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O QUE É POESIA: Considerações sobre o fazer poético

segunda-feira, 8 de março de 2010

Afinal, o que é poesia?
Disponho-me neste curto estudo, a tentar explicar o fenômeno poético - e consequentemente literário como um todo - buscando justamente elucidar essa dúvida tão comum a tantos estudantes e ao público em geral.
Há quase que um consenso geral de que poesia é a expressão de sentimentos por meio de versos e/ou rimas, todavia, cremos que essa é uma opinião equivocada. A simples disposição de palavras em versos (sejam eles livres ou não, rimados ou não), por si só, não garante a existência de um texto poético.
Caso essa opinião fosse verdadeira,
Escrever este texto em versos
Já garantiria a existência
De poesia.
Cremos que não foi isso o que aconteceu. Do mesmo modo, organizar um punhado de palavras que expressem algum sentimento, mesmo que ele seja verdadeiro, não é fazer poesia. E então, como fica nossa pergunta inicial após esse comentário? Cremos que o melhor modo de respondê-la é começar mostrando o que há de verdade no conceito de poesia apresentado pelo público em geral; ao definir a poesia como "expressão de sentimentos", um leigo não estaria de todo errado. O texto poético é a expressão de uma subjetividade, é a concretização física e artística da visão de mundo de seu autor.
É necessário, no entanto, colocar-se nesse momento a outra característica da poesia (que podemos dizer que é a mais importante para caracterizá-la); o trabalho com a palavra. A literatura, de um modo geral, é a arte da palavra, é a expressão do homem por meio de uma de suas ferramentas mais importantes; o sistema lingüístico. Assim, enquanto um escultor utiliza-se da de suas ferramentas para lapidar a matéria bruta e o músico precisa afinar o instrumento para poder produzir uma melodia agradável, o escritor precisa trabalhar também as palavras, para que esteja produzindo arte. A poesia, entretanto, requer um cuidado maior no momento de sua produção; a linguagem poética tende a ser mais metaforizada, mas ritmada, mais sujeita a peripécias estruturais que a linguagem em prosa (conto, crônica, romance, etc.). Se fossemos recorrer ao conceito de "literariedade" que o Formalismo Russo desenvolveu veríamos que há uma diferença entre os graus de literariedade da "prosa" e do "verso".
Entendendo a literariedade como as características formais que fazem com que um texto seja entendido como literário, em detrimento dos demais textos produzidos cotidianamente com outros fins, podemos perceber desde o início que, realmente, um texto literário produzido de forma correta, é bem distinto dos demais. Além disso, comparando um conto e uma poesia, ou até mesmo textos do mesmo gênero, porém de autores diferentes, poderemos ver que a literariedade (ou seja, aspectos formais próprios do texto literário - para reduzir bem a complexidade do termo) nos é útil também para diferenciar uma seqüência meramente narrativa, de uma seqüência poética (mesmo que esta narrativa esteja posta em versos). Não cabe aqui discutirmos se os postulados dos formalistas russos são pertinentes hoje em dia ou não, apenas nos valemos deste conceito para auxiliar no entendimento dos elementos diferenciadores da poesia/literatura e demais textos.
Ora, se a literariedade é o que define a literatura, como será que ela se expressa na poesia? Responderemos esta pergunta partindo da análise de textos. Vejamos

"As rodas rangem na curva dos trilhos
Inexoravelmente" (O Martelo, Manuel Bandeira)

Nestes versos iniciais do poema, Bandeira parece querer trazer o "ranger" das rodas do trem para junto do leitor. Fica nítido na repetição de fricativas e vibrantes, o desejo de levar sonoridade ao texto: "as Rodas RanGem na cuRVa dos TRilhos ineXoRaVelmente". Isso provoca um efeito sonoro espetacular, prendendo as atenções do leitor no texto, mas também o levando para o texto.

"Amor é fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente,
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer." (Soneto, Luís de Camões)

Neste texto, vemos logo de cara, elementos únicos da poesia, como versos metrificados; versos decassílabos com acentuação na 6ª e na 10ª silabas (Versos heróicos), rima (abba), presença da antítese (contentamento X descontente), etc.
É lógico que qualquer pessoa conseguiria descrever um ranger de trilhos ou os paradoxos que afligem o coração de quem ama, porém, só quando essas idéias são expressas de um modo trabalhado, envolto em determinados princípios norteadores, sob um mínimo de planejamento, reflexão e conhecimento teórico que seja e, o mais importante, por um conhecedor do gênero que está produzindo, somente assim, teremos poesia.
Acerca disso, faz-se necessário apresentarmos um trecho de um poema de Carlos Drummond de Andrade, um dos maiores poetas brasileiros, onde, depois de dizer sobre o que a poesia não deve falar (acontecimentos, mortes, aniversários, incidentes pessoais, sentimentos, cidades, ou seja, quase tudo), apresenta o que deve fazer o poeta: "Penetra surdamente no reino das palavras. / Lá estão os poemas que esperam ser escritos. / Estão paralisados, mas não há desespero, / Há calma e frescura na superfície intata. / Ei-los sós e mudos em estado de dicionário. / Convive com teus poemas antes de escrevê-los. (...)" (Procura da Poesia). Lógico que Drummond não pretende nestes versos, apresentar fórmulas nem receitas que inspirem um bom fazer poético, pois desse modo estaria se contradizendo, uma vez que a maioria desses assuntos está presente em seus textos. Ao contrário, o poeta apenas aconselha que não é no calor dos sentimentos que se deve produzir poesia, em súbito, pois desse modo têm-se apenas desabafo, catarse. Não se deve tentar poetizar acerca de um acontecimento somente porque nos chamou atenção ou nos mobilizou, emocionou; o fazer poético requer um trabalho com o texto, um tempo para amadurecer as idéias, pensar num modo correto de as exprimir. "Penetrar surdamente no reino das palavras", para o poeta, significa produzir um texto apenas quando já se conhece os caminhos a seguir, quando se está maduro o suficiente para livrar-se do imediatismo ou sentimentos exagerados que prejudiquem o texto. É não escolher um tema para fazer poesia, mas escolher o modo correto para exteriorizar os anseios do seu "eu".
Enfim, cremos ter ficado claro que o objetivo deste texto é mostrar que o simples desabafo por meio de versos muitas vezes é bonito e necessário, todavia, não deve ser, por isso, chamado de poesia. O texto literário de um modo geral e, mais especificamente a poesia, obedecem a "regras", ou melhor dizendo, satisfazem necessidades formais e conteudísticas necessárias à realização de seus objetivos.
Concordamos inteiramente com Aristóteles quando este afirma que mesmo que Empédocles (filósofo grego contemporâneo seu) escrevesse um tratado de medicina em versos, não estaria fazendo poesia. Ainda segundo Aristóteles, o que difere este filósofo do poeta Homero não é a forma com que escrevem seus textos, mas sim a união desta com outros elementos, tais como rima, metro, etc. Logo, escrever em versos não é poesia, poesia é trabalho, reflexão, organização, teorização, reescritura, ou seja, um longo processo artístico.

Leia também "O QUE É POESIA: do conteúdo", "O QUE É POESIA: um pouco de crítica", "O QUE É POESIA: desfazendo mitos" e "O QUE É CRITICA LITERÁRIA"

Weslley Barbosa
Publicado no Recanto das Letras em 14/03/2008
Código do texto: T901296

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