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Sexualidade e literatura

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

À conhecida expressão lacaniana “o inconsciente está estruturado como uma linguagem”, podemos acrescentar com pertinência outra do autor freudiano: “a realidade do inconsciente é a realidade sexual”.

Mais do que as noções do inconsciente e da divisão do sujeito de que nem todos medem a realidade, foi o alargamento da noção de sexualidade pela psicanálise que escandalizou e continua a chocar muitos bem-pensantes. Com efeito desde Freud que o termo sexual se refere a um conjunto de actividades sem relação com os órgãos genitais e que, assim, o sexual e o genital deixaram de se confundir. Como nota Lacan, “desde Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade que Freud supõe a sexualidade como essencialmente polimorfa, aberrante. O encanto de uma pretensa inocência da criança rompe-se”. Noutro texto é a pretensa ignorância da criança que Lacan ele mesmo interpela em termos definitivos: “Gostaria de saber, na balança do Eterno, o que pesa como a melhor apreensão do outro, se a que pode ter o senhor Piaget na sua posição de professor e na sua idade, ou a de uma criança. Essa sua prodigiosa permeabilidade a tudo o que é mito, lenda, conto de fadas, história, essa facilidade em deixar-se invadir pela narração…”

Essa polimorfia da criança estará na origem da sua vida sexual adulta, mas também na dos seus sonhos, lapsos, actos falhos, neuroses ou perversões. Mas é também ela quem nos conduz às e nas nossas actividades criativas sociais, profissionais ou artísticas.

Freud sustenta que a pulsão sexual (que não é um todo, antes se concretiza nas chamadas pulsões parciais) é o efeito da relação a um outro ser humano falante e desejante e que no investimento libidinal é visado um objecto, indiferente em si mesmo, mas subjectivamente e históricamente determinado que satisfaz (parcialmente) o fim do gozo da pulsão sexual. Fim que não tem nada a ver com o acto sexual na sua finalidade biológica de reprodução. Freud supõe assim um parentesco psíquico entre a satisfação sexual obtida no acto sexual e a obtida pela sublimação das componentes da pulsão. Sublimação que ele considera na origem das “obras culturais mais grandiosas”.

É assim que Lacan, para quem, “face à instância da sexualidade todos os sujeitos estão em igualdade, desde a criança ao adulto: só têm a ver com o que, da sexualidade, passa nos interstícios da constituição subjectiva, nas redes do significante”. Não será assim deturpar o pensamento daquele que disse “que não há relação sexual”, dizer que a criação artística, a literária nomeadamente é o que mais nos aproxima de uma relação sexual enfim conseguida.

De facto, toda a fala é duplamente sublimação do corpo: substitui a simbiose corporal primitiva, é o lugar da distância, permite realizá-la, regulá-la; e integra de modo essencial a experiência do corpo como sua base essencial e real. Esse momento irrecuperável para a memória que se diz permanece na memória sem nome. Aí se forma o desejo que a psicanálise descobre como impossível de satisfazer. O retorno a essa memória nas mais variadas formas parece fundamental ao artista. E a tentativa desesperada de reencontrar esse corpo primitivo na sua relação ao outro fundamental à criação literária.

Bib.: Sigmund Freud,Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, (1905), in Textos Essenciais da Psicanálise, vol.II, Lisboa, Europa-América, 1989; Compendio del Psicoanalisis, (1938), Obras Completas, vol.III, Madrid, Biblioteca Nueva, 1973. Jacques Lacan, Os quatro conceitos fundamentais de psicanálise, (SeminárioXI, 1964), Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1979 (1973). Roland Barthes, Sade, Fourrier, Loyola, (1971), Lisboa, Ed.70, 1979.

Maria Belo

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