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Maravilhoso

terça-feira, 14 de julho de 2009

Género da literatura do (sobre)natural teorizado por Tzvetan Todorov em Introduction à la littérature fantastique (1970). Segundo este autor, o maravilhoso é o género onde se incluem as obras nas quais não é possível qualquer explicação racional para os fenómenos (sobre)naturais. O herói e o leitor implícito de uma narrativa maravilhosa aceitam sem surpresa novas leis da natureza. A definição do género maravilhoso é determinada na relação que Todorov estabelece com os géneros que lhe são próximos, isto é, o género fantástico em que o herói e o leitor mantém a hesitação entre uma explicação natural e (sobre)natural dos fenómenos ao longo da narrativa e o género estranho onde é fornecida uma explicação racional dos fenómenos insólitos, mantendo-se desse modo intactas as leis da natureza. Seguindo o critério dicotómico racionalidade/irracionalidade, os três géneros distribuem-se esquematicamente em género estranho/fantástico/maravilhoso.

A paternidade do termo maravilhoso não é de Todorov. Já Aristóteles o tinha utilizado na Poética (séc.IV a.C.) quando no Cap.XXIV refere o modo como este participa na tragédia e na epopeia : «O maravilhoso tem lugar primacial na tragédia; mas na epopeia, porque ante nossos olhos não agem actores, chega a ser admissível o irracional, de que muito especialmente deriva o maravilhoso» (trad. de Eudoro de Sousa, p.141). Aristóteles apresenta o maravilhoso como um elemento do irracional mas não o conceptualiza.

A teoria de Todorov nasce da crítica à Anatomy of Criticism (1957) de Northrop Frye onde a literatura é abordada como um sistema complexo de modos (v. modos narrativos), categorias e géneros. Partindo da caracterização que Aristóteles estabelece dos caracteres das obras de ficção segundo a qual as personagens são ou melhores, ou piores ou iguais ao homem (Poética, Cap.II), N. Frye classifica os modos ficcionais (que, segundo ele, não pressupõem qualquer implicação de ordem moral) como mítico (v. mito), fantástico ou lendário (v. lenda), mimético superior e mimético inferior (v. mimese) e irónico (v. ironia). No modo mítico, o herói , sendo divino, é superior aos homens e às leis da natureza. No modo fantástico ou lendário, o herói é um ser humano mas superior aos outros homens e às leis da natureza sendo as suas acções consideradas maravilhosas (herói das histórias romanescas). A cosmogonia onde se move este herói caracteriza-se pela alteração de algumas leis da natureza (armas encantadas, animais que falam, gigantes e feiticeiros pavorosos, bem como talismãs de miraculoso poder). A história romanesca divide-se na sua forma secular que aborda temas da cavalaria e do paladinismo e na sua forma religiosa que aborda temas ligados às lendas de santos. Em The Secular Scripture (1976), N. Frye alarga a distinção entre o mítico e o fantástico ou lendário sendo o primeiro «The more important group of stories in the middle of a society’s culture» e o segundo «The more peripheral group, regarded by its own society, if not necessarily by us, as less important»(p.7). A Bíblia é apresentada como um exemplo da narrativa mítica e as lendas e contos populares exemplos de obras fantásticas ou lendárias. Em termos literários, mitos, lendas e contos populares apresentam formas semelhantes mas a sua função social é distinta. Em Critical Path (1970), Frye diz: «Os mitos se ligam para formar uma mitologia, enquanto os contos populares simplesmente permutam temas e motivos. [...] Os contos populares têm uma existência literária nómada, viajando através do mundo e transpondo facilmente todas as barreiras da linguagem e dos costumes. [...] Quando, porém, a mitologia se cristaliza no centro de uma cultura, um temenos ou círculo mágico é traçado em torno dessa cultura e uma literatura se desenvolve historicamente no interior duma órbita limitada de linguagem, referência, alusão, crença e tradição transmitida e compartilhada» (Editorial Perspectiva, pp.34-35). Em Les Structures Anthropologiques de l’Imaginaire (1980), Gilbert Durand considera narrativas míticas aquelas que ligam as imagens arquetipais (v. arquétipo) ou simbólicas (v. símbolo). Abordando o mito no seu sentido lato, Durand refere que este abrange quer o mito propriamente dito (narrativa que legitima tal ou tal fé religiosa ou mágica) quer a lenda e as suas intimações explicativas, quer o conto ou a narrativa romanesca.

A principal crítica apontada por Todorov à teoria de Frye é a de que este ultrapassou a abordagem puramente literária, nela incluindo as perspectivas antropológica, psicológica e sociológica seguindo de perto autores como Jung, Bachelard ou Durand. Para que a análise do texto literário não ultrapasse o que considera o seu âmbito, Todorov distingue géneros históricos de géneros teóricos: «Les premiers résulteraient d’une observation de la réalité littéraire; les seconds, d’une déductions d’ordre théorique» (Introduction à la littérature fantastique, p.18). C. Brooke-Rose chama a atenção para o facto de Todorov definir o género fantástico a partir do conceito de género histórico (The Rethoric of the Unreal, 1981). Com efeito, Todorov assume que o fantástico se desenvolve sobretudo no séc.XIX como reacção ao espírito positivista. A distinção género teórico/género histórico será abandonada mais tarde pelo seu autor. Várias críticas têm sido dirigidas à teoria dos géneros da literatura do (sobre)natural: Rosemary Jackson considera o maravilhoso não um género mas um modo já que apresenta traços estruturais que abrangem várias obras em diferentes períodos de tempo (Fantasy: The Literature of Subversion, 1981).

Para além do maravilhoso puro, Todorov admite a existência de (sub)géneros como o fantástico - maravilhoso em que a hesitação entre o racional e o irracional é resolvida no final da narrativa com a aceitação do (sobre)natural e o maravilhoso-estranho em que, apesar da presença indiscutível do (sobre)natural , este não deixa de parecer (in)admissível. La Métamorphose (1915) de F. Kafka ilustra este (sub)género o que para C. Brooke-Rose só vem provar a impossibilidade dos géneros teóricos porque não permitem prever possíveis desenvolvimentos na literatura. Os vários tipos de maravilhoso propostos por Todorov são o maravilhoso hiperbólico (fenómenos de dimensão superior à conhecida), o maravilhoso exótico (fenómenos que devem o seu carácter (sobre)natural aos ambientes desconhecidos em que ocorrem), o maravilhoso instrumental (utilização de técnicas impossíveis para a época em que foram descritas: tapetes voadores, lâmpadas mágicas etc.), e o maravilhoso científico ou ficção científica (a explicação racional dos fenómenos produz-se a partir de leis que a ciência contemporânea das obras não reconhece). Há críticos, no entanto, que consideram a ficção científica um género autónomo. Os contos de fadas são, segundo Todorov, uma variedade do maravilhoso não devido à natureza dos fenómenos mas por «une certaine écriture».

O espaço do maravilhoso é o de um mundo (trans)figurado, (sub)vertido o que permite uma quase arbitrariedade na intriga. A questão da verosimilhança no maravilhoso é peculiar já que neste género os fenómenos apesar de (im)possíveis não deixam de ser críveis. O universo do maravilhoso é o da inverosimilhança verosímil. C. Brooke-Rose, ao analisar Lord of the Rings (1ªed. 1954-1955), obra canónica do maravilhoso de J.R.R. Tolkien, fala mesmo da invasão do realismo no maravilhoso pela preocupação que o autor parece revelar em tornar crível o (in)verosímil (The Rethoric of the Unreal). R. Jackson analisa esta obra numa perspectiva ideológica considerando que o universo alternativo criado por Tolkien revela a sua nostalgia por um passado distante (Fantasy: The Literature of Subversion). J. Zipes advoga que essa atitude não é ingénua já que visa defender ideais e valores conservadores (Breaking The Magic Spell, 1979).

A função da literatura do (sobre)natural para Todorov é a de transgressão verificando-se esse carácter transgressor tanto na forma como o homem se relaciona com o mundo (temas do Eu), como na forma como o homem se relaciona com os seus desejos (temas do Tu). Os temas do olhar e do espelho (temas do Eu) e os temas da metamorfose e da multiplicação da personalidade (temas do Tu) são temáticas recorrentes no maravilhoso. É estranha a posição de Todorov ao não admitir uma leitura alegórica (v. alegoria) das obras do (sobre)natural quando a alegoria não aparece explicitada na narrativa. Sendo o (sobre)natural uma transgressão da realidade, como será possível não estabelecer dois níveis de leitura que (pre)ssupõem pelo menos dois significados?

Na Antologia do Conto Fantástico Português (Edições Afrodite, 1974) são apresentados como exemplos de conto maravilhoso mais ou menos puro «A Princesinha das Rosas» de Fialho de Almeida, «O Anjo» de Branquinho da Fonseca, «Fc, o Banho e não só» de Mário Henriques Leiria, «O Elephans-Pinguim» de Maria Alberta Menéres e «O Cavalo Branco» de Álvaro Guerra. A estes exemplos podem acrescentar-se Aventuras de João Sem Medo (1963) de J. Gomes Ferreira e «A Inaudita Guerra da Avenida Gago Coutinho»(1983) de Mário de Carvalho.



Bibliografia: António Quadros: «Estruturas narrativas do maravilhoso: o conto tradicional: estrutura, mitos e arquétipos», Memória das Origens, Saudades do Futuro: Valores, mitos, arquétipos, ideias (1991); Christine Brooke-Rose: A Rhetoric of the Unreal: Studies in narrative and structure, especially of the fantastic (1981); E. M. de Melo e Castro: «Morfologia do Fantástico», Essa Crítica Louca: (1955-1979) (1980); Eric S. Rabkin: Fantastic Worlds: Myths, Tales and Stories (1979); The Fantastic in Literature (1976); Filipe Furtado: A Construção do Fantástico na Narrativa (1980); Gilbert Durand: Les Structures Anthropologiques de l’Imaginaire: Introduction à l’Archetypologie Générale (1980). (As Estruturas Antropológicas do Imaginário: Introdução à Arquetipologia Geral, 1989); Jacques Finné: La littérature fantastique: Essai sur l’organisation surnaturelle (1980); Jacques Zipes: Breaking the Magic Spell: Radical theories of Folk and Fairy Tales (1979); Louis Vax: Les chefs-d’oeuvres de la littérature fantastique (1979); Northrop Frye: Anatomy of Criticism (1957). (Anatomia da Crítica, 1973); The Critical Path (1970). (O Caminho Crítico, 1973); The Secular Scripture: A Study of the Structure of Romance (1976); Rosemary Jackson: Fantasy: The Literature of Subversion (1981); Tzvetan Todorov: Introduction à la littérature fantastique (1970).



Isabel Branco de Mascarenhas

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