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TEXTO

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Se o texto, mormente o texto literário, deve sempre reinventar o seu próprio cânone, cumpre buscar possíveis definições do que seja “texto”, signo que perambula, solene e interdisciplinarmente, por campos vários do saber, como a filologia, a filosofia, a filosofia da linguagem, a didática, a lingüística, a semiologia, a semiótica, a psicologia, a teologia, as ciências jurídicas e históricas, a teoria literária, a crítica textual, onde se imbricam sentidos, engendrando outros sentidos. Muito grosso modo, o termo “texto”, derivado do étimo latino textus, que produz a significação de “tecido”, é usado para referir algo que pode ser lido para fazer sentido: assim, teoricamente, o mundo é um texto social. Citando os formalistas russos Yuri Lotman (1922-1993) e Boris A. Uspenskij: “Nas mais diversas culturas surge periodicamente a tendência para considerar o mundo como um texto, e, conseqüentemente, o conhecimento do mundo é equiparado à análise filológica desse texto: à leitura, à compreensão e à interpretação” (SEGRE, 1989, p. 171), Cesare Segre considera que “esta metáfora do mundo (ou da cultura) como texto foi retomada recentemente e com argumentos mais fortes” (p 172) Embora o significante “texto” pareça privilegiar textos escritos, enunciados analisáveis, conjunto de palavras escritas, dotado de certa coerência, o que configura um grafocentrismo e um logocentrismo - Paul Ricoeur acolhe a definição corrente de texto, quando diz que texto é tout discours fixe par l’écriture (1986, p. 137) -, texto é, sob o prisma semiológico, algo plurissemiótico, seqüência significante, um sistema de signos, constituído em forma de palavras – orais e escritas -, imagens, sons, gestos; constrói-se e interpreta-se o texto, objeto cultural, com referência às convenções de gênero e como um meio particular de comunicação, sendo produto, ou produtividade, de representação e figuração, tanto de seu emissor quanto de seu receptor ou destinatário, levando-se em conta propriedades semióticas da enunciação e do enunciado.

O signo “texto” enuncia-se de forma ampla, articulada a outros termos também amplos, tais como: enunciação, sentido, significação, contexto, interpretante e outros que, de uma ou de outra maneira, estão ligados aos mecanismos da organização textual responsáveis pela construção do sentido; enunciado qualquer, oral ou escrito, longo ou breve, antigo, moderno ou contemporâneo, concretiza-se numa cadeia sintagmática de extensão muito variável, podendo circunscrever-se tanto a um enunciado único ou a uma “lexia”, quanto a um segmento de grandes proporções: são textos, seja uma mera interjeição, seja uma narrativa, de qualquer extensão.

Segundo Greimas e Courtés, em seu Dicionário de semiótica, texto e discurso equivalem-se, podendo, por conseguinte, “ser empregados indiferentemente para designar o eixo sintagmático das semióticas não-lingüísticas: um ritual, um balé podem ser considerados como textos ou como discursos” (p. 460). Outra analogia pode-se também fazer entre texto e fala (parole), no jargão saussureano, se se concebe o texto como atualização do sistema específico da língua (ou langue, segundo Saussure). Será por meio do texto que o discurso se manifesta. Tomando o texto “como uma unidade de uso da língua em uma situação de interação e como uma unidade semântica”, Charaudeau e Mainguenau assumem, no Dictionnaire d’analyse du discours, a definição de texto, de acordo com M.A.K. Hallyday e R. Hasan: “A text is best thought of not as a grammatical unit at all, but rather as a unit of a different kind: a semantic unit. The unit that it has is a unity of meaning in context, a texture that expresses the fact that it relates as a whole to the environment in which it is placed” (2002, p. 571).

Umberto Eco, em sua obra Conceito de texto, postula que um dos momentos de indefinição da semiótica contemporânea acontece justamente com a crise da noção de signo, já que se afirmava: “o signo não existe”. “E o que existe, ao menos no que diz respeito às semióticas verbais, é o texto. Se podia ser obscura a noção de signo, também pode ser obscura a noção de texto” (1984, p. 4) Esse famoso semiólogo, nascido em Alexandria, no Egito, considera a noção de texto, pelo modo como tem sido elaborada nos últimos anos, de enorme importância, porque permite entender, de maneira muito mais ampla, alguns mecanismos da significação da comunicação. Para ele, é um suicídio construir uma semiótica do texto, sem relacioná-la a uma semiótica do signo, na medida em que se trata, sempre, de um sistema semiótico bem organizado. Na apresentação do volume, Cidmar Teodoro Pais conclui que “todo signo é um texto virtual – ou uma virtualidade de textos e (que) todo texto é a expansão de um signo, inscrito num universo sígnico em forma de enciclopédia” (p. IX-X); no processo de comunicação, portanto, um texto nada mais é que a expansão da virtualidade de um sistema de signo. Estaria aqui inscrita a questão do texto no que refere à cibernética, lugar par excellence da metáfora da rede para representar o texto em suas infindas virtualidades e funções, de que o hipertexto é exemplo cabal.

Lugar de manifestação da linguagem e dos sentidos, estrutura única ou aberta de significados (CEIA, 1999, p. 114), enunciado em sua materialidade, estabilização precária do discurso, o texto - aberto ou fechado, no momento, em sua própria situação de enunciação -, mantém, necessariamente, relação com outros textos, antigos, contemporâneos ou até posteriores, de que exibe ou esconde indícios, se se tem em mente a alegoria do mundo como universo de linguagem ou imenso texto, de que cada texto se constitui parte, conformando corpora do Corpus, ou, barthesianamente falando, urdindo-se “a mandala de toda a cosmogonia literária” (BARTHES, 1996, p. 49). Comportamento lingüístico, seqüência de enunciados, orais ou escritos, submetidos à análise, o texto comporta uma estrutura que oscila face à leitura, às leituras, às possibilidades de leitura, a uma “semiose ilimitada” e a uma intersemiose sem limites, que indiciam a natureza de transformação e abertura de todo texto.

Em “A teoria do texto”, Roland Barthes (1915-1980), depois de considerar o texto como “um fragmento de linguagem, colocado numa perspectiva de linguagens” (2004, p. 268), oferece a seguinte definição: “O texto é uma prática significante, privilegiada pela semiologia, porque o trabalho por meio do qual ocorre o encontro entre sujeito e língua nele é exemplar: é ‘função’ do texto ‘teatralizar’ de algum modo esse trabalho” (p. 269). Segundo esse seminal semiólogo, existe uma materialidade e uma sensualidade do texto – ou escritura (écriture) -, que constitui o único meio de se superar a ideologia: mais do que uma semiologia, necessita-se de uma semioclastia, porque no texto, constituído de signos, habita o “monstro” da ideologia. Preferindo inscrever « texto », ao invés de « literatura », Barthes, amigo do psicanalista francês Jacques Lacan (1901-1980) e « texto » jamais por ele analisado, enuncia, em S/Z, instigante leitura semiológica da novela Sarrasine (1830 ), de Balzac (1799-1850) : « Neste texto ideal, as redes são múltíplas e se entrelaçam, sem que nenhuma possa dominar as outras ; esse texto é uma galáxia de significantes, não uma estrutura de significados ; não tem início ; é reversível ; nele penetramos por diversas entradas, sem que nenhum possa ser considerada principal ; os códigos que mobiliza perfilam-se a perder de vista, eles não são dedutíveis (o sentido, nesse texto, nunca é submetido a um princípio de decisão, e sim por lance de dados) ; os sistemas de sentido podem apoderar-se desse texto absolutamente plural, mas seu número nunca é limitado, sua medida é o infinito da linguagem » (p. 39-40). « Lexia » alongada, esse enunciado barthesiano gira, apontando o horizonte infinito da linguagem, que se faz texto, texto literário, hipertexto, literatura, enfim, ao mesmo tempo que prolonga o próprio sentido do texto, tornado trama de significantes, unidade semiótica, entidade semiológica a deslocar códigos, ao invés de ser regida por esses mesmos significantes, na medida em que, porque plural, o texto « ideal » não tem princípio, muito menos fim. Abre-se o texto e, inclusive, os sentidos de texto metamorfoseiam-se. Com relação, por exemplo, a texto literário, Carlos Ceia, precisamente no duplo verbete « Texto literário/Texto não literário », inscrito neste Dicionário Eletrônico de Termos Literários, apóia-se em Roland Barthes para circunscrever, na medida do possível, o que seja literariedade : « Quando um texto nos apresenta sinais, sugestões ou elementos que revelem o gozo (no sentido da lacaniana jouissance ) que o seu autor experimentou ao criá-lo, podemos introduzir um outro critério — ainda discutível — para a definição da literariedade de um texto e assim distingui-lo de um texto não literário. A criação de um texto literário é a mais erótica de todas as criações textuais. Mas será que um texto não literário não pode arrastar consigo sinais de gozo de quem o criou? Roland Barthes admitiu em ‘Theory of the Text’ (artigo inicialmente publicado em Encyclopaedia Universalis, 1973), que qualquer texto ‘textual’ conduz pela sua essência criativa à jouissance do autor, seja literário ou não, isto é, conduz necessariamente não só a um prazer de escrita como a própria escrita ou texto produzido é uma espécie de clímax sexual - um têxtase. Se reduzíssemos este princípio de textualidade e decidíssemos que qualquer tentativa de levar o erotismo criativo da escrita para além de certos limites significa entrar de imediato no limiar do literário, então teremos encontrado um critério de definição da literariedade. Do texto que seja resultado de um têxtase, diremos ser literário. Nem mesmo o princípio de têxtase pode ser sistematizado, em face da sua sujeição ao livre-arbítrio do leitor. O têxtase não se diz - escritura-se”. Retomando a etimologia e a denotação do significante “texto”, a semiologia barthesiana explora, prazerosamente, a conotação de trama, tessitura, trança: a estrutura textual desloca-se, mobiliza-se, metamorfoseia-se, recriando, na rede textual, avatares.

No livro, significativamente intitulado O prazer do texto (prazer de quem escreve, prazer de quem lê), Barthes compõe uma lexia, esplêndida entre tantas: “Parece que os eruditos árabes, empregam esta expressão admirável: o corpo certo. Que corpo? Temos muitos: o corpo dos anatomistas e dos fisiologistas; aquele que a ciência vê ou de que fala: é o texto dos gramáticos, dos críticos, dos comentadores, dos filólogos (é o fenotexto). Mas nós temos também um corpo de fruição feito unicamente de relações eróticas, sem qualquer relação com o primeiro: é um outro corte, uma outra nomeação; do mesmo modo o texto: ele não é senão a lista aberta dos fogos da linguagem (esses fogos vivos, essas luzes intermitentes, esses traços vagabundos dispostos no texto como sementes e que substituem vantajosamente para nós as ‘semina aeternitatis”, os ‘zopyra’, as noções comuns, as assunções fundamentais da antiga filosofia). O texto tem uma forma humana, é uma figura, um anagrama do corpo? Sim, mas de nosso corpo erótico. O prazer do texto seria irredutível a seu funcionamento gramatical (fenotextual), como o prazer do corpo é irredutível à necessidade fisiológica. O prazer do texto é esse momento em que meu corpo vai seguir suas próprias idéias – pois meu corpo não tem as mesmas idéias que eu” (1996, p. 25-26).

Meditando essa fulgurante lexia (que não se pode, absolutamente, sob pena de sacrilégio e crime de lesa majestade estética, recortar, tampouco parafrasear) como não pensar em Susan Sontag (1933-2004), a excelente pensadora nova-iorquina, amorosa leitora de Barthes, que propõe, na geléia geral das interpretações, contra-interpretações, super-interpretações, uma “erótica da interpretação”?

Mas Barthes não se arroga como um dândi inconseqüente ou um esteta apenas, dado que fundamenta seu pensamento contundente, vazado na retórica da écriture artiste, como, por exemplo, em sua Aula, inauguradora, em 7 de janeiro de 1977, da cadeira de semiologia literária no Collège de France, onde enuncia, discreta, porém solenemente: “Se a semiologia de que falo voltou então ao Texto (note-se: Texto, sempre com maiúscula, observo eu, leitor atento aos arabescos textuais) é que, nesse concerto de pequenas dominações, o Texto lhe apareceu como o próprio índice do despoder. O Texto contém nele a força de fugir infinitamente da palavra gregária (aquela que se agrega) (...)” (s.d., p. 35).

Tratando da questão da ideologia do texto e, mais particularmente, da ideologia literária, distinta da ideologia histórico-política, Carlos Ceia, no fulcral livro A Literatura Ensina-se? Estudos de Teoria Literária, postula que “o que distingue ainda a ideologia literária de todas as outras ideologias é que, servindo-se de situações histórico-políticas, pode aplicar-se e ficar a pertencer a qualquer outro momento histórico” (p. 112); e continua: “A prática da textualidade há-de privilegiar não só o texto como toda a realidade cultural sob a jurisdição do autor, se for caso disso” (p. 114). Nosso Autor pode, então, concluir: “É a esta ‘ideologia do texto’, cujo nascimento decorre ao mesmo tempo da produção do texto, que eu chamo ideologia literária” (p. 115).

Como exemplos de texto, quase concluindo-se en beauté, transcrevem-se, aqui e agora, dois belíssimos poemas; o primeiro, do supremo árcade Bocage (Manuel Maria de Barbosa l'Hedois du Bocage: 1765- 1805), articula, em suas Rimas, de 1791, dois poetas fundamentais da Literatura Universal:

Camões, grande Camões, quão semelhante
Acho teu fado ao meu, quando os cotejo!
Igual causa nos fez, perdendo o Tejo,
Arrostar co'o sacrílego gigante;

Como tu, junto ao Ganges sussurrante,
Da penúria cruel no horror me vejo;
Como tu, gostos vãos, que em vão desejo,
Também carpindo estou, saudoso amante.

Ludíbrio, como tu, da Sorte dura
Meu fim demando ao Céu, pela certeza
De que só terei paz na sepultura.

Modelo meu tu és, mas... oh, tristeza!...
Se te imito nos transes da Ventura,
Não te imito nos dons da Natureza.

Já o segundo poema é do contemporâneo curitibano Paulo Leminski (1944-1989), mulato brasileiro de origem polaca, que exara um manifesto poético, onde o texto da poesia entra em tensão e harmoniza-se, ao mesmo tempo, com o texto da vida:

Uma poesia ártica,
claro, é isso que eu desejo.
Uma prática pálida,
três versos de gelo.
Uma frase-superfície
onde vida-frase alguma
não seja mais possível.
Frase, não, Nenhuma.
Uma lira nula,
reduzida ao puro mínimo,
um piscar do espírito,
a única coisa única.
Mas falo.
E, ao falar, provoco
nuvens de equívocos
(ou enxame de monólogos?)
Sim, inverno, estamos vivos.

Trata-se, sempre, de possíveis do texto, de formas do texto, de performances do texto, em que autor e leitor configuram-se, ao fim e ao cabo, como estratégias textuais no “infinito da linguagem”.

BIB. BARTHES, Roland. S/Z. Trad. Léa Novaes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992. BARTHES, Roland. O prazer do texto. 4.ed. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Elos, 1996. BARTHES, Roland. Aula. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, s.d. BARTHES, Roland. Inéditos, I: teoria. Trad. Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2004. CEIA, Carlos. A Literatura Ensina-se? Estudos de Teoria Literária. Lisboa: Colibri, 1999. CHARAUDEAU, Patrick e MAINGUENEAU, Dominique. Dictionnaire d’analyse du discours. Paris: Seuil, 2002. ECO, Umberto. Conceito de texto. Trad. Carla de Querioz. São Paulo: EDUSP, 1984. GREIMAS, A.J. e COURTÉS, J. Dicionário de semiótica. Trad. de Alceu Dias Lima et alii. São Paulo: Cultrix, s.d. RICOEUR, Paul. Du texte à l’action. Paris: Seuil: 1986. SEGRE, Cesare. Texto. In: Enciclopédia Einaudi. Trad. Joana de Abreu Monteiro Quintino. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1989, v. 17, p. 152-175.

APÓCRIFO. AUTÓGRAFO. CONTEÚDO. CONTEXTO. CRÍTICA TEXTUAL. DISCURSO. ENUNCIADO. ENUNCIAÇÃO. FILOLOGIA. FORMA. HIPERTEXTO. IDEOLOGIA. LINGUAGEM. LITERARIEDADE. LITERATURA. PARÁFRASE. SUBTEXTO. TEXTO LITERÁRIO/TEXTO NÃO LITERÁRIO; TEXTUALIDADE



Latuf Isaias Mucci

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