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Literatura e estranhamento

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Cap. II - 2.1 - Literariedade e estranhamento


O interesse da teoria literária se concentra não no sentido amplo do termo, que abrange todo o conjunto da produção escrita, sejam documentos históricos, jornalísticos, obras científicas ou técnicas, vistas por alguns teóricos como textos desprovidos de literariedade. O alvo é a literatura em sentido restrito, ou seja, as composições em que a linguagem se apresenta elaborada de maneira especial e nas quais se dá a constituição do universo imaginário ou ficcional.
A literariedade manifesta-se tanto em linguagem metrificada como em não metrificada. Ela se insinua e se mostra no texto por meio de metáforas, metonímias, alegorias, símbolos, analogias, pontuação, provocando a beleza, o impacto estético. A fuga ao convencional cria uma desfamiliarização que não resulta da utilização de elementos lingüísticos próprios, mas dos mesmos materiais cotidianos em uma organização diferenciada, mais densa, mais complexa. O texto literário escapa das medidas do previsível, fala do mundo mediante uma imagem do mundo, permitindo a apreensão do real pela imaginação. De acordo com Lajolo (1982, p. 43):
As formas literárias não são diferentes das formas lingüísticas, mas sua organização as torna (pelo menos algumas delas) mais visíveis. Enfim, a literariedade não é apenas questão de presença ou de ausência, de tudo ou nada, mas de mais e de menos (mais tropos, por exemplo): é a dosagem que produz o interesse do leitor.
A organização dos vocábulos de forma diferenciada da convencional, capaz de transmitir o máximo de imagens com o mínimo de palavras, de acordo com Chklovski, promovendo a desfamiliarização ou desautomatização, singulariza o objeto, obscurece a forma e prolonga e duração da recepção da arte. Para ele, as ações repetitivas, habituais tornam-se automáticas, ao ponto de serem praticadas inconscientemente. Isso é traduzido como economia de energia e facilita a percepção. Chklovski (in TOLEDO, 1971, p. 43) afirma que “a idéia de economia de energia como lei e objetivo da criação é talvez verdadeira no caso particular da linguagem, ou seja, na língua cotidiana.”
A literatura, assim, não busca a facilidade e a transparência da linguagem. Seu objetivo não é gastar o mínimo possível de energia na comunicação, mas, lançando mão de recursos que prendem a atenção, instigar o leitor a procurar o sentido ausente ou metafórico, não se detendo no sentido literal. A isso se chama “ostranenie” - estranhamento. Depreende-se, assim, que no texto literário cria-se uma linguagem capaz de quebrar o automatismo do cotidiano, representando as coisas num contexto inusitado e aumentando a dificuldade e a duração da percepção:
Examinando a língua poética tanto nas suas constituintes fonéticas e léxicas como na disposição das palavras e nas construções semânticas constituídas por estas palavras, percebemos que o caráter estético se revela sempre pelos mesmos signos: é criado conscientemente para libertar a percepção do automatismo; sua visão representa o objetivo do criador e ela é construída artificialmente de maneira que a percepção se detenha nela e chegue ao máximo de sua força e duração. (CHKLOVSKI in TOLEDO, 1971, p. 54).
Daí infere-se que é primordial para a recepção do texto literário que o leitor seja um intérprete dos signos, que tenha a disposição de procurar o que não está expresso nos vocábulos, em seus significados usuais, mas na combinação criteriosa e proposital desses, feita pelo criador. O texto criado por meio desse modo particular é que confere o caráter estético à literatura, caráter esse assegurado pela percepção do leitor.
Dulce Alves
Publicado no Recanto das Letras em 27/12/2008
Código do texto: T1354658

ELIPSE

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

1 - Omissão de palavra(s), ideias ou factos que se subentendem. O enunciado "Cheguei. Chegaste." (Olavo Bilac, Poesias, nova ed., 1904) encerra uma elipse simples (o sujeito de ambas as frases, que fica subentendido; noutro plano, pode-se considerar também elíptica a relação entre as duas frases simples, por ausência de um conector). PRIVATE Trata-se do termo mais comum para qualquer omissão num enunciado ou num texto, que pode ir da simples omissão de sílabas num verso por razões de métrica até à omissão de informações ou acções secundárias numa grande narrativa. A especificação da parte omitida conduz a um campo semântico da elipse que inclui a omissão de conectores (braquilogia, assíndeto e zeugma). A elipse distingue-se, contudo, da aposiopese (a eliminação do final de uma frase), porque pressupõe um enunciado de sentido completo. Assim, os versos de Os Lusíadas: “Aos Infiéis, Senhor, aos Infiéis [aparecei] / E não a mi, que creio o que podeis” (III, 45), ilustram uma aposiopese porque omite uma palavra no final de uma frase que é necessária ao sentido explícito e não uma elipse, que exige que este sentido não se perca pela omissão.

Os retóricos gregos aceitavam como elipse toda a supressão de substantivos, pronomes, complementos ou orações principais; após o Renascimento, os poetas alargaram as possibilidades da elipse que passou a designar qualquer tipo de omissão na frase, desde que não se perca o sentido. A elipse tornou-se também de grande utilidade nas grandes narrativas modernas e pós-modernas, por uma questão de economia ou, em outros casos, por uma questão metaficcional que não está longe da ironia sobre os processos tradicionais. Mário de Carvalho, por exemplo, não deixa de folgar com os processos narrativos que prevêem a inclusão de elipses (e outras figuras): "A segunda parte queria eu começá-la logo de rijo, e em festa. Tinha ensejado uma vasta elipse, de proporções conformes aos estilos consabidos da Retórica e da Geometria. Mas, antes, arrebatou-me um escrúpulo cadastral de apontar, em sinopse, o que ocorreu no interim, com prejuízo da tal figura de estilo, que fica a dever à perfeição." (Era Bom Que Trocássemos umas Ideias sobre o Assunto, 1995). A elipse pode ser também um artifício retórico decisivo para a marcação de um estilo literário, sobretudo no caso dos escritores que procuram dizer o mais possível com o menor número de palavaras. Ocorre, desde logo, a obra de Carlos de Oliveira, que foi sujeita a uma severa redução de texto de edição para edição pela mão do próprio autor. O romance Finisterra. Paisagem e Povoamento (1978) ilustra o tipo de narrativa elítptica, onde o discurso é reduzido ao seu essencial, sem ornamentos nem elementos sintácticos supletivos: “Os bois, fazem favor. O mesmo ódio, o mesmo ferrete. Marcar as reses, dizem eles. Esquecer a manada solta através dos prados. Criar o animal doméstico, a paciência que se ouve nos provérbios. E a nossa memória (ruminada) de chifres contra chifres? Querem lá saber. O fogo continua: nas cozinhas, nas matanças destivas. Até que surge este desenho. Francamente.” (Obras de Carlos de Oliveira, Caminho, Lisboa, 1992, p.1040). Certos modos de expressão narrativa como o monólogo interior, o diálogo ou o solilóquio são propícios a omissões de parte do discurso, para aproximar a linguagem o mais possível da oralidade, onde sistematicamente recorremos à elipse.



2 - Na narratologia, é costume chamar-se elipse a todas eliminações de partes da acção que ajudam à economia da narrativa e não são importantes para a compreensão da história narrada. O conceito foi introduzido por G. Genette, em Figures III (1972) e inclui três variantes: elipse explícita, se estiver claramente identificada no discurso, por exemplo, com expressões do tipo “Um ano mais tarde” ou “Muito tempo depois”; elipse implícita, se não estiver claramente identificada no discurso, só se inferindo pelos dados fornecidos ao longo da história; elipse hipotética, apenas deduzida a partir da informação restrita que o autor nos dá sobre o desenrolar da história. Os elementos eliminados da história num dado momento podem ser ou não recuperados mais tarde. Se assim acontecer, o recurso à analepse ou flash-back é o mais provável.

Para alguns narratologistas como Mieke Bal, uma elipse, a rigor, nunca pode ser detectada (na terminologia de Genette, equivale a dizer que todas as elipses são “hipotéticas”), porque se nada é indicado no discurso nada podemos dizer sobre aquilo que devia estar indicado (cf. Introduction to the Theory of Narrative, University of Toronto Press, Toronto, 1985, p.71ss), o que significa que a detecção de uma elipse é, afinal, um exercício de adivinhação. Nos casos em que usamos expressões do tipo “Um ano mais tarde”, não estamos a fazer verdadeiramente uma elipse mas um “sumário mínimo”. Esta questão leva-nos à dificuldade natural de separar o que é um sumário e o que é uma elipse. Se a expressão “Um ano mais tarde” não sugere necessariamente que algo aconteceu e o acontecimento tem a ver com a história narrada, então podemos dizer que se trata de uma verdadeira elipse; se a mesma expressão não contiver nenhuma possibilidade de acontecimentos relevantes, então dir-se-á que essa expressão resume drasticamente uma determinada duração da história, mas não omite necessária e voluntariamente dados da história.



APOSIOPESE; ASSÍNDETO; BRAQUILOGIA; TEMPO; ZEUGMA



Bib.: Barbara Cairns: “A Systemic Model for Ellipsis”, Working Papers, 35 (1989); Crit Cremers: “On the Form and Interpretation of Ellipsis”, in Studies in Modeltheoretic Semantics, ed. por Alice Meulen (1983); J. D. Sadler: “Ellipsis”, Classical Journal, 74 (1979); Robert J. Stainton: “Non-Sentential Assertions and Semantic Ellipsis”, Linguistics and Philosophy: An International Journal, 18, 3 (1995); Stanley B. Greenfield: “Ellipsis and Meaning in Poetry”, Texas Studies in Literature and Language: A Journal of the Humanities, 13 (1971).



Carlos Ceia

Refrão

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Do castelhano refrán, o refrão é a repetição do mesmo verso ou conjunto de versos no final de cada estrofe.

Processo formal muito remoto, o refrão é já visível nas litanias suméricas e egípcias, na Bíblia, na poesia grega e latina e nos hinos litúrgicos da igreja primitiva. Este processo literário, documentado desde o século XIII e mencionado na poética fragmentária, é encontrado na poesia provençal e nas cantigas paralelísticas galego-portuguesas, nas quais, a par do paralelismo e do elixa-prem, prolonga e alarga a ideia fundamental da cantiga, desde já reduzida, repetindo-a. Tornar-se-à depois parte integrante da estrutura formal da balada, da canção e do rondó.

Este é o momento base do paralelismo trovadoresco medieval, pertença da cantiga tradicional e popular e, por isso, mais frequente entre as cantigas de amigo do que entre as de amor e as satíricas, distingue a cobla galego-portuguesa da cobla provençal, que não inclui o refrão Na grande maioria das suas cantigas, e traduz, na opinião de muitos, a monotonia do nosso sentimentalismo, além de uma certa uniformidade e repetição na sua estrutura, visto que todos os versos da estrofe devem terminar no refrão e como este é o mesmo para cada estrofe na maioria dos casos uma reprodução exacta, é inevitável a repetição da ideia, por vezes com ligeiras variações na forma.

É-lhe atribuída bastante importância como elemento estruturante e é, muitas vezes, considerado um verdadeiro mote e a alma da cantiga, visto que encerra toda a sua ideia central. O interesse por este elemento formal está também testemunhado no Cancioneiro da Biblioteca Nacional, no qual a palavra “tornel”, em letra do século XVI identifica a grande maioria das cantigas de refrão e assinala a preocupação do seu compilador, Angelo Colocci, em reconhecer as cantigas com esta estrutura formal.

A tipologia dos refrães da lírica galego-portuguesa é variada e não se esgota no refrão de forma fixa, com o número de versos inferior ao do resto da estrofe e com o número de sílabas métricas igual ao dos restantes versos da cobla. Existem outros tipos de refrão, como o refrão intercalar, cujos versos surgem total ou parcialmente dentro da estrofe, e o refrão inicial que aparece no inicio da cantiga e é repetido no fim de cada estrofe, embora estes dois tipos de refrão não sejam muito frequentes na lírica galego-portuguesa.

A cantiga de seguir, género estabelecido na Arte de Trovar, apresenta como jogo formal o refrão de citação, consiste na adopção de um refrão de uma cantiga de um autor diferente, construindo-se um texto com outro significado. A citação de refrães diferentes em cada estrofe, independentes de qualquer cantiga e utilizados várias vezes em canções de géneros diferentes, é também um artifício da lírica francesa medieval, produzindo uma ideia de repetição semelhante aquela provocada pela repetição de refrães iguais dentro de estrofe.

Existem ainda refrães com número de versos maior que o número de versos de cada estrofe, de metro mais longo ou mais curto, refrães cuja rima não é independente da da estrofe, refrães de versos repetidos e refrães provérbio, entre outros.

O refrão, elemento integrante da cantiga, documenta igualmente a união da poesia com a musica, tradição esta já muito anterior à poesia lírica galego-portuguesa. Assim, em termos musicais, o refrão poderá ser definido como uma forma vocal ou instrumental reproduzida após cada copla de uma composição musical estrófica.

Artifício musical já utilizado em civilizações muito anteriores, o refrão aparece nas mais remotas formas musicais, quer em países europeus, quer em civilizações orientais de todo o mundo surgindo de igual modo na musica popular e profana ou na religiosa e erudita. Em certos casos, o refrão é constituído apenas com base na repetição de sons ou constituído por uma única palavra.

O refrão é actualmente muito comum na música “ligeira”, na qual segue ainda os preceitos primitivos, mas é bastante raro na música erudita e culta de vanguarda.

Bib.: Jose Fradejas Lebrero: “Evolución de un Refran”, Epos, nº 4 (1988); G.C. Manuel: “La Cultura del Refran”, Cadernos de Poetica, nº 4/11 (1987); Mário Garcia Page: “Propriedades Linguísticas del Refran”, Epos, nº6 (1990); Ma Nieves Vila Rubio: “El Refran: Un Artefacto Cultural”, Revista de Dialectologia y Tradiciones Populares, nº90 (1990).

Ana Ladeira

TORRE DE MARFIM

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Expressão metafórica para designar a atitude de indiferença e de distanciamento em que se colocam alguns escritores/artistas, numa recusa ostensiva do mundo exterior. O conceito surge ligado à figura do poeta isolado que contempla comodamente o mundo no refúgio da sua torre de marfim, numa postura aristocrática, egocêntrica e mesmo sonhadora. Alheio às controvérsias que agitam o seu tempo e repudiando o compromisso social, o poeta considera a sua arte o destino supremo que a vida lhe reserva.

Simbolicamente, a torre evoca Babel, porta do céu, fixada na Terra com o fim de restabelecer o elo primordial com (os) deus(es); pela brancura, conotar-se-ia com a pureza e o poder quase incorruptível do marfim. Contudo, embora construída com o propósito de elevar o homem à divindade, a torre acaba por perverter-se no seu contrário, símbolo do orgulho humano.

O conceito de torre de marfim é largamente difundido no século XIX ( por Sainte Beuve, por exemplo), no contexto antipositivista de reacção a uma certa tendência romântica para atribuir à arte um fim utilitário. Literariamente , o termo aproxima-se do princípio da arte pela arte, exemplificado no Parnasianismo, que dita os moldes de uma nova estética voltada para a sublimação da beleza. Neste ponto, Baudelaire, entre outros, defende que a poesia não tem outro objectivo senão ela mesma já que a arte é um mundo de perfeição fora deste mundo.

O poeta compreende que a realidade é imperceptível aos sentidos e o verdadeiro conhecimento exige, por isso, que desvie o olhar de tudo quanto o rodeia para descer dentro de si, onde mora o ideal desejado. A poesia torna-se, assim, elevação divina da alma do poeta, só possível numa espécie de vida contemplativa na procura desse absoluto. Surgem, naturalmente, elites intelectuais, associadas a um certo dandismo estético, isoladas sobre si mesmas, mas numa abertura para o infinito que radica no próprio “eu”.

A expressão torre de marfim adquire com frequência um sentido pejorativo, pois, face à impossibilidade de realizar o ideal, na procura desses “paraísos artificiais” sobrevem o cansaço, a frustração e o “mal du siècle” que entedia a vida. A torre torna-se, então, uma síndrome dos orgulhosos e misantropos que, fechados na sua torre, não reconhecem os perigos da literatura que se afasta da vida. É esta a crítica feita por F. L. Lucas em The Decline and Fall of the Romantic Ideal : «[…] but I doubt if […] Ivory Towers are healthy for poets in the end. Ivory Towers have Ivory Gates, through which false and vain dreams come. Such a life divides the poet from his hearers, it divides him against himself.» (Cambridge University Press, Cambridge, 1963, p.213).

O termo tem o seu uso literário, desde logo, em O Cântico de Salomão (7:4); surge ainda no poema «Esperança», de Almada Negreiros (“[...] A preguiça do céu entrou comigo / E prescindo da realidade como ela prescinde de mim./ Para que me lastimas / Se este é o meu auge ?! / Eu tive a dita de me terem roubado tudo / Menos a minha Torre de Marfim. / [...] Só não sei que faça da porta da torre que dá para donde vim.”) ; e também, entre outros, em A História Interminável de Michael Ende: « [...] A Torre de Marfim, o coração de Fantasia e a residência da imperatriz Criança [...] cujo ponto mais alto desaparecia nas nuvens.» ( 2ª ed., Editorial Presença, Lisboa, 1986, p. 22); é ainda fácil reconhecer o conceito na filosofia estóico-epicurista das odes de Ricardo Reis, por exemplo, no seu poema “Ouvi contar outrora , quando a Pérsia”.





Bibliografia :



F. L. LUCAS, The Decline and Fall of the Romantic Ideal ( 1963).



William WIMSATT e Cleanth Brooks, Crítica Literária – Breve História ( 2ª ed., s.d.)



Isabel Almeida

Ginocrítica (gynocriticism)

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Teoria feminista de inspiração anglo-americana que defende que as mulheres têm um processo de leitura e escrita diferentes do homem, por força das diferenças biológicas e das formações culturais da categoria de género. Trata-se de uma proposta de abordagem diferente da crítica feminista, porque não prevê a revisão crítica da escrita literária realizado por homens, concentrando-se antes numa escrita exclusivamente feminina. O carácter crítico desta teoria explica-se, segundo uma das suas mais empenhadas promotoras, E. Showalter, pelo propósito de redefinir as diferenças que nascem nas ideologias culturais e nas experiências biográficas e pelos modos de expressão do feminino. Resulta ainda de todas as opressões patriarcais que desde sempre marcaram a condição feminina. Showalter definiu assim os limites e os objectivos da ginocrítrica: “[gynocriticism] is the study of women as writers, and its subjects are the history, styles, themes, genres, and structures of writing by women; the psychodynamics of female creativity; the trajectory of the individual or collective female career; and the evolution and laws of a female literary tradition.” (“Feminist Criticism in the Wilderness”, in The New Feminist Criticism: Essays on Women, Literature and Theory, ed. por E. Showalter, Virago, Londres, 1986, p.248).

A poética marcada pela perspectiva masculina do fenómeno literário, sobretudo a partir da época vitoriana, defende que a imaginação literária não obedece a qualquer diferença sexual e que uma redefinição da história literária em termos feministas é em si mesma uma forma de discriminação sexual. Para esta tradição, as questões do género não se devem colocar, porque a imaginação criadora é só uma. A partir da década de 1970, algumas feministas contestaram veementemente esta posição, argumentando que o género é um aspecto decisivo da criação literária, existindo uma longa história de discriminação da literatura feita por mulheres e, sobretudo, da visão das mulheres que os escritores homens legaram à civilização ocidental, distorcendo a sua especifidade e o seu valor cultural. Escritoras como Virginia Woolf e Dorothy Richardson foram talvez as primeiras a tomar consciência da prisão ideológica e cultural onde que as mulheres haviam sido colocadas pelas visões patriarcais. As teóricas francesas das últimas décadas do século XX chamaram a atenção para a existência de uma escrita feminina, acessível a homens e a mulheres, mas defendendo em qualquer caso o corpo feminino, as suas paixões, os seus desejos, as suas ambições, etc. Para resguardar a ginocrítica de acusações sexistas, Showalter e outras defendem que não se procura aqui uma via essencialista que reduz a imaginação literária a uma questão de identidade e estilo exclusivamente femininos.

ESCRITA FEMININA; ESSENCIALISMO; ESTUDOS SOBRE AS MULHERES; GÉNERO; MASCULINIDADE

Bib.: Barbara Godard (ed.): Gynocritics: feminist approaches to Canadian and Quebec women's writing. Gynocritiques: démarches féministes à l'écriture des Canadiennes et Québécoises (1987); Elaine Showalter: A Literature of Their Own: British Women Novelists from Brontë to Lessing (1977); Id. The Female Malady: Women, Madness, and English Culture, 1830-1980 (1985); Id.: Sexual Anarchy: Gender and Culture at the Fin de Siècle (1990), Sister's Choice: Tradition and Change in American Women's Writing (1991); Daughters of Decadence: Women Writers of the Fin de Siècle (1993).

http://landow.stg.brown.edu/victorian/gender/femtheory.html

Carlos Ceia

NOUVEAU ROMAN

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Termo aplicado a um conjunto de romances franceses publicados no pós guerra (depois de 1945) da autoria de Alain Robbe Grillet, Nathalie Sarraute, Michel Butor, Marguerite Duras, Claude Simon. O termo é sobretudo da responsabilidade dos jornalistas, que tiveram que encontrar uma designação acessível respeitante à renovação romanesca ocorrida no panorama da literatura francesa da década de 50. Mas, de facto, não existem afinidades claras entre as várias produções literárias; o que existiu foi uma confluência dessas produções numa editora, Éditions de Minuit e uma vontade de renovar o romance, rejeitando a maioria das suas características tradicionais. Por vezes, estes romances lembram o anti romance e têm como antecessores Kafka, Louis Ferdinand Céline, William Faulkner, Samuel Beckett e Albert Camus. Apesar do nome mais notório do agrupamento arbitrário de romancistas ser o de Alain Robbe Grillet, muitos consideram que um dos primeiros passos para o estabelecimento do “novo romance” foi dado com a publicação de Tropismes (1938) de Nathalie Sarraute. Roland Barthes, num texto de 1958, “Não há escola Robbe Grillet”, demonstra a dissemelhança entre os romances de Robbe Grillet e os de Butor: os do primeiro autor recusam a História, a psicologia das motivações e a significação dos objectos; os do segundo instituem uma dimensão simbólica. Assim sendo, Robbe Grillet encontra se do lado da negatividade própria de muita produção romanesca do pós guerra e Butor do lado de uma positividade absoluta. Conclui Barthes que não se pode imaginar duas artes mais opostas do que as referidas. No entanto, todos os romancistas deste período literário escrevem contra os padrões tradicionais do enredo romanesco.

Analisados os principais vectores que atravessam o termo em questão, nouveau roman designa o “romance em superfície” (R. Barthes) de características anti humanistas, que acabam por ser as encontradas na produção romanesca de Robbe Grillet. De facto, os seus romances exprimem, por um lado, uma negação ao nível das técnicas romanescas. A novidade consiste na recusa em representar sentidos para o mundo, instituindo o “nada humano do objecto” (R. Barthes). Por outro lado, Robbe Grillet teorizou sobre o novo romance em Por Um Novo Romance (1963), afirmando, no entanto, logo no início do livro, que não era um teórico do género. De qualquer forma, a polémica causada pela sua escrita levou o a justificar se. O posicionamento deste autor representa, por um lado, a aceitação da história literária, ao dizer: “Flaubert escrevia o novo romance de 1860, Proust o de 1910”, mas, por outro lado, representa também a crença num devir incerto da forma literária romance.

Frequentemente, nouveau roman designa um outro termo école du regard como sinónimo da técnica romanesca de Robbe Grillet. As características mais vanguardísticas dos romances de Robbe Grillet decorrem do descompromisso típico da literatura do pós guerra. Afirma o autor: “Ora o mundo não é significante nem absurdo. Existe, muito simplesmente” (Por um Novo Romance). Apesar da sua filiação não ser existencialista, sobressai um aspecto da fenomenologia husserliana, que é a experiência directa dos dados do mundo em que a validade do conhecimento é fundada de um modo imediato. Este tipo de experiência crucial na representação da realidade nos romances do autor referido é considerado na ausência total de pressupostos. O primado da percepção significa que a objectividade se constitui a partir de actos subjectivos. Com efeito, Robbe Grillet defende que o novo romance visa uma subjectividade total, opondo se muito claramente à objectividade implícita na visão omnisciente do romance tradicional. Nesta medida, as conjecturas do autor são antitradicionalistas e entram na categoria de uma poética da obra aberta tal como Umberto Eco a concebe em Obra Aberta (1962). A experiência directa de Robbe Grillet é semelhante à transmissão directa de acontecimentos característica da estética televisiva segundo Eco. O “novo romance” de Alain Robbe Grillet caracteriza se por se manter à superfície do objecto, dando se por isso uma “promoção do visual” (R. Barthes); a descrição é semelhante à pintura moderna porque destrói a unidade do objecto, ao criar um novo espaço com uma profundidade temporal. No fundo, trata se de uma escrita marcada pelo “estranhamento” ou “desfamiliarização” no sentido em que o mundo “objectalista” representa o “carácter inabitual do mundo que nos rodeia” (A. Robbe Grillet).

Outro marco da definição do termo advém de um conjunto de ensaios sobre o romance da autoria de Nathalie Sarraute, A Era da Suspeita (1956). A suspeita decorre da indiferença e da descrença notórias na sociosfera europeia do pós guerra; neste caso, a suspeita é aplicável ao romance psicológico aqui considerado como um romance do passado na medida em que a verdade individual tem muitas facetas, o que torna a preferência dada à psicologia uma convenção literária tão estéril como outras. A autora considera o ser humano como um “corpo sem alma”, um “eu” anónimo. A impessoalidade é reivindicada para a narrativa romanesca, dando se, então, de novo o triunfo da exterioridade. Jacques Leenhardt vai no mesmo sentido quando define o termo a partir de uma ruptura com todos os determinismos constitutivos do romance anterior a este “novo romance”, os de ordem psicológica, sociológica e metafísica. Há, por isso, uma inversão total: é o mundo, o exterior que determina o que chamamos a interioridade e o eu. O nouveau roman dá conta da “pregnância da exterioridade”.

Ficou célebre na época a interpretação do nouveau roman por Lucien Goldmann no sentido de uma análise das relações do romance de Robbe Grillet com a teoria marxista da reificação. A hipótese de trabalho é a de que existe uma relação de homologia entre as estruturas sociais marcadas pelo fetichismo da mercadoria (a reificação) e as estruturas romanescas em causa. A sociedade capitalista ocidental define se, no século XX, pelo desaparecimento progressivo do indivíduo como realidade essencial e pela independência crescente dos objectos. O mundo circundante é, então, um mundo de objectos como um universo autónomo de qualquer vontade humana. Por isso, para este autor, o desaparecimento da importância e da significação da acção individual torna os “romances novos” (como os de Robbe Grillet) os mais realistas da literatura contemporânea.

No panorama da literatura portuguesa, no início da década de 60, dois escritores aderiram ao nouveau roman, Alfredo Margarido com o romance A Centopeia (1961) e Artur Portela Filho com o volume de contos Avenida de Roma (1961). Foram considerados romances de resistência à tradição romanesca amplamente rejeitada nestes textos mas, apesar da polémica na imprensa cultural da época, a influência do novo romance foi relativamente limitada.

Bibliografia Barthes, Roland, Ensaios Críticos, Edições 70, Lisboa, 1977; Butor, Michel e AA VV., Nouveau Roman: hier, aujourd’hui, U.G.E., 10/18, Paris, 1972; Eco, Umberto, Obra Aberta, Difel, Lisboa, 1989; Goldmann, Lucien, Pour une Sociologie du Roman, Gallimard, Paris, 1964; Margarido, Alfredo e Portela Filho, Artur, O Novo Romance, Editorial Presença, Lisboa, 1962; Ricardou, Jean, Pour une Théorie du Nouveau Roman, Seuil, Paris, 1971; Ricardou, Jean, Le Nouveau Roman, Seuil, Paris, 1973; Robbe Grillet, Alain, Por um Novo Romance, Publicações Europa América, Lisboa, 1965; Sarraute, Nathalie, A Era da Suspeita, Guimarães Editores, Lisboa, 1963; Tadié, Jean Yves, O Romance no Século XX, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1992.

Eunice Cabral

Sequência narrativa

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Agrupamento lógico das acções de uma história. O estruturalista francês Claude Brémond (1973) propôs uma sistematização das formas de funcionamento do fluxo narrativo, que inclui a alternância, o encadeamento e o encaixe. Por exemplo, a novela conhecida por Menina dos Rouxinóis contida em Viagens na Minha Terra, de Almeida Garrett, pode ser considerada globalmente um encaixe no texto digressivo das viagens realizadas pelo Autor. Os factos que constituem essa novela interna se desenvolvem estão devidamente encadeados entre si e alternam várias reflexões e pequenas outras histórias. Como texto complexo que é, as Viagens ilustram os principais métodos de combinação de sequências narrativas. O modelo de Brémond (influenciado pelas teorias morfológicas de Propp sobre as funções) foi largamente utilizado na didáctica da literatura portuguesa durante as décadas de 1980 e 1990 e acabou por sofrer uma simplificação no estudo da narrativa, sem se olhar ao facto de o modelo estar limitado a uma lógica redutora do estudo do texto literário, muitas vezes sacrificando a sua interpretação a esquematizações impenetráveis. O modelo das sequências narrativas, tal como é descrito por Brémond não está orientado para as variações temporais das acções narradas, mas prevê somente relações formais do subtexto com o texto principal ou dos subtextos entre si.

ALTERNÂNCIA; ENCADEAMENTO; ENCAIXE; FUNÇÃO

Bib.: C. Brémond: Logique du récit (1973); Sholomith Rimmon-Kenan: Narrative Fiction: Contemporary Poetics (1983); T. Todorov: “Les catégories du récit littéraire”, Communications, 8 (1966).

Carlos Ceia

Sexualidade e literatura

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

À conhecida expressão lacaniana “o inconsciente está estruturado como uma linguagem”, podemos acrescentar com pertinência outra do autor freudiano: “a realidade do inconsciente é a realidade sexual”.

Mais do que as noções do inconsciente e da divisão do sujeito de que nem todos medem a realidade, foi o alargamento da noção de sexualidade pela psicanálise que escandalizou e continua a chocar muitos bem-pensantes. Com efeito desde Freud que o termo sexual se refere a um conjunto de actividades sem relação com os órgãos genitais e que, assim, o sexual e o genital deixaram de se confundir. Como nota Lacan, “desde Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade que Freud supõe a sexualidade como essencialmente polimorfa, aberrante. O encanto de uma pretensa inocência da criança rompe-se”. Noutro texto é a pretensa ignorância da criança que Lacan ele mesmo interpela em termos definitivos: “Gostaria de saber, na balança do Eterno, o que pesa como a melhor apreensão do outro, se a que pode ter o senhor Piaget na sua posição de professor e na sua idade, ou a de uma criança. Essa sua prodigiosa permeabilidade a tudo o que é mito, lenda, conto de fadas, história, essa facilidade em deixar-se invadir pela narração…”

Essa polimorfia da criança estará na origem da sua vida sexual adulta, mas também na dos seus sonhos, lapsos, actos falhos, neuroses ou perversões. Mas é também ela quem nos conduz às e nas nossas actividades criativas sociais, profissionais ou artísticas.

Freud sustenta que a pulsão sexual (que não é um todo, antes se concretiza nas chamadas pulsões parciais) é o efeito da relação a um outro ser humano falante e desejante e que no investimento libidinal é visado um objecto, indiferente em si mesmo, mas subjectivamente e históricamente determinado que satisfaz (parcialmente) o fim do gozo da pulsão sexual. Fim que não tem nada a ver com o acto sexual na sua finalidade biológica de reprodução. Freud supõe assim um parentesco psíquico entre a satisfação sexual obtida no acto sexual e a obtida pela sublimação das componentes da pulsão. Sublimação que ele considera na origem das “obras culturais mais grandiosas”.

É assim que Lacan, para quem, “face à instância da sexualidade todos os sujeitos estão em igualdade, desde a criança ao adulto: só têm a ver com o que, da sexualidade, passa nos interstícios da constituição subjectiva, nas redes do significante”. Não será assim deturpar o pensamento daquele que disse “que não há relação sexual”, dizer que a criação artística, a literária nomeadamente é o que mais nos aproxima de uma relação sexual enfim conseguida.

De facto, toda a fala é duplamente sublimação do corpo: substitui a simbiose corporal primitiva, é o lugar da distância, permite realizá-la, regulá-la; e integra de modo essencial a experiência do corpo como sua base essencial e real. Esse momento irrecuperável para a memória que se diz permanece na memória sem nome. Aí se forma o desejo que a psicanálise descobre como impossível de satisfazer. O retorno a essa memória nas mais variadas formas parece fundamental ao artista. E a tentativa desesperada de reencontrar esse corpo primitivo na sua relação ao outro fundamental à criação literária.

Bib.: Sigmund Freud,Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, (1905), in Textos Essenciais da Psicanálise, vol.II, Lisboa, Europa-América, 1989; Compendio del Psicoanalisis, (1938), Obras Completas, vol.III, Madrid, Biblioteca Nueva, 1973. Jacques Lacan, Os quatro conceitos fundamentais de psicanálise, (SeminárioXI, 1964), Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1979 (1973). Roland Barthes, Sade, Fourrier, Loyola, (1971), Lisboa, Ed.70, 1979.

Maria Belo

UT PICTURA POESIS & UT MUSICA POESIS

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

UT PICTURA POESIS

Expressão usada por Horácio na sua Arte Poética (c. 20 a. C.), que significa “como a pintura, é a poesia” e que, apesar de não possuir um significado estrutural, veio a ser interpretada como um princípio de similaridade entre a pintura e poesia. A afinidade entre as duas artes já fora mencionada por Plutarco, o qual atribuiu ao poeta Simónides de Céos o dito segundo o qual “a pintura é poesia calada e a poesia, pintura que fala” (De gloria Atheniensium, 346 F). Na mesma obra (17 F - 18 a), Plutarco esclarece ainda que tal comparação se baseia no facto de pintura e poesia serem, supostamente, imitações da natureza, princípio este que se revelaria fulcral nas reformulações sofridas pela analogia entre ambas as artes ao longo da Antiguidade clássica.

Durante a Idade Média, esta questão foi sobretudo divulgada através dos modelos romanos (Horácio, Cícero, Quintiliano, etc.), tendo conhecido um importante desenvolvimento com a conquista do espaço pictórico iniciada por Giotto, e que tendeu a aproximar mais o indivíduo dos textos bíblicos.

No Renascimento, o símile horaciano, que continuou a conhecer grande divulgação sobretudo entre os humanistas, contribuiu para igualar em excelência ambas as artes, assim como para difundir a importância da componente pictórica na poesia, como o comprova o sucesso alcançado pela chamada poesia descritiva até meados do século XVIII. Leon Battista Alberti, um dos autores mais representativos da discussão que envolvia as duas artes no início do Renascimento, já irá desenvolver a questão não a partir do símile horaciano mas sim adaptando o modelo do orador de Cícero às artes visuais. A excelência do pintor, segundo Alberti, passa assim a estar directamente dependente da sua capacidade de impressionar o indivíduo, tal como o bom orador deve ser capaz de mover os seus ouvintes. Os teóricos maneiristas e neoclássicos deram grande importância a esta questão, dividindo-se as hostes em favor ora da poesia ora em favor da pintura, mas concordando na necessidade de delimitar os processos de imitação a que ambas as artes obedecem. As relações entre poesia e pintura só serão abertamente postas em causa por diversos teóricos na segunda metade do século XVIII, entre os quais se destacam Edmund Burke e o crítico alemão G.E.Lessing. Este último irá apresentar no seu ensaio Laokoon: oder über die Grenzen der Malerei und Poesie (1766) os contra-argumentos desse pricípio de similaridade entre as dus artes, dotando a poesia de um estatuto superior face à pintura, atitude de certa forma paralela àquela dos românticos alemães (Schelling, Hegel, Schleiermacher) para quem a poesia constituia a síntese suprema da arte, pois reunia em si a imaginação criativa das artes plásticas e a emoção que fluía da música.

Almeida Garrett, na fase inicial da sua carreira, também se pronunciou sobre a “sentença” de Horácio e rejeitou a equivalência entre as duas artes, porque, na Antiguidade, a pintura estava “atrasada” em relação à poesia. É que os Gregos não tinham então Homeros em pintura. A argumentação de Garrett já irá privilegiar a pintura, porque é a arte que melhor se adequa à imitação da natureza: “A poesia animada da pintura exprime a natureza toda; a dos versos, porém, menos viva e exacta, falha em muita parte na expressão de suas belezas. Que poeta poderia dar uma ideia de Rómulo como David no seu quadro das Sabinas? “Que versos nos poderiam fazer imaginar a Divindade como a Transfiguração de Rafael? Que poema nos faria conceber a majestade dum Deus criador dando forma ao caos, e ser ao universo, como a pintura de Miguel Ângelo?” (Ensaio sobre a História da Pintura, Obras Completas, vol. 1, Lisboa, 1904, p. 27 a-b).

O princípio de similaridade entre poesia e pintura volta a ser reafirmado com o Realismo e o Parnasiarismo. No caso português, alguns poemas de Cesário Verde são um excelente exemplo desta revalorização da vertente pictórica na poesia, enquanto que a obra d’O Egipto, de Eça de Queirós, o é no campo da prosa.

Com o Modernismo e o advento das chamadas correntes vanguardistas (Surrealismo, Futurismo, Cubismo, etc...), as relações entre ambas as artes estreitam-se ainda mais, renovando as experiências poético-pictóricas de alguns poetas dos períodos maneirista e barroco, como o comprova a tentativa de fusão da expressão literária com a plástica nos caligramas de G - Apollinaire.

O interesse pela fusão poético-pictórica vai conhecer um novo desenvolvimento na segunda metade do século XX, com a chamada poesia concreta, iniciada no Brasil nos anos 50, e a poesia experimental da década de 70, manifestações que comprovam mais uma vez a actualidade e o alcance do símile horaciano.


UT MUSICA POESIS



Bib: A.García Berrio e M.T.Hernández: Ut poesis pictura: Poética del arte visual (1988); C.O.Brink: Horace on Poetry; I: Prolegomena to the Literary Epistles(1963); Ars Poética (1971); Fernando Cristovão: Marília de Dirceu de Tomás António Gonzaga ou a Poesia como Imitação e Pintura(1981); Fernando Guerreiro: “Ut pictura, poesis. Ou a intransitividade de um princípio”, in Afecto às Letras: Homenagem da Literatura Portuguesa Contemporânea a Jacinto do Prado Coelho (1984); Garcez da Silva: A Pintura na Obra de Eça de Queirós (1986); H.Ch.Buch: Ut pictura poesis: Die Beschreibungsliteratur und ihre Kritiker (1972); J.F.D’Alton: Roman Literary Theory and Cristicism (1931; reimp. 1962); Peter le Huray e James Day: Music and Aesthetics in the Eighteenth and Early - Nineteenth Centuries (1981); P. Grimal: Essay sur l’Art Poétique d’Horace (1968); R.W.m.: “Ut pictura poesis: The Humanistic Theory of Painting” (the Art Bulletin, 22, 1940).

Carla Sofia Carneiro Escarduça

UT MUSICA POESIS

Expressão latina que dá conta das relações entre música e poesia, artes que usufruíam da protecção das Musas na antiga Grécia. Tal facto já se
encontra testemunhado na própria palavra grega mousiké, uma vez que esta significa toda a actividade decorrente da inspiração das Musas, embora
possa designar, em particular, a dança, a musica e a poesia. Na Grécia o mito de Orpheu e a poesia lírica (acompanhada por uma lira, flauta ou
cítara) constituem nesta época a fusão perfeita das duas artes numa só.

Na Idade Média os hinos litúrgicos e a poesia trovadoresca (cantigas de amigo e cantigas de amor) constituem exemplos bem evidentes do carácter
indissociável entre alguns textos poéticos e o respectivo acompanhamento musical, embora tal associação, por vezes, apenas pretendesse facilitar
a aprendizagem dos poemas em questão.

No decorrer do século XV, o declínio da poesia cantada prenuncia já a importância da profunda relação entre a poesia e a música face à
emergência da poesia escrita. Apesar de tudo, durante o Renascimento e o Barroco, o sucesso alcançado por alguns géneros dramáticos, tais como a
ópera, e por géneros poéticos como a cantata e o madrigal ainda atestam a proeminência da relação entre ambas as artes.

No século XVIII a música adquire uma relevância excepcional nas representações dramáticas, uma vez que esta, segundo James Harris, decai
invariavelmente «if not maintained and fed by the nutritious images of poetry» (Three Treatises, 1744). Contudo, ainda no decorrer deste mesmo
século, a música instrumental irá ganhar um prestígio anteriormente desconhecido, permitindo a transferência gradual de um modelo poético
baseado na pintura para um outro baseado na música. O estatuto alcançado pela música instrumental ganha ainda mais proeminência no século XIX com
o Romantismo e com a ideia de que a música é a arte suprema por excelência, pois ela, mais do que nenhuma outra, consegue realizar o
ideal artístico que identifica a forma com o conteúdo. Esta crença na capacidade da arte musical ultrapassar a barreira da mera significação
também atraiu os simbolistas e os modernistas, tendo estes últimos celebrado sobretudo as qualidades formais da música. Poetas como
Mallarmé e Wallace Stevens já não mais conseguem conceber a poesia como indissociável da harmonia, sonoridade e ritmo proporcionados pela
música, chegando este último a considerar em The Necessary Angel (1951) que as palavras na poesia são, acima de tudo, sons.
Tal como sucedeu no domínio das relações entre a pintura e a literatura, também muitos textos poéticos constituiram elemento
inspirador de textos musicais, como acontece com o poema «La cathédrale engloutie, de Debussy» de Jorge de Sena. Estes são apenas alguns
exemplos que comprovam a actualidade da expressão ut musica poesis, expressão que no campo da literatura tradicional de transmissão oral
encontra, ainda no século XX, renovação constante.


UT PICTURA POESIS

Bib: Bruce Pattison: Music and Poetry of the English Renaissance (1948); Kevin Barry: Language Music and the Sign (1987); Manuel Pedro
Ferreira: O Som de Martin Codax, Sobre a Dimensão Musical da Lírica Galego – Portuguesa (Séculos XII-XIV) (1986); Oliver Strunk (ed.):
Source Readings in Music History (1952); Peter le Huray e James Day (ed.): Music and Aesthetics in the Eighteenth and Early-Nineteenth
Centuries (1981).

Carla Sofia Caneiro Escarduça

Teatro do absurdo

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Se atendermos à etimologia do termo absurdo, este remete-nos para o latim absurdu, ou seja, contrário à razão, contraditório, disparatado. O teatro do absurdo seria assim, um teatro pautado por uma visão irracional, e disparatada da realidade. Não menosprezando a importância de uma explicação etimológica do termo, esta revela-se claramente redutora face à complexidade do conceito em análise, pois este encerra uma nova atitude perante as artes, a filosofia, a religião, a política, a sociedade, enfim, uma nova atitude entre teatro e realidade. Esta posição do teatro face à realidade tem também de ser compreendida à luz do Zeitgeist, no qual este teatro surge, bem como à luz das influências, das especificidades e sensibilidades autorais, já que o teatro do absurdo é constituído por uma rede de autores, que compreendem o mundo de formas diversas, transpondo estas visões para diferentes formas de entender e criar teatro. Mais do que atender às especificidades de cada autor, tentaremos traçar as linhas gerais, os pontos de contacto, que afinal fazem com que se tivesse convencionado juntar determinados autores e obras no universo teatral do absurdo. O primeiro crítico que tentou tal sistematização foi Martin Esslin, em 1961, na sua obra, ainda hoje de referência, The Theatre of the Absurd. E qualquer sistematização terá de começar pelo início: o contexto.

Devemos naturalmente inserir o teatro do absurdo num contexto europeu, pós- Segunda Guerra Mundial. Com os escombros deste conflito, emerge também uma identidade fragmentada, despedaçada por uma descrença e cepticismo generalizados: Todos os pilares, nos quais assentava a nossa civilização estavam também reduzidos a pó. Política e ideologicamente o Homem tinha falhado, já que tanto os sistemas capitalistas democráticos, como as ditaduras não haviam conseguido evitar a guerra, e, como tal, tinham impedido o Homem de avançar de forma optimista para a perfeição e progresso ilimitado. Filosofica e cientificamente a crença no positivismo tinha falhado, pelas razões já enunciadas anteriormente. Do ponto de vista religioso, a Homem sentia-se órfão, perdido do ponto de vista espiritual. Que Deus era aquele que permitira tanta atrocidade? Por toda a parte o vazio existencial, o nada - um Homem isolado, despido de valores e certezas, munido de uma linguagem cada vez mais artificial e falsa, uma vida sem objectivos, condenado a esperar pelo vazio eterno, enfim, uma realidade que desafiava todos os limites da razão, uma existência disparatada – o absurdo. Podemos dizer que o teatro do absurdo nasce assim de uma reflexão profunda sobre a realidade, sobre o homem, sobre a linguagem e da relação do teatro com todas estas variáveis. Para além de proceder a uma crítica à realidade exterior ao próprio teatro, este também vai proceder a um mecanismo de autoreflexividade, já que, se as propostas teatrais anteriores e contemporâneas ao conflito mundial (nomeadamente o teatro da linha Brechtiana e o Teatro Naturalista), faziam parte dessa ordem, elas também faliram e tinham de ser reavaliadas. Este processo experimental e dialéctico entre realidade(s), linguagem(ns) e teatro enceta assim uma faceta muito importante deste teatro - a metaobra, ou metateatro. Ainda no que diz respeito à contextualização deste termo no espaço e tempo, é necessário ressalvar a importância e influência artística que teve o centro das artes europeu que era Paris. Por aqui passaram os mais importantes autores do absurdo (desde Beckett a Ionesco); outros países receberam o teatro do absurdo via Paris, nomeadamente Portugal, cujo exemplo cultural tradicional sempre fora França e que, numa altura de ditadura em Portugal, este exemplo teatral serviria para criticar de forma encapotada o regime; em Paris estavam os vanguardistas, aqueles que experimentavam novas formas, e que propiciariam a que se vivesse em Paris um ambiente de inovação e reflexão constantes.

Falando acerca dos movimentos e autores que terão de certa forma influenciado o teatro do absurdo, e que, já antes da Guerra se ter dado, sonhavam com o caos, há a dizer que, do ponto de vista teatral, reconhecem-se influências do teatro Expressionista, do Futurismo, e do Dadaísmo (entre outros), sobretudo no que se relaciona com uma constante negação das lógicas e ordens pré- estabelecidas. Reconhece-se também uma clara influência de um vanguardista do teatro francês: Artaud. Este via o teatro como uma peste, como um duplo da vida. O teatro era cruel, assim como a vida também o era. Do ponto de vista das temáticas a abordar, e da cosmovisão presentes no teatro do absurdo, Nietzsche (ainda no séc. XIX) e Camus (anos 40 e 50 do séc. XX) terão constituído os grandes pilares da visão do absurdo. De Nietzsche, chega-nos a morte do mito e de Deus, como criações puramente humanas e falaciosas; bem como a crítica ao positivismo e naturalismo. O Homem ficava assim sem o conforto do transcendente, sem a certeza de um Pai universal. De Camus, o teatro do absurdo herdou a própria noção de existencialismo, o pilar filosófico desta corrente teatral, pois este assentava sobre conceitos como a angústia, o nada, a morte e o vazio da existência humana, numa realidade cada vez mais fragmentada e desprovida de sentido. A obra de Camus que melhor transmite estas ideias é sem dúvida o Mythe de Sisyphe (1942), e , embora este autor tivesse feito incursões no teatro, as suas peças debatiam e dissertavam acerca da temática existencialista, mas não se distanciavam das formas tradicionais de teatro. Claramente, só com o teatro do absurdo se aliaria conteúdo e forma, tentando não dissertar apenas mas mostrar exemplos vivos da visão do mundo que cada autor teria.

Oito anos após o Mythe de Sisyphe surgiria a primeira peça de teatro inscrita no cânone do absurdo. Trata-se d’A boneca careca, de Ionesco, que iria ao encontro da definição que o próprio Ionesco havia dado para o Absurdo, um vazio metafísico e religioso, no qual o Homem está perdido, perdido até na sua própria condição de Homem.

A barreira entre Homem- Boneco- Objecto é cada vez mais ténue.

Agora que já foram traçados os contextos, influências e grandes pilares que ajudam a compreender parte da complexa génese deste conceito, atendamos a algumas características mais específicas e estratégias presentes neste teatro. Trata-se de um Teatro que compreende uma vertente nihilista, ou seja uma negação e recusa da política, da história, da religião e da sociedade como princípios unificadores. É impossível extrair qualquer verdade/realidade do mundo (ir)real. É um teatro que tenta também reflectir o caos universal, o labirinto existencial que cerca o Homem, a desintegração da linguagem como descodificador do mundo e como meio de expressar verdades. O caos e condição existencial são muitas vezes expressos por uma ausência de espaço e tempo determinados e lineares, por uma desintegração e muitas vezes ausência de intriga, que leva claramente a uma inércia das personagens, muitas vezes marionetas vazias, desprovidas de sentido, bem como as suas miseráveis vidas. Uma peça que espelha bem as ideias anteriores é À Espera de Godot, de Samuel Beckett , durante a qual dois vagabundos- palhaços presentes num não- lugar, num qualquer tempo, procuram um sentido para a sua existência. Estes estão presos num labirinto circular, que os coloca sempre num mesmo posto, à espera...Já a desintegração linguística é muitas vezes abordada pelo mínimo uso da linguagem verbal, preferindo-se o gesto, a luz, o som, os símbolos cénicos, que oferecem ao público uma interpretação própria bem mais “real”, pois intima e pessoal, do que um qualquer jogo de palavras que, aparentemente provido de sentido e verdade, era afinal vazio e artificial. Outra forma de abordar esta temática é através de uma falta de concordância entre o gesto e a palavra, como forma de denunciar crua e claramente a forma ilícita e pouco verdadeira com que as palavras são proferidas na nossa sociedade. Na peça As Cadeiras, de Ionesco, são dispostas cadeiras no palco como sendo um público invisível, reunido para escutar uma mensagem que será transmitida a qualquer momento. Contudo, o orador é afinal surdo-mudo. O que fica? O vazio linguístico. O vazio existencial. Outra vertente deste teatro poderá também ser a sua face irónica e satírica, tentando, através da formulação da intriga, reflectir o mundo de um modo muitas vezes cru e até violento, cruel e grotesco. Autores como Frisch, Grass e Havel utilizaram esta estratégia para descrever a sua cosmovisão.

O teatro do absurdo tentou, em última análise, quebrar todos os limites entre o que é teatro, o que é realidade, e como estas realidades se confundem, contaminam e reflectem mutuamente. Numa senda de chegar ao essencial e de esticar todos os limites do próprio conceito de teatro, temos dois exemplos de peças, que desafiam o próprio conceito de peça e de teatro. Une vois sans personne (1960), de Tardieu e Breath, de Beckett. Na primeira há uma total inexistência de intriga, personagens ou linguagem, apenas um jogo de luzes. Na segunda peça temos trinta e cinco segundos de inspiração e expiração associados também a uma sequência de luzes. Estas peças estão já inseridas no que poderíamos apelidar de teatro minimalista ou anti- teatro.

Outra das questões levantadas acerca do teatro do absurdo passa pela existência, ou não, de uma função, de um intuito, para além de uma mera constatação do vazio existencial, no qual o homem está fatalmente perdido. Algumas definições deste termo não apresentam nenhuma função inerente ao teatro do absurdo (como é o caso de Patrice Pavis no Diccionario del teatro). Contudo, se este teatro se interroga constantemente sobre a existência e destino humanos, este não influenciará naturalmente comportamentos e atitudes do homem? Através da mistura de poesia, grotesco e horror tragicómico, o espectador é levado a distanciar-se de uma (ir)realidade proposta, que aparentemente nada se assemelha com a sua própria (ir)realidade. Assim, e não obedecendo a mecanismos de identificação com as personagens, o espectador mais facilmente abre caminho à critica e reflexão. Desta reflexão nasce uma gradual consciencialização da condição humana. Só quando se adquire verdadeira consciência do nada existencial, se está preparado para a busca do todo inatingível e inefável. Esta visão aparentemente paradoxal, é apenas complementar, e insere-se, tal como explica Esslin, numa inspiração na filosofia oriental. Segundo Esslin, não existe contradição entre reconhecer as limitações, que o homem naturalmente tem em compreender a realidade num universo de valores hermético e estanque, e reconhecer uma unidade misteriosa, não passível de ser descrita por palavras, pois vai para além de todo o racional, mas, uma vez compreendida e aceite, mune o homem de uma serenidade e força para enfrentar as agruras da condição humana.

Por detrás de um vazio nihilista, o teatro do absurdo propõe um teatro, que em última análise tem uma componente terapêutica, uma nova forma de Katársis: através da experiência viva do absurdo humano (peça de teatro), o homem re-escreve o seu mundo e sua condição, indo ao encontro de uma nova ordem, não assente em valores preexistentes (como acontecia na tragédia clássica) e falidos, mas numa luta pelo inatingível: superar a condição humana e atingir uma nova ordem metafísica.

Absurdo; Teatro Experimental

Bibliografia:

Christopher Innes, “Theatre after Two World Wars”, in Brown, John Russel (dir.), The Oxford illustrated History of Theatre, (1995).

Martin Esslin, The Theatre of the Absurd, (3ª ed., 2001).

Patrice Pavis, Diccionario del teatro. Dramaturgia, estética, semiologia, (1998).

Sebastiana Fadda, O teatro do Absurdo em Portugal, (trad. José Colaço Barreiros), Lisboa, Edições Cosmos, 1998.

http://www.cirp.es/res/dtl/

Hélder Gomes

Ser ou não ser literário: o conceito de literariedade

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

O Texto Literário distingue-se, nomeadamente, pelo facto de transformar a realidade, servindo-se dela como modelo para a arquitectar mundos “fantásticos”, que só existem textualmente e que se estabelecem através da metáfora, da caricatura, da alegoria e pela verosimelhança. Residindo aqui a ficcionalidade patente no Texto Literário. Este é o elemento que mais o diferença do Texto Não Literário, que tem por finalidade transmitir uma informação objectiva e autêntica da realidade. Para isso, o Texto Não Literário vai combinar as palavras, numa sucessão coerente, sem que estas sejam independentes, mas apenas sejam úteis na comunicação. O Texto Literário, evidencia também coerência no facto do texto registar uma estrutura própria e não simplesmente um conjunto desorganizado de frases mas em oposição ao Texto Não Literário vai enaltecer a palavra e os recursos estilísticos. Há uma selecção rigorosa das palavras, de modo a organizarem uma estrutura que realce os diversos significados das palavras, transcendendo a sua significação. São estas características que fazem do Texto Literário uma entidade pluri-isotópica, na medida em que é constituída por diferentes níveis de expressão, que têm entre si uma relação de interdependência, e ainda pela intertextualidade que este convoca, constituindo um todo estrutural e distanciando-se assim do discurso cientifico. Com o mesmo objectivo, Roman Jakobson vai mencionar a literatura como a expressão da função estética da linguagem, que vai ao encontro precisamente a esta selecção das palavras. Jakobson vai falar ainda do encadeamento de seis factores indispensáveis na conversação; a mensagem é enviada pelo emissor ao receptor, através do mesmo canal, aplicando o mesmo código e reconhecendo ambos um contexto comum. Neste esquema comunicacional, Jakobson vai diferenciar seis funções da linguagem verbal: expressiva, conotativa, referencial, fática, metalinguística e poética. A função poética é a função dominante da obra e da linguagem literária, embora outras funções estejam dependentes dela. Nesta função, o fundamental é a palavra, na sua própria definição, e que vai ser mencionada, com um discurso atraente e original, adquirido através do método de selecção das palavras. Da conformidade entre a combinação e a selecção, vai resultar a Literariedade, isto é, o conjunto de propriedades que caracterizam a linguagem literária. Portanto, quanto maior for a selecção, e a combinação, mais literário é o texto. A concepção de Literariedade surgiu da vontade de definir a linguagem literária como autónoma, com funções distintas das iminentes ao Texto Não Literário. Surgiu ainda com o intuito da literatura se afirmar como ciência, pois até ao século XIX, as artes não eram consideradas ciências. O formalismo russo procurou, assim, determinar as propriedades exclusivas do Texto Literário, como resposta a esta necessidade de comprovar a autonomia estético-discursiva e a funcionalidade própria do Texto Literário. Paralelamente à teoria de Jakobson, que indica os factores formais como sinais da particularidade da linguagem literária, vão aparecer outras teorias, tal como a de Tynianov, que nomeia condições externas ao texto, de origem histórica e social, isto é, o contexto, como fontes importantes na explicação da linguagem literária. Pode depreender-se então, que o Texto Literário tem um conjunto de características específicas que o distinguem do Texto Não Literário, a Literariedade, características essas que dependem da estrutura formal e do contexto, e que condensam numa transformação do real.

Teoria da cultura

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Tal com o próprio conceito de cultura que a informa, tende a diversificar-se segundo duas interpretações principais: subjectiva-activa e objectiva-passiva. De acordo com a primeira, a pessoa é agível através de uma formação que visa torná-la mais humana, segundo certos ideais educativos (em Grego: paideia; em Alemão: Bildung) que apuram as suas faculdades físicas, intelectuais, morais e religiosas. De acordo com a segunda, há a distinguir, numa primeira alternativa, o conjunto de meios para realizar ou actualizar as potencialidades humanas com referência recorrente à tradição, às grandes correntes e criações espirituais do passado; e numa segunda alternativa, o significado etnológico-etnográfico, em que a cultura surge antes de mais como conjunto de produções características de um grupo humano, da uma maneira de viver, transmissíveis de geração em geração, sobretudo através da família, mas não por hereditariedade biológica.

O fenómeno cultural (e civilizacional) tem sido interpretado segundo múltiplas perspectivas, susceptíveis de agrupamento em três posições principais: realista, idealista e fenomenologista. A primeira apercebe esse fenómeno essencialmente como coisa, res, ou realidade extramental; a segunda como ideia ou representação; a terceira como presença ou realidade interactiva no espaço de confronto homem-mundo, indivíduo‑comunidade.

Entre as teorias realistas sobressaem: a) o materialismo dialéctico-histórico, que tem como fundadores Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895); b) o positivismo, com Auguste Comte (1798-1857) como principal impulsionador; c) o biologismo, a partir de N. I. Danilevski 1822-1885) e de Oswald Spengler (1880‑1936), por exemplo. Entre as teorias idealistas, avultam: a) o idealismo‑iluminismo, de que é típico representante, no século XVIII, J. Christian Wolff (1679‑1754); b) o idealismo-panlogismo, de G. W. F. Hegel (1770-1831), de B. Croce (1866-1952) e de outros. No conjunto das teorias fenomenologistas destaca-se: a) o papel fundador de E. Husserl (1859-1938), com diversos continuadores; b) o fenomenologismo-sociologismo, de que é um dos principais representantes E. Durkheim (1858-1917); c) o fenomenologismo-gnoseologismo, interpretado, por exemplo, por Pitirim A. Sorokin (1889-1968); d) o fenomenologismo-percepcionismo, desenvolvido, entre outros, por M. Merleau-Ponty (1908-1961).

Alguns teorizadores da cultura, conscientes da complexidade de muitos fenómenos culturais e da multiplicidade de perspectivas adoptadas para a sua abordagem, atrás apenas sucinta e incompletamente apontadas, têm tentado uma síntese global, apesar das dificuldades inerentes a tal tarefa. O fenómeno da criação cultural, sendo histórico e tendo, inclusive, uma dimensão em parte individual, não é rigorosamente repetível. Assim, o revivalismo de certas épocas e as ‘renascenças’ de outras não chegam a cabalmente reproduzir períodos anteriores. O enquadramento e a identidade dos eventos nunca são exactamente os mesmos, apresentando muitas vezes aspectos que escapam a uma tentativa de sistematização. A explicação dos fenómenos de criação cultural é sempre aproximada, em virtude de os elementos que os integram não serem absolutamente objectiváveis, repetíveis, mensuráveis — ao contrário dos fenómenos naturais e físicos. A variação de circunstâncias históricas não permite uma simulação ou reprodução rigorosa com vista a uma hipotética experimentação. Há que admitir, pois, que cada observador ou estudioso dos fenómenos culturais adopte um enfoque teórico que, além de amplo e aberto, não exclua visões diferenciadas e complementares. Cultura significa, desde logo, criatividade, e esta escapa, não raro, a previsões ou determinações. A capacidade de invenção do homo faber ultrapassa teorias, esquemas e sistemas, entrecruzando-se com desejos e aspirações conscientes ou inconscientes que desafiam referências particulares e condicionantes materiais ou outras. Mas, com toda a sua diversidade, o fenómeno cultural, sendo humano, interage com o tempo, com cada tempo, interpelando a memória, a inteligência e a sensibilidade humanas. A sua compreensão não depende só do ponto de vista em que é observado e da possível objectividade da observação, mas também dos estímulos insubstituíveis da tolerância e da empatia.

Bib.: G. Gurvitch: Les Cadres sociaux de la connaissance (1966); H. Fischer: Theorie der Kultur (1965); Manuel Antunes: História da Cultura Clássica, vol. fotocopiado de notas das aulas teóricas e práticas, Faculdade de Letras de Lisboa, 1967/68, pp. 33-68; T. S. Eliot: Notes Towards the Definition of Culture (1951, várias reimp.).

http://www.mcs.net/~zupko/cs_criti.htm

J. M. de Sousa Nunes

METAFICÇÃO

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Designação pela qual se tornou conhecido um conjunto de escritores americanos do pós-II Guerra Mundial (John Hawkes, William Gadis, Vladimir Nabokov, John Barth, Thomas Pynchon, Donald Barthelme, entre outros ) que, apesar de possuírem estilos distintos , convergiam quer numa dimensão experimental quer na busca de uma narrativa fundada numa metalinguagem , uma ficção fundada na elaboração de ficções. A metaficção surge numa tentativa de superar o peso das tradições regionalistas e realistas na literatura americana. Deste modo, conceberá como objectivo imediato a subversão dos elementos narrativos canónicos - intriga, personagens, acção-, tendo como estratégia final a elaboração de um jogo intelectual com a linguagem e com a memória literária e artística. O termo metaficção foi introduzido por William H.Gass, vindo na sequência de outras designações, como fabulation ou surfiction que pretendiam definir esta nova atitude. Gass explora aquilo que considera ser a ausência de conexão entre a linguagem e a realidade, e a dimensão sensorial da leitura. Em Willie Master’s Lonesome Wife (1968), estes postulados teóricos e o experimentalismo do autor conhecem o seu momento mais radical através da inclusão de inserts visuais (fotografias), de diferentes cores e registos de impressão, assim como de diferentes texturas. Idêntica atitude face a uma desconexão entre realidade e linguagem está no cerne das estratégias ficcionais de Thomas Pynchon (The Crying of Lot 49, 1966), ficcionista que, negando a virtualidade positiva da linguagem e do sujeito, se debate com a ausência de um centro unificador. Diferente será a postura de Donald Barthelme que tenta encontrar na imaginação o poder unificador que lhe permita superar a fragmentação das sociedades contemporâneas. Em Barthelme, o humor com que utiliza personagens e géneros distintos poderá constituir uma forma de superação da dimensão trágica coeva. Em Lolita (1955), sua obra emblemática, Vladimir Nabokov explora o carácter cómico da tragédia humana através da de Humbert Humbert, simultaneamente denegando um vector fundamental da cultura americana, a inocência. Já John Barth fará da introspecção do sujeito o núcleo da narrativa. Em todos eles, a noção de jogo será, afinal, o centro da estratégia criativa.

FICÇÃO; METAFICÇÃO HISTORIOGRÁFICA; PÓS-MODERNISMO

Bib.: Inger Christensen: The Meaning of Metafiction: A Critical Study of Selected Novels by Sterne, Nabokov, Barth and Beckett (1981); Larry McCaffery: The Metafictional Muse (1982); Frederic Jameson: “Metacommentary”, PMLA, 86 (1971); Linda Hutcheon: Narcissistic Narrative: The Metafictional Paradox (1980); Mark Currie (ed.): Metafiction (1995); Margaret Rose: Parody//Metafiction (1979); Neil Schmitz: “The Hazards of Metafiction”, Novel: a Forum on Fiction, 7, 3 (1974); Patricia Waugh: Metafiction: The Theory and Practice of Self-Conscious Fiction (1984); Raymond Federman: Surfiction: Fiction Now… and Tomorrow (1975); Robert Scholes: Fabulation and Metafiction (1979); W. Hicks: The Metafictional City (1981.
Mário Avelar

Farsa

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Várias dificuldades surgem quando se tentam definir os contornos de um género tão antigo como o género literário farsa, bastante cultivado entre nós ao longo de toda a Idade Média (neste contexto entende-se que o termo Idade Média abrange o período de tempo cronológico que medeia entre a queda do Império Romano no séc.v e meados do séc.xvi), porque nem todos os textos designados, na época histórica em que surgem ou à posteriori, como farsas possuem um conjunto de traços comuns que permitam pacificamente a sua inclusão num mesmo género único, verificando-se, a par de um notório hibridismo de formas, uma grande imprecisão no uso do termo em causa.

Etimológicamente, segundo José Pedro Machado (1977: p.24), o termo «farsa» deriva do latim popular “ farsa, feminino tomado substantivamente de farsus, p.p. de farcire, pelo fr. farce, que, segundo Bloch-Wartburg, s.v., «a pris aussi le sens de «petite pièce bouffonne» au xve. s., probabl. parce que cette petite pièce était d’abord introduite dans la représentation d’un mystère, comme la farce qu’on introduit dans une volaile, etc., d’oú le sens moderne de «chose plaisante qu’on fait ou qu’on dit». (...)»”. Parece, pois, que numa fase inicial a farsa, género pertencente à forma natural dramática, não seria ainda um género autónomo, mas parte integrante de outros, entre eles o mistério.

No intuito de tentar esclarecer um pouco a evolução que este conceito sofreu até ao final da Idade Média, referir-se-ão duas definições de farsa dadas por autores do séc. xvi e citadas por Jessica Milner Davis (1978). A primeira é de Giovan-Maria Cecchi e surge no prólogo de uma peça sua de 1585, La Romanesca: “«The Farsa is a new third species between tragedy and comedy. It enjoys the liberties of both, and shuns their limitations... It is not restricted to certain motives; for it accepts all subjects – grave and gay, profane and sacred, urbane and rude, sad and pleasant. It does not care for time or place...»” (Davis, 1978: pp.13-14). A segunda é de P. Delaudun d’Aigaliers e surge numa obra de sua autoria de 1598, L’Art Poétique François: “«Le sujet [de la farce] doit estre gay et de risée; il n’y a ni scenes ni pauses. Il faut noter qu’il n’y a pas moins de science à savoir bien faire une farce qu’une eglogue ou moralité.»” (Idem, p.13). Com base nestes dois testemunhos da época é lícito inferir-se que no séc. xvi a farsa era vista como um género dramático que autorizava uma grande variedade temática, privilegiando a de natureza cómica, e que não encarava de forma muito rígida a sua configuração formal, nomeadamente, as unidades de tempo e de lugar, tão valorizadas pela tradição clássica, e a divisão do texto em cenas ou pausas. Também se percebe desde logo a enorme abrangência que o termo farsa entretanto adquirira, dada a sua capacidade de designar um vasto número e um conjunto heterogéneo de peças, muito dissemelhantes entre si.

Do séc.xvi até à actualidade a definição deste género foi-se precisando, sendo hoje um pouco mais nítidos os contornos da farsa. Género criado na Idade Média, a partir de um substrato constituído por Sermões Burlescos, Procissões Litúrgicas, Momos, Ladaínhas, Fantasias Alegóricas, Moralidades, Mistérios e Fabliaux franceses e ingleses e por toda uma cultura popular carnavalesca, a farsa é uma categoria genérica que engloba peças curtas, normalmente num só acto e, a maior parte das vezes, sem divisão cénica. Este género poderá ter tido origem na Comédia dell’Arte italiana, cujo texto era apenas um esboço, um esquema da intriga que os actores, tipos sociais cristalizados e imutáveis de peça para peça, desenvolviam ao sabor das circunstâncias e da inspiração do momento, daí o carácter abreviado e conciso da farsa nos seus primórdios.

Este género, classificado durante o período do Renascimento como género menor, tem tendência para imitar acções, interesses e estados de espírito pouco elevados. É um género dramático que representa cenas da vida profana, simultaneamente agressivas, pela sátira contundente, e festivas, pelo cómico hilariante. Reproduzindo o ambiente popular e burguês da época, ou apenas plasmando um episódio cómico flagrante da vida quotidiana da personagem, apresenta em conflito, geralmente com uma grande economia de recursos, as forças da autoridade convencional e as forças da rebeldia. Não raro se trata da luta pelo poder entre duas forças opostas, no âmbito das relações sociais, por exemplo entre pais e filhos, amos e criados, marido e mulher, etc. Vito Pandolfi chega mesmo a afirmar que a vitalidade de certas farsas que ainda hoje conservamos resulta da forma como elas reflectem a vida da época e as relações que se instauravam no interior de uma família.

A estrutura da farsa podia coincidir com uma das seguintes três situações: ou se tratava de uma intriga baseada num tema muito simples e de desenvolvimento inexistente, reproduzindo um único pequeno episódio; ou tinha uma estrutura mais elaborada e apresentava já uma justaposição de episódios, mas habitualmente, sem qualquer conexão lógica e directa entre si; ou, assumindo um nível de complexidade muito maior, apresentava mecanismos de coesão textual que a configurava como uma intriga com princípio, meio e fim. Nos dois primeiros casos era comum surgirem meros desfiles de tipos sociais; na última situação, sem dúvida uma composição dramática mais elaborada, podiam surgir já personagens individuais e redondas, passando por situações muito peculiares às quais dão respostas muito pessoais.

Tratando-se de um género menor que inclui peças ao gosto popular, a farsa punha em palco um reduzido número de personagens, segundo Aguiar e Silva (1982: p.347) preferentemente pertencentes a esta mesma camada social. Se a tendência era muitas vezes reproduzir o retrato vivo de certos tipos bem conhecidos, o que, de qualquer modo, pressupunha uma grande capacidade de observação realista da vida quotidiana e das pessoas, encontramos, porém, composições onde se esboça já o delineamento do carácter da personagem redonda, surgindo em cena personagens com uma vivência psicológica acentuada e que sofrerão modificações ao longo da peça.

A farsa fazia também frequentemente uso da sua potencial possibilidade de subverter a ordem social estabelecida através do mecanismo da sátira. Esta era sempre muito contundente e chegava, por vezes, a ser cruel, não raro fazendo uso de uma linguagem grosseira, escatológica e até desbragada e impudica, o que, invariavelmente, gerava o cómico e o riso dissoluto. No entanto, com alguma frequência eram as camadas mais baixas da pirâmide social e os mais fracos os alvos preferenciais e os mais fáceis de atingir.

Em suma, a farsa é um género dramático menor que a nível formal/estrutural se caracteriza pela ausência de divisão em actos e de marcação de cenas; pela despreocupação total com as unidades de tempo e de espaço; pela utilização de parcos recursos cénicos; pela colocação em palco de um reduzido número de personagens; pela abundância de tipos sociais característicos da época; eventualmente pela presença de uma personagem redonda que sofre ao longo da peça evolução psicológica e moral; pelo delineamento de uma intriga com um nó, desenvolvimento e desenlace; pela presença de sátira, fonte de cómico; e pelo recurso frequente a uma linguagem de conotações eróticas. A nível temático, a farsa privilegia a problematização da luta entre forças opostas, do relacionamento humano, familiar e amoroso, da oposição dos valores tradicionais e convencionais a valores individuais e pessoais e o recurso frequentemente ao equacionamento de um triângulo amoroso.

Bibliografia fundamental:

AGUIAR e SILVA, Vítor Manuel de, 1982, Teoria da Literatura, Coimbra, Liv. Almedina.

BEN-AMOS, Dan, 1974, “Catégories analytiques et genres populaires” in Poétique nº19, Paris, Seuil, pp.265-293.

COELHO, Jacinto do Prado, 1978, Dicionário de Literatura, Porto, Liv. Figueirinhas, tomo I.

DAVIS, Jessica Milner, 1978, Farce, London, Methuen & Co. Ltd.

JAUSS, Hans Robert, 1970, “Littérature médiévale et théorie des genres” in Poétique nº1, Paris, Seuil, pp.79-101.

MACHADO, José Pedro, 1977, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, Lisboa, Livros Horizonte, 3º volume.

MENDES, Margarida Vieira, 1990, “Gil Vicente: o génio e os géneros” in Estudos Portugueses, Homenagem a António José Saraiva, Lisboa, ME.

PANDOLFI, Vito, s.d., “farces et soties” in Histoire du Théâtre, Marabout Université.

PICCHIO, Luciana Stegagno, 1969, História do Teatro Português, Lisboa, Portugália Editora.

REBELLO, Luiz Francisco, 1989, História do Teatro Português, Lisboa, Publicações Europa-América, 4ª ed.

ZUMTHOR, Paul, 1972, Essai de Poétique Médiévale, Paris, Éditions du Seuil.



Bib.: B. Rey-Flaud: La France ou la Machine à rire. Théorie d’un genre dramatique (1450-1550) (1984)

Teresa Gonçalves

O deus da máquina

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

DEUS EX MACHINA

Expressão latina, significa literalmente “deus da máquina” ou "deus de dentro da máquina "; alude a um instrumento mecânico utilizado na tragédia clássica e que permitia a uma divindade ou ser sobrenatural descer sobre o palco, oferecendo dessa forma uma saída para uma situação aparentemente irresolúvel; hoje em dia a expressão é geralmente utilizada num sentido mais lato, para designar uma resolução forçada ou fácil dos acontecimentos numa obra. A Tragédia é porventura a forma dramática privilegiada pra explorar a relação entre os planos divino e humano. O quase obrigatório destino infeliz do herói trágico – a catastrophe -, ainda que dependente de forças para lá do seu controlo, tem tradicionalmente o seu motor inicial num erro ou falta (hamartia) do próprio. Mesmo que se encare o protagonista como fundamentalmente inocente – ou seja, que se aponte a contingência do erro e o absurdo do castigo, cuja desproporção define em grande medida o trágico -, o desenrolar dos acontecimentos não deve depender, de acordo com a teoria clássica da tragédia, de um capricho divino. A contingência estará presente no erro, mas não no castigo, que depende de uma ordem, mesmo que injusta. O mecanismo do deus ex machina foi criticado pelo mais influente teórico da tragédia, Aristóteles, que insiste no “liame da necessidade e verosimilhança” como vector essencial da mesma (Poética, ed. p.116) - isto é, numa causalidade sem falhas no desenrolar da trama, única forma de provocar o desejado “efeito trágico”.

BIB: Aristóteles, Poética, ed. Eudoro de Sousa, Imprensa-Nacional Casa da Moeda (1998) .

Miguel Cardoso

Quiasmo

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Do grego Khiasmus, «cruzamento», é uma figura de estilo que se traduz pela inversão da ordem das palavras (o que poderá conduzir à repetição das mesmas) e de duas frases que se opõem, permitindo não só diversificar o ritmo frásico, bem como levar à obtenção de certos efeitos semânticos, a partir da posição que as palavras ocupam no enunciado: «Pleasure’s a sin, and sometimes sin’s a pleasure.» (Byron). Num enunciado constituído por quatro elementos, dispostos segundo um ritmo binário, para se obter esta figura de retórica, a ordem sintagmática da segunda parte do enunciado, é a inversão dos elementos da primeira parte, segundo a fórmula AB/B’A’: «Treme e freme, freme e treme.» (A.Gedeão). É considerada uma antítese ao inverter-se o paralelismo entre dois grupos de ideias: «Despised, if ugly; if she’s fair, betrayed.» (Mary Leapor).

O quiasmo foi especialmente utilizado na poesia inglesa do século XVIII, mas é igualmente observável na literatura e poesia da antiguidade bem como nos dias de hoje.

Bib.: J. Dubois: Retórica Geral, Carlos Filipe Moisés (trad.) (São Paulo, 1974); Marjorie Boulton: The Anatomy of Prose (1980); Max Nanny: "Chiastic Structures in Literature: Some Forms and Functions", in Udo Fries (ed.): The Structure of Texts (1987).

Ana Paula Rocha

Grotesco

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Termo cunhado em pleno Renascimento, do italiano grotta (gruta), seguido do sufixo formador de adjectivo –esco, o grottesco. Também aparece como crotesque (no caso, a derivação é do latim crypta que, por sua vez, vem do grego kryptós) em francês, em autores como François Rabelais e Montaigne. A palavra inaugural do estilo grotesco surge a partir das escavações feitas em 1480, em Roma, no local onde hoje é o parque de Oppius. Ali, sob restos das termas de Trajano e das de Titus, descobriu-se, nas ruínas da Domus Aurea, (o palácio do imperador romano Nero, 58-64 aC), uma espécie de pintura ornamental totalmente insólita em relação à imagem que se tinha do classicismo romano. Enquanto os estudiosos tentavam decifrar o puzzle desses escombros, os artistas do Renascimento se punham a descobrir os frescos pintados principalmente pelo pintor Fabullus, nas paredes da Domus Aurea. Desceram às grutas, Gionani da Udine, Rafael, Pinturicchio e outros. Viram nos desenhos de Fabullus um novo vocabulário a ser adaptado ao ornamento. A visita às grutas tornou-se uma verdadeira descida dantesca, em que um novo conhecimento se fazia a partir do estranho, devido ao carácter extravagante das pinturas em questão. Vitrúvio, o arquiteto romano, autor do tratado De architetura, já havia deixado o documento mais importante sobre o impacto dos grotescos da Domus Aurea, na época em que foram criados: “ todos esses motivos, que se originam na realidade são hoje repudiados por uma voga iníqua. Pois aos retratos do mundo real, prefere-se agora pintar monstros nas paredes. Em vez das colunas, pintam-se talos canelados, com folhas crespas e volutas, em vez de ornamentação dos tímpanos, brotam das raízes flores delicadas que se enrolam e desenrolam, sobre as quais assentam figurinhas sem o menor sentido. Finalmente os pedúnculos sustentam meias figuras, umas com a cabeça de homem, outras com a cabeça de animal […]” (Kayser, p. 18) Vitruvio continua acentuando as incongruências do estilo que fugia aos critérios clássicos de verdade natural e de verossimilhança, discussão que remonta a Platão, a Aristóteles, a Horácio, etc.

O clássico Rafael que, inclusive, foi quem patrocinou a primeira tradução de Vitrúvio para o italiano, pôs-se a reunir o sublime cristão com os desenhos grotescos pagãos. Era uma posição insubordinada. Os motivos grotescos, sempre acessórios na sua obra, decoravam as margens, a pintura principal ocupava o centro. Rafael e seus discípulos ornamentaram assim as Loggie do Vaticano. O grotesco permaneceu desse modo, um estilo marginal, por excelência que não ocupa as páginas das histórias da arte. Entretanto ele terá causado uma apaixonada polémica no século XVI.

C. Cesariano (1521), um dos tradutores de Vitrúvio, coloca-se contra a arte grotesca, o mesmo não acontecendo com outro tradutor, Monsenhor Bárbaro (1556) que, ao questionar as disformidades da natureza ali operadas, acaba por encontrar uma via de compreensão do grotesco, ao sugerir que se poderia denominar aquelas manifestações de “sonhos dos pintores”, sublinhando seu caracter imaginário; A. Fr. Doni (1549) elogia a graça dos estuques, mas é vitruviano. O interesse do seu trabalho está na busca de uma definição que o leva à idéia de capriccio. Salienta que os G. evocam as manchas de cores ou as nuvens. Remetia certamente a declarações de Leonardo da Vinci, no Trattato della pittura, que aconselhava aos discípulos, a observarem nuvens e manchas e descobrir o que lhes sugeria a fantasia. S. Sérlio (1540) e G. Vasari (1550) têm em conta a liberdade do artista, a abertura à fantasia, tipicamente maneirista do capriccio. Saliente-se que alguns anos antes, foi um artista e tratadista português Francisco de Holanda (1538) que empreendeu em Roma uma das maiores defesas do grotesco.

Grande difusão do G. dá-se no final do século XVI: os ornamentos cobrem fachadas de palácios, invadem a arquitetura ; nas gravuras temos sua permanente reprodução; e também em outros campos: na cerâmica, na tapeçaria, nas artes “menores” em geral. Praticaram o G. artistas (além dos já citados) Gaudenzio Ferrari, Signorelli, Filippino Lippi, Andrea di Cosimo, Giuliano da Sangallo e, até mesmo, Michelangello. A Contra-Reforma faz calar a polémica sobre o G. A partir da Itália, porém, este penetra em países transalpinos e conquista os domínios das artes plásticas e mesmo da imprensa. Fica estabelecida desde então a marginalidade do estilo grotesco em relação ao clássico que ocupa o centro. E, também, fixam-se as características da sua representação: a monstruosidade, o informe, o híbrido (a mistura de domínios: animal/ humano/ vegetal), o fantasioso sem limites, que por vezes provoca o riso e que sempre tem caráter crítico. Ainda no século XVI surge um pintor italiano muito original, Giuseppe Arcimboldo (1527-1593), que, com Yeronimus Bosch (1450-1516) e parte da obra dos pintores Pieter Bruegel, o velho (1525/30-1569) e o moço Jan Bruegel (1564-1638), são reconhecidos, a posteriori, verdadeiros grotescos. A caricatura (Callot) incorpora-se a esse domínio e a sátira faz uso de seus recursos (Hogarth), bem como a Commedia dell’arte. No século XVIII já aparece outra vez a palavra grotesco nos escritos de M. Wieland que ao estilo consagra um estudo. Mas é no XIX que volta com força a polémica sobre o G. (muitas vezes chamado de arabesco, o que é um equívoco, já que o arabesco nunca deve representar a forma humana como faz o G.): E. Kant, G. H. F. Hegel, E. T. A. Hoffmann, Friedrich Schlegel, W. Goethe, Jean Paul, e Edgar Allan Poe. Mas vai ser Victor Hugo que, no prefácio de sua obra teatral Cromwell, irá fazer a defesa do G., mostrando que o objetivo da arte “moderna”, seria a reunião harmoniosa de sublime e grotesco, a favor de uma forma mais elevada de arte, como acontece na obra de Shakespeare.

No século XX, os dois principais teóricos do G. são Wolfgang Kayser e Mikhail Bakhtin. Kayser apresenta o G. como uma categoria estética trans-histórica, cujas obras trazem à tona imagens provenientes do Id [sic], o Isso* em Freud. Kayser conclui que na plasmação artística do grotesco. “O obscuro foi encarado, o sinistro descoberto e o inconcebível levado a falar” (Kayser, p. 162), e assim o grotesco aparece muitas vezes com as tintas do fantástico, mas, muito frequentemente, conserva-se no domínio do realismo. Bakhtin elabora uma das mais interessantes hipóteses para o enraizamento do grotesco na cultura popular. Diferente de Kayser que o estuda o diacronicamente, acompanhando a sua ocorrência de século em século, Bakhtin opera um corte sincrónico e o estuda a partir de dois momentos especiais, a Idade Média e o Renascimento. Verifica a sua ligação com o fenómeno Carnaval, festa popular com seu vocabulário da máscara, da hipérbole, da enumeração caótica. Este fenômeno popular se opõe aos da cultura dita oficial, ao convocar o conjunto da sociedade, sem hierarquia. Sua expressão é de liberação, pois derruba todas as convenções e preconceitos. Assim o grotesco. traz à tona um sistema de imagens ligadas ao “baixo corporal” e material, à terra, ao nascer e ao morrer, como ciclo da vida. Ao contrário do cánon clássico que representa o corpo harmonioso, rigorosamente fechado e solitário, o corpo grotesco será sempre representado em seu devir, em seu inacabamento, nas múltiplas protuberâncias, nos orifícios, e em seu funcionamento interno. Saliente-se ainda a ênfase dada aos actos como o comer, o excretar, o sexo, o parir etc (cf François Rabelais). Pergunta- darão conta de todo o fenómeno grotesco as propostas de Bakhtin e de Kayser ? Que dizer do teatro do grotesco de Luigi Chiarelli e de Luigi Pirandello e dos contistas do grotesco , como K. H. Strobl, com O livro macabro e a importante obra de Franz Kafka? E tantos outros. Por sua vez Harpham, um teórico contemporâneo, mostra que difusão do grotesco, graças à técnica pela acção dos media torna-se tão excessiva e extensiva que hoje é difícil determinar a sua natureza mesma. O computador nos oferece a imagem virtual. O corpo humano é devassado, clonado, recriado, fraturado. Já nenhum mistério oferece o seu interior. Na sua representação artística, vêmo-lo em imagens ora ultra-humanas, ora sub-humanas (na obra plástica de Nancy Burson, Cindy Sherman, Kiki Smith) ou perversas e terrificantes (Francis Bacon), ou em deformações expressionistas, como na pintura de Paula Rego (cito em especial as séries Branca de Neve, Mulher cão etc) ou de Lucien Freud. De forma distinta, apresenta-se nas imagens hiperbólicas e carnavalescas do artista colombiano, Francisco Botero, assim como na obra ficcional do seu conterrâneo Gabriel García Márquez. A história de Portugal é representada de um ponto de vista crítico, literalmente grotesco, em As naus de Lobo Antunes. Estes são apenas uns poucos, dentre os inumeráveis exemplos fornecidos por este final de século vinte. O grotesco não mais ocupa a margem, e sim o centro.

ABSURDO; BURLESCO

Bib.: Charles Baudelaire, “De l’essence du rire et généralement du comique dans les arts plastiques”, in: Oeuvres complètes. Paris, Gallimard, Pléiade, 1961. Elisheva Rosen, Sur le grotesque. L’ancien et le nouveau dans la réflexion esthétique, Sain Dénis, Presses Un. de Vincennes, 1991. Geoffrey Galt Harpham, On the Grotesque. Strategies of contradiction in Art and Literature, New Jersey, Princeton, 1982. Mikhail M. Bakhtine, L’oeuvre de François Rabelais et la culture populaire au Moyen Âge et sous la Renaissance, Trad. André Robel. Paris, Gallimard, 1970. __, Estética de la creación verbal, trad. Tatiana Bubnova, México, Siglo Veinteuno, 1982. Nicole Dacos, La découverte de la Domus Aurea et formation des grotesques à la Renaissance, London, University of London, Leiden, E. J. Brill, 1969. Ofélia Monteiro, “A poética do grotesco e a coesão estrutural de Os Maias”, in: Carlos Reis, Leituras d’Os Maias.Coimbra, Minerva, 1990. Wolfgang Kayser,. Lo grotesco. Su configuración en pintura y literatura. Buenos Aires, Nova, 1964.

Selma Calasans Rodrigues

O enunciado

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Sequência de palavras de forma a constituir uma frase, um conjunto de frases ou um pensamento acabado. Neste último sentido, uma simples palavra significativa: “Ninguém!” (por exemplo, resposta chave conhecida da peça de Almeida Garrett, Frei Luís de Sousa) pode constituir um enunciado. Podemos considerar as frases deste verbete enunciados escritos; os enunciados orais também seguem a mesma definição dos enunciados escritos. Os enunciados aqui expressos são gramaticais, pois respeitam as regras da gramática; um enunciado do tipo *deixei a tua casa de ir , considera-se agramatical (é assinalado pelo asterisco no início da sequência). Os enunciados podem ser classificados subjectivamente, por exemplo, o primeiro enunciado deste verbete é um enunciado linguístico e lógico; o enunciado “Alma minha gentil que te partiste” é literário e poético; o enunciado “O partido do Governo perdeu as eleições europeias.” é português, político e jornalístico, etc. Chama-se ao conjunto de enunciados que se sujeita a uma análise empírica um corpus. Não convém confundir enunciado com discurso, pois este é uma unidade superior tal como o enunciado o pode ser em relação à frase simples, embora seja possível afirmar que a palavra supracitada (“Ninguém!”) pode constituir um discurso de um único enunciado.

CORPUS; DISCURSO; ENUNCIAÇÃO; TEXTO

Bib.: E. Benveniste: Problèmes de linguitisque générale (1966); Enciclopédia (Einaudi), vol.2: "Linguagem - Enunciação" (1984); Jean Dubois: "L'énoncé et l'énonciation", Langages, 13 (1969); Jean Cervoni: A Enunciação (São Paulo, 1989).

Carlos Ceia

Sentimentalismo

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Termo de conotação pejorativa aplicado a algumas obras literárias de sensibilidade do século XVIII, nas quais estão patentes sentimentos de índole exacerbada, e/ou a crença exageradamente optimista, e consequentemente, irrealista na bondade natural do homem.

Estas características do sentimentalismo são visíveis especialmente no romance, na novela e na comédia sentimental, figurando também posteriormente na literatura romântica.

O vincado pendor sentimentalista patente na literatura de sensibilidade proveio de romances e novelas francesas, trazidas na época para Inglaterra. O tema típico destes romances sentimentais é o amor heróico entre membros da realeza, nomeadamente príncipes e princesas. A substituição gradual do romance pela novela, alargou o campo de acção amoroso para os membros da nobreza e posteriormente com Cibber e Steele para membros da classe média. As cenas amorosas entre os heróis pretendem provocar deliberadamente lágrimas no leitor.

As personagens da comédia sentimental são descritas de modo simplista, segundo a dicotomia Bem/Mal e o seu final é sempre feliz. A novela sentimental, por seu turno, põe em relevo padrões de moral e de honra procurando demonstrar que a explosão de sentimentos puros e naturais corresponde ao perfil do homem de sensibilidade. Quer a comédia, quer a novela sentimental agradavam à classe média emergente que via na expressão de sentimentos uma manifestação de virtude.

De entre as obras onde o sentimentalismo se encontra presente destacam-se, a título ilustrativo: The Man of Feeling (1721) de Henry Mackenzie; The Conscious Lovers (1722) de Richard Steele; The Enthusiast de Joseph Warton; A Sentimental Journey (1768) de Lawrence Sterne; The Deserted Village (1770) de Olivier Goldsmith; The West Indian (1771) de Richard Cumberland.

A literatura sentimentalista foi fortemente criticada e satirizada na época por Jane Austen em "Sense and Sensibility" (1811), marcando o início do declínio desta moda literária.

Este género tem sido também alvo de alguns comentários menos positivos por parte de alguns críticos literários modernos, que consideram a literatura sentimentalista eivada de lugares-comuns e de clichés, e a intensidade extrema patente nos sentimentos descritos poderá provocar no leitor moderno o efeito contrário àquele desejado pelo escritor do século XVIII.

O sentimentalismo é, assim, em larga medida definido pelas tendências culturais e literários de cada época.

Comédia SentimentaL; Sensibilidade; sentimentalidade

Bibliografia: L. I. Bredvold, The Natural History of Sensibility (1962); Maximillian E. Novak, Eighteenth Century English Literature (1983); Northrop Frye, Towards Defining an Age of Sensibility (1956); N. J. Bate, From Classic to Romantic (1946).

Paula Mendes

Inconsciente

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

1. A acepção pré-freudiana. Sua origem provém do discurso da filosofia (de Herbart) e era, em alemão, designado pela palavra Unbewusst. No entanto, aquele dado desconhecido da consciência e/ou da racionalidade não teve relação alguma com o conceito freudiano, pois, Freud apenas o identificou com a mesma palavra.



2. O Inconsciente e o campo freudiano. O Inconsciente, enquanto conceito psicanalítico, surge no campo freudiano, ou seja, no campo matêmico-conceitual, inaugurado por Freud, ainda no século XIX. Alí, quando da publicação da Traumdeutung (Interpretação dos Sonhos). Freud vê o sonho como sua formação "princeps". O autor austríaco, por esta razão, aproximou o Saber Inconsciente do sujeito da ciência por serem ambos, como a pulsão, acéfalos. Em Freud, esta categoria (Inconsciente) se hiperdetermina a duas outras, inicialmente, que são: a Histeria (1895) e a Transferência (1912). De seus célebres Estudos sobre a Histeria inferiu, para além da hipótese hipnótica, do método catártico de Breuer (Salpêtrière), a escuta dos lapsos inconscientes presentes nos relatos de suas analisandas histéricas e que seriam responsáveis pela conversibilidade comportamental e pela origem traumática da "sintomática" neurótica das mesmas. Desta "talking cure", isto é, "cura pela palavra" deduz, a partir de tê-la "aprendido" com as histéricas Anna O. e Elizabeth Von R., sua forma de acesso à escuta do Inconsciente que é denominada, por ser considerada seu estilo, de "Associação Livre". Contudo, o Freud, que, após 1920, abandonou seu "biologismo" e sua teoria traumática em favor do Édipo e da Castração, passou a considerar o Inconsciente como um efeito da Castração e da hiperdeterminação de seus dois procedimentos básicos: A Verdrangung (recalque originário) e a Verneinung (denegação). Caberá, pois, ao recalque, cujo efeito imaginário-objectal denomina-se repressão, afastar, desviar da Consciência a fantasia perversa por transformá-la em fantasia inconsciente que, por seu turno, irá universalizar o gozo como fálico. Caberá, então à Denegação que incide sobre a Bejahung (Afirmação Primordial) dizer, na forma de linguagem, não à função fálica, fazendo desta construção pré-consciente (em Freud) a condição do Inconsciente. Logo, para o citado campo freudiano, só haverá Inconsciente no ser que fala. Será, aliás, esta construção pré-consciente freudiana que servirá de modelo ao linguista Roman Jakobson (em seu célebre estudo sobre Afasia) para relacionar condensação e deslocamento (procedimentos do pré-consciente pertencentes à lógica do processo primário) e as figuras de retórica conhecidas como Metáfora e Metonímia. No entanto, o que irá caracterizar, indubitavelmente, o Inconsciente freudiano serão suas características metapsicológicas, e, dentre elas, sua conformação tópica. Para Sigmund freud o Inconsciente é um conhecimento científico porque metapsicológico, e, responderia, tomando na sua origem dezenovesca o sonho como "modelo" à intenção de cientificização possível do aparelho psíquico. Para tal, como qualquer outro conceito metapsicológico, seria dotado de: 1) Locatividade singular; por isto, é organizado em tópicas. Freud formulou duas tópicas a este respeito e pretendeu integrá-las em seu Resumo de Psicanálise nos anos ,0; 2) Economia, o que também se confirma, pois, nele a parcialidade pulsional incorporou a economia libidinal do mesmo modo que o fez o Masoquismo Primordial. Este é responsável pela incorporação da libido no circuito pulsional, que é parcial e econômico por restringir o prazer pelo desprazer; 3) e, por fim, a dinâmica, uma vez que nem interna e sequer externamente o Inconsciente é estático. Age sobre a Transferência que o atualiza e lhe é exterior, conquanto lhe seja forma de acesso, e, tomando-se o sonho como "modelo", vê-se a ação transformadora da elaboração secundária sobre o trabalho do sonho e ambos serem provocados pelo resto diurno. Logo, o caráter tópico do Inconsciente resulta, no pensamento de Freud, da influência diacrônica da Neurologia e da Psicofisiologia e tem, por efeito, a produção de uma Psicopatologia. Caracteriza a configuração do Inconsciente em camadas superpostas, conquanto hiperdeterminadas, e pretende "acomodar" os diferenciados efeitos de Das Ding (a Coisa freudiana), ou seja, o impossível objeto do Desejo, perdido para sempre, na acepção freudiana, e a simbologia da realidade pulsional. Quer-se com isto mostrar um funcionamento diferenciado dos efeitos da relação de princípios entre prazer e realidade. Esta preocupação em Freud remontava ao século XIX e com esta locatividade ele pretendia indicar um papel especial e singular do Inconsciente no aparelho psíquico. Já do ponto de vista do processo econômico do Inconsciente, este é responsável, no nível da realidade psíquica, pela circulação e repartição quantificável da energia pulsional. Considera-se, nesta característica, o investimento pulsional sobre o aparelho psíquico a partir de três procedimentos: a) sua mobilidade (que é efeito de sua dinamicidade); b) sua afetação no que se refere aos efeitos pulsionais do e no Inconsciente; c) seu contra-investimento, que por oposição, suscita a separação e age sobre a Neurose de Transferência (em seus mecanismos psíquicos) e constitui o princípio catártico da "ab-reação". E seu dado dinâmico significa, no texto freudiano, a dialética não-negativa do Inconsciente e, assim, irá qualificar o modo de ação permanente do Inconsciente a provocar a reação de uma força que lhe é contraria e incide sobre o Ego. Por isto Janet, relido por Freud, irá articular esta dinamicidade à origem inconsciente da "clivagem" do Ego. Mas, este termo como se sabe, antes de fazer parte da segunda (2) tópica do Inconsciente freudiano caracterizou, por diferença a um autoerotismo anatômico e biologista, o narcisismo dito secundário por Freud, por distinção ao outro, primário, tipificado pelo seu caráter auto-erótico. A articulação do Inconsciente com a pulsionalidade, dita, então, por Freud "pré-genitalidade da libido" é com a tópica do Inconsciente (Das Es), é de 1915, ao passo que a miragem especular do narcisismo secundário é datado e, com ela, a sua primeira Teoria do Ego, de 1914.

Todavia, inicialmente, para desenvolver sua hipótese tópica (locativa) e não a funcional (dinâmica e econômica), sendo ambas componentes da Metapsicologia Freudiana, Freud a formulou como sendo composta pelo Consciente, pelo Pré-Consciente e pelo Inconsciente. Do primeiro seriam afastadas as fantasias perversas, estas seriam reelaboradas pelos mecanismos de Condensação e Deslocamento (comuns ao processo primário, lógica do aparelho psíquico) denominados de "Regime do Inconsciente". Estes relacionar-se-iam, por seu turno, com a Neurose e com a Transferência. Assim, se uma imago coalescida se desfizer, por ação da condensação, sera inconscientizada; mas, se for fixada em sentido, será Neurose. O Mecanismo de Condensação, pré-consciente, é designado pela palavra alemã Verdichtung. Já o mecanismo de Deslocamento, também, pré-consciente, equivale à Transferência de sentido e não só estará na origem freudiana do termo Transferência (1912, Übertragung), forma de acesso e de atualização do Inconsciente, e como tal será antecedido (em Freud) pela categoria de Resistência (1895, Estudos sobre Histeria) mas também é responsável pela localização no Inconsciente, propriamente dito, do produto transformado da fantasia perversa. Ambos de forma hiperdeterminada compõem o pré-consciente. E o Consciente (vazio de sentido), o Pré-Consciente ("Regime do Inconsciente") e o Inconsciente (lugar para onde se desloca o não-exteriorizável da fantasia perversa), de maneira sobredeterminada, irão compor a 1º tópica freudiana. O termo Deslocamento é designado em Alemão pela palavra Verschiebung e é paradoxal porque se, por um lado, recalca, por outro, poderá permitir que se burle a censura. Mas será na Segunda (28) tópica do Inconsciente que Freud formulará sua, também, segunda teoria do Ego. Esta se compõe de Ego, Super-Ego e Id que estão hiperdeterminados. O Ego é desde o narcisismo secundário um campo imaginário (consistente) de miragem e sofre a ação do Super-Ego que é ali o representante não da repressão, como pensam alguns incautos, que também e ao mesmo tempo a vêem como sinônimo de castração, tida, neste mistér, como amputação imagética, e sim, da figura paterna, masculina, transmitida pela mãe, dita Desejo de Mãe, com valor de identificação viril. Sua ação é limitadora, recalcante e incide sobre o Ego "seccionando-o" em Ideal-de-Ego, que cumpre a função que acabamos de descrever, e Ego-Ideal que corresponde, atribuído ao falante e/ou a outrem, à imagem de semelhante. Já o mítico Id, que posteriormente será utilizado no Mal-Estar na Civilização de forma extensiva articulado ao Desejo e à agressividade (presentificando a Psicanálise na Cultura), é formado por Eros (que inclui PSICHÊ) e Tânatus, ambos em permanente tensão. E ai dar-se-á a presença, em seus efeitos, da Pulsão e do Narcisismo sobre o Inconsciente. O Masoquismo erógeno-pulsional presente, por ação do objeto pulsional, em Tânatus, será modificado pelo Masoquismo Primordial de que Narciso dotou Eros, por ação da Bejahung, e produzir-se-á no lugar da pulsional fantasia perversa, a universalidade da Fantasia Inconsciente a transmitir o gozo fálico. Por estas razões, Lacan escreverá a Fantasia Inconsciente com o mesmo matema (representação conceitual) da Pulsão e verá o Ideal de Ego como representante, através do Super-Ego, no Inconsciente, do lugar de Outro (A), ali Desejo de Mãe, e o dirá simbólico nesta representação do A (Outro) pelo acéfalo e pulsional sujeito do Inconsciente e da Enunciação (je), assim, este sujeito inscrever-se-á, por via já dita simbólica, no Desejo do Outro (A). Já o Ego-Ideal, por ser a representação Inconsciente, embora com efeitos de sentido, de consistência imaginária, do sujeito e do semelhante, quando na especular e imagética posição de objeto, por isto será imaginário. Mas, o Ego por cindir-se em ambos e situar-se entre o simbólico Ideal-de-Ego e o Imaginário Ego-Ideal habitará o sentido, pois este articula Simbólico e Imaginário. E o Super-Ego, nesta tentativa de articulação das duas tópicas, o que já nos remete ao Resumo de Psicanálise (onde o Ideal-de-Ego é simbólico ), registra-se no simbólico por ali representar os efeitos da Lei Paterna e Perseverante no Inconsciente, cabendo ao Id (Isso, Es) permanecer simbólico, já que o Inconsciente freudiano para Lacan é "simbólico puro", embora seja, inclusive, efeito de um simbolismo narcísico e pulsional. Resta-nos, por enquanto, dizer que segundo Sigmund Freud, o Inconsciente jamais foi considerado o objeto Real, epistêmico, ou o nome que se queira dar, da Psicanálise, pois nela a Coisa Freudiana (Das Ding, Projeto, Entwurf, 1896) é um objeto para sempre perdido do Desejo e que provoca o facto de haver, entre outras estruturas, o Inconsciente, por não haver, paradoxalmente, objeto que satisfaça o desejo humano, por isto dito histérico e insatisfeito, razão última, a seu juízo, de nosso mal-estar civilizatório.



3. O Inconsciente não freudiano: Jung, o surrealismo e o estruturalismo. Paralela e historiograficamente à obra freudiana surgiu, com ares de dissidência, a chamada Psicologia dos Símbolos e/ou Psicologia Profunda de Jung. Este autor lastreava sua concepção arquetipal de símbolo (s) numa lógica expressiva que, estilisticamente, se realizava por sinédoque ("pars totalis"). Desse modo, num raciocínio típico de uma lógica expressiva e substâncialista, lógica do silogismo disjuntivo, mostráva-nos imagens, "metáforas" que eram "expressões e/ou manifestações" de um imanentismo de quatro elementos básicos: terra, ar, água e fogo. Estas "metáforas imagéticas" atuavam como partes que expressavam a predominância destes ou de um destes elementos. E sua realização, próxima do símbolo figural de Goëthe, foi por Freud considerada um equívoco, uma mera manifestação conteudística e mística do Inconsciente. Isto malgrado e/ou apesar de Freud, então um jovem médico vienense, ter sido atraído para a questão do Inconsciente e, consequentemente ida Psicanálise apos assistir a conferência sobre a Filosofia Romântica da Natureza em Goëthe. E Jung foi inicialmente, mais até do que Fliess, mais do que Jones, e, obviamente do que o húngaro Ferenczi, tido, por uns tempos como seu discípulo dileto...

Já outra tentativa de se fazer passar pelo Inconsciente freudiano leva-nos ao encontro de André Breton e da francesa e surrealista "escrita automática". Esta também não foi considerada como pretendiam os surrealistas como equivalente ao funcionamento do Inconsciente freudiano. Não foi, pois, reconhecida como tal por Freud, este jamais a considerou, como o pretendido, como uma espécie de "gramática do sonho", sendo, pelo Mestre de Viena, até tida como mais próxima do Inconsciente arquetipal Junguiano. Aliás, à exceção de seu estudo sobre a Gradiva de W. Jensen, cuja imagem de musa foi cultuada, a juizo de Chadwick, pelos jovens surrealistas, o "gosto estético" de Freud era mais clássico: SÓFOCLES, SHAKESPEARE, THOMAS MANN, DOSTOIÉVSKI, H. HEINE, LEONARDO DA VINCI, etc. Entretanto, vai ser Jacques Lacan, ao estudar em sua tese de doutoramento as psicoses nos anos trinta, bem como o bovarismo (cf. A Psicose Paranóica em suas Relações com a Personalidade), que se aproximará, não de Breton e de seu Carnets, mas de Salvador Dali e de seu "método paranóico". O incrível é que o excelente pintor surrealista Renée Magritte que, em manifestação estética da pulsão escópica "pictorizou" o freudiano Rochedo da Castração no seu quadro Castelo dos Pirineus, não parecia nutrir maiores simpatias pela psicanálise.

A próxima contribuição foi pós-freudiana, mas contemporânea à fundação do campo freudiano por Lacan. Este chegou mesmo a ter sua visão do Inconsciente freudiano confundida com esta concepção de natureza linguística, e, ter sido, apressadamente, malgrado seu respeito, discordância e oposição à teoria da Antropologia Estrutural de um Claude Lévi-Strauss, considerado como adepto e/ou integrante do "boom" do Estruturalismo, então em voga. Para a base formalista da linguística estrutural, que havia através da fonologia exportado seu modelo plausível para a Antropologia, o Inconsciente era uma forma implícita, desconhecido logicamente do falante e paradigmático. Mas seria, paradoxalmente, a sua lógica implícita que permitiria a dupla articulação da língua por um falante, língua entendida enquanto modalidade (estrutura) de linguagem, o saussureano dito: Linguagem a língua menos fala. Assim exportado, implícito e logicamente determinante o "Inconsciente estruturalista" tornava-se a condição da Linguagem, como se não fosse a linguagem uma formação do Inconsciente e sim ao contrário. Mas, para o Lacan do campo freudiano, a Linguagem é que era a condição do Inconsciente. Visto isto, constatamos que, por esta razão, tendo a lógica do pré-consciente como sua dinâmica, é que o Inconsciente terá a Linguagem linguagem como sua pré-condição. Lacan toma isto da teoria de Jakobson sobre A Afasia por transformá-la abdutivamente (Pierce). Pois, se para Saussure no dualismo indissociável do signo linguístico a palavra, signo verbal, fundava-se e fundava a imotivação do significante (por isto Roland Barthes, por exemplo, ao escrever sobre as relações entre Semiologia e Linguística, assume perspectiva oposta a de Saussure), para a Fonologia de Jakobson, vide conferência no M.I.T., seria o significante que fundaria a palavra. Lacan, então, estabelece (cf. Écrits, 1966) sua alteração do algoritmo sígnico de Saussure: S/s (significante sobre significado) e hiperdetermina na constituição das figuras reativadas da retórica (Metáfora e Metonímia) os mecanismos pré-conscientes de condensação e deslocamento. E, estamos, então, a um passo da inauguração da concepção lacaniana de Inconsciente conforme o campo do gozo (cf. O Avesso da Psicanálise), ou seja, o campo lacaniano.



4. O Inconsciente conforme Lacan: a fundação do Inconsciente-Real pelo campo lacaniano. Dito, de saída, "estruturado como uma linguagem", por tê-la como pré-condição, situado ao lado do cogito, do pensamento, articulando alienação, afânise e sentido, o Inconsciente freudiano será, inicialmente, para Lacan, puro simbólico. E ao lado da função e/ou lugar de Psicanalísta, das línguas, dos sintomas, dos chistes, dos "atos falhados" será considerado como uma das "formações do inconsciente". É tido como um dos quatro conceitos fundamentais da teoria freudiana por Lacan. Ele vaí-nos dizer que o Inconsciente é, então, de Freud, e, ele (Lacan) apenas o disse simbólico, ou seja, como já se disse, que tinha a linguagem como pré-condição. Vai fazê-lo em Bonneval (Colóquio) ao acrescentar, no pouco tempo que lhe deram para falar, que "o Inconsciente era o que faltava ao homem para restabelecer sua relação com a verdade" (não toda), disse também que sendo os Psicanalistas os destinatários do Inconsciente, por isto, dele faziam parte, até porque a Transferência é que era a atualização do Inconsciente. O Inconsciente, por ser Discurso do Outro (A), por ali ter que ser buscado o Desejo do Homem, daí o aforismo da terceira identificação ao objeto causa de Desejo (objeto a):" O Desejo do Homem é o Desejo do Outro(A), deve ser buscado na enunciação dos discursos. O Inconsciente no campo freudiano também caracterizava esse capítulo da história de um falante (sujeito) que é censurado por ser ocupado por um "fingimento" histérico (desejo insatisfeito) ou marcado por um espaço em branco (significante zero, vazio). E se é dito que o Inconsciente é o Discurso do Outro (A) é somente para que se indique, no mais além, a distinção entre o simbólico reconhecimento do Desejo e o neurótico desejo de reconhecimento. O Inconsciente é a exterioridade lógica do simbólico, da linguagem que, como pré-condição, faz do homem um "animal simbólico". Por esta razão toda a estrutura da linguagem, a ser descoberta pela experiência analítica, remete ao Inconsciente, que é, para Freud, o que dizemos. Nele, no Inconsciente, o sujeito fala, porque o símbolo o fêz homem. Parodiandose a Análise Leiga freudiana poder-se-ia dizer que a prática psicanalítica, do ponto de vista do Inconsciente, não deixa a representação de nenhuma de nossas ações fora do seu campo. Logo no Inconsciente freudiano haverá sempre a incidência de um significante novo. E serão o equívoco, a pluralidade de sentidos e a homofonia que, no nível do significante, o irão caracterizar. Por isto se o simbólico é a representação do Desejo no Campo do Outro (A), a lógica do Inconsciente, dita por Freud lógica do processo primário e/ou "Regime" do Inconsciente é para Lacan a lógica do significante. Por isso, o falante que é afetado pelo Inconsciente é o mesmo que irá constituir o sujeito de um significante, pois: a) explicita, nisto, que a linguagem é a condição do Inconsciente; b) e o saber Inconsciente nos demonstra que, em algum lugar, d'Isso, no Outro (A) se sabe. E aí, no Seminário, Livro 20, Encore (Mais, Ainda), o Inconsciente tem indicado o seu caráter real (impossível), não sem antes observarmos que ele testemunha um saber singular, no que este, em grande parte, escapa ao falante. Mas, voltando-se ao caráter real do Inconsciente, Lacan nos disse que este real aí em jogo é o mistério do Inconsciente, por sê-lo do corpo falante. Vai designá-lo pela homofonia "Pune-bévue" que é uma versão fonético-francesa do termo alemão utilizado por Freud: Unbewusst, Lacan ira dizê-lo real como o próprio significante. Até porque aplicase ao Inconsciente o dito pelo Mestre de Paris sobre o significante, ou seja, se ele é real, o real não é o significante. Neste momento dirá que o Inconsciente é de Lacan e que Freud fundou apenas um campo matêmico (conceitual). Articulará o conceito de Inconsciente, não só com a Transferência, mas também com o binômio Resistência/Desejo do Psicanalista.

Falta-nos agora falar das relações entre o Inconsciente real e a presença do Psicanalista. O Analista está presente em suas relações com o Inconsciente no lugar renegatório de objeto a, posto ser este perverso, uma vez que dali, a estrutura (real, simbólico, imaginário e sintoma (S) não se fecha. Deste lugar a posição do analista manifesta-se enquanto sintoma, lugar de entrelaçamento estrutural, 4º nó, suplência metafórica relativa ao Nome-do-Pai simbólico, 4º nó do gozo e faz emergir a dita função: Desejo do psicanalista. Será o objeto a (causa de Desejo) um dos conceitos próprios do campo do gozo, do campo matêmico fundado por Lacan, ao lado da ousia (incorporiedade) pré-socrática do falo, do(s) Nomes) do Pai e de (A) Mulher. E para o pensamento de Lacan conceituar antes de ser requisito da ciência e uma arte. Irá equivaler o conceituar ao sintoma, já que deve ser bem-dito, pois "ama-se o sintoma como a si próprio". Só a escrita (écriture), desde o estudo de Lacan sobre o symptôme (santificação do sintoma) em Joyce ("Le saint-Homme"), efeito de sublimação que é, torna-se a possibilidade e/ou a garantia do lugar de farsa ática que deve ser incorporado pelo Analista. Este, neste mistér, por sua vez, (ele) se irá distinguir do "fingimento" histérico, da autocracia autoral do Senhor (Mestre) e da impostura perversa. E se para Lacan o sublime, mítico e verdadeiro amor provocou o defrontar-se com a lírica e provençal arte cortesã do medievo, antes na obra freudiana, a autenticidade do amor era de transferência (suposição de saber). Mas, conforme a leitura de Lacan de um Genet nada santo, a questão desejante irá incidir sobre a perversidade ao revelá-la sob os auspícios da comédia em Aristófanes. Lacan, aliás, no Momento de Concluir (cf. Seminário inédito 1976) irá lamentar-se de o caminho freudiano para a Psicanálise ter sido trágico, deveria ter sido cômico (Aristófanes) e convocado, na sua perspectiva de degradação da cultura, a morte da História por Kójeve aposta à Antropologia do Desejo em Hegel.



Concluindo, dir-se-ia que a categoria de Inconsciente-Real articula-se com a função Desejo do Psicanalista, enquanto desejo de máxima diferença, inclusive sexual, por emanar de sua função sintomática, onde, por ficção, o sexo é sintoma quando não pertencente à mesma classe lógica do sujeito; assim o Homem tem como sintoma uma mulher por desejá-la sob o signo da diferença sexual (cf. Seminário: O Sintoma, 1975/1976, inédito). Isto leva o analista, no lugar de causa desejante, dita "causação" desejante a também articular-se, do lugar de semblante do Falo, à falta real (manque). Assim procedendo irá ofertar como suporte do mais-gozar do analisando o seu (do analista) desejo de máxima diferença, inclusive sexual, para que possa do Inconsciente (real) — L'une bévue, Unbewusst, destacar, como do analisando, porque originariamente proposto ao analista como mais-gozar, um gozo particularizado que terá valor de sintoma-real, só que "dublado" pelo simbólico, dito, então, S1 (significante-mestre), sintoma fundamental (sinthome). Esta é a significação possível do Inconsciente-Real produzido no campo do gozo, uma alíngua real (lalangue) no campo lacaniano.

ALTERIDADE; DIFERENÇA SEXUAL; IMAGINÁRIO; JOUISSANCE; OUTRO; REAL; SIGNIFICADO/SIGNIFICANTE

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Antônio Sérgio Mendonça