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Carlos Drummond de Andrade (1)

quinta-feira, 19 de março de 2009

BOITEMPO - "Notícias de Clã"
por Meire Oliveira Silva


1 - Itabira: retrato de uma sociedade patriarcal


Boitempo é um livro todo dedicado à memória da infância e da juventude drummondiana em Itabira. Ele traz à tona toda a realidade de uma sociedade que vivia a mercê dos grandes coronéis ("Notícias de Clã"), seus ritos religiosos ("Vida Paroquial"), a vida dedicada à fazenda e à cultura agropecuária ("Bota e Espora") e como se portavam as "Relações Humanas" nessa economia, com seus usos e costumes nessa cidade provinciana. Segundo José Guilherme Merquior, o título Boitempo remete ao "sentido do tempo vivido associado à fazenda e à cidadezinha rural". E o tom lírico e nostálgico que Drummond utiliza nesses versos que constituem toda a estrutura do livro é de um homem que não está mais ligado à terra e sim à vida nas repartições públicas, sendo somente um "fazendeiro do ar".
A obra de Drummond, principalmente em Boitempo, é um dos raros testemunhos, em poesia, das relações humanas e econômicas, no que estas últimas refletem na desintegração do conceito de família no plano sócio-econômico e como isso repercute na formação psicológica individual. Retratar todos os fatos acontecidos na infância, como os jogos sexuais e o erotismo ("O banho"), o medo dos empregados ("O diabo na escada"), do pai ("O Banco que serve a meu pai") e também sua relação com a morte ("Os chamados"), sempre tão próxima, não seria uma espécie de catarse através da poesia?
Descendendo de um clã familiar ligado à terra, inicialmente pela mineração e, logo a seguir, através da pecuária e agricultura, Drummond acabou sendo o fim de uma linhagem de mineradores e fazendeiros: "Tive ouro, tive gado, tive fazendas/hoje sou funcionário público." (Confidências do itabirano). Criado aos arredores da "casa grande", com os escravos e sob as ordens de um pai "todo-poderoso", homem típico das sociedades patriarcais, o menino, no seu "desajuste de gauche" se transfere, quando adulto, para uma realidade totalmente diferente daquela; em meio a edifícios que, ao invés de o sufocarem, o livram da rígida estrutura patriarcal em que vivia.

Boitempo

O poema "(In) Memória" serve como prefácio a todo o Boitempo condensando toda a temática que lida o livro num "resumo de existido". O livro divide-se em "Caminhar de Costas"; "Vida Paroquial"; "Morar"; Bota e Espora"; "Notícias de Clã"; "Um"; "Percepções"; "Relações Humanas".
Na seção "Notícias do Clã", a tônica da morte e da complexa relação com o pai autoritário, num misto de admiração e temor, é trazida por meio de versos simples e curtos. Ao mesmo tempo em que narra acontecimentos individuais do passado, reconstrói toda uma realidade em que viviam as pessoas regidas por aquela dominação, ao passo que dependiam de tal estrutura patriarcal. Acaba por descrever com maestria um tempo passado e toda a gama de riquezas dos costumes da época. E como nas palavras de Adélia Bezerra de Menezes, "o poeta resgata o acontecido do esquecimento: é uma espécie de memória viva da espécie, do seu povo."

"Notícias de Clã": a terra e a morte


"Notícias de Clã" é a quinta seção das nove em que são divididos os 84 poemas de Boitempo. Esta parece ser uma parte totalmente dedicada à lembrança dos irmãos e das brincadeiras de infância, assim como à precoce relação com o tema da morte. Também há a evocação da imagem austera e poderosa do pai e de toda aquela cidadezinha rural que dependia do coronel Carlos de Paula Andrade.
O poema que abre a seção é "Herança", que Drummond faz de introdutório à história do clã que irá contar a seguir. Esse poema agrega vários aspectos da vida fazendeira do poeta, assim como toda a riqueza em que nascera o nono filho de Dona Julieta Augusta, a 31 de outubro de 1902. Neto do capitão-mor Elias de Paula Andrade o clã parecia ser o seu destino maior. Seus pais eram filhos de grandes proprietários de terras de Itabira e seu avô, quase um mito da região, ostentava grande fama dado o seu poder de latifundiário e de dono de escravos.
Só que de toda essa fortuna restou ao gauche desajustado no seu modo de ser, "um pigarro". A palavra "baú", como que reúne em seu interior todas as "terras de semeadura", "as vacas", "o café", "os engenhos" e os "mineirais". Depois, o poeta enterra esse tesouro - sem valor a não ser pelo poder da recordação que é capaz de reviver através da palavra todo aquele passado - "no poço da memória".
Ainda as relações com os escravos, que também eram sinais de poder na época referida, são aludidas no poema. São homens reduzidos ao mesmo valor de gados e terras. Da mesma forma, sucede no poema "Surpresa": "Estes cavalos fazem parte da família/ e têm orgulho disso." Da "comenda" que reluzia como ouro, referindo-se ao pai ou a si mesmo, o poeta diz restar apenas um pigarro. O sinal da debilitação da saúde e da juventude foi sua herança maior.
Nesse poema, Drummond desmistifica a figura do pai. O antigo autoritarismo fora substituído pela doença e pela morte. A lembrança como "sobrevivência do passado", traz ao antigo menino reprimido, a vingança através do entendimento do adulto. Novamente, volta ao tema da figura do pai patriarcal e tradicional, em "O Banco que serve a meu pai" (escrito em octassílabos), referindo-se ao Banco Mercantil do Rio de Janeiro, onde ele guardava todas as ações e o dinheiro durante anos. Há toda uma áurea mitológica em torno do pai de Carlos Drummond de Andrade, com suas "Botas e Esporas", com chicote na mão e sempre a guardar a mulher, os filhos e as terras, aliás, também reduzindo tudo isso a um mesmo plano. De acordo com José Maria Cançado, em autores nordestinos como Bandeira, com esses pais "dormindo profundamente" essa "reconciliação pela memória nunca esteve ameaçada. Com Drummond e seu pai sempre esteve." (Os Sapatos de Orfeu, p. 29). De fato, é o que parece porque a imagem de Carlos de Paula Andrade é sempre muito sombria e tenebrosa: como um fantasma a atormentar o filho até mesmo em sua idade adulta.
No terceiro poema de "Notícias de Clã", o tema da morte emerge. Com "Os chamados", Drummond relata a dificuldade em nascer e de se conseguir sobreviver naquele início de século, mesmo quando se pertence a um clã tradicional cheio de bens. Uma febre que acometia os recém-nascidos, levando-os à morte logo nos primeiro dias de vida, rondava também a "casa grande" da sua família. Aquele tipo de tétano já havia levado à morte quatro de seus irmãos antes do seu nascimento. Todos morriam, geralmente, antes dos dois anos. Quando Geraldo vive "3 anos, 5 dias", "vive uma eternidade." Esses inocentes são chamados a morrer, sem explicação e sem que nada tenham feito para isso, por um "deus", com letras minúsculas, que parece nem se importar com suas curtas e precoces vidas.
O oitavo e último poema de "Notícias de Clã", "O preparado", é um poema em verso livre combinado com o metro. Também retomando esse mesmo tema, o da morte de um irmão por crupe (espécie de difteria): Geraldo, com quem Drummond dividia o quarto, quando tinha apenas quatro anos e era um ano mais novo que ele. Na sua inocência infantil pergunta completamente sem saber "porque morreu aquele irmão/ que há pouco brincava no quarto/ sem qualquer signo na testa?" Talvez esse desentendimento que ocorre ao poeta seja fruto da memória involuntária, que apenas reproduz a surpresa e a confusão em que ficara a criança de 4 anos, que perdera o irmão tão repentinamente. Conta, inclusive, como a morte foi fulminante: "Foi só o tempo de arder em febre/ e de o doutor lhe receitar/ um preparado que não havia."
Mesmo com todos os benefícios de que dispunha a família Andrade, os recursos da época eram muito atrasados. A distância entre a Itabira interiorana e a capital era muito significativa e o tempo de espera muito longo. O transporte era precário para levar a "encomenda pelo correio, e quando veio/ em lombo de burro, no chouto,/ a morte beijara o menino." A ex-escrava do capitão Elias (avô de Drummond) Sá Maria Fernandes, aparece aqui nesse poema, simbolizando o respeito do menino por aquela figura mágica, cheia de amuletos e resmungando palavras africanas o tempo todo: "Sá Maria diz que é o destino."
"Drama Seco", quarto poema de "Notícias de Clã" narra por meio de brincadeiras com as palavras um fato triste: o rompimento de um casamento. É uma peça narrativa desenvolvida em forma de poema. A ironia amarga drummondiana, relata um fato, senão engraçado, "risível". Através de figuras de repetição e jogos com as palavras ("terno noivo/ terno novo"), Drummond tece uma narração, talvez, acerca do rompimento do noivado tranqüilo de sua irmã mais velha; Rosa Amélia com um rapaz chamado Xicado, por ocasião da mudança repentina de sua família para Belo Horizonte, em 1920. "Que será da noiva - toma o hábito/ ou se consagra à renda de bilro para sempre?"
Como esse "afloramento" do que estava submerso; de lembranças misturadas à ficção, Drummond narra essa história combinando a percepção presente e a capacidade de criação e de modificação de fatos ocorridos no passado. A memória não é confiável, podendo transformar uma lembrança. Surge juntamente com a imaginação, sendo ambas motivadas pelo Desejo, segundo a Psicanálise. Quando o processo de rememoração é voluntário, de anamnese, ele pode vir acompanhado também por desejos que modificam todo um fato ocorrido. Pode ter sido essa a razão para a modificação de alguns fatos relatados. "Drama Seco" é o poema mais longo de "Notícias de Clã", que brinca com as palavras também ao trazer a oposição de claro e escuro da poesia drummondiana: "terno novo/ preto de medo/ vestido novo/ branco de medo".
O próximo poema "Rosa Rosae", parece também ser para a irmã Rosa, 10 anos mais velha que ele. Em latim, a expressão pode significar no genitivo "A Rosa de Rosa" ou no ablativo "A Rosa na Rosa", trazendo, por sua vez, o tema do "imperecível", que em outros autores seria, o contrário, aquilo que logo morre. Segundo Affonso Romano Sant'Anna, "Flor e rosa identificam-se aí principalmente com a própria poesia. É a afirmação erótica da vida transposta em linguagem: "rosa do poema", surgindo até como título de livro: Rosa do Povo. Como imagem recorrente representando a essência dos seres e coisas, é sinônimo de memória-poesia. Como a flor, sua poesia é aquilo que "subitamente vara o bloqueio da terra", conforme poema (In)-Memória. E à semelhança daquela orquídea bloqueada (Áporo), que vence o enlace da noite e o peso dos minérios, ela se desta verde para a luz, brotando dos detritos do tempo." Drummond traz aqui numa bela construção a admiração pela figura da irmã, usando um neologismo para expressar o caráter singular que queria lhe atribuir "despetalirosada".
No sexto poema, "O Criador", Drummond relembra desta vez, outro irmão. Descreve uma "estrela de rosa e de gerânio", que tem um perfume que não o encanta. Essa memória olfativa e a função vital da respiração mudam de sentido ao contemplarem numa homenagem a glória do irmão. Esse processo involuntário e meio obscuro pelo qual Drummond tenta reconstruir a imagem do irmão desenhando é tão obscuro que nunca será fiel na representação dessa experiência de infância. Por mais nítida que pareça, nunca será a mesma coisa, porque o poeta não é mais o menino de então, é somente um homem maduro alterado pela sua realidade e submerso em suas lembranças.
Em "Cantiguinha", Drummond faz uso dos jogos de palavras, das repetições e das paronomásias para relatar as brincadeiras infantis. "Era uma vez" dá o caráter de fantasia e de imaginação ao poema. Numa construção inusitada para a poesia, o poema inverte valores, terminando um poema como se começa um conto de fadas. Nas duas últimas estrófes há também a quebra da regularidade da repetição, só reforçando essa idéia. É a ironia drummondiana que não abandona nem mesmo essas memórias em forma de poesia.
Todos os poemas de "Notícias de Clã" versam sobre a infância de Drummond, trazendo lembranças tristes, mas narradas com ironia e com o distanciamento crítico do homem adulto, que se observa de fora para dentro ao reconstituir propositadamente suas emoções diante dessa memórias. Apesar da presença física e real do poeta nos fatos descritos há uma atmosfera mágica que envolve o todo o Boitempo. Não tem um caráter tão assumidamente biográfico como o de Pedro Nava em Baú de Ossos, ou de Murilo Mendes em A Idade do Serrote, mas tem seu valor documental e sobretudo artístico assegurado pela genialidade drummondiana.

Considerações Finais


Totalmente trabalhada como uma obra de ficção e de acordo com os elementos que permeiam toda a sua estrutura formal - a poesia - pode-se dizer que Boitempo é um livro de memórias. Não tem a estrutura de uma "biografia oficial" (e mesmo essas não são poupadas de ficção), constituindo um livro de poemas. Entretanto, ao considerarmos a obra drummondiana, existe constantemente um apelo ao passado, as raízes do poeta. É uma abordagem freqüente em sua carreira literária. Só que, especialmente, Menino Antigo, A Falta que Ama e Boitempo parecem trabalhar direta e exclusivamente o tema da Memória, como confirma o poema ((In)-Memória) que abre esse último. Se, de acordo com Ecléa Bosi, "a menor alteração do ambiente atinge a qualidade íntima da memória", então o homem encurralado entre prédios e repartições esconde o "Carlito", filho de coronel às voltas da casa senhorial, protegido pelo pai autoritário e rodeado por escravos, numa camada muito profunda de sua consciência. Para descrever todos os processos de que se utilizou para reconstruir os fatos da infância através da poesia, o escritor fez uso da memória voluntária, que é mais consciente e racional, apesar do "momento inspirador da poesia" ser obra da memória involuntária, ligada aos sentidos e às percepções estando presente em todo o livro. Porque, apesar de qualquer outra característica, essa é uma obra de arte, sobretudo, desfrutando dos artifícios de que é formada: é literatura e é ficção. Sua qualidade primordial é a imaginação.

BIBLIOGRAFIA

MERQUIOR, José Guilherme. Verso Universo em Drummond.
Tradução de Marly de Oliveira.
Rio/São Paulo: José Olympio/ Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia, 1975.

GLEDSON, John. Poesia e poética de Carlos Drummond de Andrade. São Paulo: Duas Cidades, 1981.

SANT'ANNA, Affonso Romano de. Drummond: o gauche no tempo.
4a edição. Rio de Janeiro: Record, 1992.

CANÇADO, José Maria. Os Sapatos de Orfeu - Biografia de Carlos
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Aberta, 1993.

Candido, Antonio. A Educação pela Noite e Outros Ensaios. São
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Meneses, Adélia Bezerra de. Do poder das palavras - Ensaios de
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Bosi, Ecléa. "Memória-sonho e memória-trabalho" In: Memória e
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