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O maneirismo renascentista

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Movimento estético europeu, que marca, a par do renascimento, um afastamento consciente dos modelos clássicos, e que decorre entre a segunda metade do século XVI e a primeira metade do século XVII, nascido primeiro em Florença e Roma e depois estendido a outros países europeus. O maneirismo (do italiano maniera, a maneira ou estilo de um artista) traduzia a marca estética de um artista. A maniera de pintar de Miguel Ângelo, Leonardo da Vinci e Rafael tornara-se um paradigma para toda a pintura europeia. O termo também servia para designar um estilo de época e não apenas uma estética individual, como na expressão maniera greca. "O Juízo Final", fresco executado por Miguel Ângelo para a parede da Capela Sistina (1534-41), representou uma das primeiras pinturas no espírito da Contra-Reforma e anunciava já uma espiritualidade que fugia ao cânone clássico renascentista. Exigia-se agora renovar essa forma de pintar, imitando a maniera dos mestres anteriores, o que será tentado por génios como os italianos Carracci, Caravaggio e Tintoretto e o espanhol el Greco. É num momento de crise cultural que a Europa que a arte procura novas formas de expressão para além das convenções clássicas que o renascimento havia consagrado. A sensibilidade artística maneirista exigia uma maior liberdade de movimentos para que as tensões do espírito, as convições religiosas mais profundas e os sentimentos mais arrebatados pudessem também ser objecto de inspiração, num momento em que a Europa se encontrava dividida pelos efeitos da reforma luterana e em que o homem não mais se apresenta como a única grandeza a glorificar. O caminho escolhido foi o da estilização exagerada, ou uma forma de levar a maniera ao extremo da sua representação, abandonando as linhas harmoniosas impostas pelo estilo vigente, criando labirintos, espirais e proporções inesperadas. O regresso aos ângulos e aos alogamentos das figuras que distinguiram o estilo gótico é outra das marcas do maneirismo, como observou Georg Weise, que recusa a tradicional acepção de uma única tendência para o exagero das formas e afectação dos temas. A arquitectura privilegia agora a construção de igrejas amplas, de plano longitudinal, e descobrindo novas formas de distribuição da luz e da decoração. Na escultura, o maneirismo parte da maniera de Miguel Ângelo, para lhe acrescentar um novo conceito intelectual da arte pela arte e para permitir o distanciamento da realidade observada. O exagero no detalhes das composições maneiristas já anuncia aquilo que será a estética barroca, que se afirmará por volta de 1600, e remetendo o maneirismo à condição de estética decadente, cuja notoriedade só o século XX vai redescobrir.

Os estudiosos do maneirismo dividem-se entre os que o consideram um movimento de transição entre o renascimento e o barroco e os que preferem defini-lo como um movimento autónomo, com regras próprias. Na literatura, é evidente que o Camões das Rimas trabalha um estilo diferente, marcado pela conceptualização, pela afectação das ideias e pelo fingimento poético. Sonetos bem conhecidos como Amor é fogo que arde sem se ver ilustram bem a estética maneirista, muito estigmatizada pelos desgostos de amor, pela desilusão da vida, pelos infortúnios pessoais e por constantes sofrimentos íntimos que parecem ser a única fonte de inspiração dos poetas. O poeta maneirista é um vencido da vida. Perdeu a esperança no futuro e no progresso e só se compraz na dor do amor nunca realizado. Esta nota pessimista que se lê em muitos poemas não é explicável fora do contexto político, religioso e social que se vivia na Europa após a Contra-Reforma.

Os estudos literários só vão prestar atenção ao maneirismo a partir do estudo fundamental de Ernst Robert Curtius (Literatura Europeia e Idade Média Latina, Bern, 1948; Rio de Janeiro, 1957), que o considera não um período estático da história literária mas antes uma espécie de paradigma documentável ao longo dos tempos: “O que é toda a obra de James Joyce senão uma gigantesca experiência maneirística? O trocadilho (pun) é um dos seus pilares de sustentação. Quanto maneirismo há em Mallarmé, e quão de perto o maneirismo toca o hermetismo da poesia contemporânea!” (Literatura Europeia e Idade Média Latina, trad. de Paulo Rónai e Teodoro Cabral, EDUSP, São Paulo, 1996, p. 374). A tese maneirista de Curtius é tão abrangente como a tese de Eugenio d’Ors para o barroco: não falamos de períodos literários definidos com exactidão na linha do tempo, mas falamos de paradigmas intemporais que se podem manifestar em qualquer artista de qualquer época. Estas teses valeram aos seus autores severas críticas, porque intepretam as estéticas literárias como a pura soma de estilos ou linguagens que se repetem como um padrão em autores de épocas distintas. Aguiar e Silva, no seu estudo doutoral sobre o maneirismo na lírica portuguesa, observa que “a caracterização do maneirismo estabelecida por Curtius apresenta outro grave erro metodológico no estudo de um estilo ou de um período literários: restringe-se a factos de estilo, considerados em abstracto, sem os relacionar com valores humanos de qualquer espécie (religiosos, éticos, existenciais).” (Maneirismo e Barroco na Poesia Lírica Portuguesa, Centro de Estudos Românicos, Coimbra, 1971, p.11). O trabalho de Aguiar e Silva para recuperar o lugar devido do maneirismo, tanto dentro da teorização literária como na história literária portuguesa, foi já uma resposta positiva a um desafio antes tentado por Jorge de Sena no princípio da década de 1960, quando reclamou um lugar próprio para o maneirismo, cujos intérpretes, na literatura portuguesa seriam: “primacialmente Camões, o Soropita que foi o primeiro a editar-lhe as "rimas," Vasco Mousinho de Quevedo, Manuel da Veiga Tagarro, Balta­zar Estaco, Francisco de Andrade, Jerónimo Corte Real, Luís Pereira Brandão, Fernão Álvares do Oriente, Pêro da Costa Perestrelo, Eloi de Sá Soto Maior, Diogo Bemardes, André Falcão de Rezende, Fr. Bernardo de Brito, Rodrigues Lobo, Fr. Agostinho da Cruz. E D. Francisco Manuel de Melo, amigo de Quevedo, será, em pleno barroquismo de que é alto expoente, o último dos maneiristas também.” (“Maneirismo e barroquismo na poesia portuguesa dos séculos XVI e XVII”, Luso-Brazilian Review, vol. 2, nº 2, 1965, p.41).



RENASCIMENTO

Bib.: Arnold Hauser: Maneirismo: A Crise da Renascença e a Origem da Arte Moderna (São Paulo, 1976); Eugenio Battisti: Renascimento e Maneirismo (Lisboa, 1984); Helmut Anthony Hatzfeld: Estudos sobre o Barroco (São Paulo, 1988); Georg Weise: Il manierismo. Bilancio critico del problema stilistico e culturale (1971); José Eduardo Horta Correia: Renascimento, Maneirismo e Estilo Chão (1991); Jorge Henrique Pais da Silva: Estudos sobre o Maneirismo (3ª ed., 1996); Manierismo e letteratura: atti del Congresso Internazionale: Torino, 12-15 Ottobre 1983 / a cura di Daniela Dalla Valle (1986); Rita Marnoto: O Petrarquismo Português do Renascimento e do Maneirismo (1997); Vítor M. Aguiar e Silva: Maneirismo e Barroco na Poesia Lírica Portuguesa (1971); Vítor Serrão: O Maneirismo e o Estatuto Social dos Pintores Portugueses (1985); Id.: Estudos de Pintura Maneirista e Barroca (1989).

Carlos Ceia

O formalismo russo e suas contribuições para a moderna crítica literária

terça-feira, 29 de setembro de 2009

A segunda década do século XIX mostrava grandes transformações socioculturais ao mundo. A Primeira Guerra Mundial [1] alterava de maneira drástica as relações políticas entre diversas nações, bem como todo o panorama cultural do globo; o rádio ampliava as comunicações humanas; os automóveis se expandiam; no campo das artes, alastravam- se movimentos de vanguarda, como o cubismo [2] , dadaísmo e o jazz; Charles Chaplin encantava o mundo com seus filmes, assim como o faziam outras produções do cinema mudo; Albert Einstein tecia valiosas contribuições à ciência; e a Rússia vivia um período de profundas mudanças em decorrência de sua grande Revolução Russa [3], que também afetava as produções artísticas, efervescentes nesse período da história do país. Foi nesse contexto que surgiu uma das mais importantes correntes críticas da literatura, o Formalismo Russo, que daria o pontapé inicial para os estudos modernos no campo das Letras.

Tzvetan Todorov, importante estudioso e divulgador das ideias dos formalistas, assim como Roman Jakobson, um de seus mais célebres membros, alegam que o nome dado ao grupo advém de uma falácia, já que era utilizado por seus detratores de forma pejorativa. Apesar de rejeitado, o termo acabou se consagrando.

Empiristas e positivistas [4] ignoravam premissas filosóficas ou metodológicas e, portanto, toda conclusão abstrata. Por se tratar de um grupo de críticos militantes, rejeitavam as doutrinas simbolistas quase místicas que haviam influenciado a crítica literária e, munidos de grande vontade prática e científica, focaram a atenção para os aspectos intrínsecos do texto literário. Desejavam chegar a uma ciência da Literatura, que tivesse por objeto não a Literatura, mas a literariedade do texto, ou seja, aquilo que lhe confere caráter literário. Dentre os seus membros, destacavamse Mikhail Bakhtin, Vladimir Propp, Viktor Chklovski, Óssip Brik, Yuri Tynianov, Boris Eikhenbaum e Boris Tomachevski, além do já citado Jakobson.

Alguns proeminentes alunos da Universidade de Moscou fundaram o Círculo Linguístico de Moscou, no inverno de 1914, com o objetivo de realizar estudos nos campos da poética e da linguística. Tais estudos foram inovadores desde o início por estabelecerem análises paralelas entre a literatura e a linguística, preocupação que seria dominante nos trabalhos realizados pelo grupo. O termo função poéticafoi cunhado nesta época, instituindo importantes considerações a respeito da linguagem literária.

O Círculo Linguístico de Moscou tinha entre seus membros importantes poetas, como Maiakovski, Pasternak, Mandelstam e Assiéiev. Tal aliança não se deu ao acaso, mas pelas intenções semelhantes dos formalistas e dos poetas vanguardistas, que estavam cansados da velha estética e buscavam novas formas em meio às profundas alterações da revolução. A poesia pretendia seguir por novos rumos estéticos enquanto a crítica já não se importava mais com a dicotomia existente entre os gêneros clássico e romântico, considerando tais preocupações ultrapassadas.

A primeira publicação do grupo, A Ressurreição da Palavra (1914), de Viktor Chklovski, foi seguida da coletânea Poética (1916), de Óssip Brik, que tencionava divulgar os primeiros trabalhos do grupo. Em 1917 surgiu, em São Petersburgo, a OPOJAZ (Sociedade para os Estudos da Linguagem Poética), da qual eram membros os dois autores supracitados.

A natureza autônoma da linguagem poética

O Formalismo Russo, pela sua diversidade de pensamentos e análises, não produziu uma doutrina unificada que servisse como padrão para todos os seus estudos, como atesta Eikhenbaum na mesma brochura citada: "Realmente, não falamos, nem discutimos sobre nenhuma metodologia. Falamos e podemos falar unicamente de alguns princípios teóricos que nos foram sugeridos pelo estudo de uma matéria concreta e de suas particularidades específicas, e não por este ou aquele sistema completo, metodológico ou estético."

Desde seus primeiros estudos, o Formalismo Russo caracterizou-se pela recusa de abordagens extrínsecas ao texto. Psicologia, sociologia, filosofia etc., que serviam de base para muitos estudos literários realizados até então, não poderiam constituir o escopo de análise da obra literária, que deveria ser efetuada por meio dos constituintes estéticos sem relevar aspectos externos. Em uma importante coletânea de textos traduzida para o português como Teoria da Literatura: Formalistas Russos (Globo, 1976), Boris Eikhenbaum descreve de forma sucinta a premissa do grupo do qual fazia parte: "O que nos caracteriza não é o formalismo enquanto teoria estética, nem uma metodologia representando um sistema científico definido, mas o desejo de criar uma ciência literária autônoma a partir das qualidades intrínsecas do material literário."

As opiniões dos formalistas entraram em conflito com os teóricos de inspiração marxista, pois estes consideravam que a nova poética não deveria ignorar as realidades sociais e sua relação com as manifestações artísticas. Os formalistas consideravam que a obra literária não era um mero veículo de ideias, tampouco uma reflexão sobre a realidade social: era um fato material plausível de análise. Era formada por palavras, não por objetos ou sentimentos, e seria um erro considerá-la como a expressão do pensamento de um autor.

Os formalistas tencionavam criar uma ciência da literatura, que deveria afastar-se de quaisquer aspectos extraliterários, e para que isso fosse possível, a literatura deveria ser estudada por si só, daí a necessidade de conceitualização da literariedade, que daria o respaldo necessário para aquilo que se almejava: o estudo da natureza autônoma da linguagem poética e sua especificidade como um objeto de estudo da crítica literária.

"A linguagem está
sempre inserida em um
diálogo constante com
a vida social e cultural;
dessa forma ela se torna
viva, múltipla, porque
marcada pelas vozes
presentes nas interações
sociais."

Mikhail Bakhtin,
linguista russo

A literariedade

"Embora (Roman)
Jakobson nem tenha
teorizado diretamente
sobre os problemas
da textualidade, para
esse tema contribui sua
concepção de poética
sincrônica que, no Brasil,
foi estudada por Haroldo
de Campos."

Irene Machado,
semióloga

Roman Jakobson cunhou uma das mais importantes considerações da postura formalista, que acabou se tornando quase um manifesto do movimento:

"A poesia é linguagem em sua função estética. Deste modo, o objeto do estudo literário não é a literatura, mas a literariedade, isto é, aquilo que torna determinada obra uma obra literária. E no entanto, até hoje, os historiadores da literatura, o mais das vezes, assemelhavam- se à polícia que, desejando prender determinada pessoa, tivesse apanhado, por via das dúvidas, tudo e todos que estivessem num apartamento, e também os que passassem casualmente na rua naquele instante. Tudo servia para os historiadores da literatura: os costumes, a psicologia, a política, a filosofia. Em lugar de um estudo da literatura, criava-se um conglomerado de disciplinas mal-acabadas. Parecia-se esquecer que estes elementos pertencem às ciências correspondentes: História da Filosofia, História da Cultura, Psicologia, etc., e que estas últimas podiam, naturalmente, utilizar também os monumentos literários como documentos defeituosos e de segunda ordem. Se o estudo da literatura quer tornarse uma ciência, ele deve reconhecer o ‘processo’ como seu único ‘herói’."

Acerca da literariedade proposta por Jakobson, Eikhenbaum tece algumas considerações: "Estabelecíamos e estabelecemos ainda como afirmação fundamental que o objeto da ciência literária deve ser o estudo das particularidades específicas dos objetos literários, distinguindo-os de qualquer outra matéria, e isto independentemente do fato de que, por seus traços secundários, esta matéria pode dar pretexto e direito de utilizá-las em outras ciências como objeto auxiliar."

Viktor Chklovski diz que a língua poética difere da língua prosaica pelo caráter perceptível de sua construção. Jakobson afirma que se a intenção da comunicação detém um objetivo puramente prático, ela faz uso do sistema da língua cotidiana (do pensamento verbal), na qual as formas linguísticas (os sons, os elementos morfológicos etc.) não têm valor autônomo e não são mais que um meio de comunicação.

Narratologia

Vladimir Propp foi um dos fundadores da Teoria da Narrativa, ou Narratologia, ao analisar os componentes básicos do enredo dos contos populares russos visando a identificar os seus elementos narrativos mais simples e indivisíveis. Seus estudos são um ótimo exemplo de análise probabilística aplicada à literatura, configurando o caráter puramente científico que os formalistas pretendiam atribuir aos seus estudos. Propp encarava os contos como algoritmos combinatórios, em que os nomes e os atributos dos personagens constituem valores permutatórios, enquanto suas ações ou funções permanecem constantes, ou seja, nos tais contos, as mesmas histórias eram repetidas, alterando-se apenas os personagens.

Em 1928, Propp publicou o livro A Morfologia dos Contos de Fadas, no qual estabelecia os elementos narrativos básicos que ele havia identificado nos contos folclóricos russos. Basicamente, Propp identificou sete classes de personagens ("agentes"), seis estágios de evolução da narrativa e 31 funções narrativas das situações dramáticas. A linha narrativa que ele traça, ainda que flexível, é fundamentalmente uma só para todos os contos.

Legado

Além dos já citados autores que permearam sobre os estudos da Teoria da Narrativa, o Formalismo Russo influenciou muitos estudiosos e deixou um enorme legado aos estudos literários e linguísticos. Entre seus sucessores está a Escola de Praga, ou Círculo Linguístico de Praga, fundado em 1926 por Roman Jakobson, que se mudou para a Tchecoslováquia após a dissolução do Círculo de Moscou, acusado de ser burguês e reacionário pelo novo regime comunista. O grupo adotava uma perspectiva semiótica geral para o estudo científico da literatura e, em outro campo, a fonologia viria a tornar-se sua base paradigmática num diferente número de formas.

Também fortemente influenciado pelo Formalismo Russo, o Estruturalismo, surgido na França, alcançou grande repercussão no fim da década de 1960 graças aos escritos de Roland Barthes[5] . A crítica estruturalista distinguia-se por analisar as obras literárias por meio da Semiótica, ou ciência dos signos.

Os conceitos de Mikhail Bakhtin a respeito de dialogismo, polifonia (linguística), heteroglossia e carnavalesco, bem como os conceitos de análise estrutural da linguagem, poesia e arte realizados por Roman Jakobson, foram de extrema importância para os estudos modernos nos campos da Linguística e da Teoria da Literatura, influenciando um sem-número de autores.

Notas:

[1] Primeira Guerra Mundial
Foi o primeiro grande conflito internacional (1914-1918). A guerra envolveu os países da Tríplice Entente (Grã- Bretanha, França e Rússia, até 1917) e EUA contra a Tríplice Aliança (Alemanha, Império Áustro-Hungaro e Império Turco-Otomano). Como resultado, aconteceram mudanças geopolíticas na Europa e no Oriente Médio.

[2] Cubismo
Movimento artístico nascido no início do século XX. Seus principais expoentes foram Pablo Picasso e Georges Braque. Caracteriza-se por tratar as formas da natureza por meio de figuras geométricas, com a representação de todas as partes de um determinado objeto em um mesmo plano, sem compromisso com a sua aparência real.

[3] Revolução Russa
A Revolução Russa (1917) foi um dos grandes acontecimentos políticos do século XX. Ela culminou com uma série de eventos que marcaram o fim do czarismo absolutista e a implantação do socialismo no país, posteriormente sob o controle de um partido único, o bolchevique. No processo revolucionário, foi criada a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Seus grandes líderes foram Lênin, Trotsky e Stalin.

[4]Positivistas
O positivismo, doutrina filosófica e política, foi um dos desenvolvimentos sociológicos do Iluminismo. Seu criador foi o francês Auguste Comte (1798-1857), que pregava a busca da explicação pelas coisas mais práticas na vida do ser humano, como no caso das leis, relações sociais e a ética, confinando-se ao estudo das relações existentes entre fatos que sejam acessíveis à observação.

"A Lingüística é a
parte do conhecimento
mais fortemente
debatida no mundo
acadêmico. Ela está
encharcada com o sangue
de poetas, teólogos,
filósofos, filólogos,
psicólogos, biólogos e
neurologistas além de,
não importa o quão
pouco, qualquer sangue
possível de ser extraído de
gramáticos?" Russ Rymer, jornalista
americano

[5] Roland Barthes
O francês Roland Barthes (1915-1980) é considerado um dos maiores e mais importantes críticos literários do Ocidente. Para ele, a unidade do texto não se encontra na sua origem, mas em sua destinação. Umas de suas principais obras é "Elementos da Semiologia", escrita em 1964.

Leonardo Passos é professor de Literatura e Redação. leonardopassos@bol.com.br

Fonte: Revista Língua - http://revistalingua.uol.com.br/

O fenômeno da alteridade

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Facto ou estado de ser Outro; diferição do sujeito em relação a um outro. Opõe-se a identidade, mundo interior e subjectividade. Este tema aparece com alguma insistência nos mais recentes estudos pós-coloniais, feministas, desconstrucionistas e psicanalíticos, e é também tratado no dialogismo de Bakhtin. A questão da alteridade (ing. otherness; fr. alterité; al. Anderssein) corre o risco de se tornar simplisticamente universal, no caso de considerarmos o Outro como uma categoria omnipresente, porque tudo está em oposição em relação a alguma coisa ou a alguém. É necessário delimitar a aplicação do conceito e, de preferência, pelo menos no que toca à literatura, considerá-lo apenas nas relações poéticas, dramáticas e nais que se abrem nos textos literários.

Entre 1918 e 1924, Bahktin escreve diversos ensaios cuja tema central é a relação entre o eu e os outros. O eu só existe em diálogo com os outros, sem os quais não se poderá definir. O processo de autocompreensão só se pode realizar através da alteridade, isto é, pela aceitação e percepção dos valores do Outro. O autor literário segue esta dialéctica: é uma entidade dinâmica que estabelece relações com todas as entidades textuais. Outros pensadores do século XX vão prosseguir o inquérito complexo da alteridade: Heidegger, Sartre, Lacan e Derrida.

Na sua concretização literária, consideremos a questão da alteridade segundo dois vectores fundamentais (entre outros possíveis, se pensarmos que a questão é inesgotável): 1) O Outro como Deus; 2) O eu como Outro.



1) Lacan introduz a escritura do Outro em oposição ao outro, que é simétrico do eu imaginário. O ensaio central de Lacan sobre a identificação do Outro com Deus é “Deus e o gozo d’ A mulher”, texto original que pertence ao Seminário XX de Lacan (1972-3), com o título Encore (“God and the Jouissance of The Women”, trad. inglesa de Jacqueline Rose: Feminine Sexuality: Jacques Lacan and the École Freudienne, editado por Juliet Mitchell e Jacqueline Rose, Macmillan, 1982, pp.137-148). O Outro não pode ser dito num sentido. Não há uma explicação gratuita que o defina de imediato. Ele é o grande Outro da linguagem, que está para a linguagem como o Dasein está para o ser: aí - estar/ser-aí, eis a natureza do Outro, que se interpõe como terceira entidade em toda a dialéctica ou diálogo. O Outro é, pois, aquele ser fantástico que se agita dentro de mim. É o Outro do desejo como inconsciente. Por isso o Outro é o verdadeiro dado inicial e não o sujeito. Concretizemos com o romance de Eça de Queirós, O Crime do Padre Amaro. O estado neurótico de Amaro define a sua angústia permanente perante a presença do Outro, que tanto pode referir-se à Mulher como a Deus. O Crime do Padre Amaro é não só um ensaio sobre o desejo, mas também um estudo sobre as possibilidades dialécticas do desejo enquanto pulsão sexual e enquanto pulsão mística (no sentido lacaniano). O Outro é também Deus, o Deus determinado desde sempre pela sexualidade masculina, mas é mais rigorosamente o lugar onde se realiza o sujeito que fala com aquele que é suposto ouvir (Deus). Quando ainda só suspeita que Amélia devia gostar dele, Amaro olha-se ao espelho e descobre não só o desejo do corpo da mulher, mas em igual medida significativo, descobre o seu próprio corpo, toda a dimensão do seu próprio corpo que até aí estava dividido pelo fantasma da castração: “E passeava pelo quarto com passadas de côvado, estendendo os braços, desejando a posse imediata do seu corpo [de Amélia]; sentia um orgulho prodigioso: ia defronte do espelho altear a arca do peito, como se o mundo fosse um pedestal expresso que só o sustentasse a ele!” (O Crime do Padre Amaro, Obras Completas de Eça de Queiroz, vol. 4, Círculo de Leitores, Lisboa, 1980, p.125).



2) Na Filosofia da Natureza, Hegel sustentou que a Ideia é considerada na sua alteridade (Anderssein), no tornar-se exterior a si própria no mundo natural. Esta concepção da Ideia alimenta a doutrina das Odes Modernas de Antero, profundamente racionalistas tal como expressamente se afirma no poema "Luz do Sol, Luz da Razão (Resposta à poesia de João de Deus 'Luz da Fé')" que termina com estes dois versos: “Por isso vos estimo... / Tu, sol, e tu, razão! (Odes Modernas, 3ªed., Ulmeiro, Lisboa, 1989, p.84). A percepção subjectiva do Outro, condição maior para a compreensão da alteridade, passa por este tipo de relação racional do sujeito com o Outro. Criada esta condição o homem está preparado para a consciência de si, essencial à compreensão do Outro como Deus. O ensaio A Bíblia da Humanidade de Michelet, escrito em 1865, tinha Antero 23 anos, tem afinidades com as teses de Feuerbach, a começar pelo princípio socrático de que dentro do homem existe um Deus desconhecido, repetido por variantes ao longo do ensaio. Sendo a principal tese de A Essência do Cristianismo, de Feuerbach, o princípio de que a religião não é mais do que "a consciência que o Homem tem de si mesmo considerando-se como outro", não podemos deixar de ver no postulado anteriano de que o homem é um Deus que se ignora a mesma redução de Deus à essência humana.



3) Não menos complexa é a tentativa de reduzir a alteridade a um princípio de identidade. Os poetas modernistas são hábeis neste tipo de jogo de destruição da barreira psicológica entre o eu e o Outro e muitos fizeram dessa relação o cerne da sua poesia. Está neste caso Mário de Sá-Carneiro, cujo entendimento da alteridade é investigado em «Eu-Próprio o Outro» (1913), novela do conjunto Céu em Fogo. O paroxismo do drama das relações entre o eu e o Outro pode-se ler a partir da doutrina dos eleatas, segundo a qual o mundo não passa de uma aparência vã: "Mas, coisa curiosa, até hoje nunca o vi chegar. Quando dou pela sua presença, já ele está em face de mim." A presença do Outro é sempre uma presença invisível. A única aspiração consiste na possibilidade de encontrar a unidade entre ambos, uma unidade parmenidiana capaz de desvelar o Ser uno e imutável. O problema da intersubjectividade parece pronto a resolver-se com a revelação do significado íntimo do sentimento do eu para com o Outro, que é um sentimento de ódio. De certa forma, "Eu-Próprio o Outro" prediz a «A Cena do Ódio» de Almada Negreiros. Em ambos os textos, o ódio é ódio a todos os outros num só, segundo uma regra que Sartre investigou no seu O Ser e o Nada. O que se procura atingir é o princípio geral de existência de outrem para reconquistar a liberdade ameaçada do eu, no fundo, para descobrir a sua ipseidade: “Em frente dele reconheço o que eu quisera ser: o que eu sou erradamente. Nele, não me sobejaria. (Mário de Sá-Carneiro, Prosa, vol.2, Círculo de Leitores, Lisboa, 1990, p.352). O Outro existe apenas para eu saber aquilo que não devo ser. Servir-me-á para corrigir o erro de ser-eu-deste-modo-errado. Como afirma Sartre, na sua teoria sobre a alteridade: "... o ódio é ódio a todos os outros num só. O que eu quero alcançar simbolicamente ao perseguir a morte de um tal outro, é o princípio geral da existência de outrem. O outro que odeio representa afinal os outros. E o meu projecto de o suprimir é projecto de suprimir outrem em geral, ou seja, de reconquistar a minha liberdade não-substancial de para-si.." (O Ser e o Nada, trad. de G. Cascais Franco, Círculo de Leitores, Lisboa, 1993, p.412).

Uma quadra de Mário de Sá-Carneiro encerra toda uma teoria de desconstrução da alteridade: “Eu não sou eu nem sou o outro, / Sou qualquer coisa de intermédio: / Pilar da ponte de tédio / Que vai de mim para o Outro.” (Poesias, Ática, Lisboa, [1991], p.94) Como no mito de Platão, o Poeta é esse homem obrigado a viver agrilhoado de costas para o mundo. Sá-Carneiro só antevê uma forma de triunfar perante as sombras do mundo dadas pela luz do sol: através do outro, ser para-si. A aporia fundamental do poema envolve uma só palavra: "pilar". O que é que significa o ser-entre, que é esse ser-qualquer-coisa-de-intermédio, ser o pilar da ponte entre Mim e o Outro? Pode haver algo entre o ser eu e o ser outro? O drama da intersubjectividade (e da alteridade) em Sá-Carneiro reside no facto do Poeta ter acreditado existir a possibilidade de uma relação sublime e positiva de um sujeito com outro sujeito, isto é, de um eu destroçado em busca de um outro eu restituído à sua harmonia por um qualquer demiourgos. Como Sartre, aceitamos existir apenas a relação sujeito-objecto, em que o meu olhar transforma o Outro em objecto ou então sou transformado em objecto pelo olhar do Outro.

DIALOGISMO; exotopia; IDENTIDADE; SUBJECTIVIDADE

Bib.: Carlos Ceia: De Punho Cerrado: Ensaios de Hermenêutica Dialéctica da Literatura Portuguesa Contemporânea (1997); Iris M. Zavala: “Bakhtin and Otherness: Social Heterogeneity”, Critical Studies, 2, 1-2 (1990); Michael Theunissen: The Other: Studies in the Social Ontology of Husserl, Heidegger, Sartre, and Buber (2ª ed., 1984); Steven Earnshaw: “Alterity: Martin Buber’s ‘I-Thou’ in Literature and the Arts”, in The Direction of Literary Theory (1996); Thomas Docherty: “Postmodern Characterization: The Ethics of Alterity”, in Edmund Smyth (ed.): Postmodernism and Contemporary Fiction (1991).

Carlos Ceia

Essa tal de DESCONSTRUÇÃO

sábado, 26 de setembro de 2009

Termo proposto pelo filósofo francês Jacques Derrida, nos anos sessenta, para um método ou processo de análise crítico-filosófica que tem como objectivo imediato a crítica da metafísica ocidental e da sua tendência para o logocentrismo, incluindo a crítica de certos conceitos (o significado e o significante; o sensível e o inteligível; a origem do ser; a presença do centro; o logos, etc.) que tal tradição havia imposto como estáveis. Do ponto de vista da análise textual, a desconstrução (termo que deve traduzir o original francês "déconstruction", evitando a tradução por "desconstrucionismo", porque não representa nenhuma proposta de escola de pensamento, movimento ou estética literária em particular e marcando-se assim a diferença com o movimento a que se chama desconstrutivismo na arquitectura contemporânea) tornou-se sinónima de leitura cerrada de um texto (literário, filosófico, psicanalítico, linguístico ou antropológico) de forma a revelar as suas incompatibilidades e ambiguidades retóricas, demonstrando que é o próprio texto que as assimila e dissimula. A desconstrução começa por ser uma crítica do estruturalismo, tornada pública numa célebre conferência de Derrida na Universidade de Johns Hopkins, nos Estados Unidos, em 1967, com o título “La structure, le signe et le jeu dans le discours des sciences humaines”. Se o estruturalismo pretendia construir um sistema lógico de relações que governaria todos os elementos de um texto, a desconstrução pretendia ser uma crítica do estruturalismo, que não passava apenas de um dos episódios da tradição metafísica ocidental que merecia ser revisto. Partindo do método especulativo de Nietzsche, da fenomenologia de Husserl e da ontologia de Heidegger, Derrida apresenta a tese inicialmente nas obras L´Écriture et la différence (1967) e De la gramatologie (1967), e tem rejeitado desde então qualquer definição estável ou dicionarizável para aquilo que se entende por desconstrução. A própria compreensão da desconstrução como método crítico ou modelo de análise textual nunca foi reconhecida por Derrida. A divulgação das ideias de Derrida nas Universidades de Johns Hopkins e de Yale, nos Estados Unidos, onde o filósofo francês conferenciou, contribuiu para o alargamento da discussão aos estudos literários, impondo-se internacionalmente como um método de análise textual, apesar das reservas de Derrida. A obra colectiva Deconstruction and Criticism (1979), que inclui ensaios programáticos de Jacques Derrida, J. Hillis Miller, Harold Bloom e Geoffrey Hartman, assegurou a obra de referência que faltava para tal divulgação internacional.

A desconstrução foi enquadrada no chamado pós-estruturalismo, primeiro movimento de auto-crítica e depois movimento de ruptura com o estruturalismo, e divulgou-se de forma mais insistente nos meios universitários norte-americanos, onde conheceu amplos debates nas décadas de setenta e oitenta, sobretudo.

Desconstruir um texto é fazer com que as suas palavras-charneira subvertam as próprias suposições desse texto, reconstituindo os movimentos paradoxais dentro da sua própria linguagem. Derrida fez repensar a forma como a linguagem opera. Desconjuntando os valores de verdade, significado inequívoco e presença, a desconstrução aponta para a possibilidade de escrever não mais como representação de qualquer coisa, mas como a infinitude do seu próprio “jogo”. Desconstruir um texto não é procurar o seu sentido, mas seguir os trilhos em que a escrita ao mesmo tempo se estabelece e transgride os seus próprios termos, produzindo então um desvio [dérive] assemântico de différance. Todo o signo só significa na medida em que se opõe a outro signo, por isso se pode dizer que é essa condição da linguagem que constantemente diferencia e adia os seus componentes que concede significância ao signo. Estas teses foram consolidadas por Roland Barthes numa fase já pós-estruturalista, que começa com o artigo “A morte do autor” (1968) e continua nos livros S/Z (1970) e O Prazer do Texto (1973). A teoria de Barthes aproxima-se da de Derrida: a leitura crítica de um texto literário não objectiva um sentido único mas a descoberta da sua pluralidade de sentidos.

O interesse de Derrida no texto literário advém do facto de certos textos transgredirem os limites tradicionais de representação da literatura. A perspectiva do crítico literário em relação à desconstrução é um pouco diferente, pois não está imediatamente preocupado com o facto de certos textos postergarem as categorias da metafísica ocidental mas preocupa-se antes com as propriedades singulares da escrita em si. Quer se seja contra ou a favor de Derrida, há que aceitar que, enquanto método de análise textual, o modelo desconstrucionista que ele propõe funciona efectivamente, obrigando-nos a repensar a forma como o texto é formulado. Se tomarmos em consideração as proposições dissimuladas ou impronunciadas no texto, se revelarmos os buracos negros do texto e os seus suplementos ou contradições internas de maior subtileza, o texto pode significar algo muito diferente daquilo que a princípio parecia querer dizer. Em dadas circunstâncias, um texto pode não querer dizer algo em particular mas várias coisas muito diferentes entre si e em relação ao sentido assumido à partida, eventualmente, pelo autor desse texto. Mostrando os efeitos de différance (o sentido é constantemente diferido e distinguido, inscrevendo-se na cadeia infinita de significados que constitui o texto), marca (nenhum signo é completo em si mesmo, pois remete infinitamente para outro signo através das marcas — conotações, por exemplo — que lhe são inerentes) e disseminação (ou difusão ou propagação dos sentidos num texto, não sendo possível agrupá-los num só nem exercer qualquer espécie de controlo sobre todos os sentidos encontrados ou por encontrar), Derrida mostrou-nos que o texto pode dizer a sua própria história, deixando então entrever um novo texto, que, por sua, está sujeito a idêntico trabalho desconstrucionista, permitindo um retorno dialéctico infinito ao texto. Nesta técnica de leitura, não se valida o antigo pressuposto do New Criticism dos anos 40 e 50 de que o sentido está contido no texto e pode ser controlado, pois ele coexiste e participa no jogo linguístico, que não pode nunca garantir o absolutismo (ou presença) de um sentido (ou interpretação) em relação a outros sentidos (interpretações). A intenção do autor fica sempre dissolvida no jogo diferencial/protelador (jogo da différance) dos significantes.

A proposta de desconstrução do texto introduzida por Derrida foi particularmente bem recebida nos Estados Unidos, como se disse atrás. A chamada Escola de Yale, onde Derrida ensinou, revelou nos anos 70 alguns dos principais teóricos da literatura de hoje: Paul de Man, Harold Bloom, J. Hillis Miller e Geoffrey Hartman. A Escola de Yale desenvolveu não só a filosofia desconstrucionista mas também os estudos freudianos aplicados à literatura. Duas obras iniciais marcaram a actividade e afirmação dos críticos de Yale: Blindness and Insight (1971), de Paul de Man, e The Anxiety of Influence (1973), de Harold Bloom. Paul de Man, que contribuiu decisivamente para um novo rumo para a desconstrução de Derrida, toma o texto literário como um conjunto de potenciais oposições internas que hão-de conduzir irremediavelmente a uma aporia ou impasse; nesse momento, o texto obriga a uma tomada de decisão crítica perante as duas leituras opostas e, quase paradoxalmente, uma leitura desconstrucionista será aquela que não deixar que tal decisão penda para qualquer dos lados. Um outro livro de Paul de Man, Allegories of Reading (1979), dá melhor conta desta engrenagem técnica, assumindo que toda a leitura é necessariamente retórica, por isso sujeita a diferentes interpretações. Estudando a linguagem simbólica romântica, de Man conclui que o figurativo não é um exclusivo da linguagem poética mas de toda a linguagem, que é, por definição, alegórica, portanto, irrepresentável estruturalmente.

A tese de Harold Bloom em The Anxiety of Influence resume-se a uma polémica perspectiva que prevê que um poeta ou escritor age sempre em função de um modelo literário que lhe é anterior, um grande “precursor”, que ele tem que “enfrentar”, para resolver a angústia dessa influência, a qual, em termos radicalmente freudianos, exige igualmente a substituição do próprio modelo inspirador ou “pai”. Desta forma, também não existem interpretações desubjectivadas, mas sim tergiversações ou misreadings de leituras anteriores.

Em Saving the Text - Literature/Derrida/Philosophy (1981), Geoffrey Hartman procurou fazer vingar a desconstrução de Derrida, explorando as potencialidades das leituras cerradas no estilo derridiano, destancando o(s) livro(s) inqualificável(eis) e intraduzível(eis): Glas, que considera um acontecimento ímpar na história literária. Contudo, as leituras que noutras obras faz de Wordsworth ou Shakespeare, por exemplo, revelam que Hartman não perdeu totalmente de vista uma forma de abordagem textual mais directamente interpretativa do que desconstrucionista.

J. Hillis Miller, que só na década de 80 publicará um livro de referência como Fiction and Repetition: Seven English Novels (1982), divergiu do dogma estruturalista da possibilidade de um conhecimento sistemático do texto. Miller usou recorrentemente a noção de abyss structure (ou mise en abyme) para mostrar como a linguagem está permanentemente sujeita aos jogos linguísticos. Além disso, a desconstrução não é tanto um método de análise literária, mas algo que o texto já fez a si próprio. O texto já está de alguma forma desconstruído quando o vamos ler. Resta ao crítico descobrir e usar a engrenagem retórica que o texto esconde. Alguns críticos derridianos defendem que a desconstrução é uma associação entre interpretação e semiótica, para determinar como é que um texto significa, mais do que uma prática hermenêutica que vise determinar o que é que significa. Mais recentemente, em The Linguistics Moment - From Wordsworth to Stevens (1985), Hillis Miller tentou distanciar-se de certas aproximações da desconstrução à hermenêutica, considerando a prática desconstrucionista ou interpretação retórica como uma prática crítica, que não se identifica nem com uma hermenêutica nem com uma poética.

Depois de Gadamer e na esteira de Paul de Man, Paul Ricoeur e William V. Spanos, editor de uma das mais radicais revistas pós-estruturalistas, boundary 2, tem-se descrito igualmente a desconstrução como uma hermenêutica negativa, isto é, um projecto que não vise restaurar o sentido de um texto perdido na história, mas antes recorrer a conceitos modernos para abalar ou questionar criticamente tal sentido histórico. Ricoeur, um filósofo fenomenologista que virá a ter grande influência na mais recente teoria literária — autor de La Métaphore vive (1975), Temps et récit, 3 vols. (1983-85) e Soi-même: Comme un autre (1990); em tradução portuguesa, destacamos: O Conflito das Interpretações: Ensaios de Hermenêutica (1ªed., 1969) e Do Texto à Acção: Ensaios de Hermenêutica II (1986) —, reclama uma hermenêutica que não mais se reduza à idolatração deste autor ou daquele texto.

A relação do que se entende por pós-estruturalismo com a questão da interpretação textual está, pois, longe de ser mais consensual do que antes, durante as discussões no seio do New Criticism norte-americano e do estruturalismo francês sobre o valor da interpretação na teoria literária. No ensaio “Tradition and Difference” (Diacritics, 2, 1972), Hillis Miller, seguindo a lição de Nietzsche já salientada por Derrida na conferência de 1966, na Johns Hopkins University, repete que o mesmo texto permite várias interpretações e que nenhuma interpretação pode ser absoluta ou “correcta”. M. H. Abrams, crítico da tradição historicista, manifestou a sua discordância quer em relação a Derrida quer a Hillis Miller, no ensaio “The Deconstructive Angel” (Critical Inquiry, 3, 1977), sustentando que tal premissa era falsa, pois implica que toda e qualquer interpretação histórica e racional esteja errada à partida. Frederic Jameson, um crítico do marxismo literário, no livro The Political Unconscious, salienta que a actividade hermenêutica ou interpretativa é um dos principais objectivos do pós-estruturalismo de origem francesa. Jonathan Culler, inicialmente estruturalista convicto e, depois de On Deconstruction (1983), continua contrário à interpretação, tal como procedia enquanto estruturalista. David Lodge, num artigo importante, “Deconstruction”, publicado no Guardian (8-4-1988), concorda que a desconstrução abre o texto a múltiplas interpretações. Publicando The Critical Difference: Essays in the Contemporary Rhetoric of Reading (1980) e A World of Difference (1987) , uma das mais recentes teóricas da desconstrução aplicada à literatura, Barbara Johnson, assumida discípula de Paul de Man, ofereceu-nos uma série de leituras desconstrucionistas de Roland Barthes, Herman Melville, Edgar Allan Poe, Jacques Lacan e Jacques Derrida, que se tornaram clássicas no género, alargando o âmbito da desconstrução a outras questões como a crítica feminista, as políticas do género ou as diferenças raciais e sexuais.

Os críticos da desconstrução de Derrida têm fundamentado as suas observações sobretudo no estilo hermético e excessivamente retórico do filósofo francês, que se entretém com complexos jogos de linguagem e engenhosos conceitos. Mas Derrida defende que o jogo faz parte da própria natureza da linguagem. Outra crítica comum consiste no grau de arbitrariedade que a desconstrução implica: se a linguagem e a metafísica são estruturadas pelas diferenças, não é possível fundar nenhum tipo de critério ou criar uma referência que sirva de orientação no processo de interpretação de uma obra de arte, por exemplo, o que significará sempre que tudo é aparentemente permitido e nada permanece: nem o sentido do texto, nem o autor, nem a autoridade do leitor. Esta posição deriva de um entendimento da desconstrução como mera destruição do texto, correlação que os desconstrucionistas se têm esforçado por negar.



APORIA; BRISURE; DIFFÉRANCE; DESCENTRALIZAÇÃO DO SUJEITO (1); DETERMINAÇÃO/INDETERMINAÇÃO; DISSEMINAÇÃO; gramatologia; JOGO (1); LOGOCENTRISMO; MARCA; MISREADING; PÓS-ESTRUTURALISMO; SUPLEMENTO



Bib.: Christopher Butler: "The Text and the External World"; "Deconstruction and Scepticism"; "Ambiguity and Self-Contradiction", in Interpretation, Deconstruction, and Ideology - An Introduction to Some Current Issues in Literary Theory (1984); Christopher Norris: Derrida (1987); Id.: Paul de Man - Deconstruction and the Critique of Aesthetic Ideology (1988); Id.: Deconstruction: Theory and Practice (1991); Colin Campbell: "The Tyranny of the Yale Critics", New York Times Magazine (9-2-1986); E. Warwick Slinn: "Deconstruction and Meaning: The Textuality Game", Philosophy and Literature, vol.12, nº 1 (1988); Harold Bloom, Jacques Derrida, Geoffrey H. Hartman e J. Hillis Miller, Deconstruction and Criticism (1979); H. Felperin: Beyond Deconstruction - The Uses and Abuses of Literary Theory (1985); Hugh Silverman (ed.): Derrida and Deconstruction (1989); Jacques Derrida: De la grammatologie, 1967a (Gramatologia, 1973; Of Grammatology, Baltimore e Londres, 1976); Id.: L'Écriture et la différance, 1967b (A Escritura e a Diferença, São Paulo, 1971; Writing and Difference, Londres, 1990); Id.: La Dissémination, 1972a. (The Dissemination, Londres, 1993); Id.: Marges de la philosophie, 1972b. (Margens da Filosofia, Porto, s.d.); Id.: Positions, 1972c (Posições - Semiologia e Materialismo, Lisboa, 1975); Id.: "Deconstruction in America" (entrevista a J.Creech, P.Kamuf e J.Todd), Critical Exchange, nº 17 (1985); J. Hillis Miller: "Deconstructing the Deconstructers", Diacritics, nº 5 (1975); John M. Ellis: Against Deconstruction (1989); John Sallis (ed.): Deconstruction and Philosophy - The Texts of Jacques Derrida (1988); Jonathan Arac et al. The Yale Critics: Deconstruction in America (1983); Jonathan Culler: The Pursuit of Signs: Semiotics, Literature, Deconstruction, Routledge & Kegan Paul, Londres, 1981; Id.: On Deconstruction: Theory and Criticism after Structuralism, Routledge, Londres, 1983; Mark C. Taylor (ed.): Deconstruction in Context - Literature and Philosophy (1986); Paul de Man: Allegories of Reading - Figural Language in Rousseau, Nietzsche, Rilke, and Proust, Yale University Press, New Haven, 1979; Id.: Blindness and Insight - Essays in the Rethoric of Contemporary Criticism. 2ªed., 1986 (1ªed., 1971); Id.: The Resistence to Theory, 1989. (A Resistência à Teoria, Lisboa, 1989); Peggy Kamuf (ed.): A Derrida Reader - Between the Blinds (1991); R. C. Davis e R. Schleifer (eds.): Rethoric and Form: Deconstruction at Yale (1985); Rodolphe Gasché: "Deconstruction as Criticism", Glyph, nº 6 (1979); Ronald Schleifer: "Deconstruction and Linguistic Analysis", College English, nº 49 (1987); Vicent B. Leitch: Deconstructive Criticism - An Advanced Introduction (1983); Id.: "Derrida's Assault on the Institution of Style", Bucknell Review, nº 29 (1985).

http://www.mc.maricopa.edu/users/eberle/svcXIdec.htm

http://www.nyu.edu/classes/stephens/Jacques%20Derrida%20-%20LAT%20page.htm

http://130.179.92.25/Arnason_DE/Derrida.html

http://www.hydra.umn.edu/Derrida/onjdliv.html



Carlos Ceia

Uma ode para a Ode

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Do grego odé e do latim õde (ou õda), originariamente, e desde Homero, um poema destinado a ser cantado, podendo igualmente significar qualquer forma de canto alegre ou triste ou o acto de cantar. Os seus vários significados abarcavam também o canto de louvor , o canto fúnebre, canto religioso, canto mágico, canto de guerra ou hino e pressupunha o acompanhamento de instrumentos musicais. O sentido da palavra modificou-se, todavia, passando a significar uma poesia rimada de assunto elevado, normalmente escrita em forma dedicatória de acordo com um estilo e sentimentos nobres.

A ode era, na antiguidade clássica, um poema lírico, normalmente de alguma extensão, e de assunto elevado e nobre, expressando sentimentos ilustres, em celebração de algum evento especial. Para além de sentimentos sublimes e majestosos, a ode apresentava também como principais características a elaboração estrófica, bem como formalidade e nobreza no tom e no estilo, o que a tornavam algo cerimoniosa.

Poder-se-iam distinguir dois tipos de ode: a ode pública e a ode privada. A primeira destinava-se às ocasiões de cerimónia, tais como funerais, aniversários e eventos estatais. A ode privada celebrava, normalmente, acontecimentos pessoais e subjectivos e tinha tendência para ser mais meditativa e reflectiva.

A ode aparece já em Álcman, mas as odes mais antigas que merecem destaque são as de Safo, que restringe as suas composições a um mundo subjectivo dos seus sentimentos pessoais, e as de Alceu, que retrata nas suas odes a vida da sua cidade e as canções festivas.

As odes mais importantes que se seguiram foram as de Píndaro, nativo de Tebas, que retoma a tríade constituída por estrofe, antítrofe e epodo de Estesícoro, tradicionalmente apontado como o inventor deste processo formal. Aos cantos e poemas de Píndaro que celebravam vitórias era dado o nome ode, seguido do nome do festival a que diziam respeito. Assim, poderiam ser odes Olímpicas, Píticas, Nemeias ou Ístmicas. Tendo como modelo as canções corais do drama grego, as odes Pindárica glorificavam uma vitória atlética e louvavam os vitoriosos nos jogos gregos, tendo o acontecimento apenas o fim aparente de elevar e exaltar os grandes valores morais, elogiados sob a forma de sentenças ou através de mitos, presentes já em Alcman, escolhidos pela sua ligação com a família do vencedor, a sua cidade natal ou com o local de vitória.

Também as odes de Anacreonte e as dos seus imitadores se destacaram durante este período e a sua redescoberta no Renascimento estabeleceu o modelo da denominada ode anacreontica.

Em Roma, o nome e o poema são de origem grega e a sua latinização deve-se a Horácio, o introdutor e principal seguidor da ode latina, sendo a ode horaciana a mais importante de toda a literatura romana.

A ode horaciana, posteriormente imitada em larga escala pelos humanistas, inclui temas sugeridos pelos poetas gregos antigos como Alceu, Safo, Anacreonte e seus imitadores e Píndaro, e pelos poetas helenísticos, nomeadamente os epigramatistas. A contrário das odes públicas de Píndaro, a ode horaciana é privada e pessoal. É de salientar que, quer Píndaro quer Horácio foram os geradores da ode clássica e influenciaram largamente o seu desenvolvimento no Renascimento europeu.

Alguns séculos mais tarde, a canso provensal e a canzone italiana aproximam-se igualmente da ode, que floresceu particularmente em Itália, França e Alemanha, mas também em Portugal e Inglaterra.

Em Itália os poetas renascentistas Tricinio, Minturno e Alamanni favoreceram esta modalidade poética, e Tasso, Chiabrera, Manzoni, Leopardi, Carducci e D‘annunzio seguiram-se-lhes, sendo os dois primeiros influenciados pelo poeta francês Ronsard.

Os membros da Pleiade em França, dos quais Ronsard foi o mais bem sucedido com sua obra Os Primeiros Quatro Livros de Odes de 1550, desenvolveram grandemente a ode, sendo Boileau, no século XVII, o seu seguidor mais acérrimo. O Romantismo favoreceu igualmente a ode com Lamartine, de Musset e victor Hugo. Mais recentemente destacam-se Verlaine e Valéry.

Na Alemanha, a ode foi estabelecida por Weckherlin no inicio do século XVII com Oden und Gesänge (1618/19). O uso dos modelos clássicos foi revivido no século seguinte por Goethe, Klopstock e Schiller. Também Hölterlin escreveu algumas odes.

As diferentes formas de ode, quer ao estilo pindárico quer ao estilo horaciano, têm sido imitadas de forma variada na literatura inglesa, desde o Renascimento com Epithalamion (1595) e Prothalamion (1596) de Spencer. Nos finais do século XVI e princípios do século XVII, William Drummond of Hawthornden, Samuel Daniel,Michael Drayton, Andrew Marvell e Abraham Cowley desenvolveram esta composição poética lírica, mas foi Ben Jonson o primeiro a escrever uma ode segundo a tradição pindárica: Ode to Sir Lucius Cary and Sir H. Morison (1629). Alexander‘s Feast (1697) de Dryden é considerada tambem uma ode importante que data igualmente deste período. Collins, Gray, Cowper e Pope foram os poetas de maior relevo da Augusten Age que seguiram esta modalidade poética, bem como Coleridge, Wordsworth, Shelley e Keats o fizeram no Romantismo. Mais recentemente, destacam-se Tennyson, Allen Tate, Auden, Matthew Arnold e Swinburne.

Em Portugal é através de Horácio, imitado e traduzido largamente pelos humanistas, que a ode ocupa o seu lugar de destaque desde António Ferreira, que a introduziu no século XVI.. Desde então, foram inúmeros os poetas que cultivaram esta forma, utilizando várias combinações estróficas, métricas e rimáticas, adequadas a uma multiplicidade de temas e assuntos, tais como Pero Andrade de Caminha e Camões. D.Francisco Manuel de Melo cultivou igualmente a ode durante o Barroco. Mas as regras elaboradas, a extrema formalidade e o decorum inerentes à ode atraíram, mais do que em qualquer outro período, os poetas do século XVIII, concretamente os da Arcádia Lusitana como Correia Garção e António Diniz da Cruz e Silva, e outros, como Bocage e Filinto Elísio.

Durante o Romantismo, a ode cai um pouco no esquecimento. São todavia de salientar as obras Lírica de João Mínimo (1829), que inclui algumas composições poéticas consideradas odes pelo tema e pela forma, e as Odes Modernas (1865) de Antero de Quental, título de um dos seus livros de poesia.

Mais recentemente destacam-se Eugénio de Castro, Fernando Pessoa, pelos heterónimos Ricardo Reis e Álvaro de Campos, este com Ode Triunfal e Ode Marítima, e Miguel Torga, que retoma alguns dos temas predominantes na ode, associando-os à actualidade.

Bib.: John D. Jump: The Ode (1974)

Ana Ladeira

Lexicologia

É a disciplina linguística que se ocupa do estudo do léxico, nas suas diferentes estruturas. Se preferirmos, a lexicologia estuda todos os aspectos relacionados com as unidades de primeira articulação, ou seja, as unidades dotadas de duas faces, significante e significado.

Devemos distinguir a lexicologia da lexicografia, disciplina que se ocupa da feitura de dicionários. Os contributos da lexicologia são, não obstante, de grande interesse para a lexicografia, e esta pode ser entendida como um ramo da lexicologia aplicada. A lexicologia tem por objectivo estudar a morfologia e a semântica lexicais, segundo Ullmann (1967.

Tendo em conta que o léxico é o nível linguístico que mais facilmente emerge na consciência dos locutores, dado estar directamente relacionado com a significação e como tal, com o mundo em que vivemos, constatamos que amiúde os métodos da lexicologia têm sido inspirados por outras disciplinas que não a linguística, como a psicologia, a filosofia, a lógica, a sociologia, etc. Consideramos, apesar de tudo, que a lexicologia pode e deve fazer uma investigação tão isenta de subjectividade quanto possível, tal como se tem feito noutros domínios, como no da fonologia, por exemplo.

A lexicologia, enquanto ciência do léxico, estuda as relações deste com os outros sistemas da língua, mas sobretudo a relações internas do próprio léxico. A lexicologia abrange domínios como a formação de palavras, a etimologia, a criação e importação de palavras, a estatística lexical, e relaciona-se necessariamente com a fonologia, a morfologia, a sintaxe e em particular com a semântica. Neste âmbito, as relações semânticas de sinonímia, antonímia, hiponímia, hiperonímia interessam à lexicologia.

Os estudos de lexicologia começam a ganhar estatuto de maioridade a partir dos anos 50, marcados por obras como a de G. Matoré, (La méthode en Lexicologie), pelo congresso de 1957, realizado em Estrasburgo (Lexicologie et lexicographie françaises et romanes, 1960) e o início da publicação dos Cahiers de lexicologie, dirigidos por B. Quemada.



léxico



Bib. : Carvalho, Herculano de, 1984, Teoria da Linguagem, Coimbra, Coimbra editora, 2 vol.; Coseriu, E., 1979, “A perspectiva funcional do léxico”, in AAVV, Problemas da Lexicologia e Lexicografia, Porto, Livraria Civilização-Editora; Galisson, R. e Coste, D., 1983, Dicionário de Didáctica das Línguas, Coimbra, Livraria Almedina; Geckeler, Horst, et al., 1981, Logos Semantikos : studia Linguistica in Honorem Eugenio Coseriu, 5 vol., Berlin/ Madrid, de Gruyter/Gredos; Le Guern, 1972, M., Semântica da metáfora e da metonímia, Porto, Telos, Lyons, J., 1969, Introduction to Theoretical Linguistics, Cambridge, CUP; Lüdtke, Helmut, 1974, Historia del Léxico Románico, Madrid, Gredos ; Martinet, A. (dir.), s/d, Conceitos Fundamentais da Linguística, Lisboa, Editorial Presença; Nascimento, F. et all. 1984, Português Fundamental, 3 vol., Lisboa, INIC-CLUL, Saussure, F. , 1986, Curso de Linguística Geral, Lisboa, Dom Quixote, ; Ullmann, S., 1977, Semântica - Uma introdução à ciência do significado, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian; Vilela, Mário, 1994, Estudos de Lexicologia do Português, Coimbra, Almedina; idem, 1995, Léxico e Gramática, Coimbra, Almedina; Wartburg, W., 1946, Problèmes et méthodes de la linguistique, Paris, PUF. R. R. K. Hartmann e Gregory James: Dictionary of Lexicography (1998)



Maria João Marçalo

Jogo II

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Conceito-chave da hermenêutica gadameriana da experiência da obra de arte com o qual o autor discute a subjectivação pós- kantiana da problemática filosófica da estética.A tese de fundo de que o autor parte é a seguinte : a experiência da obra de arte e a experiência do literário obrigam a alargar o conceito habitual de experiência, pois, suspendem os parâmetros possessivos do método como via única da verdade. Não deixam , no entanto, como se pensou a partir de Kant, de representar uma forma válida do conhecimento humano e da verdade.O encontro com a arte é uma forma de conhecimento e de enriquecimento que se reflecte no modo de ser do existir - - tal é a tese de Gadamer. Mas para que isto possa ser reconhecido, é necessário discutir a limitação do âmbito, por excelência intersubjectivo, do sentido da obra de arte ao juízo formal do gosto ou ao da cogenialidade romântica.Há que defender a experiência da obra de arte como um precioso modo da autocompreensão humana, esquecido e menorizado pelo pacto estabelecido a partir da Modernidade entre verdade e método. Modo lúdico- festivo que urge reabilitar, quando finalmente se compreende, nos dias de hoje (nomeadamente depois da crise das filosofias do sujeito), que o homem também habita poetica e ludicamente o mundo, sendo esta aliás a sua natureza distintiva..

É pois no contexto da crítica que o autor faz à redução moderna do âmbito humano da verdade ao discurso unívoco e constringente da ciência mecanicista da natureza que deve ser compreendida a hermenêutica da experiência da obra de arte, aparecida, em primeira mão, na primeira parte da conhecida obra Verdade e Método.O autor situa-se aqui face ao Neokantismo e ao Positivismo reclamando — a partir de uma poética dos possíveis antropológicos (que, de modo nenhum, se limitam ao primado do instrumental) — um conceito de experiência que permita compreender a obra de arte como experiência, capaz de modificar quem a faz .O horizonte em que se situa é, claramente, o da crítica heideggeriana à tradição substancialista clássica, nomeadamente à sua vertente antropocêntrica moderna.O objectivo da sua reflexão - - mostrar como a experiência da obra poética e literária é uma forma válida da verdade e um correctivo para o ideal da certeza objectiva e para a Hybris do conceito — Gadamer confessa tê-lo sentido como primordial desde os seus primeiras tentativas para pensar filosoficamente.São, assim,os pressupostos puramente teleológico-conceptuais do modo filosófico-tradicional de pensar a experiência, enquanto raíz do conhecimento, que Gadamer procura desmontar em nome de uma experiência da alteridade, que só pode acontecer por meio da representação lúdica e do efeito da palavra poética, dado que esta não se reduz nem à transcendência separada nem ao modelo puramente pragmático da objectividade.Consegue-o, desde logo, com a sua hermenêutica da obra de arte, cujo verdadeiro fio condutor vai ser justamente o jogo ôntico-ontológico do Belo.

O autor parte do conceito de jogo, enquanto fenómeno essencial da vida e cultura humanas, fenómeno que pressupõe uma concepção de experiência à qual é inerente todo um esquema interpretativo que ultrapassa o cartesianismo dogmático da autoconsciência, tal como o ponto de vista puramente pragmático da relação homem-mundo.Modo de ser do existir, o jogo é um movimento de inter-acção que não serve um determinado fim ou uso específico de uma subjectividade, à partida, já constituída. Pertence-lhe um peculiar modo de ser caracterizado pelas categorias da relação, da suscitação conjunta e da representação Não há jogo que se reduza ao comportamento do jogador.A condição de qualquer jogo é justamente ultrapassar os pontos de vista singulares. O jogo tem as suas próprias regras, uma seriedade própria que envolve o jogador e exige uma suspensão das leis e costumes da vida pragmático- quotidiana.O próprio uso linguístico do termo, lembra-nos Gadamer, nomeadamente os seus significados metafóricos, referem uma forma de movimento puramente autotélico,cuja irresistibilidade envolvente torna absurda a questão respeitante a a quem o realiza.É um movimento que carece de substracto pois é ele mesmo que se desenrola ou joga não permitindo a sua redução a qualquer sujeito que possa distinguir-se como aquele que joga.

É assim natural pensar a experiência do belo — que desde os gregos se distinguia claramente da experiência do útil — a partir do horizonte referencial do jogo.O próprio

Kant descrevera a ausência de todo o interesse particular, a liberdade perante os fins e a ausência de conceitos face ao prazer diante do belo como o estado da mente no qual as nossas faculdades intelectuais jogam um jogo livre.

Para Gadamer, no entanto, só uma análise fenomenológica do conceito de jogo permite

hoje desvinculá-lo das conotações subjectivistas que adquirira justamente com Kant e nomeadamente com Schiller.É que o verdadeiro ser do jogo joga-se entre o eu e o tu ; exige participação; é movimento, exibição, espectáculo , isto é um acontecer de sentido que põe em cena a dimensão icónica ou não especializada da condição humana.No jogo surge o vaivém de um movimento que continuamente se repete sem obedecer ao cumprimento de qualquer objectivo ou fim que lhe dê sentido. Tal movimento implica a metaforização do sujeito e a da sua abertura relacional ao mundo. Assim, o verdadeiro pano de fundo impilcado na natureza ontológica particular do fenómeno lúdico é, segundo Gadamer, o conceito grego de mimesis : isto é , uma forma de produção que não fabrica coisas utilitárias mas na qual algo chega à sua representação. No jogo joga-se, de facto, sempre a algo . A verdadeira finalidade do jogo está no próprio jogo que ,por sua vez, nada é sem as suas encenações.O primado do jogo perante a consciência do jogador exprime-se pelo próprio facto de a noção de jogador implicar uma metamorfose do modo habitual de ser do sujeito. O jogo só pode realmente surgir quando não há já sujeitos que se comportam ludicamente mas antes indivíduos que , suspendendo as suas exigências quotidianas, se abandonam totalmente ao ritmo e harmonia do movimento lúdico. Jogar é, então, fundamentalmente ser jogado, isto é, participar num acontecer que consegue transportar jogadores e espectadores para um espaço próprio: o mundo lúdico que se distingue do mundo quotidiano pelo facto de propôr a quem nele participa um horizonte de relações possíveis e inéditas..Aqui reside o fascínio habitualmente ligado à ideia de jogo: o horizonte de possibilidades que ele consegue oferecer à variação imaginativa do eu enquanto movimento em que se joga a algo. Isto é, enquanto é um movimento em que se cumpre uma tarefa que não implicando uma solução ou resolução, retira o seu sentido da co- participação dos jogadores na forma de auto-apresentação inerente ao movimento lúdico.

Com a análise do jogo, como paradigma da racionalidade hermenêutica própria da arte e do literário, Gadamer pretende revelar uma estrutura ontológica particular, sempre esquecida pela tradição Reconhece, assim, no movimento lúdico o acontecer original da figuração simbólica, própria da ideia de linguagem. Previne-nos quanto à natureza da sua forma de representação: ela não deve entender-se como uma cópia que descreve ou como uma pura alteração do original ( o mundo lúdico surge como uma suspensão do mundo quotidiano, mas não pode existir sem ele) mas como a autêntica transmutação exigida pela própria coisa, que se transforma de repente numa outra coisa e assim alcança o seu ser verdadeiro (frente ao qual o seu modo anterior de ser nada era). Deste modo, deixa também de ter qualquer sentido a contraposição habitual entre a vida e a arte. Pelo contrário, a experiência da arte confronta o existir com uma forma concreta da sua autocomprensão: aquela cuja dizibilidade rejeita a luz puramente antropomórfica do conceito ou o pontualismo vivencial da genialidade estética e requisita aquele que nela participa no reconhecimento do sentido outro do mundo.Recusando a opacidade e a neutralidade da objectividade das coisas, lembra-nos Gadamer, o belo é o que por si mesmo atrai e encanta - - ”a linguagem da coisa” que dorme em todos nós , apesar de não estarmos habitualmente preparados para a ouvir. Na arte, como no literário, não é apenas algo que pertence ao passado ou diga exclusivamente respeito ao presente que acontece , mas o que se lhes re(a)presenta como possível e, no entanto, mesmo e igual: a abertura transfinita do homem — desde sempre implicada na atitude simbólico-metafórica, hoje seriamente comprometida pelo império do conhecimento especializado e operatório. E isto quer dizer que a dimensão lúdico-metafórica da linguagem deve ser reabilitada como verdadeiro fio condutor do acesso a uma verdade, sem a qual o homem acaba por se reduzir a autómato, e cuja dizibilidade ultrapassa os critérios habituais da verdade - segurança, certeza e eficácia .A abertura ao Outro representada pela experiência lúdica do estético e literário descentra o sujeito do seu narcisismo habitual devolvendo-lhe uma outra forma de habitar o mundo: a experência da relação e da compreensão.

HERMENÊUTICA

Bibliografia: H.-G.GADAMER, Gesammelte Werke 1. Hermeneutik 1. Wahrheit und Methode-I. Grundzuege einer Philosophischen Hermeneutik, Tuebingen, Mohr, 1986; ID., Gesammelte Werke, 2 .Hermeneutik II: Wahrheit und Methode-2. Ergaenzungen, Register, Tuebingen, Mohr, 1986; ID., Die Aktualitaet des Schoenen. Kunst als Spiel, Symbol und Fest , Stuttgart, Reclam, 1977.ID, Gesammelte Werke. Aesthetik und Poetik I. Kunst als Aussage , Tuebingen, Mohr, 1993, Bd.8 ; ID, Gesammelte Werke. Aesthetik und Poetik. II. Hermeneutik im Vollzug, Tuebingen, Mohr,1993, Bd.9.

Maria Luísa Portocarrero F. Silva

Jogo I

Termo que traduz o conceito desconstrucionista de jeu (em inglês traduzido com mais precisão por freeplay), para afirmar o processo de concretização do sentido das palavras, cujo mecanismo não se encontra pré-determinado, mas disseminado e em constante revisão. Para Derrida, as palavras não têm um sentido único, estável ou permanente, mas encontram-se constantemente à deriva, num jogo aberto de significações. De um ponto de vista pragmático, esta tese da indeterminação do sentido não tem validade, pois dessa forma anula-se a possibilidade de fundar a comunicação entre os indivíduos. O jogo aberto de Derrida entra também em colisão com a doutrina estruturalista sobre o sentido que era entendido como resultado da estrutura fixa comum a todas as palavras. O sentido de uma palavra só existe em função da forma como se relaciona com outras palavras, defende Derrida, e esse sentido está sempre adiado e diferido, num jogo interminável de significações. Esta tese radical pode facilmente ser contrariada pelo menos por certas forma de comunicação que dependem de fórmulas fixas como uma carta e ou uma notícia. A expressão "Caro Senhor" não tem certamente diferenças de sentido em vários contextos epistolares e é imediatamente compreendida por qualquer indivíduo. A variante "Prezado Senhor" ou outras variantes não constituem diferenças de sentido, dentro do modelo derridiano, mas apenas registos verbais diferentes para o mesmo sentido básico. As expressões de insulto são também semanticamente fixas em cada língua, podendo variar a forma como um insulto é recebido e não o sentido que ele tem num dicionário. Estes exemplos mostram que certas palavras têm de facto um sentido mais ou menos estabilizado, independentemente do seu uso. A linguagem literária é aquela que tem mais a ganhar na tese do jogo derridiano, uma vez que a construção do discurso literário depende inteiramente da forma como um sentido é criado e recriado. Um texto literário que fixe o sentido das suas palavras é um texto hermeneuticamente morto, e não parece que tal texto exista.

DESCONSTRUÇÃO



Carlos Ceia

NOVO HISTORICISMO (NEW HISTORICISM)

terça-feira, 22 de setembro de 2009

1. O Novo Historicismo nasceu na academia americana, entre fins de 70 e começos de 80. Disseram no californiano alguns detractores, querendo derrogar uma situação em que a pretensão revolucionária ou simplesmente subversiva confinaria com a maior das autocomplacências e mesmo com o cinismo, por isso que academicamente garantida pelas condições de existência "utópica" do campus. Eu diria que não pode não aceitar se no liberalismo dos outros. De facto, estará presente no movimento o espírito de um lugar como a Berkley ainda na ressaca da revolta estudantil. Assim o diz Stephen Greenblatt, o fundador do movimento.

Tendo se graduado na Yale dos anos 60, em tempos ainda do domínio quase absoluto do New Criticism nos estudos literários, Greenblatt trabalharia em seguida em Inglaterra com Raymond Williams, um dos mais importantes críticos marxistas do nosso tempo; e depois viriam o regresso e a migração para Berkley.

Em geral, faz se coincidir o acto de nascimento do New Historicism com um número especial da revista Genre, de que Greenblatt foi o editor. O movimento teria o seu instante de refundação sobretudo em Shakespearean Negotiations (1988) e "Towards a Poetics of Culture" do mesmo autor. (1989)

Presentemente, a situação do novo historicismo é algo confusa. Se por um lado assistimos a uma consolidação das práticas (detectável tanto na qualidade invulgar da revista Representations, órgão oficial do movimento, como na extensão dos procedimentos novi historicistas ao estudo de praticamente todas as épocas "literárias"), cresce por outro lado um dissenso histórico e metodológico, interna e externamente perceptível. Assim H. Aram Veeser (1989) tem o movimento por bem fundado, enquanto Suzanne Gearhart lhe põe em perspectiva a ausência de reflexão metodológica e teórica. (1997) Assim, o co fundador Montrose vem manifestando um certo desconforto quanto à (in)definição da matriz teórica e metodológica do movimento, enquanto que num Greenblatt, e não sem equívocos, se pode detectar a sombra paradoxal de um determinismo global (um organicismo de teor historicista), graças porventura às importações de certos aspectos da antropologia cultural e à pervasividade do "poder", como Foucault o concebe — juntamente com outras formas de "circulação", entre as quais os "textos".

Aqui a anedota, não porque também eu esteja a fazer novamente história, mas tão só a bem da amenidade do verbete. Um dos mais convincentes new historicists é Walter Benn Michaels. O do Contra a Teoria.



2. Dedicado ao Renascimento (campo de estudos privilegiado do novo historicismo, sobretudo nos inícios), aquele número de Genre — as palavras são de Greenblatt — teria como novidade a consideração dos textos literários dos séculos dezasseis e dezassete no conjunto das práticas discursivas da cultura inglesa de então.

Assumindo se que tais textos não tinham sentido em si, senão que o teriam nas ligações estabelecidas com as crenças, com as práticas, e no interior das instituições da cultura renascimental, o movimento então nascente avançava perspectivas de estudo, que, por menos orgânicas, punham em questão os pressupostos historicistas:

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crenças e práticas de uma mesma época podem ser contraditórias, não só em função das diferentes instituições que as promovem, mas no interior das mesmas instituições,
*

e autores e discursos manifestam atitudes ambivalentes face à autoridade, mostrando se o sentido semântico pragmático dos textos indecidível no que diz respeito aos valores do conformismo e da heterodoxia. (cf. 1982)

Na confluência destas duas recusas (formalismo e historicismo), o new historicism vai nomeando de outro modo a matéria dos textos literários, a qual confronta, não propriamente com um método ou com uma teoria, mas com um conjunto de posições críticas mais ou menos directamente saído dos problemas que — à medida que iria recusando a validade fundacional de posições estruturalistas e lato sensu realistas — a Teoria, ou, mais simplesmente, o pós estruturalismo, nos foi circunscrevendo. Entenda se por Teoria o capital cultural profissional dominante nos Departamentos de Inglês (e não só): não se trata já de Teoria da Literatura, mas de Adorno, Benjamin, Blanchot, Bourdieu, Derrida, de Man, Eagleton, Foucault, Jameson, Lyotard, etc.

O efeito prático é sobremodo interessante porque não corresponde em absoluto a perspectivas interdisciplinares mas a um processo de circulação entre disciplinas — ou antes, entre aquelas ressalvas críticas operadas pela Teoria sobre um certo número de problemáticas fundacionais. Cumulativamente, os novi historicistas circulam na prática entre épocas diferentes e entre diferentes textos e contextos, ao mesmo tempo que (reflexão teórica típica) consideram a 'circulação' como uma das características fundamentais do objecto 'textualidade' (e diga se, já agora, também do 'poder').

Assim começam as mudanças de nomeação: os textos literários serão os chamados textos literários, e os textos dos historiadores as chamadas histórias. O todo resulta unificado sob a figura inespecífica da textualidade, ou retoricamente abrangido pelo quiasmo, figura que é decididamente da predilecção especial dos escritos novi historicistas: desde logo, o inaugural The Forms of Power and the Power of Forms (Greenblatt) ou, o mais abrangente, the historicity of texts and the textuality of history (Montrose). O que o tropo adianta é aquilo que, ao mesmo tempo, o new historicism evitaria como questionamento: os tipos de reciprocidade específica (e a sua pertinência) entre o que se passa no campo literário e o que ocorre no campo histórico. O que não ocorre ao especialista, acode ao leigo com alguma facilidade: o literário não pode não ser histórico, mas este pode muito bem não ser aquele. Para que aquele quiasmo exista, têm ambos de pesar o mesmo em seu prato da balança. Serão, portanto, "texto". Cite se Montrose, um dos new historicists da primeira hora:



A orientação pós estruturalista para a história que presentemente emerge nos estudos literários pode ser quiasmaticamente caracterizada, como uma preocupação recíproca com a historicidade dos textos e com a textualidade da história. Pela historicidade dos textos, pretendo sugerir a especificidade cultural, o enraizamento social de todos os modos de escrita — não somente dos textos estudados pelos críticos, mas também os textos nos quais os estudamos. Pela textualidade da história, pretendo em primeiro lugar sugerir que não temos acesso a um passado pleno e autêntico, a uma existência material vivida, não mediada pelos vestígios textuais da sociedade em questão (…); e em segundo lugar que esses vestígios se acham também eles sujeitos a mediações textuais subsequentes quando são construídos como "documentos" sobre os quais os historiadores fundam os seus próprios textos, chamados "histórias". (Montrose, 1989: 20)



Esta amostra, hermeneuticamente correcta, é antes de mais significativa do escamoteamento da questão da reciprocidade entre os dois campos de estudo:

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ela existe apenas como preocupação do novi historicista, que deve conduzir os seus inquéritos naquelas duas frentes e
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desaparece de facto na figura comum dessa textualidade que não permite distingui los.

O confinamento da reciprocidade à "mente" do crítico, deixa porventura perceber que entre o contexto histórico de um lado e o texto literário do outro há "uma conexão de puro nada". (Liu, 1989: 743) O quiasmo seria assim a figura de uma analogia posta a caminhar em marchas forçadas das semelhanças percebidas entre texto e contexto até a um estado final de "simpatia": "uma acção quase mágica de assemelhamento" entre os dois (id.: 744) — de resto, e a crer em Foucault, muito renascimental.

O quiasmo, como equilíbrio formal, corresponde à noção greenblattiana de "economia mimética", porque mima retoricamente a circulação sobre a qual escreve; mas opera entretanto sobre um desequilíbrio inicial, porque (mesmo em contexto proto moderno) poria em causa a autonomia específica do literário e a existência de uma realidade histórica pré existente. (Thomas, 1991: 184)

Em qualquer caso, esta retórica corresponde bem a uma prática crítica que começa por aceitar se sem método e sem programa teórico, unificada apenas por um conjunto de preocupações:

*

reconhecimento da ligação necessária entre os textos e os contextos culturais da sua produção, em paralelo com a recusa da autonomia estética dos primeiros e das relações de expressividade especular entre eles e os segundos, já não organicamente abençoados por coisas como o Zeitgeist, a visão do mundo, a ideologia de época ou de classe
*

recusa tanto do determinismo como das posições humanistas que atribuem ao autor uma subjectividade autónoma e funcional
*

consideração do potencial político dos textos literários
*

incorporação de Teoria, e antes de mais de tudo quanto nela favorece a noção de que toda a experiência é de feição discursiva, desde sempre situada em sistemas de significação pré existentes a nenhum dos quais deve reconhecer se um carácter de necessidade, por isso que cada um situa e modela, e permite modelar e situar, o real de uma forma diferente de todos os outros
*

e, mais especificamente ainda, incorporação progressiva de posições e objectos foucauldianos (as disciplinas, o poder saber, a identidade, o corpo, etc.), sem esquecer a técnica da "descrição densa" muito utilizada por Greenblatt, que foi pedida de empréstimo à antropologia de Geertz. (Montrose, 1989, 1993 e Greenblatt, 1980)

Assim, alguns aderentes do movimento (para continentais, com certa tocante candura) não só nele encontraram uma legitimação para o estudo e compreensão de textos literários canónicos através do uso de textos não literários (e, nestes, os de natureza política, habitualmente mais sujeitos a proscrição), como também nele acabam por descobrir as virtudes de uma misarquia textual generalizada: a nenhum texto será concedida precedência sobre outros textos, e os eventos históricos assumem um cariz textual que permitiria a sua "leitura". (cf. Kinney, 1993) Este tom algo encomiástico — o novo historicismo é libertador — não representará o pagamento de uma dívida de gratidão? E o que se agradece não será, pelo alargamento do cânone e do campo de estudos fora do cânone, uma nova land of opportunities de trabalho e de emprego?



3. Como se disse, o New Historicism teve a sua refundação em Shakespearean Negotiations (1988) e "Towards a Poetics of Culture" (1989). É justamente quando os objectos e os procedimentos foucauldianos são contrabalançados pela presença da antropologia cultural.

Com tudo isto mantém se o problema que, em 1992, o próprio Montrose reconhece como tal: o da ausência de um princípio de organização que determine as relações supostas na hipótese sobre que o new historicism, em tempos já da sua transformação numa poética da cultura, assentaria — a saber, que todos os aspectos de uma sociedade se encontram ligados entre si. Montrose, já não considerando como bastante a definição do movimento pela comunalidade de preocupações, e aceitando que nele se denota a incapacidade frequente de teorizar com rigor tanto o seu método como o seu modelo de cultura, recusa de algum modo a sua transformação em poética da cultura. Assim, é precisamente quando o movimento se teoriza que nele se reconhece a necessidade e a falência da teorização; e, assim, o novo historicismo é também agora o chamado novo historicismo (a designação surge entre aspas):



Procedendo na base de noções tácitas e talvez inconsistentes no que à dinâmica cultural diz respeito, os estudos "novo historicistas" parecem implicar por vezes que os objectos em análise se acham simplesmente ligados por um princípio de contingência cultural ou que o são a bel prazer do crítico ("conexão arbitrária"); ou, pelo contrário, que esses objectos mantém entre si uma relação necessária baseada num princípio de determinismo cultural. (Montrose, 1993: 36)



Mas, em Grenblatt, a comparação de textos a arbítrio deixaria de o ser na medida em que, sendo a cultura o medium de uma semiótica, os textos passam a ser causalmente expressivos de um código cultural gerador e restritivo: são formas ligadas organicamente entre si, e manifestam se numa estrutura de superfície que seria um verdadeiro sistema tropológico (Greenblatt, 1988 e Montrose, 1993) — responsável, de resto, pela própria possibilidade de uma descrição densa, a qual, ao dar conta de uma dada prática nos seus mínimos detalhes, manifestaria necessariamente o ethos da cultura a que pertence.

O que fica de fora é um tanto a história, mas seria, sobretudo, a noção de uma política da cultura, que assim perde obrigatoriamente precedência para a de uma poética da cultura: nestes termos, esta não pode não subsumir aquela na sua esfera perfeita onde toda a gente é unânime. (cf. Montrose, id.: 36)

Na verdade, o que Montrose nos mostra neste new historicism de segunda fase é uma convergência assinalável com os princípios do historicismo — convergência, aliás, que, pelo recurso à antropologia da cultura, tão sua congenial, seria razoavelmente previsível. Uma poética da cultura deveria necessariamente obedecer aos seguintes princípios antropológico historicistas:

*

a cultura são culturas
*

a cultura é colectiva, expressiva, intransplantável e configura se em padrões



e acarretaria no plano epistemológico, não menos necessariamente, as seguintes consequências:

*

o abandono de posições valorativas e universalistas
*

a afirmação de um pluralismo neutral e a tácita circunscrição da cultura pelo modelo "tribal": a cultura é comportamento uniforme, a uniformidade cultural é um padrão holístico, consistente e, no contraste com outras formações "tribais", incomensurável. (cf. Merquior, 1979: 43 e ss)



4. Do contacto com Williams decorreu decerto para Greenblatt a primeira percepção das fissuras ou dos estigmas no universo da "ciência normal" dominada pelo paradigma novi crítico. De facto, a própria designação new historicism não serve apenas à arregimentação de investigadores em oposição a um old historicism; polemiza também com aquilo que a designação new criticism significa. A primeira, construída sobre uma analogia com a última, e ao substituir criticismo por historicismo, reivindica a sua diferença característica no campo dos estudos literários. Uma definição de texto, como a de Arthur F. Kinney, torna se então muito representativa: "a) nenhum documento (nenhum texto) é abstracto, separado do tempo e do lugar onde foi produzido, b) qualquer autor tem uma intenção e nenhum texto é inocente, c) qualquer documento tem múltiplos leitores potenciais (seja ele lido, visto ou escutado), d) nenhum documento literário, no sentido estrito do termo, é uni dimensional." (Kinney, 1993: 37) O New Historicism corresponderia assim a um conjunto de posições no interior dos estudos literários unificadas (na medida em que é possível unificá las) por um certo tipo de recurso à História como princípio de explicação e de problematização dos textos literários.

Ora, tudo isto é algo que por inteiro caberia no domínio dessas falácias referenciais que o paradigma novi crítico repudiou como condição necessária para a sua emergência e definição. Grosso modo, para o new criticism são ilegítimas, nos domínios da descrição e da explicação, todas as utilizações de material extrínseco aos textos literários entendidos como ícones verbais, i. e., como objectos autotélicos, autobastantes, confinados a subtis operações de significação interna ou intrínseca, marcadas pela polissemia e pela ambiguidade. Greenblatt (e creio que essa posição é de há muito pacífica) justamente não reconhece que a distinção entre a produção artística e quaisquer outras formas de produção social (os contextos) seja intrínseca aos textos; antes que é sem cessar feita e desfeita por autores e leitores. (cf. 1982)

Pelo través desta indistinção, a natureza e o comportamento dos textos são batizados por um conjunto de metáforas de matriz económica: negociação, circulação, etc. E o new historicism (mas não só) acabará mesmo por pôr em causa senão a distinção entre texto e contexto, pelo menos o seu relacionamento tradicional: o texto artístico doravante já não é o que, por natureza (estética, digamos), se emancipa absolutamente do contexto.

Em conformidade, e previsivelmente, Montrose, num original de 1992, contestará a natureza extra discursiva do segundo, que seria antes de considerar como um conjunto de relações intertextuais e discursivas. (cf. Montrose, 1993) Deste modo, o contexto — ou melhor, a discursividade — surge como o lugar de emergência de textos e leitores; e tanto os primeiros como os segundos, a título de relações intertextuais e discursivas, não podem não tornar se "contexto" por seu turno.

Ora, não se vê muito bem — e insisto no tópico — como se pode escapar àquilo que, neste mesmo texto "maduro", Montrose critica, tanto em Greenblatt como numa poética da cultura: a orientação dos textos para a intertextualidade e da intertextualidade para a sincronia. (cf. id.: 36) Em suma, parece detectar se aqui uma debilidade de historicização. Nesta perspectiva, apenas o objecto seria histórico; e somente o seria porque de Quinhentos ou Seiscentos. Felizmente, as práticas de leitura, frequentemente inestimáveis, saem para fora do compasso teorético.

Neste ponto, interessa saber que algumas objecções ao movimento (e das mais impressivas) insistem na sua filiação novicrítica de facto: não tendo a ver com nenhuma espécie de historicismo, seria antes uma forma de close reading aplicada à comparação arbitrária de textos, (Hume, 1992) ou seria um formalismo da bricolage, em que polissemia e ambiguidade deixaram de ser os modos de funcionamento intrínseco do texto literário para passarem "a figurar as operações da história". (Liu, 1988)

Nestas condições, observa Alan Liu, o new historicism denotaria o embaraço histórico do intelectual pós moderno, demasiado consciente de si. Céptico quanto à possibilidade de conhecer o mundo e o outro (ou, mais, de aí intervir), encontrou no medium dos estudos históricos a oportunidade de se retratar na pose ansiosa de quem os busca; e, a bem da verosimilhança da atitude, far nos ia menção de sair do vaso perfeito do texto literário. De modo idêntico, a sua insistência no poder e na autoridade — problemática notoriamente foucaldiana — confessa nos, na mesma forma do embaraço, uma efectiva ausência de poder e de autoridade do intelectual academizado. (Liu, id.)

Estas críticas — dimensão pós moderna do intelectual crítico à parte — não parecem levar muito em linha de conta a reformulação geertziana do new historicism, empreendida por Greenblatt. (cf. Greenblatt, 1988) Em contrapartida, Hayden White pôde apreciar o conjunto e decretar lhe a falência teorética de facto, aferindo o por aquela mesma Teoria que o movimento privilegiou. O novo historicismo seria pré teórico (ou seja, situar se ia aquém do pós estruturalismo), por isso que denotaria a presença de três ilusões, a meu ver qualquer delas dependente de princípios historicistas, por isso mesmo que ou são ilusões ou, como a última (onde porventura cabem críticas como as de Liu), já próteses de organicidade:



*

ilusão genética (ou seja, interpretação do texto à luz do seu contexto histórico)
*

ilusão referencial (porque, ignorando da lição derridiana, se começa pela distinção texto contexto)
*

ilusão textualista (segundo a qual a história é um texto, o social é uma função da cultura que não menos será um texto, e a relação entre esta e a literatura é de cariz intertextual). (White, 1989)



White assaca ao new historicism precisamente a ingenuidade epistemológica de que ele se quer emancipar. Mas faltou lhe observar que todas aquelas miragens são combatidas, ou, pelo menos, denegadas. Porque o new historicism, tomado no seu conjunto e nas suas contradições, quer de facto emancipar se delas.



5. A descrição densa vai representando em Greenblatt o teorético mais positivo e o mais forte compromisso com ele. Parece me que à vista daquela ressalva wittgensteiniana ao fundacionalismo teórico que é justamente a descrição. De resto, a tendência nominalista é dominante no que toca aos operadores mais globais, metaforicamente genéricos mas pouco específicos: energia social, negociação e circulação. As motivações desta configuração — e é isto que torna Greenblatt o autor mais exemplar de todos os new historicists — suponho eu que residam numa identificação temática de base, assentida embora repudiada (ou porque repudiada), entre determinar e conhecer. Ora, determinar, determinismo e afins (como teoria quando por eles definida), são termos proscritos na transformação pós estrutural do campo dos estudos literários. Assim, o new historicism pode descrever se como um conjunto de práticas de leitura permanentemente e em acto acompanhadas pela revisão verbal dos seus resultados (e devem considerar se estes instantes metatextuais como a mais autêntica manifestação da sua teoria e da sua metodologia). Segundo os seus bons princípios, o novi historicista tem de des conhecer; e cada triunfo em conhecer é uma derrota dos princípios. Em retrospecto, estamos condenados a este triunfo de Pirro: produzimos os objectos de estudo como determinados e conhecidos, e apenas podemos ressalvar que o não são. Quem nos crê? Muita gente.



NEW CRITICISM



Bib.:



Gearhart, Suzanne

(1997) "The Taming of Michel Foucault: The New Historicism, Psychoanalysis, and the Subversion of Power", New Literary History, 28:3.



Greenblatt, Stephen

(1980) Renaissance Self Fashioning, Chicago.

(1988) Shakespearean Negotiations, Berkley.

(1990) Learning to Curse. Essays in Early Modern Culture, New York London.

(1991) Marvelous Possessions. The Wonder of the New World, Oxford.



Hume, Robert

(1992) "Texts Within Contexts: Notes Toward a Historical Method", Philosophical Quarterly, 71.



Kinney, Arthur F.

(1993) "Ce que savait Shakespeare", L'Âne, le magazine freudien, 56.



Liu, Alan

(1989) "The Power of Formalism: The New Historicism", ELH, 56:4.



MERQUIOR, José Guilherme

(1979) The Veil and the Mask. Essays on culture and ideology, London, Boston & Henley.



Montrose, Louis A.

(1989) "Professing the Renaissance. The Poetics and Politics of Culture", in Veeser, H. Aram (ed.) The New Historicism, New York London.

(1993) "Coordonées du N.H.", L'Âne, le magazine freudien, 56.



Ross, Marlon

(1990) "Contingent Predilections: The Newest Historicism and the Question of Method", Centennial Review, 34.



(1982) The Forms of Power and the Power of Forms, special issue, Genre, 15.



Simpson, David

(1988) "Literary Criticism and the Return to 'History', Critical Inquiry, 14.

Thomas, Brook

(1991) The New Historicism and Other Old Fashioned Topics, New Jersey.



White, Hayden

(1989) "New Historicism: A Comment", in Veeser, H. Adam (ed.) The New Historicism, New York London.





Américo António Lindeza Diogo

A linguagem que fala de si mesma: Metalinguagem

A palavra metalinguagem, formada com o prefixo grego meta, que expressa as idéias de comunidade ou participação, mistura ou intermediação e sucessão, designa a linguagem que se debruça sobre si mesma. Por extensão, diz-se também: metadiscurso , metaliteratura, metapoema e metanarrativa .

Em seu estudo sobre as funções da linguagem, Roman Jakobson (1974) considera função metalinguística quando a linguagem fala da linguagem, voltando-se para si mesma. Tal função reenvia o código utilizado à língua e a seus elementos constitutivos. A gramática, por exemplo, é um discurso essencialmente metalinguístico porque se trata do código explicando o próprio código. Quando se faz análise sintática, faz-se uso dessa função.

Quando consultamos o dicionário para nos inteirarmos do significado da palavra metalinguagem, estávamos nos valendo da função metalinguística, pois o dicionário é um repertório de palavras sobre palavras, à disposição do falante, nativo ou não. É interessante registrar, contudo, que o que parece ser uma mera lista de palavras no seu sentido denotativo, mais corriqueiro e imediato, já contém potencialmente a múltipla carga de significações e, conseqüentemente, de sedução da língua.

Mesmo no dia-a-dia, fazemos uso constante da função metalinguística sem, muitas vezes, nos darmos conta disso. Ao interromper um falante para perguntar o significado de uma palavra, estamos também nos utilizando desta função.

Mas há um conceito de metalinguagem mais específico e complexo porque envolve um trabalho mais elaborado do código sobre o código. O cinema, os quadrinhos, a propaganda, as artes plásticas e a própria literatura fazem amplo uso dessa função. Assim, quando um escritor escreve um poema e discute o seu próprio fazer poético, explicitando procedimentos utilizados em sua construção, ele está usando a metalinguagem.



Eu faço versos como quem chora

De desalento... de desencanto...

Fecha o meu livro, se por agora

Não tens motivo nenhum de pranto.



Meu verso é sangue. Volúpia ardente...

Tristeza esparsa... remorso vão...

Dói-me nas veias. Amargo e quente,

Cai, gota a gota, do coração.



E nestes versos de angústia rouca

Assim dos lábios a vida corre,

Deixando um acre sabor na boca.



Eu faço versos como quem morre.

(BANDEIRA, 1990, p.119)



O poeta, no ato mesmo de fazer o poema, expõe seu conceito de poesia, explicitando sua função catártica, ou seja, aquela de meio de vazão dos sentimentos, de alívio mesmo de sofrimentos. Fundem-se, em seus versos, a idéia de poema e vida e, paradoxalmente, a de representação da morte. Registre-se que, no caso desse texto, o poeta não se distingue do eu lírico, pois ele se declara o autor. Essa característica que dá ao verso um toque pessimista pode ser considerada uma marca da poesia de Manoel Bandeira. Por outro lado, o eu lírico/autor busca no poema transcrito a adesão do leitor visando a compreensão do código, aqui visto no sentido mais específico de concepção do poema. É como se o poeta quisesse fazer um pacto com seu leitor, dando-lhe uma chave do que entende por poesia naquele momento. Este é o caso do poema Os meus versos, da poeta portuguesa Florbela Espanca:



Rasga estes versos que eu te fiz, amor!

Deita-os ao nada, ao pó, ao esquecimento,

Que a cinza os cubra, que os arraste o vento,

Que a tempestade os leve aonde for!

Rasga-os na mente, se o souberes de cor,

Que volte ao nada o nada dum momento!

Julguei-me grande pelo sentimento,

E pelo orgulho ainda sou maior!...



Tanto verso já disse o que eu sonhei!

Tantos penaram já o que eu penei!

Asas que passam, todo o mundo as sente...



Rasga os meus versos...Pobre endoidecida!

Como se um grande amor cá nesta vida

não fosse o amor de toda a gente!...

(ESPANCA, 1987, p. 72)



O interlocutor expresso na poesia seria, num primeiro momento, o ser amado pelo eu lírico, para, em seguida, tornar-se qualquer leitor que já tenha amado. É curioso observar que a expressão “Pobre endoidecida”, no último terceto, opera uma ambigüidade em relação ao eu que enuncia e ao receptor, pois pode ser vista como aposto ou como vocativo.

Como ressalta Décio Pignatari, vivemos uma infinidade de linguagens e o processo metalinguístico é inerente ao trabalho criador:

A multiplicação e a multiplicidade de códigos e linguagens cria uma nova consciência de linguagem, obrigando a contínuos cotejos entre eles, a contínuas operações intersemióticas e, portanto, a uma visada metalinguística, mesmo no ato criativo, ou melhor, principalmente nele, mediante processos de metalinguagem analógica, processos internos ao ato criador. (PIGNATARI, 1974, p.79)

Drummond, no seu livro Farewell, publicado postumamente, toma como tema de alguns poemas quadros famosos, apropriando-se inclusive de seus títulos. Assim fala de “O Grito”, conhecido quadro de Edward Munch:



A natureza grita, apavorante.

Doem os ouvidos, dói o quadro.

(ANDRADE, 1996, p.30)



Note-se que o escritor escreve seu poema enquanto lê o quadro: sua escrita é, simultaneamente, leitura intersemiótica uma vez que se trata de um poema voltado para um outro código, no caso o pictórico.

Os processos metalinguísticos não são, porém, exclusivos da literatura. A metalinguagem se faz presente muito freqüentemente nos filmes e na propaganda. Desde o título, o filme “Cinema Paradiso” evidencia o procedimento metalinguístico uma vez que seu enredo trata do próprio cinema. Na verdade, é um hino de amor ao cinema, que nos é apresentado como um forte elo entre o velho operador Alfredo - responsável pela projeção dos filmes - e Totó - seu ajudante e futuro cineasta. É interessante lembrar a cena final, posterior à morte de Alfredo. Totó, já adulto, retornando à cidade para o enterro do amigo, recebe uma lata com um filme feito por Alfredo com todos os beijos cortados pela censura na ocasião da exibição das fitas. São “beijos de amor” ao cinema. Além disso, pode-se associar a figura do Totó, enquanto cineasta, à do diretor do filme a que assistimos, contando sua própria história. Vale a pena ver ainda, nesse mesmo sentido, filmes como A Rosa Púrpura do Cairo e Tiros na Brodway, de Woody Allen, A mulher do tenente francês, de Karel Reisz, Carmem, de Carlos Saura, A flor do meu segredo, de Almodóvar e muitos outros.

Nas artes plásticas, tal recurso pode ser observado, por exemplo, no famoso quadro de Velázquez, “As meninas”, onde o pintor se retrata pintando o quadro. Num jogo de olhares com o espectador, ele o traz para dentro do quadro, deslocando lugares instituídos. É a pintura retratando o ato de pintar, uma maneira mesmo de se encarar esse ato.

Uma forma especial de metalinguagem é justamente a crítica que nomeia procedimentos do texto literário. Porque a análise literária trabalha diretamente com a função poética, ela se vale da função metalinguística que lhe fornece a terminologia necessária:

(...) a crítica haverá de convocar todos aqueles instrumentos que lhe pareçam úteis, mas não poderá jamais esquecer que a realidade sobre a qual se volta é uma realidade de signos, de linguagem portanto. (CAMPOS, 1992, p.11-12)

Sobre a característica metalingüística da atividade da crítica nos fala ainda Haroldo de Campos:

Crítica é metalinguagem. Metalinguagem ou linguagem sobre a linguagem. O objeto - a linguagem-objeto - dessa metalinguagem é a obra de arte, sistema de signos dotado de coerência estrutural e de originalidade. (CAMPOS, 1992, p.11)

Na verdade, enquanto o poeta faz a relação da linguagem com o mundo, o crítico faz a relação com a linguagem do poeta, mantendo, assim, certa hierarquia entre os discursos. Registre-se que, na crítica contemporânea, existe uma tendência a se abolir as fronteiras discursivas, isto é, a linguagem do crítico mistura-se à do autor, erigindo-se também como um discurso criativo. Essa crítica é chamada de escritural ou crítica-escritura por incorporar na sua a linguagem criativa para a qual se volta.

Também o romance se faz ensaio e discute, não apenas sua própria construção, como a construção de outras formas literárias em sua relação com a produção e a recepção. A esse tipo de romance, que tem consciência de si mesmo, dá-se o nome de metaficção já que ele relativiza e dramatiza as fronteiras entre ficção e crítica. A esse propósito, diz Mark Currie na introdução de um livro, Metafiction, coletânea de ensaios sobre o assunto:

O romance auto-consciente tem, assim, o poder de explorar não apenas as condições de sua própria produção, mas as implicações da explanação narrativa e da reconstrução histórica em geral. (CURRIE, 1995, p.14)

Assim, vê-se que a metalinguagem atravessa formas diversas de linguagem de forma recorrente e interativa já que a maioria das produções culturais vale-se desse processo auto-reflexivo.



Bib.:

ANDRADE, Carlos Drummond. Farewell. Rio de Janeiro : Record, 1996.

BANDEIRA, Manuel. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1990.

CAMPOS, Haroldo. Metalinguagem e outras metas: ensaios de teoria e crítica literária. 4.ed, São Paulo: Perspectiva, 1992.

CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa. 2a. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.

CURY, Maria Zilda Ferreira e WALTY, Ivete Lara Camargos. Textos sobre textos: um estudo da metalinguagem. Belo Horizonte: Dimensão, 1998.

CURRIE, Mark (Ed). Metafiction. London: Longman, 1995.

ESPANCA, Florbela. A mensageira das violetas. São Paulo: LP&M, 1997.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio Eletrônico. V 1. 3. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994.

JAKOBSON, Roman. Lingüística e Comunicação. Trad. Izidoro Blikstein e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1974.

PIGNATARI, Décio. Semiótica e literatura. São Paulo: Perspectiva, 1974.

TODOROV, DUCROT. Dicionário Enciclopédico das Ciências da Linguagem. Trad. Alice Miyashiro et al.. São Paulo: Perspectiva, 1977.

CHALUB, Samira. A Metalinguagem. (1986)



Ivete Lara Camargos Walty e Maria Zilda Ferreira Cury