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ANACOLUTO

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Interrupção violenta ou progressão inconsistente da sequência lógica de uma frase, que continua ou finaliza em termos substancialmente diferentes do seu início. Por esta razão, também se chama ao anacoluto frase quebrada. Por exemplo: “O dia, esse bojo de linfa, uma vertigem de hélio - arcaicamente / como pretexto para luzirem / cortejos: animais, bárbaros crânios de ouro; / um branco suspiro, extenua as gargantas dos áruns; / pálpebras no granito despedem-se do mundo.” (Herberto Helder, Última Ciência, 1988, in Poesia Toda, 1990).

O anacoluto é comum na linguagem coloquial e também frequente na poesia e na oratória. Nas situações discursivas da oralidade que não respeitam as regras de concordância verbal ou a sintaxe, o anacoluto é considerado uma corrupção gramatical. São muitas as construções orais que constituem anacolutos, por exemplo: “O avião, não te disse, está atrasado.”, em vez de: “Não te disse que o avião está atrasado?” Este tipo de anacoluto não funciona, naturalmente, como recurso estilístico, por isso tende a ser considerado um mero problema de solecismo. Portanto, em termos restritos, pode-se considerar anacoluto apenas um problema de concordância: um sujeito inicial que fica sem predicado, para concentrar a atenção num segundo já acompanhado de predicado que não serve o primeiro. A tradição gramatical define ainda o anacoluto apenas como a utilização do pronome relativo sem antecedente, situação muito frequente nos provérbios: “Quem escuta de si ouve.” e na poesia: “Que uma coisa pensa o cavalo; / outra quem está a montá-lo.” (Alexandre O’Neill, “A história da moral”, Poesias Completas, IN-CM, Lisboa, 1990).



ZEUGMA



Bib.: Albertina Fortuna Barros: “Anacoluto”, Revista de Portugal, 31 (1966); Eunice Pontes: “Anacoluthon and 'Double Subject' Sentences”, in Proceedings of the XIIIth International Congress of Linguists (Tóquio, 1983)/Cadernos de Linguística e Teoria da Literatura, 7 (Belo Horizonte, 1982); Ludger Hoffmann: “Anakoluth und sprachliches Wissen”, Deutsche Sprache: Zeitschrift fur Theorie, Praxis, Dokumentation, 19, 2 (Berlin, 1991); Nils Erik Enkvist: “A Note on the Definition and Description of True Anacolutha”, in Duncan Rose Caroline e Theo Vennemann (eds.): On Language: Rhetorica, Phonologica, Syntactica (1988).



Carlos Ceia

HERÓI-CÔMICO

sábado, 29 de agosto de 2009

Tipo de alto burlesco que simula genericamente o modo heróico ou épico no tratamento de assunto trivial ou mesquinho. Como todas as outras variedades de burlesco, sustenta deliberadamente uma incongruência entre estilo e assunto. Quando o alto burlesco imita determinada obra e não apenas modo e estilo em dimensão genérica, estamos perante uma paródia. Em contrapartida, o baixo burlesco usa estilo trivial ou mesquinho para assunto sério ou elevado (podendo então chamar‑se hudibrástico, termo derivado de Hudibras, poema narrativo de Samuel Butler, autor da Restauração inglesa), ou na imitação de determinada obra (modalidade apelidada de travesty).

O burlesco teve grande aceitação em certas épocas, inclusive na Europa dos séculos XVII e XVIII, constituindo implícito reverso irónico de rigorosas distinções normativas concordantes com o decorum da teorização neoclássica. Numa primeira fase do Período Augustano da literatura inglesa, por exemplo (entre a Restauração monárquica de 1660 e o final da dinastia de Orange, em 1714), predominaram obras de baixo burlesco; numa segunda fase do mesmo período (do início da dinastia seguinte, de Hanover, e aproximadamente até meados do século XVIII, em plena época Georgeana) avultaram exemplos de alto burlesco. Em todas as épocas, porém, se encontram as várias modalidades e, eventualmente, respectivos cruzamentos. A simulação herói-cómica não implica necessariamente uma depreciação do estilo ou dos subgéneros simulados; frequentemente testemunha até considerável apreço dos seus autores por formas épicas tradicionais. Ao recorrerem a tal simulação, muitos escritores europeus dos séculos XVII e XVIII visam ainda prestar tributo a formas clássicas, em geral valorizadas pelas elites, mas cada vez menos harmonizáveis com o teor da cultura burguesa moderna e os gostos do chamado grande público.

BURLESCO; POEMA HERÓI-CÓMICO

Bib.: Arthur Pollard: Satire (1970, várias reimp.); John D. Jump: Burlesque, (1972, várias reimp.); F. Bar: Le Genre burlesque en France au XVIIe siècle. Étude du style (1960); J. Emelina: Le Comique (1991)
J. M. de Sousa Nunes

VORTICISMO

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Movimento modernista fundado em 1914, por Wyndham Lewis, como forma de reacção ao Futurismo. Lewis é uma das figuras nucleares na viragem para a modernidade que se opera na literatura e na arte inglesas deste século. Com Wadsworth, deu corpo, em 1913, ao Rebel Art Centre. Um ano mais tarde fundaria a revista Blast que se tornaria o veículo dos princípios teóricos dos vorticistas. Apesar de terem vindo a lume apenas dois números (em Junho de 1914 e em Julho de 1915), esta tornou-se uma referência incontornável para o estudo do modernismo anglo-saxónico. Após a sua experiência imagista, Ezra Pound aderirá ao vorticismo tendo contribuído com esta designação. Segundo ele, ela justificar-se-ia devido ao carácter nuclear da energia na concepção poética e estética do grupo. Deste modo, mais do que uma representação, o signo revelar-se-ia como fonte de energia vital e, consequentemente, de acção.

Bib.: Wyndham Lewis: Blast: The Review of the Great English Vortex (1914-1915).

http://www.ciberkiosk.pt/arquivo/ciberkiosk4/ensaios/lewis.htm

Mário Avelar

Neologismo

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Termo utilizado para classificar uma palavra nova que surge numa língua devido à necessidade de designar novas realidades - novos conhecimentos técnicos, objectos gerados pelo progresso científico (neologismos técnicos e científicos) e até por questões estilísticas e literárias, tornando a língua mais expressiva e rica (neologismos literários).

O que sucede quando precisamos de atribuir um novo nome para designar uma ideia ou objecto novos é escolher uma destas opções: formar uma palavra nova a partir de elementos que já existam; adoptar um termo de uma outra língua; alterar o significado de uma palavra já antiga. Daí que os neologismos criados possam possuir diferentes processos de formação: por derivação (ficcionismo, metaficção), por composição (astronauta, homeopatia), por imitação de outras palavras já existentes na língua (eurocrata), por transferência de vocábulos pertencentes a outras línguas (clicar, inputar, scannear), ou palavras completamente novas que são criadas. Neste último grupo, incluem-se os neologismos literário-estilísticos que são criados para se conseguir um efeito único, especial, ou tornar uma frase mais maleável, concentrando uma expressão numa palavra, de modo a tornar o sentido mais explícito, por exemplo: «trotamundos» (forma como Walter, uma das personagens de O Vale da Paixão é referida várias vezes, pelo pai, por não permanecer muito tempo no mesmo local) e o substantivo seu derivado: «[…] estava no auge da trotamundice, e por isso não viria.» (Lídia Jorge, O Vale da Paixão, 3ª ed., Publicações D. Quixote, Lisboa, 2001 (1ª ed., 1998), 96); «gouvarinhar» (verbo criado por Eça de Queirós em Os Maias para se referir aos momentos de conversa, convívio, em casa da família Gouvarinho); «Quase não tatibitatibiava» expressão que faz referência a uma personagem de A Torre da Barbela que, em determinada situação, exagerava no uso do som [t] (Ruben A., A Torre da Barbela, Presença, Lisboa, s.d., 54); «…a culpa foi do tragalhadanças do Achado que não vê onde põe os pés» (José Saramago, A Caverna, Caminho, Lisboa, 2000, 128). A literatura é o campo privilegiado para o desenvolvimento de neologismos como se os autores tivessem plena liberdade com os sons, as sílabas, as regras sintácticas. Neste grupo de palavras novas que são criadas, incluem-se, também, os termos originários da gíria dos jovens que, após algum tempo de resistência, acabam por integrar o vocabulário português: «bué» (muito); «cota» (pai, mãe, qualquer outro adulto).

A uma outra categoria pertencem os neologismos publicitários que associam à função técnica do objecto uma conotação poética, tornando a mensagem útil e agradável. Muito frequentemente, usam o prefixo anti-, de modo a reforçar uma característica positiva do produto, como por exemplo: anti-aderente, anti-esturro.

Os neologismos podem pertencer ao léxico se se tratarem de vocábulos totalmente novos na forma e no conteúdo, ou à semântica, se se tratarem de palavras já existentes, mas que adquiriram um novo significado com a evolução dos tempos («focar» que etimologicamente significa fazer convergir raios emitidos por uma fonte de calor, quando reflectidos em espelho curvo ou refractados através de lente, foi com o passar dos tempos adquirindo o significado de abordar, referir, tratar, salientar, pôr em evidência). Outro processo de construção de neologismos é o que diz respeito aos acrónimos, que são vocábulos formados pelas iniciais de um conjunto de palavras que designam uma entidade, organismo, por exemplo: SIC- Sociedade Independente de Comunicação; NATO- North Atlantic Treaty Organization.

Uma outra forma de neologismos é aquela que corresponde à adopção de palavras de origem estrangeira, por comodidade, e por se considerar que é a palavra exacta para designar aquela realidade, por exemplo: abat-jour, download, site. São os estrangeirismos - uns mantêm a grafia original, outros adquiriram imagem, forma portuguesa: jóquei, clube, futebol. A partir destes, podem construir-se outros neologismos, como por exemplo: hamburgueria (hamburguer), pizzaria (pizza), que funcionam ao mesmo nível de padaria (pão) e sapataria (sapato), etc.

Os neologismos constituem processos fundamentais de renovação do léxico, a par dos arcaísmos que marcaram a sua presença de forma oposta (desaparecimento de palavras da língua que deixam de ser usadas pelos seus falantes).

BIBL: Ieda Maria Alves: Neologismo: Criação Lexical (1990); Marcel Cressot, O Estilo e suas Técnicas, s.d; Henri – Pierre Jeudy, La Mort du Sens: l’idéologie des mots, (1973); M. Rodrigues Lapa, Estilística da Língua Portuguesa, (1975); Stephen Ullmann, Semântica: Uma Introdução à Ciência do Significado, (1964).

Lurdes Aguiar Trilho

NARRAÇÃO

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Termo derivado do Latim narratio. Acto de narrar acontecimentos reais ou fictícios. Numa concepção clássica a narração corresponde a uma das partes da epopeia, nomeadamente à que surge depois da proposição e onde são contados os acontecimentos e os episódios mitológicos e históricos da obra. Para Aristóteles, o termo narração designa um modo de discurso específico que se interpõe entre os modos lírico e dramático.

O desenvolvimento da narratologia alargou, porém, este conceito, assim, Genett, em Discurso da Narrativa,(1972), nomeia-a de “a instância produtiva da enunciação.”

A narração implica que se enuncie os acontecimentos estabelecendo uma relação temporal entre eles. Para que uma história possa ser contada, ela deverá tomar a forma de discurso e, como tal, a narração implica uma voz (a do narrador) que o efectue e um tempo em que se expresse. Não apenas o facto narrado se afasta temporalmente do facto sucedido, mas também a voz que o enuncia é outra que a do sujeito que viveu o acontecimento. Mikhail Bakhtin, em Estética e Teoria do Romance, (1972), explica: “Se narro (ou relato por escrito) um facto que acaba de me acontecer, eu já me encontro, como “narrador” (ou escritor), fora do tempo e do espaço em que o episódio teve lugar. A identidade absoluta do meu “eu” com o “eu” de quem eu falo é tão impossível como pendurar-se alguém em si próprio pelos cabelos.” Assim, a distanciação da realidade é inerente à narração e remete para a ficção, pois uma história contada, nunca será igual àquela que realmente aconteceu, uma vez que entre as duas há o tempo e a experiência pelos quais o agente da enunciação passou, tornando-o num “outro” que não estava lá aquando do acontecimento. Deste modo, a narração requer o uso do Pretérito Perfeito, dos Pretéritos-mais-que-Perfeitos e, ou da variante estilística que é o Presente Histórico. Há, contudo, situações em que a narração pode ser anterior aos acontecimentos, no caso de premonições, sonhos, profecias de acontecimentos futuros: “The Bible says that there will be two women grinding corn – one will be taken and one will be left. There will be two in the bed.” Norman Mailer, Tough Guys don’t dance, (1984). A narração no Pretérito é, no caso das narrativas passadas no futuro, paradoxal, e segundo David Lodge, The Art of Fiction,(1992) este tempo é apenas usado para projectar a ilusão ficcional da realidade. Por ex., em Orwell, 1984. Este autor refere também o exemplo de Michael Frayn, A Very Private Life, que abre com a utilização do Futuro, “Once upon a time there will be a girl called Uncumber (...)” ainda que o seu autor tenha optado pelo uso do Presente para o resto da narrativa. Nos monólogos interiores, encontramos um protótipo de narração simultânea, pois a distância temporal entre o acto narrado e o acto da narração é nula: “(...) e ele pensou Deixei definitivamente de ser pássaro, ancorei no lodo e na lama de Aveiro como os botes sem préstimo, reduzidos ao esqueleto das travessas, comidos pelos mexilhões e pelas lula.” António Lobo Antunes, Explicação dos Pássaros (1981) onde, apesar da presença do verbo introdutor de um discurso “ele pensou”, entre a substância diegética e o acto narrativo há uma consolidação de vivências da personagem que os torna simultâneos, anulando a distância temporal entre eles e a utilização do Pretérito Perfeito Simples não remete para um tempo passado, mas sim para aquele momento interior presente. O monólogo interior pode ser ainda imitado através da técnica do discurso indirecto livre. Para que tal suceda, ele terá de expressar as emoções, as sensações, as memórias, as fantasias, as indecisões, as incertezas, os medos, os fantasmas, enfim, toda a dramatização verbal interior que constitui a consciência subjectiva do indivíduo aquando consigo mesmo. Um tal discurso terá de ser, certamente, libertado das regras temporais, usualmente, utilizadas pela narração, uma vez que o seu tempo será o psicológico, pois o discurso é colocado na consciência da personagem: “Mrs Dalloway said she would buy the flowers herself. For Lucy had her work cut out for her. The doors would be taken off their hinges; Rumperlmayer’s men were coming. And then, thought Clarissa Dalloway, what a morning – fresh as if issued to children on a beach.” Virginia Woolf, Sra Dalloway (1925). O narrador dá a voz à consciência da personagem, afastando-se, aproximando-se ou jogando com ela, acercando-se intimamente da personagem imitando o seu estilo e tom, de forma a (re)criar a dramatização de um monólogo interior.

A par da narração surge frequentemente a descrição, criando uma díade que convém aclarar. A narração, viu-se, é identificada, em regra, pelo recurso a determinados tempos verbais, os quais para a língua portuguesa serão os do Pretérito Perfeito, pela sua dinâmica acentuada por uma sequência de acções e limitada pela temporalidade dessas acções e pela velocidade, maior ou menor com que os eventos vão surgindo, desenvolvendo-se e dando lugar a outros. Por outras palavras, a narração afasta-se das situações estáticas. Contrariamente, a descrição incide sobre objectos narrativamente inanimados, e.g., Andy Warhol filmando Joe d’Alessandro, The Sleep, dormindo durante três horas. Os objectos das descrições, dentro da narrativa, funcionam, normalmente, como cenário de uma acção no devir temporal e estão destituídos da transitoriedade das acções acabadas ou em progressão, por isso, o recurso ao Pretérito Imperfeito para consolidar essa intemporalidade. Contudo, é este factor intemporal que dá maior ou menor ênfase ao evento que a interrompe ou que lhe sucede e que contribui para efeitos como os de suspense, de surpresa, ou de integração, entre outros. Assim, a descrição é, funcionalmente, o décorum para a realização do evento. Por outro lado, a díade narração/descrição é inseparável, ela é um ser híbrido, vegetal e animal, que pertence às belas letras e que se completa em si mesma, não surtindo o efeito estético se for separado em diferentes segmentos: “He pointed to his boots which were white with dust, while a dejected flower drooping in his buttonhole, like an exhausted animal over a gate, added to the effect of length and untidiness. He was introduced to the others. Mr. Hewet and Mr. Hirst brought chairs, and tea began again.” Virginia Woolf, The Voyage Out, (1915).



NARRADOR; NARRATIVA; NARRATOLOGIA



Bib. David Lodge, The Art of Fiction (1992); - - - - - The Novel and the Consciousness, (2002); Gérard Genett, Discurso da Narrativa, (1972); Jean-Michel Adam e Françoise Revaz, A Análise da Narrativa, (1991); J. Pelc: "On the concept of narration", Sémiotica, 1 (1971).

Jorge Alves

GLOSSEMÁTICA

sábado, 22 de agosto de 2009

Teoria da linguagem elaborada pelo lingüista danês Louis Hjelmslev, tendo por colaborador H. J. Uldall, segundo a qual a língua deve ser estudada com um fim em si mesma, livre de considerações fisiológicas, sociais, literárias, etc. As demais teorias, até então, não fugiram a tais considerações, tratando, pois, a língua como um meio de algo, sem constituir um sistema autônomo. Destacamos, aqui, os seguintes pontos gerais da teoria:



(a) criação de um sistema científico (uma “álgebra da linguagem”) que refira uma constante válida para todas as línguas, com igual aplicação em suas variantes falada, escrita, Morse, etc.;

(b) um processo (o texto, nesse caso) pressupõe um sistema, e não vice-versa;

(c) o sistema é estruturado em classes e componentes, construindo uma hierarquia. Os componentes de um nível constituem classes em relação a um nível inferior, até que se obtenham os últimos componentes (figuras, num nível menor do que o do signo), a partir da classe mais alta (o texto);

(d) observância ao princípio empírico (numa nova acepção do termo), que implica três princípios dispostos em ordem de exigência: a descrição deve ser (i) sem contradições; (ii) exaustiva e (iii) a mais simples possível. Logo, privilegia-se (i) em relação a (ii) e (ii) em relação a (iii);

(e) a língua compreende, exclusivamente, formas, não cuidando das substâncias de que são recortadas, por serem elas amorfas e, portanto, sem uma possível constante, razão da falha das demais teorias, como se disse mais acima. Há formas de expressão e formas de conteúdo estudadas , respectivamente, pela Cenemática e pela Pleremática, as duas grandes áreas da Glossemática. Seus componentes mínimos são os cenemas e os pleremas.



A teoria lingüística de Hjelmslev foi estudada, sobretudo, pelo Círculo Lingüístico de Copenhague. Trata-se da primeira teoria semiótica e acabada, responsável na formação da Semiótica na França, segundo Greimas.





LINGUÍSTICA; SEMIÓTICA



Bib. : Alarcos Llorach: Gramatica estructural (Madrid, 1972); Michael Rasmussen: Louis Hjelmslev et la sémiotique contemporaine (1993); L. Hjelmslev: Prolegómenos a la teoría del lenguaje (Madrid, 1971).

Ramon Quintela

TEMPO

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Pertencem a Santo Agostinho as famosas palavras que dão conta da complexidade do tempo: “Que é, portanto, o tempo? Se ninguém me coloca a questão, eu sei; se alguém coloca a questão e se eu quero explicar, eu já não sei” (Les Confessions, Livres XI et XIV, 17. apud Molino, 2003, p.249).

Muito embora a categoria tempo incida, igualmente, nos modos dramático e lírico, o verbete que ora se apresenta, ainda que em termos resumidos, cuida de sua manifestação apenas no modo narrativo. Levar isso em consideração comporta deixar explícito que a temporalidade é o eixo estrutural, sobretudo, da narrativa.

Ressalva feita, a análise do tempo de uma narrativa basear-se-á na consideração de dois dos três planos em que a narrativa pode ser abordada: o plano da história e o plano do discurso. O primeiro diz respeito ao plano dos conteúdos narrados, e o segundo se reporta ao plano da expressão desses mesmos conteúdos. Em outros termos, significado e significante respectivamente. O tratamento em separado desses dois tempos paga tributo à comodidade expositiva, como bem salientou Carlos Reis (2000, p.406), já que eles estão, de forma íntima, relacionados.

A prevalência, até o momento, de exegeses que privilegiam tão-somente a temporalidade da história pode ser compreendida pelo fato de o tempo ser um constituinte bem visível nesse plano de análise. Com efeito, pode-se, por exemplo, averiguar com um rigor mais ou menos alto o tempo de uma história relatada pelo narrador. Isso se realiza elencando-se os marcos temporais que enquadram a narrativa. Assim, ter-se-á casos de histórias que duram horas, dias, semanas, meses, anos e até séculos. É, igualmente, respeitante ao tempo da história, que se costuma distinguir o tempo em cronológico e em psicológico. O tempo cronológico não é outro senão o tempo que o relógio assinala; já o tempo psicológico, por seu turno, é a maneira pela qual o tempo é subjetivamente vivenciado pelas personagens que povoam determinado mundo possível.

Se, em boa parte dos casos, acima de tudo naqueles em que abundam os marcos temporais, não oferece grandes dificuldades a aferição do tempo da história, o mesmo já não ocorre com o tempo do discurso: a metodologia para sua mensuração não é, de pronto, evidente. Seguindo a melhor tradição, contudo, mede-se o tempo do discurso pela sua extensão, quer dizer, pelo número de linhas e de páginas, o que dá uma idéia aproximada do tempo que seria gasto para ler determinado fragmento de um texto. Por isso, o tempo do discurso é, na verdade, um pseudotempo.

A riqueza e a conseqüente complexidade que o tempo do discurso confere à análise da narrativa é avaliada pela consideração dos três domínios com ele relacionados: a ordem, a velocidade e a freqüência. Daqui para diante, procurar-se-á tratar de cada um desses elementos, conforme os sistematizou, com muito acerto e perspicácia, o teórico francês Gérard Genette e os seus principais comentadores.

Em Discurso da Narrativa (1995, p.33), afirma Genette que estudar “a ordem temporal de uma narrativa é confrontar a ordem de disposição dos acontecimentos ou segmentos temporais no discurso narrativo com a ordem de sucessão desses mesmos acontecimentos ou segmentos temporais na história”. Se se atentar ao fato de que, na reconstituição do plano da história, os eventos se articulam necessariamente em ordem linear, um fenômeno verificado com acentuada freqüência nas narrativas será o da anacronia, quer dizer, o da “discordância entre a ordem da história e a da narrativa” (Genette, 1995, p.34). Em termos mais simples, conforme salientam Molino e Lafhail-Molino (p.267), “je peux raconter les événements dans un ordre différent de celui dans lequel ils se sont déroulés”. De duas espécies são as anacronias: analepse e prolepse. A primeira corresponde ao flash-back e a segunda ao flashforward ou à antecipação. A analepse é, fora de dúvida, bem mais freqüente do que a prolepse, e remonta aos primeiros textos literários de que se tem notícia. Vale lembrar os inícios in medias res das epopéias, que obrigavam o narrador a fazer retrospecções para que se entendesse o desenrolar da história.

A respeito da velocidade da narrativa, Genette (1995, p.87) salienta que ela configura-se “pela relação entre uma duração, a da história, medida em segundos, minutos, horas, dias, meses e anos, e uma extensão: a do texto, medido em linhas e em páginas”. Decorre daí uma primeira grande distinção que se deve ter em mente: a isocronia e a anisocronia. Quando se está diante de um processo cujo objetivo é conferir ao discurso da narrativa duração idêntica à da história relatada, então, estar-se-á diante de um procedimento isócrono. O procedimento será o da anisocronia quando houver “alteração, no discurso, da duração da história, aferindo-se essa alteração em função do tempo da leitura” (Cf. Carlos Reis, 2000, p.34). A cena, que, em geral, corresponde aos momentos mais dramáticos de uma narrativa, é um signo da isocronia. Os signos da anisocronia, por sua vez, são mais numerosos: a pausa (o tempo da história pára e continua o tempo do discurso), o sumário (o tempo da história é maior que o tempo do discurso) e a elipse (supressão de períodos de tempo, ou ainda, é anulado o tempo do discurso ao passo que prossegue o da história). Embora Genette não a considere como um signo autenticamente realizado pela tradição literária, é preciso lembrar a extensão – assim a denomina Carlos Reis (2000, p.154) -, que consiste no fato de o tempo do discurso ser mais longo que o tempo da história.

É por um efeito de combinação de todos esses signos que uma narrativa tem configurado seu ritmo, sua velocidade ou seu andamento. Assim, não é difícil supor que um relato no qual preponderem os sumários e as elipses e pouco espaço haja para cenas, pausas e extensões será uma narrativa inegavelmente veloz.

Considerar a freqüência de uma narrativa é ter em mira uma “relação quantitativa estabelecida entre o número de eventos da história e o número de vezes que são mencionados no discurso” (Cf. Carlos Reis, 2000, p.182). Como conseqüência, podem aparecer o discurso singulativo (a narrativa conta uma única vez o que aconteceu uma vez na história), o repetitivo (reporta o discurso em momentos distintos um acontecimento da história) e o iterativo (uma única emissão da narrativa representa várias ocorrências do mesmo evento).

Bib. Carlos Reis e Ana Cristina M. Lopes. Dicionário de Narratologia (2000); Jean Molino e Raphaël Lafhail-Molino. Homo Fabulator: théorie et analyse du récit (2003). Gerard Genette. Discurso da Narrativa (1995).

João Adalberto Campato Junior

FIGURA DE ESTILO

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

FIGURA DE ESTILO

Forma de ornamento do discurso, para obter um efeito especial de significação. Este sentido é herdado da retórica latina (figura, figurae), pois na tradição grega as figuras chamam-se schemata (“posturas”), ou expressões enunciativas, diferente de ornamento da expressão por força da modificação do significado das palavras. Desde a retórica clássica ao modernos manuais de estilo, a noção de figura de estilo confunde-se ou inclui outras designações próximas como figura de pensamento ou tropo, figura de linguagem, figura de retórica, figura de construção, figura de sintaxe, figura de dicção, figura de expressão, etc. Julgamos ser hoje útil reunir sob a designação de figura de estilo todas as formas de expressão ornamentada do discurso, entendendo-se por expressão ornamentada toda a expressão verbal controlada com o fim de produzir um efeito especial de adorno, elegância ou simples ênfase. Dentro da designação geral de figuras de estilo, podemos distinguir mais em particular (1) aquelas figuras que incidem sobre a pronúncia das palavras, chamadas figuras de dicção (apócope, síncope, sinalefa, hiato, aliteração, onomatopeia, etc.); (2) aquelas que incidem sobre a morfossintaxe, chamadas figuras de construção, que afectam a ordem das palavras no discurso (elipse, zeugma, anáfora, pleonasmo, anástrofe, paralelismo, etc.); (3) aquelas que incidem sobre uma invenção especial, chamadas figuras de pensamento ou tropos.

O uso de figuras de estilo não está limitado aos textos literários: usamo-las na linguagem comum do quotidiano, na publicidade, na comunicação social, na política, no desporto, etc. Repara-se na observação do retórico latino Quintiliano, que chama a atenção para a universalidade e evolução da linguagem figurativa: “Figures of speech have always been liable to change and are continually in process of change in accordance with the variations of usage. Consequently when we compare the language of our ancestors with our own, we find that practically everything we say nowadays is figurative.” (Institutio oratoria, IX, iii, 1-4, Harvard University Press, Cambridge, Mass., 1996, p.443). Devido ao efeito especial produzido no discurso, afastando-o da norma, o ouvinte/leitor/interlocutor tem mais probabilidades de ser afectado pela mensagem figurativa que se quer transmitir. A combinação de várias figuras de estilo no mesmo discurso pode contribuir não só para a sua originalidade como para o reforço da sua eficácia como discurso utilitário ou não, literário ou não. De notar que em muitas épocas, a excessiva afectação do discurso levou a exageros de linguagem que dificilmente cativam o público. Lembramos as experiências retóricas dos poetas barrocos, por exemplo, cuja postura literária os levava a acumular um grande número de figuras de estilo para produzir um efeito de máximo adorno do discurso, o que revelaria não só a sua erudição como o respeito pelo gosto da época. De referir ainda que a maior referência literária para a exemplificação de figuras de estilo continua a ser a Bíblia, onde predominam as metáforas, as comparações, as personificações, as hipérboles, as antíteses e as alegorias. As idiossincrasias culturais também influenciam a escolha do reportório retórico num discurso, por exemplo, a literatura oriental não privilegia figuras ao serviço da sátira de costumes ou da simples crítica pessoal ou social, preferindo uma maior moderação do discurso, se compararmos esta postura com as literaturas ocidentais, que sempre recorrem a todas as formas possíveis de adornamento do discurso, sem muitas vezes atender a regras de deontologia, bom senso, ou bons costumes. Pelo contrário, deste sempre as culturas ocidentais recorreram a figuras de estilo para reforçar a força de um argumento, de uma crítica ou de uma oração política de forma a ferir a atenção do público, qualquer que seja a deontologia subjacente. A ironia, por exemplo, tem, neste caso, um valor e uma prática naturalmente diferentes nas literaturas ocidentais, por oposição às literaturas orientais e africanas.

CONCEPTISMO/CULTISMO; CONOTAÇÃO/DENOTAÇÃO; ESTILO; ESTILÍSTICA; RETÓRICA

Bib.: Aristóteles: Retórica (Lisboa, 1998); Henrich Lausberg: Elementos de Retórica Literária (4ª ed., 1993); J. Dubois: Rhétorique générale (1970); K. Spang: Fundamentos de retórica: literaria e publicitaria (3ª ed., 1991); Monique Burke: Figuras de Estilo (1988); Roberto O. Brandão: Figuras de Linguagem (1989).

Carlos Ceia

VERBETE

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Apresenta-se um novo formato de texto com a palavra – hoje fala-se de “lema” –, exibida de maneira segmentada com a sua conceituação, que costuma incluir também uma descriçao do que representa. Este exercício da escrita busca plasmar o que o olhar que toma distância vê. Ainda assim, não é sobre qualquer palavra – qualquer coisa – que discorre o texto que vai apresentar-se no contexto de um dicionário. Na construção do objeto, há palavras que seriam mais propensas à dicionarização, porque representam, com mais propriedades, a coisas, o que facilitaria a inclusão numa lista lexicográfica. Tudo isso reflete o trabalho de quem toma para si este esforço de listar, o dicionarista, ou lexicógrafo. Por trás de um consulta a um dicionário, numa rotina escolar ou de estudo, está latente um esforço de sistematização que é arte da história intelectual da humanidade. Estamos representados nós, humanos, aí, nessa consulta banalizada (e por que não haveria de sê-lo?), realizada individualmente, figurados no nosso esforço e necessidade históricos de listar palavras que representem a realidade que nos circunda. Esforço intelectual da abstração e conceituação, que desembocam na descrição e finalizam num texto, formalizador dese processo. Ë uma das facetas de nossa universalidade, mas que encontra na Modernidade um momento particular, porque é aí que o texto consolida-se como verbete. A Ilustração, fruto do afã enciclopedista, propicia o ambiente intelectual para que o texto que busca descrever e conceituar as coisas da realidade, ou seja, o verbete, tome a forma que toma, inscrito numa seqüência textual “coletiva”, com uma proposta de leitura extensiva, ainda transitando num texto- volume, como é o caso das enciclopédias, que superam os tempos (DARNTON, 1986, 319).

Essa colagem intertextual solicita, por outro lado, um novo leitor. A leitura-consulta à enciclopédia é prática cultural que materializa os esforços de compreender o mundo. A estratégia da compartimentação acaba por dar dinamismo a esta leitura realizada por bocados, de maneira não- linear, numa soma que permite ao ator da leitura diferentes possibilidades de síntese. Perspectiva que também se apresenta para a (re)formulaçao do coletivo enciclopédico.

A textualização realizada instala uma situação discursiva – a todo momento re-instalada, nas consultas cotidianas que agora realizamos às inumeráveis enciclopédias, de potencial de reprodução potenciados com o suporte virtual –, que representa um momento de inflexão na história da leitura, para além do projeto enciclopedista em si mesmo, mas também graças a ele mesmo. Sim, a palavra agora é transferida num novo ritmo, mas, não nos enganemos, o leitor não recebe tal proposta de maneira passiva. Ele também apresenta-se como um leitor moderno, respondendo às demandas de um novo tipo de texto – o verbete - com sua vida própria, porém formulado de maneira a se apresentar também em conjunto com outros texto de natureza similar. Este entrelaçamento traduz-se numa espacialidade própria, que representa a novidade do pensamento da sua época. Sua vigência, até nossos dias, superando os tempos modernos, é um resquício da modernidade que impregna o nosso tempo. Por que não manter o que vem dando resultado e adequando-se com plasticidade às propostas de textos virtuais?

A enciclopédia propôs, provou e adequou um novo tipo de texto - o verbete - e foi ela mesma um coletivo de textos-verbetes, que propõe uma nova dinâmica de leitura. Podemos até questionar o caráter revolucionário do movimento, mas não esse impulso no devir histórico da leitura.

Ë verdade que um livro nunca chega incólume às mãos do leitor, nunca lhe chega sem marcas, conforme postula Bourdieu (in CHARTIER, 1996, 248); as enciclopédias chegaram às mãos dos usuários a partir de uma “classificação explícita”, que historicamente solicitou ao leitor um novo comportamento, havendo, inclusive, questões relacionadas ao acesso, edição e comercialização, enfim, à política dos livros, que interferem numa classificação que gera comportamentos por parte dos leitores, como bem estuda Robert Darnton. Por seu lado, o texto que sustenta o enciclopedismo é o verbete; na soma de verbetes é que está a unidade enciclopédica e este texto também interfere na dinâmica de classificação da enciclopédia, nos percursos possíveis que desembocam – ou não – na leitura. Esta perspectiva talvez não esteja muito visível graças à magnitude do projeto enciclopédico como um todo. Mas os indícios das práticas de leitura (na história da leitura podemos somente falar disso: indícios) devem ser pensados também a partir da sua fabricação , como textos que, na sua proposta de estrutura, são os alicerces do movimento, da sua filosofia.

Aceder a um livro e manuseá-lo, bem como a uma enciclopédia, é uma experiência histórica, experiência no sentido benjaminiano; e a leitura da enciclopédia, na sua unidade, tendo como ponto de partida a consulta ao verbete, também é uma experiência histórica. É parte do projeto enciclopedista, mas também é e foi uma prática concreta e traduz-se numa produção de sentido (GOULEMOT, in CHARTIER, 1996, 107). Nela, o leitor moderno e seus sucessores inventaram e reinventam novas possibilidades de leitura, sem necessidade de desfazer-se de percursos propostos anteriormente.. Não houve, desde o projeto enciclopedista, uma proposta única para o percurso da leitura: a consulta sem roteiros é o que impregna a disposição dos textos-verbetes, num leque de possibilidades inesgotáveis, ainda mais nas combinações de consulta entre verbetes. Uma busca lança a outra busca, as questões do conhecimento retroalimentam-se no corpo da enciclopédia e na sua relação com outros textos ou com a vida mesma. O hipertexto, da era do ciberespaço, finca origens quase arcaicas.

Não se trata aqui de buscar o elogio fácil ao enciclopedismo; em sociedades ainda com altos índices de analfabetismo, como na Europa do século XVIII, tal publicação não deixou de ser um projeto, até certo ponto, restrito. Além disso, os que liam, não necessariamente consultavam enciclopédias. Mas os indícios nos apontam as possibilidades de ler de tudo um pouco, ler também o não-canonizado, ler em desobediência em meio a conjunturas marcadas, limitações, leis de mercado, proibições, para além de uma política de estímulo à leitura, como vemos em nossos tempos. Encontramos, desta forma, o germe de um novo modelo de leitura nos verbetes e no seu entrelaçado, muito antes dos tempos da Internet, numa predisposição intertextual moderna, também na instalação do novo.

É graças a uma nova história levada a cabo ao longo do século XX que encontramos a possibilidade, na etapa inaugural do enciclopedismo, de ver, a partir de uma perspectiva ampliada socialmente, a participação de atores que explicaram as coisas nos verbetes da Enciclopédia, sem que fossem da Alta Ilustração; como acontece hoje, dicionários virtuais, cuja autoria dilui-se no anonimato, com maior ou menor controle dos especialistas, são elaborados a partir de uma ampliação horizontal das possibilidades de participação. Lá como aqui, atores que descreveram, mas também modularam o Verbo, adaptando a escrita à unidade do verbete (HAEMSCH et alii, 1982, 423), revisam constantemente, no calor das operações lexicográficas, a questão hierárquica na busca do saber. No Oitocentos, ou no meio da balbúrdia virtual de nossas atuais webs, são autores da(s) enciclopédias(s) que, por convicção, salário ou necessidade de vontade de participar de uma rede social ( e onde estará a fronteira entre estas possibilidades?) enunciam descrevendo, explicando, recortando e colando a informação, para que ela seja partícula do conhecimento de uma matéria. Tudo isso num texto que, por mais comprido que possa ser pensado por quem o elabora, é de natureza escrita: uma unidade mínima de significação com um conteúdo que explica uma coisa. Porque sabemos que numa enciclopédia, mais ainda num dicionário, “tamanho é documento”. A performance de elaboração do verbete requer que a análise se traduza numa estrutura com unidades fraseológicas que conferem ao verbete um aspecto imediatamente reconhecível para os leitores contemporâneos e posteriores ao movimento enciclopédico. Esse reconhecimento, que se dá na leitura do texto mais ou menos estandartizado, mostra o empenho posto na adequação do verbete ao meio de comunicação proposto, resultante de um processo de desenvolvimento de uma tecnologia lingüística.

Projeto com nuances pedagógicas, se pensamos da perspectiva do leitor que pode, a partir da consulta, motivar-se a lançar novos olhares sobre a realidade, sempre mais complexa do que a versão compactada no verbete. O verbete transita entre esta possibilidade - que sempre implica uma ampliação do conhecimento – e o risco da consulta encerrada no círculo vicioso da explicação taxativa, sem possibilidades de frutificar em debates e questionamentos. É a famosa sentença “está no dicionário”, que cala as perguntas. Assim, ir-se-ia desvanecendo-se o enciclopedismo na sua legitimação, que passa a jogar contra a construção do conhecimento e a produção do sentido, dos sentidos.



Enciclopédia. Texto. Hipertexto

Referências Bibliográficas:

CHARTIER, Roger (org.). Práticas da Leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 1996.

DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural francesa. Rio de Janeiro: Graal, 1986.

HAENSCH, G. et alii. La lexicografía. De la Lingüística Teórica a la Lexicografía Práctica. Madrid: Gredos, 1982.



Geruza Queiroz Coutinho e Latuf Isaias Mucci

terça-feira, 18 de agosto de 2009

ESTILO

Modo como se adequa a expressão ao pensamento, modo de escrever (do latim stilu(m), para habilidade no manejo da pluma no acto de escrita, mas originalmente para designar o instrumento d e ferro com que se escrevia sobre tábuas enceradas), ornato – são algumas definições primárias de estilo. Podemos acrescentar uma outra, proposta por Jonathan Swift: “Proper words in proper places, make the true definiton of a style.” (Letter to a Young Gentleman lately entered into Holy Orders (9-1-1720), o que parece ser um consenso no campo da criação literária, tal como a definição generalista de Comte de Buffon: “Ces choses sont hors de l´homme, le style est l’homme même.” (Discours sur le style, dirigido à Académie Française, 25-8-1753). A possibilidade de estender os valores semânticos do termo estilo permite-nos falar, por exemplo, de um estilo antigo (em inglês, diz-se Old Style [OS], para traduzir o métodp de cálculo de datas de acordo como calendário juliano); de um estilo novo (em inglês, New Style [NS], ou método de cálculo de datas de acordo com o calendário gregoriano); de um estilo internacional, aplicável na arquitectura do século XX; ou de uma folha de estilo (style sheet), para descrever as formas gráficas que um documento digitalizado pode ter. Todas estas acepções servem apenas para iniciar a discussão sobre os sentidos do termo estilo, que, mesmo dentro dos estudos literários, pode multiplicar-se ainda mais, mesmo sem entrar numa discussão maior que é a de saber, grosso modo, o que é um bom ou um mau estilo.

O estudo das possibilidades de construção do estilo é tarefa da estilística, que inclui um campo de reflexão sobre a própria noção de estilo, a aplicação do vocabulário e da sintaxe de forma a obter determinados efeitos a partir de uma norma linguística. O pressuposto inicial de construção de um estilo é o de que tal projecto exige um desvio a essa norma. A variedade de estilos é proporcional à variedade de processos de criação literária, pelo que é legítimo falar de variantes como (1) estilo de autor, quando se identificam certos rasgos linguísticos que são únicos num dado indivíduo; (2) estilo de época, quando um dado período da história literária impôs um modo de escrever muito codificado e segundo normas colectivas, falando-se, neste caso de estilo clássico, maneirista, barroco, romântico, etc.; (3) estilo de uma obra, quando nos referimos ao modo literário que um dado texto apresenta (lírico, narrativo ou dramático); (4) estilo temático, quando uma dada obra se concentra em temas específicos (políticos, filosóficos, religiosos, jornalístico, históricos, didácticos, etc.); (5) estilo qualificado, quando se opta por dar uma determinada ênfase ao discurso (neste caso o estilo pode ser diplomático, sarcástico, irónico informativo ou objectivo, humorístico, etc.); (6) estilo localizado, quando falamos de um modo de comunicação verbal próprio de uma comunidade linguística geograficamente localizada (estilo ático, dórico, flandrino, parisino, paulista, etc.). A Idade Média já simplifica estas variantes em estilo sublime (ou gravis), mediano (mediocres) e baixo (humilis), o que constituía uma espécie de código a seguir se se pretendia adequar correctamente o discurso ao pensamento e à situação de comunicação. Por exemplo, um vilão não devia expressar-se em estilo gravis e um nobre jamais recorreria ao estilo humilis, em ambos os casos por obediência ao decorum. Escrever bem, é pois, durante a Idade Média e até pelo menos ao Romantismo, obedecer a um certo número de normas retóricas. O classicismo socorreu-se de um número elevado de figuras de estilo, para tentar codificar todas as formas de expressão verbal, que incluíam, entre outras, as figuras de dicção, as figuras de construção, os tropos e as figuras de pensamento.

Esta ideia tradicional de estilo começa por ser discutida, no século XX, pelos trabalhos do filólogo suíço Charles Bally , para quem o estilo é antes uma possibilidade que a linguagem nos oferece entre outras formas de expressão. Na mesma linha, Edward Sapir há-de distinguir uma forma de literatura baseada na forma, que é intraduzível (Swinburne, Verlaine, Horácio, Catulo, Virgílio, por exemplo) e uma outra literatura que é baseada no conteúdo (Homero, Platão, Dante, Shakespeare, por exemplo). Esta dicotomia é tão discutível como a ideia de que o estilo é um reflexo da personalidade do autor. Cremos que na maior parte dos casos ao estilo está associado um trabalho de aprendizagem rigoroso de técnicas de expressão literária. É este trabalho que nos permitirá falar da singularidade ou originalidade de um estilo. Tal acontece, por exemplo, com James Joyce: o trabalho estilístico de Ulysses é metodicamente realizado pelo autor, que não despreza o poder da palavra para mostrar as fraquezas da evolução do mais universal dos idiomas: a história da língua inglesa está representada na cena da maternidade — um estudante fala absurdamente num inglês medieval, outro responde em estilo ordinário, enquanto um outro fala em estilo barroquista, que depois descai para a linguagem bíblica, para o calão, para a linguagem crua do quotidiano, etc. De permeio, o estilo de vários escritores de língua inglesa, já devidamente canonizados, de Mandeville a Dickens, é recuperado para situações cómico-satíricas. O que escritores modernistas como Joyce fizeram foi um uso sistemático da paródia como recurso de dissemelhança estilística, isto é, procura-se satirizar estilos convencionais sobrepondo-lhes outros estilos tidos por modernos. A simples intenção de dissemelhança de um dado estilo em relação a um outro que previamente tinha sido reconhecido como convencional ou fora-do-tempo-presente era considerada como uma postura modernista. Este exemplo de criação estilística mostra também que o estilo envolve mais do que um simples efeito de linguagem que qualquer teoria linguística pode identificar objectivamente. O estilo não é a simples estrutura do texto nem é um código que preceda a leitura, o que permitiria a sua imediata descodificação segundo regras preestabelecidas. O estilo é trabalho sobre a língua e sobre a escrita, não sujeito nem identificável a priori num qualquer catálogo de formas elegantes de expressão.



ESCOLA LITERÁRIA; escrita; ESTILÍSTICA; GOSTO; RETÓRICA

Bib.: Cesare Segre: “Estilo”, Enciclopédia Einaudi, vol.XVII (1989); Fernando Venâncio: Estilo e Preconceito: A Língua Literária em Portugal no Tempo de Castilho (1998); Gérard Genette: Fiction et diction (1991); J. Middleton Murry: The Problem of Style (1976); Marcel Cressot: O Estilo e as suas Técnicas (Lisboa, 1970); Nils Eric Enkvist et al.: Linguística e Estilo (São Paulo, 2ª ed., 1974); Seymour Chatman (ed.): Literary Style : A Simposium (1971); Sírio Possenti: Discurso, Estilo e Subjetividade (São Paulo, 1988); Thomas E. Sebeok (ed.): Style in Language (1960).

Carlos Ceia

Leitor

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Embora desde sempre o leitor tenha tido um papel privilegiado no processo da análise e crítica literária, foi só no século XX que surgiram as teorias que podemos designar, genericamente, por teorias de recepção, ou seja, teorias cujo principal objecto de interesse é a resposta do público às obras literárias. São duas as principais tendências teóricas orientadas para o leitor: as teorias de resposta americanas e a estética da recepção alemã. Contudo, também a crítica fenomenológica, a desconstrução, a crítica psicanalítica, a semiótica estruturalista, e até a New Criticism americana contribuíram de alguma forma para avançar mais um pouco na conquista da autoridade do leitor enquanto sujeito, por excelência, da concretização da literatura. Alguns teóricos, no entanto, são incluidos em determinados movimentos ou escolas sem que eles próprios tenham declarado uma simpatia ou posição em particular, como é o caso de I. A. Richards. Outros, como Roland Barthes, têm uma história complicada de ligações a movimentos opostos. Outros ainda, como Jonathan Culler, propuseram-se conciliar teorias aparentemente inconciliáveis. Por consequência, se considerarmos que os dois grandes pontos de referência da teoria literária deste século são o formalismo e o pós-estruturalismo, (já que o primeiro inaugurou o estudo das obras “em si” e o segundo rompeu definitivamente com o estudo da pretensa objectividade estrutural da literatura), não é correcto considerar que as teorias de recepção fazem parte apenas dos movimentos pós-estruturalistas. Mas o problema da contextualização destas teorias no quadro da crítica literária é mais complicado ainda. Segundo Jane P. Tompkins, no seu estudo histórico sobre o papel do leitor neste panorama (Reade-Response Criticism: from Formalism to Post-structuralism), não só as teses de recepção se encontram todas inevitavelmente ligadas ao formalismo, na medida em que continuam a prezar o sentido como objecto primordial da interpretação e crítica literária e a admitir, na prática, todas as características do texto descritas pelo formalismo, como ainda, se formos rigorosos, há que considerar que toda a crítica literária, desde a Antiguidade Clássica até ao formalismo se preocupou mais, e mais genuinamente, com a recepção das obras por parte do público, do que as teorias que declararam fazê-lo no século XX. De acordo com a retrospectiva de Tompkins, desde Platão, Longino e Aristóteles, para quem a literatura era avaliada e descrita conforme a reacção que provocava no público (uma tragédia, por exemplo, era definida como o drama que provocava piedade e temor); passando pela Idade Moderna, em que a estreita relação entre o autor e o público patrono levava a uma preocupação constante com a reacção dos leitores/espectadores, tanto por parte do autor como daqueles que avaliavam a obra, de acordo com a sua capacidade para agradar, ou mesmo para desagradar (no caso da sátira); até uma escrita dirigida à vida psíquica e emocional do leitor como foi a do Romantismo, sempre o público teve um papel fundamental não só na avaliação, mas na própria concepção das obras literárias. O mito do sentido, característico deste século, e coincidente com o aparecimento da ideia anti-tecnocrata de que a literatura não tem de servir para o que quer que seja, foi para J. P. Tompkins o poderoso grilhão que o formalismo lançou aos pés da crítica literária e do qual as teorias de recepção não se conseguiram, de todo, libertar. J. P. Tompkins faz ainda uma outra observação de grande interesse: a de que o único aspecto em que as teorias de recepção se afastam verdadeiramente do formalismo, ao mesmo tempo que se aproximam das concepções antigas de poesia, é no considerar que tanto autor, como texto e leitor estão sujeitos a um poder superior que provoca, influencia e dita a concepção, a interpretação e a crítica das obras literárias: toda uma conjuntura social, moral e política cuja autoridade determina, mais ou menos directamente, o modo como escrevemos, lemos e avaliamos o que lemos.

A maioria das teorias centradas no leitor, porém, apenas sugere essa ideia, sendo Stanley Fish o único teórico que realmente descreveu o fenómeno literário como sendo um resultado da autoridade institucional daquilo que ele definiu como a “comunidade interpretativa” de uma sociedade. Também Michael Riffaterre se referiu a essa autoridade, defendendo no entanto, ao contrário de Fish, que ela resulta de um compromisso constantemente reformulado entre os seus membros. A linha de pensamento dos críticos das teorias de recepção, porém, caracteriza-se antes de mais pela proclamação do direito do leitor a um lugar de destaque no processo literário. Na sua versão mais radical, essa atitude pretenderia essencialmente deslocar o ponto de referência da análise literária, num gesto claramente anti-formalista, da obra propriamente dita para o sujeito a quem ela se dirige, em quem ela se concretiza, sem o qual ela não existe. E, uma vez instalado na crítica literária o mito do sentido, este ponto de vista arrastou obviamente o problema da autoridade legítima na sua determinação. Se o leitor é o agente concretizador do processo literário, será lícito acreditar que o sentido reside nessa entidade virtual e incompleta que é o texto em si? Por um lado o texto parece falar por si, conter uma verdade intrínseca. Por outro lado, se ele só tem existência no leitor, parece ser mais justo considerar que a verdade do texto é nada menos que a verdade do leitor. O texto pode falar por si, mas não fala para si. Basicamente, houve quatro tentativas de supressão deste obstáculo: alguns críticos defenderam que o sentido reside no texto, e que cabe ao leitor descobri-lo (I. A. Richards e o Roland Barthes da primeira fase); outros acreditaram que o sentido, no singular, não existe, cabendo ao leitor resignar-se a especular sobre ele (críticos da desconstrução); outros ainda que o sentido é em parte fornecido pelo texto e em parte construído pelo leitor (Roman Ingarden, Wolfgang Iser); e por fim houve quem defendesse que o sentido é construido pelo leitor, que reescreve o texto quando o lê (Jonathan Culler, Stanley Fish).

I. A. Richards pode ser considerado como precursor das teorias de recepção por diversas razões, já que lançou para a crítica literária vários princípios que viriam a ser fundamentais para teorias tão diferentes entre si como a New Criticism americana, a desconstrução e a estética da recepção. A sua ênfase na leitura como fase determinante do processo literário não pretendeu estabelecer a “verdadeira” fonte de sentido do texto, mas consciencializar o público para a necessidade de melhoramento da sua resposta à literatura, para uma responsabilização geral no sentido de se valorizar a poesia, para com isso se aprender a valorizar a própria vida. Embora os ideais de Richards estejam impregnados daquela indignada inocência vitoriana do princípio do século (os seus Principles of Literary Criticism datam de 1924), que se revoltava contra o materialismo inculto da sociedade industrializada, a sua constante relativização dos pressupostos formalistas é de louvar: foi Richards quem primeiro declarou, despreocupadamente, que a instabilidade de sentido num texto deve ser encarada com naturalidade; que o potencial irresistível da literatura reside nos “abismos” que ela cria, para que o leitor possa construir as suas “pontes” de sentido; e que a poesia é uma experiência como qualquer outra, e não simplesmente um objecto com um sentido intrínseco. Contudo, a teoria de Richards está trespassada de contradições algo desconcertantes, o que explica que ela tenha sido aproveitada nalguns aspectos pela New Criticism americana, que proclamou, antes de mais, o desinteresse total pelos efeitos da literatura no leitor, e noutros pelas teorias de recepção, cujas teses se basearam na importância fulcral do leitor para a determinação do sentido e do valor do texto. Se esta disparidade leva a concluir que uma das duas tendências críticas terá feito uma leitura limitada do trabalho de Richards, ela foi certamente a New Criticism americana, que, manifestando-se na linha do formalismo, só pôde citar o seu mais sensato precursor no princípio de que o texto literário é um sistema inteligível de significações com um sentido específico e comunicável, sendo o facto de maior importância para o estudo da literatura o de que existem vários tipos de sentido. A New Criticism americana, que teve em William Empson o seu mais insigne representante britânico, baseou-se neste princípio para declarar que “as maquinarias da ambiguidade já existem nas próprias raízes da poesia”, se bem que a partir das suas especulações em torno da ambiguidade estes críticos se tenham recusado a avançar mais no sentido de conferir aos leitores a responsabilidade de preeencher os espaços vazios que Richards detectara na literatura. A posição de Cleanth Brooks é elucidativa: num ensaio de 1951, intitulado “The Formalist Critic”, Brooks parte do princípio de que todos os críticos se vêem forçados a conceber um “leitor ideal” (v) - que obviamente não existe - para evitar o problema da diversidade de leituras de um texto literário. O formalismo, segundo Brooks, concebe esta entidade para depois a pôr de lado, já que o que interessa a este tipo de crítica é apenas a obra em si. Ironicamente, poderíamos dizer que se o formalismo e a New Criticism pressupõem um leitor ideal e, admitindo que ele não existe, se baseiam na sua (in)existência para se concentrarem no texto, que por sua vez só terá uma leitura ideal, então este tipo de crítica nunca poderia chegar à integridade do texto, já que não acredita que alguém possa efectuar a leitura que efectivamente lhe corresponde. Mais problemática ainda se torna a New Criticism americana se lembrarmos que os seus teóricos foram unânimes em aceitar que a obra literária só é concebível através desse acto subjectivo e subjectivizador que é a interpretação, ao mesmo tempo que proclamavam como único estudo válido o estudo da obra enquanto estrutura objectiva. Considerados como o grande manifesto da New Criticism americana contra o leitor, os ensaios de W. K. Wimsatt “The Intentional Fallacy” e “The Affective Fallacy”(escrito com a colaboração de M. Beardsley e publicado em 1954) denunciaram o estudo das causas, efeitos ou resultados da poesia como sendo a maior falácia da crítica literária.

Mas face às novas teorias pós-estruturalistas a New Criticism não poderia vingar. E para a desautorizar, Roland Barthes terá contribuído em muito com o seu famoso ensaio “A Morte do Autor”, onde, embora ainda dividido entre o estruturalismo e a sua contestação, Barthes afirma já, em 1968, que “o leitor é o espaço onde todas as palavras do texto são inscritas sem que nenhuma se perca [e que] a unidade do texto reside não na sua origem mas no seu destino”, proclamando um “nascimento do leitor” que só pode acontecer à custa da morte do autor. Mas o leitor de Barthes não tem história, biografia ou psicologia: é apenas “esse alguém que guarda em si, num só plano, todos os traços que constituem um texto literário.” Esta teoria, portanto, ainda não dá ao leitor o direito de fundir a sua própria integridade com a obra que lê, de fazer dela um resultado da fusão de duas consciências. Ao reconhecer uma origem e um destino no processo literário, se bem que dê um estatuto privilegiado ao destino, Barthes não vai tão longe como Georges Poulet, para quem origem e destino, sujeito e objecto, texto e leitor, são indistintos na leitura, embora, curiosamente, Poulet conceba a obra literária como personificação da consciência única do autor, restituindo-lhe assim, talvez sem querer, a autoridade que Barthes lhe roubou.

Entre autor e leitor está o modelo teórico do crítico psicanalista Normand Holland, que se propôs dar conta da relação entre os padrões que o crítico encontra no texto, objectivamente, e a experiência subjectiva do leitor. Holland ecoa Richards no sentido em que a sua análise textual pretende des-cobrir não só as mais profundas fontes de sentido do texto, mas a nossa própria interioridade, o outro que há em nós. Porém, e ao contrário do que o título The Dynamics of Literary Response sugere, o modelo de Holland acaba por fazer do leitor um elemento passivo, um mero voyeur do descortinar das fantasias do autor (expressas nos tais padrões do texto), ou quando muito alguém com quem o autor partilha essas fantasias, tendo por isso um papel indiscutivelmente secundário, como notou Frederick Crews, um crítico deste método. A “Crítica Transactiva” de Holland, no entanto, defende que o processo de conversão das fantasias do autor, expressas na obra, em sentidos moral, social e intelectualmente aceitáveis é efectuado pelo leitor e determinado pela sua personalidade, ou mais propriamente por aquilo a que Holland chamou “tema-identidade”. No estudo prático Five Readers Reading, Holland parece atribuir assim ao leitor um papel definitivamente activo. Mas a verdade é que nesse caso coloca-se um outro problema: a leitura que o próprio Normand Holland, como crítico, faz das interpretações dos seus cinco leitores é, também ela, condicionada pelo seu tema-identidade. Pelo que este tipo de crítica literária afunda autor, texto, leitor e/ou crítico num insondável abismo de mistério e ambiguidade que leva a psicanálise a ultrapassar, em muito, os limites daquilo que é verificável e razoável na crítica literária.

Um ano depois da publicação de Dynamics of Literary Response, Georges Poulet apresenta, em 1969, a sua tese fenomenológica (Phenomenology of Reading): o sentido do texto parece estar cada vez mais radicado nesse processo complexo e heterogéneo que é a leitura. O excerto mais citado da teoria de Poulet será talvez o que retrata a experiência mística a que a fusão autor-texto-leitor dá lugar: “Por uma estranha invasão da minha pessoa pelos pensamentos de outra, sou um eu a quem é concedida a experiência de pensamentos que lhe são alheios. Sou o sujeito de pensamentos que não os meus. A minha consciência comporta-se como se fosse a consciência de outro...”. Segundo o seu princípio básico de “intencionalidade”, a dicotomia sujeito-objecto desintegra-se na noção fenomenológica de que toda a consciência é consciência de algo, logo não podemos ter a certeza da existência “objectiva” e independente das coisas, mas apenas ter a certeza da sua presença como coisas apreendidas pela nossa consciência. Mas embora isto pareça conduzir a uma crítica literária em que o texto, tendo existência apenas enquanto objecto da consciência do leitor, é entendido e avaliado de acordo com esse princípio, a teoria de Poulet dá uma reviravolta surpreendente à pretensa autoridade do leitor enquanto agente do texto, e até mesmo em relação à autoridade do autor, fazendo do próprio texto o verdadeiro “senhor” do processo da leitura: “É a obra que traça em mim as próprias barreiras dentro das quais se define esta consciência [...] É a obra que me força a visualizar uma série de objectos mentais e que cria em mim uma rede de palavras [...] E é a obra que, por fim, [...] se apropria da minha consciência [...]. A obra vive a sua vida em mim; [...] confere um sentidoa si própria dentro de mim. [...] A obra parece primeiro pensar por si própria e depois infermar-me sobre aquilo que pensou.”

Bem mais inclinado para as teorias de recepção é Jonathan Culler, que curiosamente se manifesta dentro das linhas estruturalistas de análise literária. Culler escreve a sua Structuralist Poetics, no entanto, em 1975, quando se insinuava já a mentalidade pós-estruturalista, e por isso mesmo viu-se ocupado na tarefa de tentar conciliar a sua tendência com a da época, por meio da semiótica. Começa por declarar que a crítica literária deve preocupar-se não com o sentido literário em si mas com a forma como esse sentido é produzido. Baseia-se na noção de “competência” do leitor - já que este só está apto a “fazer” o sentido de um texto (make sense) se tiver interiorizado todo um sistema de regras e convenções de interpretação - para concluir que o texto não tem um sentido intrínseco, mas sim um sentido que o leitor constrói quando faz uso das suas capacidades para dar corpo aos sentidos potenciais do texto ( que, se o leitor possuísse uma outra “competência”, seriam diferentes), e para preencher os “espaços vazios” do texto. Culler é sem dúvida o crítico mais promissor de entre os precursores de uma teoria verdadeiramente orientada para o leitor. Inclusivamente, a sua semiótica acaba por conduzir a uma crítica em que o objecto da interpretação passa a ser a própria interpretação, tornando-se, nas palavras de Julia Kristeva, “uma auto-crítica perpétua”. É impossível definir, no entanto, até que ponto o leitor é de facto soberano na sua teoria, já que Culler acaba por ceder ao inevitável dualismo entre “um interpretador e algo para interpretar, um sujeito e um objecto, um agente e algo sobre o qual ele age, ou que age sobre ele.” É precisamente este ùltimo impasse, esta ambiguidade, que não permite tirar quaisquer conclusões sobre a eventual soberania do leitor. Talvez por estar já inserido no ambiente de pessimismo que caracterizou a desconstrução, na sua consciência de que a literatura resiste e desafia as tentativas vãs do leitor para “assimilar” e “naturalizar” aquilo que lê, o Culler desencantado de On Deconstruction não é o mesmo que, anos antes, defendia que o leitor retira sentido do texto através de um processo de naturalização que o torna “plausível e justificável”. O seu contributo para as teorias de recepção, porém, ainda se estende a outros dois aspectos da sua tese: por um lado, Culler resolveu, por assim dizer, o embaraçoso impasse em que ficara o leitor “ideal” de Brooks, alegando que o termo é enganador, já que sugere uma pretensa leitura ideal, e que “falar de um leitor ideal é esquecer que a leitura tem uma história”. Por outro lado, antecipou Fish ao sugerir, já em 1975, que todo o desenrolar do processo literário está invariavelmente condicionado pelo sistema de convenções interpretativas, que de resto é o que nos faz exigir que os textos tenham um sentido.

Curiosamente, depois de todos estes precursores, as teorias de recepção propriamente ditas acabam por acrescentar pouco a uma teoria literária efectivamente centrada no leitor. Os seus teóricos ocuparam-se principalmente em desenvolver as ideias já referidas, segundo três tendências distintas. Por um lado, temos a tese de Hans Robert Jauss que, influenciado pela hermenêutica de Gadamer, defende uma crítica centrada no público histórico, ou nos públicos, de uma obra, no sentido em que o crítico deve estudar a relação entre a recepção que ela teve no passado e a que tem no presente. A sua perspectiva é portanto claramente histórica, já que sustenta que “a forma como uma obra literária, no momento histórico da sua apresentação, satisfaz, ultrapassa, desilude ou refuta as expectativas do público proporciona, obviamente, um critério para a avaliação do seu valor estético.” Por outro lado temos Wolfgang Iser, talvez a figura principal desta tendência teórica, já que se encontra ligado tanto à estética da recepção alemã como às teorias de resposta americanas, e cuja tese pode bem ser considerada como a mais exemplificativa daquilo que constituiu a crítica da recepção. Como a de Georges Poulet, a teoria de Iser atesta a influência filosófica da fenomenologia, e mais propriamente da aplicação das ideias de Husserl à crítica literária efectuada pelo polaco Roman Ingarden, que se preocupou com o “modo de existência da obra literária, na medida em que ela não é nem puro sujeito nem puro objecto.” Também para Ingarden, como para Culler, a obra literária enquanto objecto estético é concretizada no leitor, que preenche os seus “espaços em branco”. Mas de acordo com os condicionamentos que o texto lhe impõe: pelo que esta concretização não é, portanto, completamente subjectiva. Iser vai então considerar o acto de ler como o processo de tentar “imobilizar” a estrutura oscilante do texto, convertendo-a a um sentido específico. O texto oferece ao leitor uma pluralidade de “visões esquematizadas” que constituem uma objectividade multifacetada impossível de apreender na totalidade. Cabe ao leitor, então, detectar tantas visões esquematizadas quanto possível, de modo a obter uma concepção precisa do objecto. Existe entre elas, para Iser, uma vastidão de subjectividade que oferece ao leitor a possibilidade de efectuar um jogo de interpretações para as ligar entre si, já que o próprio texto não tem poder para tal. Este elemento subjectivo da literatura representa o mais importante elo de ligação entre texto e leitor.

É conveniente notar, porém, que para Iser existe uma assimetria fundamental entre o texto e o leitor, já que o primeiro não tem poder para se defender, por assim dizer, das interpretações erróneas, ou para se auto-modificar. (Nesta assimetria residirá, num certo sentido, - e pela primeira vez - a justificação para se considerar que o leitor tem a autoridade máxima no processo literário). Um ano depois, Iser explica a sua perspectiva através da comparação entre o texto e o céu de noite: salpicado de estrelas fixas, que no entanto podem ser ligadas por meio de linhas variáveis. Esta comparação suscitou uma célebre crítica por parte de Stanley Fish, que veio contrapor à alegoria de Iser a afirmação de que as “estrelas” de um texto são tão variáveis como as linhas que as unem. Fish será então o teórico mais radical desta tendência crítica, cuja tese preconiza uma outra forma de encarar a importância do leitor no processo literário. Para Fish, nada é fornecido pelo texto, tudo é produzido pelo leitor, que, para todos os efeitos, “escreve” o texto que lê. O sentido reside portanto no leitor, ou melhor, é o próprio acontecimento da leitura: “The meaning of an utterance [...] is its experience - all of it.” O mérito da sua teoria, no entanto, reside não propriamente neste radicalismo que parece fundir todas as teses anteriores em nome da soberania do leitor, mas mais na engenhosa explicação que Fish encontra para se defender das possíveis objecções ao seu raciocínio. Na medida em que dois leitores, ao lerem o “mesmo” texto produzem dois textos diferentes, um dos desafios que se coloca é explicar porque razão é tão frequente o caso de vários leitores efectuarem a mesma leitura, ou a mesma “escrita” de um texto. Fish defende-se desta objecção alegando que essa coincidência se deve ao facto de os leitores pertencerem à mesma “comunidade interpretativa”, pelo que “fazem” o texto da mesma maneira, mas isso não tem necessariamente de acontecer. Por outro lado, Fish defende-se da objecção, por assim dizer, oposta: se, de acordo com a sua teoria, as noções de textos “iguais” ou “diferentes” são fictícias, como se explica que dois textos distintos dêem origem a sequências diferentes de actos interpretativos? A resposta, para Fish, é mais uma vez bastante simples: na verdade, não tem de ser assim. “Sempre foi possível pôr em acção estratégias interpretativas concebidas para converter todos os textos num só, ou melhor, para fazer permanentemente o mesmo texto.” Prova disso é a exegese católica descrita por Santo Agostinho e aplicada durante séculos e séculos, que interpreta todos os textos ora como uma exortação ao comportamento virtuoso ora como uma representação do procedimento avesso a essa virtude. A noção de “comunidade interpretativa” é então o sustentáculo de toda a teoria de Fish, e sem dúvida aquilo que confere uma inegável sensatez a uma tese por vezes demasiado intransigente no seu teimoso radicalismo. Com efeito, embora Fish tenha levado as suas ideias quase ao absurdo no desentendimento com Iser (defendendo acirradamente a inexistência de um objecto anterior à interpretação, Fish alegava que nem mesmo aquilo que é “dado” pode ser apreendido com tal, a menos que o interpretemos como dado), a sua ideia de que a interpretação é invariavelmente condicionada por todo um sistema institucional cuja ideologia determina as estratégias segundo as quais aprendemos a interpretar, valeu-lhe uma posição de respeito e destaque no quadro das teorias de recepção. É bem evidente, no entanto, que até mesmo Fish, com a sua premissa de que, teoricamente, o leitor pode fazer o que quiser de um texto literário (que afinal não tem sentido mas apenas proporciona a oportunidade de o criar), acaba também ele por fazer do leitor uma entidade impotente e indefesa, que mais não faz, na prática, do que agir de acordo com as normas que esse grande “ninguém” que é a comunidade determina.

ESTÉTICA DA RECEPÇÃO; lEITOR; leitor cooperante; Leitor ideal; leitor informado; leitor implicado; leitor real; READER-RESPONSE CRITICISM

Bib.: Elisabeth Freund: The Return of the Reader: Reader Response Criticism, Methuen (1987); Frank Gloversmith (ed.): The Theory of Reading (1984); Georges Poulet: “Phenomenology of Reading”, New Literary History, vol.1, nº1 (1969); Hans Robert Jauss : Literaturgeschichte als Provokation der Literaturwissenschaft (1970), (A Literatura como Provocação - História da Literatura como Provocação Literária, Lisboa, 1993.); Id.: “Esthétique de la réception et communication littéraire”, Critique, 413, (1981); Jane P. Tompkins (ed.) Reader-Response Criticism - From Formalism to Post-Structuralism (1980); Jonathan Culler: “Semiotics as a Theory of Reading”, in The Pursuit of Signs: Semiotics, Literature, Deconstruction, Cornell University Press (1981); Luiz Costa Lima(ed.). A Literatura e o Leitor - Textos de Estética da Recepção (1981); Norman N. Holland: The Dynamics of Literary Response (1968); R. C. Holub: Reception Theory - A Critical Introduction (1984); Regina Zilberman: Estética da Recepção e História Literária (1989); Stanley Fish: “Interpreting the Variorum”, Critical Inquiry, 2 (1976); Umberto Eco: Leitura do Texto Literário - Lector in Fabula: A Cooperação Interpretativa nos Textos Literários (Lisboa, 1983); Wolfgang Iser: “Indeterminacy and the Reader’s Response”, in Aspects of Narrative, Selected Papers from the English Institute, (1971); Id.: “The Reading Process, a Phenomenological Approach”, New Literary History, 3, (1972); Id.: Der implizite Leser; Kommunikationsformen des Romans von Bunyan bis Beckett (1972), The Implied Reader; Patterns of Communication in Prose Fiction from Bunyan to Beckett (1974).

Sara Leite

Imaginário

sábado, 15 de agosto de 2009

Embora o imaginário tenha uma conotação precisa em literatura; embora a teoria freudiana lhe tenha dado a dimensão da fantasia ainda que abrindo para a noção de ilusório; é com Lacan que este conceito é elaborado com rigor como registo fundamental da estrutura mental a par do real e do simbólico, constituindo o registo da ilusão e da identificação.

Terceiro relativamente aos outros dois, segue o simbólico que se elabora na função significante como designando a perda. O desejo particularisa uma tentativa de acordo entre essa ordem significante simbólica que o sobredetermina e a experiência de apreensão de um objecto imagináriamente encarregue de representar o reencontro com o objecto primitivamente perdido.

Ao contrário de Lacan, que vimos que partiu do imaginário para recuar depois ao simbólico e enfim ao real na preeminência estruturante do psiquismo, Freud constata que partiu do real para o imaginário – no caso, da aceitação ainda ingénua da realidade pretensa da sedução histérica (mas que podemos verificar não ser destituida de fundamento se for elaborada no sentido de real em Lacan) à sua interpretação crítica enquanto fantasma ou fantasia do desejo.(1)

A importância do imaginário aparece logo na primeira abordagem que Lacan faz dele ao falar-nos de uma das suas contribuições originais, a fase do espelho. Fase que, estruturante do imaginário e do eu (mim) já mostra a complexidade das relações deste com o eu (je), sujeito do inconsciente e da fala.

A criança que por volta dos seis meses vive a sensação de um corpo fragmentado, certo dia enxerga sua imagem no espelho. Momento de júbilo incomparável face à sua imagem especular. Prematuramente a criança reconhece-se um todo na sua imagem. Prematuramente quer dizer: antes de ter acedido ao conhecimento do corpo inteiro, profundo, vindo de dentro, na sua espessura e no seu real em ligação progressiva com a fala que diz eu (je). Não é pois o corpo incogniscível nas suas forças internas, vivo que a criança reconhece e a que se vai identificar. Mas a uma imagem reflectindo e especulando um corpo vivo, imagem que é ela mesma uma linha de ficção irreductível para sempre por muito que, como sujeito, este tente reduzir as contradições entre ela e a sua realidade. Ficção porque não é do real que se trata mas de uma imagem, uma Gestalt, uma forma exterior em duas dimensões, invertida, nítida nos seus limites.

É a primeira identificação consciente da criança. (A identificação ao seio da mãe é inconsciente e de características diferentes). “Identificação no sentido pleno que a psicanálise dá a esse termo: a saber, a transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem”, diz Lacan. E ainda: “A fase do espelho é um drama cujo impulso interno se precipita da insuficiência à antecipação – e que, para o sujeito apanhado no logro da identificação espacial, trama os fantasmas (fantasias) que se sucedem de uma imagem fragmentada do corpo a uma forma que chamaríamos ortopédica da sua totalidade, - e à armação enfim assumida de uma identidade alienante, que, com a sua estrutura rígida, vai marcar todo o seu desenvolvimento mental. Assim a ruptura do círculo do Innenwelt ao Umwelt gera a quadratura inesgotável das recolagens do eu (mim)”.

Eu, cujo lugar já não será o inconsciente, mas a imagem especular de um corpo exterior “esvaziado, encolhido até ao limite da sua simplificação – sua mera aparência empírica.” (Mascarenhas) O lugar do sujeito deixa de situar-se numa língua, numa história, numa cultura para estar centrado no eu (mim), constantemente necessitado ou de utopias fusionais ou, no outro extremo, de liberdades egóticas, polos entre os quais se balança num recalcamento do eu (je) enquanto fala do corpo inconsciente.

O espelho anula a distância entre os corpos, tornando-a imaginária, geométricamante invertida, formal, superficial. O outro surge então persecutório, detentor da imagem especular na qual o sujeito se confunde e que, ao constitui-lo, o aliena inevitavelmente, o operador mágico da colagem e da unificação imaginária do seu corpo.A literatura procura, pela ficção e o imaginário, ao lado do mundo da fala, ir além dessa alienação especular e dar-nos, por vezes sem saber, a possibilidade de entrever por detrás do véu, o real “que ensurdece a terra com o seu ruido e a sua fúria”, ao ponto de não o ouvirmos. O escritor, nos melhores casos, passa do registo imaginário ao real passando pelo simbólico, ou seja, no trabalho sobre o significante, permite-se, enquanto sujeito desejante, sobrevir.

Não foi por acaso que foi sob a égide de um escritor que Lacan propôs essa sua invenção da fase do espelho: “Sou esse infeliz comparável aos espelhos/ que podem reflectir mas não podem ver/ Como eles o meu olho está vazio e como eles habitado/ pela ausência de ti que o torna cego.” (Aragon, “Louco por Elsa”).Mas Lacan vai ainda delimitar o estatuto do imaginário no interior de três sistemas de noções que aparelham o sujeito e o objecto às dimensões do imaginário com a sua consistência, do simbólico com a sua insistência e do real na sua ex-(s)istência, implicando os processos caraterísticos da denegação. No seminário sobre a relação de objecto e em ligação com as transformações operadas pelo complexo de Édipo, ele fala de frustração imaginária de um objecto real, de privação real de um objecto simbólico e de castração simbólica de um objecto imaginário.

Não podemos nunca esquecer que estes três registos só funcionam se enlaçados à maneira do nó borromeu, intricadamente.

EU; IMAGINAÇÃO; REAL; SIMBÓLICO

Bib.: Sigmund Freud, Analisis fragmentario de una histeria, e La negacion, Obras Completas, Madrid, Editorial Biblioteca Nueva, vol.II e III, 1948. Philipe Julien, Le retour à Freud de Jacques Lacan, Paris, Erès, 1985. Jacques Lacan, Le stade du miroir comme formateur de la fonctiondu Je, e L’agressivité en psychanalyse, in Écrits, Paris, Le Seuil, 1966; R.S.I., (Seminario XXII), Ornicar?, Paris, 1975. Eduardo Mascarenhas, A metáfora lacaniana do espelho, Lugar, nº8, 1976, Rio de Janeiro
Maria Belo

NACIONALISMO LITERÁRIO

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Teoricamente, o nacionalismo independe da literatura, pois o significado fundamental de nação, mesmo o mais difundido na literatura, é político. Com efeito, há nessa arte uma inegável aspiração nacional, o que explica, inicialmente, o vínculo do significado político com o uso estético da linguagem. De maneira geral o Romantismo foi o grande tributário do nacionalismo, embora nem todas as suas manifestações se integrassem nele (Antonio Candido: Formação da Literatura Brasileira. 1993, p. 15). A tendência dessa conexão, que vinha se acentuando desde o século XVIII, encontra no Romantismo o intuito patriótico e o tema da identificação nacional e tudo que nele estava implicado. O encontro das aspirações de atender o propósito histórico da construção das diversas identidades nacionais concomitantemente com a formação das respectivas literaturas nacionais estabelece a dupla orientação que define as principais relações entre literatura e nacionalidade.

Os nacionalismos literários ganharam diversas formas, cujo leque variado se estende entre dois extremos. Em um deles, limitado às dimensões predominantemente localistas, reflete uma concepção ontológica, fixa e permanente de nacionalidade. A outra compreensão, mais voltada para a universalidade e o reconhecimento das diferenças, é baseada na inconstância, alteridade e multiplicidade. Como a identidade nacional não tem existência objetiva, ambas as concepções, e as diversas gradações existentes entre elas, passam necessariamente pela dimensão da ficcionalidade, posto que a representação de nacionalidade é fundamentalmente baseada no sentido e sentimento de pertença ou compartilhamento que os integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social têm de fazer parte de uma mesma “comunidade imaginária” (Bennedict Anderson: Nação e consciência nacional, Brasil, 1989, p.33). A literatura, então, fornece aos nacionalismos a expressão dessa ficção, que é a impressão de que os diferentes indivíduos de um grupo social comparticipam simultaneamente de uma mesma realidade social, histórica, cultural e, principalmente, identitária.

Desse modo o nacionalismo, em seus diversos matizes, baseia-se na idéia da unidade nacional e, para isso, enraíza-se no propósito coletivo da igualdade interna e, outrossim, na diferença externa. A igualdade interna decompõe-se do fundamento de um caráter e, por conseqüência, essência que caracterizaria um povo, sua cultura e história. Evidentemente essa essência, na medida em que contempla os vínculos internos de parentesco e ancestralidade comuns, também observa atentamente a diferença aos elementos externos tais como outros grupos sociais, culturas e nações.

Por isso, a definição do caráter predominante de um povo revela-se imprescindível para configurar o imaginário da identidade nacional. Essa percepção pressupõe formas de afiliação social e textual, porque é estabelecida por uma série de narrativas sociais e literárias que fornecem imagens, cenários, símbolos e histórias que representam o sentimento imaginário de uma realidade compartilhada e coexistente, que configura o alicerce da idéia de nação. Esse conjunto de narrativas que tem na literatura o seu aliado decisivo denomina-se “narrativa da nação” (Stuart Hall: A identidade cultural na pós-modernidade, Brasil, 1997, p. 56).

As narrativas nacionais, como entidades culturais, são produzidas a partir da rede intertextual que representa a coesão da coletividade ligada a uma suposta ancestralidade comum a todos e é atualizada à medida que novos textos passam a integrá-la, produzindo novos sentidos, mas sempre se referindo a um passado pretensamente imutável. Desta forma, conforme Stuart Hall, mesmo com a constante fragmentação das identidades na modernidade e ainda que tensionada, a nacionalidade permanece constituindo “uma das principais fontes de identidade cultural” (p. 51). Enfim, é uma identidade que se realiza pelo desenho simbólico das fronteiras de um espaço limitado em que uma população imaginariamente coexiste, compartilhando uma hipotética realidade e construindo uma cultura que constitui um sistema de representações no qual a população identifica-se como povo.

Em função de os nacionalismos estarem sujeitos ao caráter imaginário e simbólico das narrativas nacionais, as respectivas literaturas centralizam a elaboração desse sistema, conjugando a construção de uma identidade nacional na mesma medida em que se assume como um sistema literário que possui uma razão própria e interna. Assim sendo, o sistema literário organiza-se em torno e adere à problemática da identidade nacional. O sistema literário estrutura-se em torno da expressão – que pode ser também problematizada – de um modelo instituído a partir de um influxo interno que o liga a uma tradição textual e, fundamentalmente, intertextual. O nacionalismo literário aderido ao sistema literário dessa forma organiza-se na relação de uma obra com as demais. Configura-se, assim, um movimento duplo de alimentação do passado para projeção no futuro. A tradição, que sinaliza a confirmação de uma identidade, consolida-se à medida que consegue renovar e se atualizar no tempo, projetando o passado no futuro, de modo que seus pontos de referência são encontrados no interior do próprio sistema, ainda que sem deixar de considerar as contribuições exteriores assimiláveis.

Como os nacionalismos literários são processos intertextuais e relacionais, a construção identitária encontra o seu espaço, definindo-se pela posição que cada obra ocupa em relação às antecedentes e também aos demais discursos que lhe são contemporâneos. O sistema literário, nesse sentido, torna-se, assim, espaço de afirmações e réplicas que se constrói e pode ser lido e relido de forma satisfatória e renovada nos diálogos intertextuais estabelecidos. Tal sistema evolui nas configurações consensuais e nas dissonâncias, de forma paradoxal, em permanente e dinâmico processo de construção e reconstrução.

O nacionalismo literário alimentado pela identidade nacional só adquire vitalidade à proporção que evolui constantemente, evitando o imobilismo que decretaria sua falência. Esta é a principal razão de sua formulação no interior do sistema literário, ainda que dele se propague constantemente para outras áreas do conhecimento e da sociedade.

É preciso considerar também que a idéia de nação, a qual está subjacente a problemática do nacionalismo literário, tem um fundamento original mítico, assenta-se em uma cosmovisão e, portanto, ao constituir-se narrativamente, deve encontrar formas para sua constante reiteração. A imagem que traduz a idéia de nação configura-se literária e artisticamente, pois é da plurissignificação que ela extrai a possibilidade de sua renovada e constante leitura e atualização. Em contínuo movimento de obra a obra, sem fixar-se, porque assim decretaria o seu definitivo colapso, o mito original desloca-se pelo sistema, nele se renovando e o alimentando. Assim o nacionalismo literário e as questões dele decorrentes são centralizadores, constituindo um pólo organizador dos sistemas literários nacionais.

Convém ressaltar que a origem da relação entre literatura, nacionalidade e identidade nacional floresceu num momento propício a tal associação. O conceito de nação é relativamente recente e remonta ao século XVIII, na Europa. O Romantismo, segunda metade do século XVIII e primeira metade do século XIX, por suas características intrínsecas, acolheu a missão de construir as identidades nacionais das nações emergentes, tanto na Europa, como, mais tarde, nos processos de independências das colônias americanas. A razão mais relevante para tal acolhimento é o fato de o Romantismo eleger a emoção, em detrimento do intelecto e da razão, como principal fundamento da natureza e da experiência humana. Ao propor a separação entre corpo e mente e consolidar a idéia de que as emoções são naturais e vivem no corpo, e o intelecto vem da civilização e existe na mente, elegeu a experiência afetiva como fonte de sabedoria, da autenticidade e da criatividade. Essas condições permitiram que o culto da natureza e a importância da paisagem possibilitassem erigir a figura do herói nacional, personagem quase sempre modelar e arquetípico, simbolizando a perfeita harmonia entre a natureza e o homem idealizado. A literatura, fazendo uso da ficção, estabeleceu o princípio de uma identidade nacional unitária e ontológica porque era fixa e centralizadora, e encontrou a forma adequada principalmente no modelo monológico do romance romântico, uma vez que nele o nacional configurava-se como valores organizados em torno da figura do herói pátrio, centralizador e em harmonia com o cenário, o espaço e a paisagem. O Romantismo, baseado na figura humana idealizada e numa ancestralidade mítica, derivava de um passado eqüidistante que lhe fornecia os princípios da ancestralidade. Dessa forma, cria um nacionalismo que se contrapõe à idéia de progresso, futuro e modernidade, posto que o passado e a tradição eram seus princípios basilares.

Tal paradoxo gera a crise da relação entre identidade nacional e literatura e, por conseqüência, dos nacionalismos literários, principalmente com os reflexos da Revolução Industrial, a crescente urbanização do mundo ocidental, o surgimento e crescimento das grandes metrópoles e a sua contínua e constante urbanização. A idéia de progresso suplanta a concepção de uma tradição fundamentada no passado. Com o romance moderno a noção de nacionalidade deixa o primeiro plano e passa a uma posição subjacente. A forma polifônica e dialógica do romance moderno aciona uma nova representação humana e social que despoja a essência monológica do nacionalismo romântico, que adotava um ponto de vista narrativo quase sempre fixo e totalizante. Nessa forma, a visão de mundo apresentada o era em detrimento de outras e acaba por operar inclusões e exclusões, lembranças ou esquecimentos, valorização ou desvalorização, aceitação ou rejeição, estereótipos positivos ou negativos.

O romance moderno passa a representar as cenas sociais a partir da relativização do ponto de vista narrativo e os personagens são apresentados de formas parciais e dinâmicas. Tanto os personagens mudam no decorrer do tempo e dos diferentes ambientes ou situações, como o próprio narrador, dependendo na posição que ocupa no tempo e no espaço. Essa parcialidade e dinamicidade narrativas corroem, ou pelo menos evidenciam, as hierarquias sociais, morais, étnicas, religiosas e lingüísticas que sustentavam a nacionalidade ontológica. Com a visão do narrador em movimento por pontos parciais e relativos, a realidade passa a ser enfocada em sucessivas transformações principalmente no que tange aos valores dominantes.

Pela realidade que o novo romance representa, o nacionalismo literário, ou a representação de uma identidade nacional, não conseguiu mais ocupar um plano fundamental e unificador. Senso assim, o que parecia a princípio a falência da união da literatura com o nacionalismo não indica o seu total desaparecimento, haja visto que o sujeito moderno, despojado de um sentimento de pertencimento que a nacionalidade lhe ofertava, tende a experimentar um profundo sentimento de perda da subjetividade. O nacionalismo literário, que perpassa o simbólico, o imaginário e, portanto, o ficcional, ainda oferece ao indivíduo um sistema de representações culturais que lhe permite experimentar o sentimento de compartilhamento, ainda imaginário, no sentido que liga o presente do indivíduo ao fundamento de passado primordial de que todos partilham. Isso não impede que surjam novos nacionalismos literários representando a identidade nacional, não mais com um caráter unificador e hierarquizante das demais formas de diferenciações internas e externas, mas as apresenta em todos os seus matizes, diversidades, conflitos, paradoxos e, mesmo consensos, para revelar como as novas e velhas identidades buscam remontar as diferenças sobre outras unidades, uma vez que as idéias de compartilhamento e de totalidade não desapareceram da realidade e da experiência humanas, pelo menos enquanto desejo.



Nacionalismo cultural



Bib.: Demétrio Magnoli: O corpo da pátria (1997); Eric J. Hobsbawm: Nações e nacionalismo desde 1780. (Rio de Janeiro: 1990; Gilbert Durand: As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arquetipologia geral (São Paulo: 2001); Gilbert Durand: O imaginário: ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem (Rio de Janeiro: 1998); Homi K. Bhabha: O local da cultura (Belo Horizonte, 1998); Ian Watt: A ascensão do romance (São Paulo: 1996); Mikhail Bakhtin: Questões de Literatura e de estética: a teoria do romance (São Paulo, 1988); Northrop Frye: Fábulas de identidade: ensaios sobre mitopoética (São Paulo: 2000).



Ricardo Ferreira do Amaral

Desautomatização

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Conceito do formalismo russo e da Escola Estruturalista de Praga que traduz o conjunto de procedimentos que a linguagem literária efectua para produzir o estranhamento (ostranenie) da mensagem, cuja apreensão fica assim desligada dos automatismos que dominam o uso comum da língua. Dentro de uma determinada tradição literária e recorrendo a certos artifícios verbais, um escritor procura dar um sentido particular à linguagem comum, não permitindo que ela fique sujeita a automatismos que impedem a boa comunicação (interrupções do discurso, pausas, gestualização, ruídos de fundo, etc.). Depois de desautomatizar a linguagem, o escritor procurará colocar a ênfase na forma das frases, sem deixar que prevaleça a sua referencialidade. O processo de desautomatização não está circunscrito a uma regra universal e intemporal, pois está intimamente relacionado com o contexto em que ocorre: a desautomatização que os poetas barrocos fizeram para produzir textos poéticos rebuscados e herméticos já não faz sentido para os poetas românticos,que buscaram modos diferentes de construção da mensagem poética.

O termo desautomatização serve hoje também para traduzir um outro conceito do estruturalista checo Jan Mukarovský: aktualisace ou "actualização", de sentido análogo ao conceito dos formalistas russos, tal como o conceito de desfamiliarização ou estranhamento. A actualização fica restrita aos efeitos estilísticos que ocorrem na literatura, no nível fonético e no nível semântico. Segundo Mukarovský, o que distingue a actualização, desfamiliarização ou desautomatização (termo traduzido muito cedo para inglês por foregrounding) do processo de automatização é o seguinte: "foregrounding may occur in normal, everyday language, such as spoken discourse or journalistic prose, but it occurs at random with no systematic design. In literary texts, on the other hand, foregrounding is structured: it tends to be both systematic and hierarchical. That is, similar features may recur, such as a pattern of assonance or a related group of metaphors, and one set of features will dominate the others" (Mukarovský, 1964, p. 20). Na literatura, onde a comunicação verbal não é o principal objectivo do uso referencial da linguagem, o processo de desautomatização serve para anular os automatismos da linguagem quotidiana: "Foregrounding is the opposite of automatization, that is, the deautomatization of an act; the more an act is automatized, the less it is consciously executed; the more it is foregrounded, the more completely conscious does it become. Objectively speaking: automatization schematizes an event; foregrounding means the violation of the scheme." (1964, p. 19). Isto pressupõe que a literatura seja avaliada apenas pela sua realidade estilística e não como um acto de comunicação simples. Esta tese é similar à defendida anteriormente por Viktor Shklovsky, o formalista russo que também se pronunciou sobre os efeitos do estilo no leitor, em última análise efeitos que nos permitem ter uma "visão" perceptiva do objecto literário. É a esta "visão" singular que também chamamos desautomatização. Para Shklovsky, a arte existe para apreendermos a vida: "it exists to make one feel things, to make the stone stony. The purpose of art is to impart the sensation of things as they are perceived and not as they are known. The technique of art is to make objects "unfamiliar," to make forms difficult, to increase the difficulty and length of perception because the process of perception is an aesthetic end in itself and must be prolonged. (1917/1965, p. 12).

ACTUALIZAÇÃO; ESTRANHAMENTO; FORMALISMO RUSSO

Bib.: J. Mukarovský: "Standard language and poetic language" (1932), in P. L. Garvin (ed.), A Prague School Reader on Aesthetics, Literary Structure, and Style (1965); id.: The Word and Verbal Art (1977); T. Todorov: Teoría de la literatura de los formalistas rusos (1965; 6ªed., 1991); V. Erlich: Russian Formalism: History — Doctrine (1981); V. Shklovsky: "Art as technique" (1917), in L. T. Lemon & M. J. Reis (eds. e trads.): Russian Formalist Criticism: Four Essays (1965); W. Van Peer: Stylistics and Psychology: Investigations of Foregrounding (1986)

http://www.ualberta.ca/~dmiall/reading/foregrd.htm



Carlos Ceia

O corvo

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de alguém que batia levemente a meus umbrais
«Uma visita», eu me disse, «está batendo a meus umbrais.
É só isso e nada mais.»

Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro,
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
P'ra esquecer (em vão) a amada, hoje entre hostes celestiais —
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,
Mas sem nome aqui jamais!

Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundindo força, eu ia repetindo,
«É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.
É só isso e nada mais».

E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,
«Senhor», eu disse, «ou senhora, decerto me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi...» E abri largos, franquendo-os, meus umbrais.
Noite, noite e nada mais.

A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais —
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.
Isto só e nada mais.

Para dentro estão volvendo, toda a alma em mim ardendo,
Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
«Por certo», disse eu, «aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais.»
Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.
«É o vento, e nada mais.»

Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais.
Foi, pousou, e nada mais.

E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
«Tens o aspecto tosquiado», disse eu, «mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais.»
Disse-me o corvo, «Nunca mais».

Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos seus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,
Com o nome «Nunca mais».

Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,
Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento
Perdido, murmurei lento, «Amigo, sonhos — mortais
Todos — todos lá se foram. Amanhã também te vais».
Disse o corvo, «Nunca mais».

A alma súbito movida por frase tão bem cabida,
«Por certo», disse eu, «são estas vozes usuais.
Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono
Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais,
E o bordão de desesp'rança de seu canto cheio de ais
Era este «Nunca mais».

Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,
Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;
E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que qu'ria esta ave agoureira dos maus tempos ancestrais,
Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,
Com aquele «Nunca mais».

Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sombras desiguais,
Naquele veludo onde ela, entre as sombras desiguais,
Reclinar-se-á nunca mais!

Fez-me então o ar mais denso, como cheio dum incenso
Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.
«Maldito!», a mim disse, «deu-te Deus, por anjos concedeu-te
O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,
O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!»
Disse o corvo, «Nunca mais».

«Profeta», disse eu, «profeta — ou demónio ou ave preta!
Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais,
Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!»
Disse o corvo, «Nunca mais».

«Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!, eu disse. «Parte!
Torna à noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!»
Disse o corvo, «Nunca mais».

E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha dor de um demónio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão mais e mais,
E a minh'alma dessa sombra, que no chão há mais e mais,
Libertar-se-á... nunca mais!


Fernando Pessoa
FERNANDO PESSOA
(1888-1935)

Versão original em inglês de “O Corvo” por Edgar Allan Poe