fosse mais correcto falar aqui de pastiche criativo do que de paródia. Remetendo para a concepção dialógica da paródia em Bakhtin, Linda Hutcheon concorda também com Genette na definição da paródia como uma simples relação formal ou estrutural entre dois textos, sem a menção do cómico. Mas como é que se estabelece essa relação dialógica? Qualquer efeito de cómico se consegue por um desvio à norma linguística ou a um padrão universal de comportamento. A paródia concretiza-se da mesma forma para estabelecer a referenciação entre texto parodiante e texto parodiado.



O pastiche não é corrosivo para o texto que imita, ao passo que a paródia não pode dispensar esse efeito, se quiser funcionar como tal. Seja o texto de Alexandre O’Neill “Sá de Miranda Carneiro” (Poesias Completas, IN-CM, Lisboa, 1990, p. 373):



comigo me desavim

eu não sou eu nem sou o outro

sou posto em todo o perigo

sou qualquer coisa de intermédio

não posso viver comigo

pilar da ponte de tédio

não posso viver sem mim

que vai de mim para o Outro



Este pastiche duplo é pura repetição sem diferenciação ou distância em relação ao objecto imitado. Trata-se de duplicação que busca uma nova forma (o que é diferente do pressuposto deformativo da paródia) apenas como estilização de textos precedentes, que mantêm a sua significação intacta. Também não serve aqui a distinção entre paródia como apropriação e pastiche como imitação, porque O’Neill se apropria do convencionalismo dos textos originais ao mesmo tempo que os imita, ou vice-versa. Por esta razão o pastiche se aproxima mais de um puro divertimento do que a paródia, que está sujeita à lei da ironia corrosiva. O puro divertimento do pastiche pode partilhar com a ironia corrosiva da paródia o facto de ser um novo maneirismo. Muitos poetas recorrem à fórmula “À maneira de…” para contra-estilizar: por exemplo, Manuel Bandeira (“Torso arcaico de Apolo”, à maneira de Rilke), David Mourão-Ferreira (Os Lúcidos Lugares, poemas à maneira de romances), Natália Correia (Cantigas de Amigo, “para reflorir a sagrada matriz do nosso lirismo”, como diz o Poeta na abertura) ou Sophia de Mello Breyner Andresen (“Cesário Verde”). Este novo maneirismo é pastiche sem ironia nem deformação conceptual, o que não impede que um mesmo texto possa ser ao mesmo tempo um pastiche e uma paródia, se contiver esses dois ingredientes, como no poema “Homenagem a Tomás António de Gonzaga” de Jorge de Sena (Poesia III, Edições 70, Lisboa, 1989, p.95):



Gonzaga, podias não ter dito mais nada,

não ter escrito senão insuportáveis versos

de um árcade pedante, numa língua bífida

para o coloquial e o latim às avessas.



Mas uma vez disseste:

“eu tenho um coração maior que o mundo”.

Pouco importa em que circunstâncias o disseste:



Um coração maior que o mundo -

uma das mais raras coisas

que um poeta disse.



Talvez que a tenhas copiado

de algum velho clássico. Mas como

a tu disseste, Gonzaga! Por certo



que o teu coração era maior que o mundo:

nem pátrias nem Marílias te bastavam.



(Ainda que em Moçambique, como Rimbaud na Etiópia,

engordasses depois vendendo escravos).





A paródia é um jogo de traição premeditada do sentido. Não há paródia sem subversão do sentido. Quando, num pastiche como o de Jorge de Sena, essa subversão é conquistada à custa da ironia corrosiva (no poema, a falácia do valor moral do dito: “eu tenho um coração maior que o mundo”), o discurso de imitação é também um discurso de paródia. A definição de paródia que Genette nos dá como a transformação mínima de um outro texto (Palimpsestes, Seuil, Paris, 1982, p.33) é mais justa para o pastiche do que para a paródia. O pastiche retém a maior parte possível da massa do texto que imita; a paródia começa quando se ultrapassa esse mínimo de transformação (por exemplo, conseguida no poema de Jorge de Sena com a ironia do dístico final). Impõem-se também condições diferentes de referenciação à paródia e ao pastiche: este vive na dependência e obediência ao modelo imitado, ao passo que a paródia é tanto mais efectiva quanto maior for a distanciação em relação ao género do modelo parodiado. (Não é possível fazer o pastiche de um romance naturalista num romance realista, por exemplo; pode-se escrever um romance realista parodiando, para contra-estilizar, um romance naturalista.)

O que a paródia partilha com o pastiche é a mesma tolerância para com o conceito de intertextualidade. Esta é identificável na paródia e no pastiche, porque se trata, a níveis diferentes, de sobreposição de textos em relação a outros. Linda Hutcheon não aceita qualquer sinonímia entre paródia e intertextualidade (A Theory of Parody, p. 23), porque as associações que se produzem no intertexto não são controladas (pelo leitor ou pelo ouvinte ou pelo espectador), o que é exclusivo da paródia. Diria antes que são as associações textuais, arbitrárias ou construídas, que constituem o fenómeno da intertextualidade. Quando tais associações são feitas com o objectivo de produzir o cómico ou um efeito de ridicularização ou quando pretendem sobre-(im)por-se a um texto precedente, chegamos ao limiar da paródia. A intertextualidade pode ser vista, deste modo, como a condição de partida da formação da paródia e não um seu sinónimo, ou seja, por outras palavras, a intertextualidade é uma condição necessária da paródia mas não a sua definição estrutural.

É possível o pastiche poder ser interpretado como paradigma pós-moderno, quando verificamos que o que sobreveio à modernidade foi a paródia crítica e profundamente irónica? Penso haver uma forma de pastiche que serve o lado apolíneo do pós-modernismo, se quisermos aceitar que a paródia corrosiva constitua o seu lado dionisíaco. Convoco para a argumentação o bailarino-coreógrafo norte-americano Billy T. Jones e a Arnie Zane Dance Company, autores do espectáculo pós-moderno do pastiche como “Still/Here”, “Ballad” sobre poemas de Dylan Thomas, “Some Songs” sobre canções de Jacques Brel, “Ursonate” sobre um poema dadaísta de Kurt Schwitters. “Still/Here” é uma obra especular de muitos traumas e crises da sociedade pós-moderna: trata-se de um espectáculo sobre o sofrimento humano, inspirado no exemplo do malogrado amante de Billy T. Jones e na própria experiência seropositiva do dançarino. Esta obra originou uma polémica internacional sobre a essência da arte aí representada, ao ponto de provocar no seu criador um desabafo solipsista significativo, em conferência de imprensa em Avignon: “É difícil continuar a fazer arte.” O que mais impressiona na obra deste coreógrafo é a convocação da literatura ao palco da dança, segundo as leis do pastiche criativo. A intertextualidade com obras que vão do dadaísmo ao modernismo tardio reforça a possibilidade da impossibilidade de construir fronteiras entre estéticas isoladas pela história. Textualidade e dança podem ser convocadas no mesmo palco, segundo a mesma regra pós-moderna do pastiche sem ironia que vem a dar na mais pura expressão artística, isto é, arte sem denúncia e fortemente marcada pela emoção e pela decomposição controlada do corpo.

Uma arte como o do cartaz publicitário recorre ao pastiche criativo quase como uma necessidade, para além das obrigações comerciais e informativas. Os cartazes de João Machado, que produzem elaboradas e cuidadosas associações cromáticas ao serviço das colagens de objectos para produzir as várias metáforas visuais, são um bom exemplo do pastiche criativo sem ironia, sem intenção parodística. Insisto que esta possibilidade do pastiche é também pós-moderna. O que os cartazes de João Machado conseguem, por exemplo, os que tem produzido para o Cinanima, festival de cinema de animação organizado há 21 anos em Espinho, ultrapassam em muito a mera lógica comercial ou informativa que dita a criação de qualquer cartaz publicitário: roubam-nos a atenção para além da mensagem utilitária que têm necessariamente que conter e é nesse momento que podemos começar a falar de arte gráfica. Em entrevista ao Expresso (18-1-1997), João Machado diz: “O cartaz tem de ser lido à primeira vez. Se quem o olha tiver um choque, atingiram-se os objectivos desejados. Porém, pretendo assegurar uma segunda leitura, de forma a que seja observado e captado de forma diferente. Nesse segundo momento, tem de haver como que um convite à releitura que leve a uma nova abordagem.” Situo neste segundo momento a inauguração da arte gráfica. E, ao contrário do contrato estético que a dança de Billy T. Jones procura estabelecer com a textualidade literária, o design de João Machado tende a anular qualquer relação intertextual que se queira relevar do cartaz, porque o que lhe interessa é, sobretudo, dizer a virtualidade do visual (“A minha preocupação com a imagem tem preponderância sobre o texto. Depois são os códigos visuais que cada um tem que se sobrepõem sempre aos códigos linguísticos.”, diz ainda na referida entrevista).

A diferença entre a paródia e os recursos de imitação passiva como o plágio, a citação e a alusão é mais evidente ainda do que a distinção entre paródia e pastiche. O plágio, assumido (por exemplo, o “Soneto plagiado de Augusto Frederico Schmidt”, de Manuel Bandeira) ou não assumido (por exemplo, a prática fraudulenta comum entre os dramaturgos isabelinos de usurpar a autoria uns dos outros nas peças alheias que assinavam indevidamente), tem sempre a função de duplicar ou reproduzir um texto precedente sem o transformar nem retocar o seu sentido. O que distingue o plágio assumido do não assumido não é a atitude deliberada de duplicação mas a apropriação ilegítima de um texto alheio. O plágio levanta, portanto, apenas questões de ansiedade de influência e questões jurídicas, sendo irrelevante falar aqui de criação artística. Portanto, não faz sentido, como propôs Harry Major Paull em Literary Ethics (1928), por exemplo, estabelecer uma relação de sinonímia entre o plágio e a paródia.

Os casos da alusão e da citação seguem o mesmo padrão acriativo do plágio. Luís António de Verney deu-nos já um curioso diagnóstico dos abusos destas formas de imitação discursiva: “Outro defeito ainda acho, em que comummente caem, e vem a ser encher o discurso de alegações importunas, de passos latinos, de versinhos, e outras coisas que encontram. Podem as alusões, alegações etc. ter lugar, quando há necessidade de ouvir as palavras na mesma língua original, ou para mostrar a sinceridade de quem as cita, ou a elegância de quem as escreveu, o que raras vezes sucede.” (Verdadeiro Método de Estudar, vol.II: Estudos Literários, Sá da Costa, Lisboa, 1950, pp.106-107). Este propósito de validação estética e científica da alusão e da citação não pode ser partilhado pela paródia, que, pelo contrário, não valida mas invalida o sentido original parodiado. A alusão e a citação baseiam-se numa relação de correspondência verbal entre dois textos, ao passo que a paródia difere sempre do texto que parodia. Citamos para comprovar um ponto forte, parodiamos para mostrar uma fraqueza. Margaret Rose, em Parody//Metafiction, define paródia como “uma citação crítica de linguagem literária pré-formada com efeito de cómico” (p.59). Linda Hutcheon mostrou já que esta enunciação não se ajusta à definição moderna de paródia (v. A Theory of Parody, p.41), pela razão maior de esta exigir sempre distanciação em relação ao texto-objecto, o que não acontece no caso da citação, que deve ficar sempre presa ao texto citado. O que pode acontecer é uma citação ser produzida com o fim de parodiar um dado objecto ou indivíduo, o que acontece frequentemente no cartoon. que acompanha as edições diárias dos jornais, onde o efeito parodístico é conseguido não pela deformação do texto citado mas pelo cómico de situação, pela transcontextualização (termo introduzido na teoria da paródia por Michel Butor em “La Critique et l’invention”, Critique, 247, 1967): do contexto original em que a afirmação é produzida para a situação cartoonista. No contexto original, tal afirmação apenas tem o valor de um desagravo pessoal; na situação cartoonista, cria-se um novo contexto a partir dos preconceitos reconhecidos habitualmente na personagem caricaturada, ampliando-se o valor da ironia.

É necessário agora proceder a uma distinção mais difícil entre a paródia e a sátira. Seja o seguinte texto de Nicolau Tolentino, uma sátira sobre “A Guerra”, que tem a precedê-la uma interpelação “ao visconde de Vila Nova da Cerveira, depois marquês de Ponte de Lima, no ano de 1778”, feita nestes termos: “Não me acovarda o nome de sátira, só odioso ao vulgo ignorante: V. Exª sabe que, quando ela fere nos costumes, sem assinalar os homens, é a espécie de poesia em que mais vezes se dão as mãos os seus dois fins, a utilidade e o recreio.” (Memórias e Sátiras, Apresentação, fixação do texto e notas de José Colaço Barreiros, Felício & Cabral, Porto, 1995, p.87). “Utilidade e recreio” são categorias que servem a sátira e a paródia ao mesmo tempo, não servindo como critério de diferenciação; porém, o acto de “ferir os costumes” está mais próximo da sátira do que da paródia. A melhor forma de as distinguirmos a partir daqui será atentar no tipo de ulceração produzida no objecto parodiado/satirizado: o ataque parodístico é quase sempre feito de forma travestida ou simulada, protegido pelo véu da ironia; o ataque satírico é desvelado e não precisa de nenhuma protecção retórica, porque de alguma forma se concretiza por uma atitude de desprezo completo em relação ao objecto satirizado. Ao deformar, a paródia quer mostrar a falência de um modelo original deixando em aberto uma possibilidade de regeneração pelo próprio exemplo parodiado; ao censurar, a sátira não admite qualquer possibilidade de regeneração do objecto satirizado, interessando-lhe apenas a destruição como modelo desse objecto.

A paródia não é certamente uma categoria moderna em exclusivo, pois é localizável em muitos textos da literatura grega pré-clássica e clássica ou na literatura trovadoresca. O que a modernidade artística fez foi um uso sistemático da paródia como recurso de dissimelhança estilística, isto é, procurou satirizar estilos convencionais sobrepondo-lhes outros estilos tidos por modernos. A simples intenção de dissemelhança de um dado estilo em relação a um outro que previamente tinha sido reconhecido como convencional ou fora-do-tempo-presente era considerada como uma postura modernista.

O que distinguirá a paródia como estilização modernista da paródia dos discursos pós-modernos é o facto de nestes se entender toda a relação de dissemelhança de um estilo em relação a um outro preexistente como uma contra-estilização e não como simples sobreposição de modos discursivos que convergem em tema mas divergem em sentido. Não é suficiente estilizar um discurso preexistente para denunciar o seu convencionalismo, porque é possível levar essa estilização a um ponto de ebulição tal que o estatuto epistemológico do discurso parodiado seja totalmente negado. A contra-estilização não só perverte o sentido original mas também destrói qualquer possibilidade de ele poder voltar a ter valor epistemológico.

Quando a paródia consegue expropriar o objecto do seu sentido original e cria as condições para que o próprio sentido parodístico seja auto-destruidor, obteremos um efeito metalinguístico diferente da simples sobreposição de estilos. Neste caso, podemos identificar a paródia como paradigma pós-moderno. A Mona Lisa com bigodes de Salvador Dali não é uma simples estilização da Mona Lisa de Leonardo da Vinci, mas uma tentativa de destruição total do sentido do retrato original e aquilo que fica - uma mulher de bigodes - é igualmente um sem-sentido que se destrói a si próprio. Na teoria de Linda Hutcheon, que nos dá a paródia como “repetição com distância crítica”, a Mona Lisa de Dali seria apenas uma imitação do modelo da Renascença, procurando-se apenas um registo artístico diferente em relação ao seu modelo. Parece-me necessário algo mais: depois da paródia de Dali, nada mais deve restar do modelo parodiado. Esta estratégia de contra-estilização destrutiva é essencial para compreendermos a evolução da paródia de um registo histórico moderno para um registo pós-moderno. Não se trata de paródia pela paródia, como em A Velhice da Madre Eterna (1885), de Xavier de Carvalho sobre A Velhice do Padre Eterno (1885) de Guerra Junqueiro. Aqui, por exemplo, não há qualquer tentativa de criar um novo estilo à custa da ridicularização de um estilo preexistente. A paródia pós-moderna não se contenta com a denúncia: pretende também julgar e condenar à morte, tudo no mesmo instante, aquilo que parodia.

Toda a repetição ou retoma de um texto a ser objecto de paródia tem que pressupor uma diferenciação. O texto A que parodia o texto B tem que resultar diferente pelo sentido, pela ideologia (como sistema de ideias do texto) e/ou pela forma. Não se trata de uma duplicatio de estilos ou de textos, mas de um efeito metalinguístico que se obtém sempre por meio de uma diferença subentendida. Se aquilo que separa os dois textos (A- parodiante e B-parodiado) não ficar subentendido, o leitor não reconhecerá o efeito pretendido, assumindo tratar-se de mera paráfrase. Portanto, a paródia não pode ser reafirmadora do sentido mas desafiadora de tudo o que num texto preexistente suportar ser desconstruído.

A paródia nunca se pode constituir como suplemento do objecto sobre que incide. Se o objectivo do texto-paródia é o de se dar pela diferença em relação ao texto-parodiado, então nunca poderá conter nenhum elemento de continuidade daquilo que representa o objecto parodiado. É sobretudo com descontinuidades que se constrói o discurso parodístico. O romance de Mário de Carvalho Era Bom Que Trocássemos Umas Ideias sobre o Assunto (1995) escolhe uma estratégia narrativa que recorre a estes tipo de descontinuidades. Variada é a galeria de figuras e temas que são objecto de paródia, com esta singularidade: tudo está ligado de uma forma ou de outra à literatura e às suas formas de produção e criação. Eis a paródia do autor compadre (João de Melo): “Mas isto de gostos e de cores, parece que não é para discutir. Já foi, mas agora não é outra vez. Se o meu amigo João de Melo, num dos seus livros, me assevera, com uma convicção firmemente reiterada, que “o mar é branco”, seria de um mau gosto prosaico e burgesso ir dizer-lhe, contrariando-o, embora com afabilidade: «olha que não, João, o mar não é branco, isso são as espumas; o mar é…». “ (2ªed., Caminho, Lisboa, 1995, p.17); as teses académicas feitas no estrangeiro por indivíduos que foram rejeitados pelo sistema português aparentemente por este não lhes reconhecer idoneidade ou capacidade intelectual para tanto, o que vem a dar teses do tipo “As Disposições das Alminhas nas Encruzilhadas do Alto da Beira” (p.19); a forma de construção do enredo que não se compadece com divagações (“E porque já vamos na página dezoito, em atraso sobre o momento em que os teóricos da escrita criativa obrigam ao início da acção, vejo-me obrigado a deixar para depois estas desinteressantes e algo eruditas considerações sobre cores e arquitecturas, para passar de chofre ao movimento, ao enredo. Na página três já deveria haver alguém surpreendido, amado, ou morto. Falhei a ocasião de ‘fazer progredir’ o romance. Daqui por diante, eu mortes e amores não prometo, mas comprometo-me a tentear algumas surpresas.”, p.18); o recurso a mecanismos temporais de desenvolvimento da narrativa como a analepse (“Abra-se aqui uma analepse, que é a figura de estilo mais antiga da literatura (…). Não me ocorre agora nenhum escritor que abomine as analepses, mas deve haver algum. Esse não será, com mágoa minha, leitor deste livro, o que lhe restringe perigosamente o alcance.”, p.21); o encaixe de sonhos, como é prática habitual em muitos escritores que os utilizam quase como categorias literárias (“Vinha a calhar agora um sonho, com multidões, cânticos e bandeiras e umas irrupções disparatadas, com luares surrealistas sobre descomunais tabuleiros de xadrez de que as pedras fossem rinocerontes bailarinos, para dar verosimilhança ao sonho que, por definição, é inverosímil e portanto só com inverosimilhanças é que se aceita, embora as verosimilhanças que vão de par com as inverosimilhanças estejam carregadas de sentido e de piscadelas de olhos, quando não são as inverosimilhanças que batem certo com os dicionários de símbolos de que, por acaso, não tenho nenhum exemplar à mão.”, p.33); a própria ansiedade de influência que naturalmente tem que afectar o romancista (“Eu gostava de ter escrito ‘mede a sala a grandes passadas’, mas francamente, receio que o leitor já tenha lido isso em qualquer lado. A quem escreve, faz sombra esta barreira constante, eriçada de farpas, daquilo que outros mais expeditos ou temporãos escreveram antes. Custa-me estar vedado o uso de ‘Por uma noite escura e tempestuosa…’, por exemplo. Alguém se apropriou da frase e dela se fez dono, de maneira que me vejo obrigado a criar os meus próprios lugares-comuns e Deus sabe como eles são inspirações do génio que me falta.”, p.50); as cómodas soluções deus ex machina (“Quer-me parecer que o leitor, neste ponto, ávido de conhecimentos sobre o futuro de Joel Strosse manifesta alguma impaciência, que lha vejo na cara. (…) A literatura é coisa muito séria, onde não entra o zapping. Eduarda tem um destino a cumprir e eu arranjarei maneira de a integrar na história, nem que tenha de fazer sair um deus duma máquina.”, p.59); e ainda as costumeiras adaptações cinematográficas de romances (“Se fizerem um filme deste romance quero-o, nesta passagem, muito expressionista, de estúdio, cheio de efeitos, com muito papel pintado, e habilitado a palavras sagazes dos Cahiers du Cinéma, ou de quem quer que os substitua.”, p.184).

Assumindo que a paródia como categoria literária foi identificada por Bakhtin em épocas tão distantes como a Idade Média e o século XX, aceitemos que o paradigma da paródia carnavalesca não pode servir como paradigma pós-moderno, quanto mais não seja por esta razão histórica, não tão frágil como possa parecer. Assim, se aceitarmos que o modelo parodístico carnavalesco se orienta sobretudo para o social e admitirmos outro(s) tipo(s) de discurso(s) parodístico(s) que se oriente(m) noutra direcção, podemos inaugurar outros modos de representação (ou contra-representação, se quisermos já avançar com elementos de subversão sempre necessários à fundação de uma estética) que sirvam melhor aquilo a condição da paródia como paradigma pós-moderno. Neste caso, deve ser orientada não objectivamente para o social mas ideologicamente para 1) os conceitos (paródia conceptual); 2) os intertextos (paródia intertextual); 3) os intratextos (paródia intratextual). Em qualquer caso, a paródia há-de servir-se sempre dos mesmos recursos: a máscara, o grotesco, o burlesco, o riso, o equívoco, o ridículo, a paronomásia, a ironia, a paronímia, etc. É o objecto da estratégia parodística que pode ajudar a distingui-la historicamente e não propriamente a sua definição primária.

Sendo a paródia um discurso com voz, o que se diz tem que remeter sempre para o já dito - o sujeito do discurso parodístico jamais se desvia da influência que o outro-parodiado exerce sobre si. Um texto que pode dizer com propriedade esta lógica é o romance bicéfalo O Defundo Elegante (1996), de Luísa Costa Gomes e Abel Barros Baptista. Da incerteza inicial sobre a possibilidade de o romance sequer chegar a ser escrito até à forma epistolar dada à narrativa e passando pela incerteza de haver sequer uma história para contar à medida que o texto vai crescendo, tudo concorre para uma ideia de paródia das convenções literárias como feitiço que acaba por se virar contra os feiticeiros da escrita. A obsessão central deste romance bicéfalo é a construção de uma “história bem contada”, no pressuposto de, à medida que tal “história” vai sendo contada, jamais os escritores terem qualquer certeza sobre a possibilidade de chegar sequer a ser uma história. A ironia concretiza-se apenas no momento em que a essência filosófica da história, que qualquer romance deve ser/contar, acaba por triunfar sobre a incerteza mais ou menos gozada pelos escritores durante o tempo de escrita. À ansiedade pela ausência de uma história que possa constituir um romance sobrevém agora a ansiedade por não haver mais história para contar, uma vez chegados à conclusão de que afinal não há incerteza nem indeterminação que possam constituir impedimento à criação literária.

Outro tipo de divertimento romanesco ressalta ainda na construção deste romance: a diferição da verdade no pacto narrativo estabelecido entre leitor e narradores. A paródia progride da reflexão sobre as potencialidades do género epistolar para as potencialidades da recepção prevista do leitor. O facto pós-moderno consiste na tentativa de controlar (e ter a consciência autoral de que se está a controlar) a leitura jogando com a verdade dos factos narrados. A “história bem contada” deve ser também capaz de produzir no leitor a descrença sobre aquilo que conta. Ajudam à paródia no/do romance a convocação de personagens de identidades crípticas (W, Y e Z) e de identidades próprias (Mário de Carvalho por Mário de Carvalho), a que temos que juntar a convocação (ou citação criativa e premeditada) de outros romances.





ALUSÃO, CÓMICO, PASTICHE, SÁTIRA



Bib.: Affonso Romano de Sant’Anna: Paródia, Paráfrase & Cia. (2ª ed., 1985); Andrew Stott: Comedy (2005); Carla Escarduça: “A paródia enquanto paradigma pós-moderno na ficção académica de David Lodge: Changing Places, Small World e Nice Work”, Dissertação de Mestrado, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa (2004); Carlos Ceia, O Que é Afinal o Pós-Modernismo? (1998); Charles R. Gruner: Understanding Laughter : The Workings Of Wit & Humor (1978); Chris Powell Paton E George E.C. (eds.): Humour in Society: Resistance and Control (1988); G. D. Kiremidjian: “The Aesthetics of Parody”,The Journal of Aesthetics and Art Criticism, Vol. 28, No. 2 (Winter, 1969); Helena Cristina da Costa Guimarães Alves dos Reis: “A paródia, a ironia e o riso: o mito do sabastianismo n' O Conquistador de Almeida Faria”, Dissertação de mestrado, Universidade do Minho (2000); J. Cândido Martins: Teoria da Paródia Surrealista (1995); José Édil de Lima Alves: A Paródia em Novelas-folhetins Camilianas (1990); Linda Hutcheon: A Theory of Parody: The Teachings of Twentieth-century Art Forms (1991); M. Bakhtine: L’oeuvre de François Rabelais et la culture populaire au Moyen Age et sous Ia Renaissance (Paris, 1970); Margaret A. Rose: Parody//Meta-Fiction: An Analysis of Parody as a Critical Mirror to the Writing and Reception of Fiction (1979); Id.: Parody: Ancient, Modern, and Post-Modern (1993); Michele Hannoosh: “The Reflexive Function of Parody”,Comparative Literature, Vol. 41, No. 2 (Spring, 1989); Peter Marteinson: On the Problem of the Comic: A Philosophical Study on the Origins of Laughter (2006); Richard Keller Simon: The Labyrinth of the Comic: Theory and Practice from Fielding to Freud (1985); Simon Denith: Parody (2000); Scott Cutler Shershow: Laughing Matters: The Paradox of Comedy (1986); Warren A. Shibles: Humor Reference Guide: A Comprehensive Classification and Analysis. 1998).



The Ring of Irony (web ring)



Maledicta: The International Journal of Verbal Aggression





Carlos Ceia