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CÍRCULO HERMENÊUTICO

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Expressão que aparece frequentemente na discussão hermenêutica actual, quer no âmbito filosófico quer no âmbito teológico. Refere a lógica interna da comprensão hermenêutica, isto é, a regra segundo a qual é necessário compreender o todo de um texto a partir das suas partes e estas a partir do todo.De acordo com H.-G.Gadamer, esta é uma regra cuja origem remonta à antiga retórica e que penetrou na hermenêutica moderna através da problemática protestante das condições de legibilidade e inteligibilidade do texto bíblico.A esta ideia de círculo hermenêutico subjaz, de facto, a apropriação hermenêutica moderna da retórica clássica e com ela um pressuposto que devemos caracterizar do seguinte modo: compreender um texto é, antes de mais nada, poder-ser por ele interpelado, de tal modo que uma antecipação de sentido conduz sempre a nossa comprensão.Interpretar não é partir de um grau zero mas, pelo contrário, de uma pré-comprensão que envolve a nossa própria relação com o todo do texto, embora apenas se torne compreensão explícita quando, por sua vez, as partes que se definem a partir do todo, definem este mesmo todo.

O processo de compreensão distingue-se de outros processos intelectivos, nomeadamente do explicativo, porque parte de um efeito da palavra ( narração), procede segundo um movimento circular, aquele que vai da pré-compreensão do todo à compreensão das partes e da compreensão destas até ao sentido do todo .A compreensão hermenêutica alcança a sua justeza quando o seu primeiro critério é a concordância de todos os detalhes com o todo e isto significa que a falta de congruência acarreta necessariamente o fracasso da compreensão.

Devolver ao texto o acento justo sempre foi a missão da hermenêutica que nunca pretendeu confundir a sua tarefa com a de uma pura detecção lógico-técnica do sentido, prescindindo de toda a verdade do dito. Daí todo o seu esforço em alargar, segundo o modelo de círculos concêntricos, a unidade do sentido comprendido, num vaivém contínuo do todo à parte e da parte ao todo, isto é, rectificando sempre que é necessário a expectativa com que começa. O círculo hermenêutico distingue-se, assim, pela sua origem retórica do círculo vicioso em sentido lógico.

Esta ideia de círculo aparece, pela primeira vez, no contexto filosófico da hermenêutica com F. Schleiermacher( 1769-1834), que o recebe de F. Ast, e ao qual dá uma orientação subjectivista que vai marcar a própria hermenêutica de W. Dilthey. Schleiermacher, pensador romântico e fundador da hermenêutica filosófica, introduz algo de novo no âmbito da tradição hermenêutica - uma ruptura histórica de âmbito universal - já que ao contrário da primeira fase, não filosófica, da hermenêutica (cf. hermenêutica) não admite a recepção da tradição como base sólida de toda a necessidade de interpretação. O fio condutor desta será doravante um outro: o pensamento singular de quem se exprime através de uma língua comum. Neste novo contexto, marcadamente romântico, o círculo da parte e do todo adquire toda uma dupla vertente: subjectiva e objectiva. Sendo o texto o resultado da apropriação de uma língua comum e da expressão de um pensamento singular, cada palavra pertence, é claro, ao conjunto da frase, cada texto ao conjunto da obra do respectivo escritor e esta, por sua vez, ao conjunto do género literário ou da literatura correspondente.Mas, por outro lado, enquanto manifestação de um momento criativo, o texto pertence ao conjunto da vida anímica do autor. Só esta totalidade psíquica permite realizar plenamente a compreensão.

Neste mesmo sentido, Dilthey falará de “estrutura” e de “convergência segundo um ponto central” no qual a compreensão do todo encontra o seu real fundamento.Institui-se, assim, a ideia da reconstrução da intenção mental como verdadeiro critério hermenêutico.

Será com M.Heidegger que a problemática hermenêutica do círculo da compreensão adquirirá todo um novo e importante significado, aquele que ainda hoje lhe damos.

Em Ser e Tempo, o autor retoma a temática do círculo hermenêutico reconhecendo expressamente nela não só a lei fundamental da comprensão hermenêutica como a estrutura básica de toda a possibilidade humana de intelecção. Quer isto dizer que, enquanto a teoria hermenêutica do séc. XIX detectava no círculo a estrutura da compreensão histórica e literária, concebendo-a sempre no quadro da relação formal entre a parte e o todo do texto e o seu reflexo subjectivo (a antecipação intuitiva do todo a que se segue a explicitação do detalhe), para Heidegger a estrutura circular da compreensão hermenêutica não pode, de maneira nenhuma, desembocar num acto puramente psicológico ou adivinhatório, que permita um acesso directo ao autor e a partir do qual se atinja uma plena compreensão dos textos. Pelo contrário, o que agora acontece é o seguinte: toda a compreensão humana está determinada, de um modo permanente, pelo movimento de antecipação próprio do ser marcado por uma pré-compreensão.O círculo hermenêutico corresponde à estrutura existencial do existir humano no mundo,que é um ser simultaneamente encarnado, finito e inteligente, isto é, sempre já marcado por uma relação ao sentido.

Para Heidegger, e aqui reside a sua novidade, o círculo não descreve apenas a estrutura metodológica da compreensão hermenêutica, mas, pelo contrário, a própria natureza da inteligibilidade humana, isto é, o que sempre acontece quando o homem - já não sujeito omnipotente mas ser finito e histórico - compreende. E o que é que isto significa? Significa o seguinte: porque a existência humana é inteligente, uma compreensão originária acompanha-a sempre em toda e qualquer compreensão particular que realize.É esta a sua condição fáctica inultrapassável. E isto implica que uma tal compreensão - a estrutura ontológica básica do acto humano de ser - precede a própria dualidade metodológica clássica da compreensão dos textos e da explicação da natureza, sendo a própria condição de possibilidade de toda a interpretação.

Neste contexto, claramente não metodológico, aquele que quer compreender um texto antecipa sempre um esboço do conjunto, logo que lhe aparece um primeiro sentido no texto.A sua compreensão consiste no próprio aperfeiçoamento deste projecto prévio, sempre falível - porque finito - e sujeito a revisão por um ulterior aprofundamento do sentido.Interpretar é, assim, partir sempre de conceitos prévios que vão sendo substituídos por outros mais adequados. Heidegger sabe que, devido à sua finitude,quem tenta compreender expõe-se sempre ao erro das opiniões prévias que não se confirmam nas coisas. Logo, que a comprensão apenas se realiza verdadeiramente quando percebe que a sua primeira grande tarefa é proteger-se da arbitrariedade das opiniões particulares e dos hábitos de pensamento que passam despercebidos, em ordem a poder dirigir o olhar para as coisas mesmas. Uma consciência hermeneuticamente formada não pode entregar-se, de facto, desde o início, ao acaso das suas próprias opiniões prévias sobre o assunto.Deve, pelo contrário, estar disposta a que o texto lhe diga algo de novo. Mas esta alteridade só pode surgir quando ela própria põe em causa os pressupostos do intérprete, fazendo-os entrar em jogo. São, de facto, os pressupostos não percebidos aqueles que nos tornam surdos à novidade do texto.

Desenvolvendo esta nova caracterização ontológica do sentido do círculo hermenêutico, H.-G. Gadamer, discípulo de Heidegger e autor da conhecida obra Verdade e Método, vai ainda mais longe e caracteriza a pressuposição de sentido que acompanha toda a compreensão como “antecipação da perfeição”. É que, segundo o autor, o homem só compreende o que constitui uma unidade acabada de sentido. Partimos deste pressuposto da perfeição sempre que lemos um texto .De outro modo nem sequer o líamos. E só quando este pressuposto acaba por não se sustentar no decurso da leitura, quando o texto não é compreensível, é que o criticamos, duvidando da sua transmissão e procurando refazer o sentido do texto.

Para o autor, isto significa fundamentalmente que o processo de compreensão não se reduz a uma misteriosa comunhão de almas mas, pelo contrário, é participação num sentido comunitário (o que hoje ainda me interpela ), que o próprio presente ajuda a reconfigurar de um modo novo, segundo um processo histórico de contínua formação. A antecipação da perfeição, que guia a nossa compreensão, não é também neste caso apenas uma expectativa formal - que pressuponha ser inerente ao texto uma unidade de sentido, que orienta a compreensão do leitor - mas está fundamentalmente determinada por expectativas de contéudo. Pressupõe-se, antes de mais o seguinte: o texto fala verdade, pode dizer-nos algo de válido, entende mais do assunto que nos levou à leitura,do que nós prórios. O que significa, em última análise, que só quem tem uma pré- compreensão do assunto tratado no texto efectua,de facto, a sua leitura. Só quem confia no valor dos textos, porque tem expectativas marcadas pela abertura à alteridade (e não apenas pela imanência estreita da sua perspectiva singular), pode ser interpelado pela palavra e interpretar.A pré-compreensão, que deriva do ter que ver com o assunto abordado pelo texto, é assim a primeira de todas as condições hermenêuticas.



HERMENÊUTICA

Bib.: H.-G. GADAMER, Gesammelte Werke I. Hermeneutik I . Wahrheit und Methode_I. Grundzuege einer philosophischen Hermeneutik.Tuebingen, Mohr,1986; H-G..GADAMER, Gesammelte Werke 2. Hermeneutik II. Wahrheit und Methode- 2. Ergaenzungen. Register. Tuebingen,Mohr, 1986; M. HEIDEGGER, Sein und Zeit, Tuebingen, Max Niemeyer Verlag, 1979.
M. Luísa Portecarrero F. da Silva

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