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Literatura e estranhamento

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Cap. II - 2.1 - Literariedade e estranhamento


O interesse da teoria literária se concentra não no sentido amplo do termo, que abrange todo o conjunto da produção escrita, sejam documentos históricos, jornalísticos, obras científicas ou técnicas, vistas por alguns teóricos como textos desprovidos de literariedade. O alvo é a literatura em sentido restrito, ou seja, as composições em que a linguagem se apresenta elaborada de maneira especial e nas quais se dá a constituição do universo imaginário ou ficcional.
A literariedade manifesta-se tanto em linguagem metrificada como em não metrificada. Ela se insinua e se mostra no texto por meio de metáforas, metonímias, alegorias, símbolos, analogias, pontuação, provocando a beleza, o impacto estético. A fuga ao convencional cria uma desfamiliarização que não resulta da utilização de elementos lingüísticos próprios, mas dos mesmos materiais cotidianos em uma organização diferenciada, mais densa, mais complexa. O texto literário escapa das medidas do previsível, fala do mundo mediante uma imagem do mundo, permitindo a apreensão do real pela imaginação. De acordo com Lajolo (1982, p. 43):
As formas literárias não são diferentes das formas lingüísticas, mas sua organização as torna (pelo menos algumas delas) mais visíveis. Enfim, a literariedade não é apenas questão de presença ou de ausência, de tudo ou nada, mas de mais e de menos (mais tropos, por exemplo): é a dosagem que produz o interesse do leitor.
A organização dos vocábulos de forma diferenciada da convencional, capaz de transmitir o máximo de imagens com o mínimo de palavras, de acordo com Chklovski, promovendo a desfamiliarização ou desautomatização, singulariza o objeto, obscurece a forma e prolonga e duração da recepção da arte. Para ele, as ações repetitivas, habituais tornam-se automáticas, ao ponto de serem praticadas inconscientemente. Isso é traduzido como economia de energia e facilita a percepção. Chklovski (in TOLEDO, 1971, p. 43) afirma que “a idéia de economia de energia como lei e objetivo da criação é talvez verdadeira no caso particular da linguagem, ou seja, na língua cotidiana.”
A literatura, assim, não busca a facilidade e a transparência da linguagem. Seu objetivo não é gastar o mínimo possível de energia na comunicação, mas, lançando mão de recursos que prendem a atenção, instigar o leitor a procurar o sentido ausente ou metafórico, não se detendo no sentido literal. A isso se chama “ostranenie” - estranhamento. Depreende-se, assim, que no texto literário cria-se uma linguagem capaz de quebrar o automatismo do cotidiano, representando as coisas num contexto inusitado e aumentando a dificuldade e a duração da percepção:
Examinando a língua poética tanto nas suas constituintes fonéticas e léxicas como na disposição das palavras e nas construções semânticas constituídas por estas palavras, percebemos que o caráter estético se revela sempre pelos mesmos signos: é criado conscientemente para libertar a percepção do automatismo; sua visão representa o objetivo do criador e ela é construída artificialmente de maneira que a percepção se detenha nela e chegue ao máximo de sua força e duração. (CHKLOVSKI in TOLEDO, 1971, p. 54).
Daí infere-se que é primordial para a recepção do texto literário que o leitor seja um intérprete dos signos, que tenha a disposição de procurar o que não está expresso nos vocábulos, em seus significados usuais, mas na combinação criteriosa e proposital desses, feita pelo criador. O texto criado por meio desse modo particular é que confere o caráter estético à literatura, caráter esse assegurado pela percepção do leitor.
Dulce Alves
Publicado no Recanto das Letras em 27/12/2008
Código do texto: T1354658

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