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Decadentismo

terça-feira, 30 de junho de 2009

O conceito de decadência remete, originariamente, para um significado histórico-político e, numa acepção mais lata e algo “impressionista”, para uma atmosfera psicológica e moral (decorrente, em parte, de um particular contexto socioeconómico e político epocal onde confluem imagens e recordações da fase crepuscular de antigas civilizações) que caracterizou a cultura europeia (com acentuados reflexos e prolongamentos na América Latina e Estados-Unidos da América, por exemplo) do último quartel do século XIX. Nos quadros mentais da “Europa das Luzes”, particularmente em França, o conceito surge relacionado, pela primeira vez, com o declínio do Império Romano tardio (Montesquieu, Considérations sur les causes de la grandeur des romains et de leur décadence, 1734; edição definitiva em 1748), legitimando e reforçando os ditames da emergente racionalidade clássica. Posteriormente, nessa linha, poder-se-á ler o fragmentário Essai sur les causes et les effets de la perfection et de la décadence des lettres et des arts (1780-1790; título segundo a edição póstuma de Abel Lefranc, 1899) de André Chernier, ou ainda a obra de Désiré Nisard, historiador da literatura clássica, Etudes de moeurs et de critique sur les poètes latins de la décadence (1834), autor que compara a obra de Lucano, poeta maneirista latino, com a literatura do seu tempo, assinalando numerosas coincidências negativas na sobrecarga erudita, no uso pretensamente inexacto das palavras e nas complicadas figuras de estilo. Exemplos da formulação de juízos valorativos profundamente desvalorizadores da decadência, com base num pessimismo cultural que tem a sua génese numa interpretação histórica “descendente”, que entende a História como uma decadência gradual, desde o estado mítico do Paraíso e da “Idade do Ouro” até à queda final.

A sensação de viver numa época terminal perpassa por todo o século XIX, desde o romântico “mal du siècle”, a dolorosa consciência da vacuidade da vida (ennui) que é descrita magistralmente por A. de Musset (1810-1857) em La confession d’un enfant du siècle (1836), passando pelo baudelairiano spleen até ao decadente “Fin-de-Siècle”. Esta expressão, que numerosas línguas tomam emprestada do Francês (entrando, deste modo, no uso cultural internacional), designando, grosso modo, a passagem do século XIX para o nosso século, encontra-se em estreita relação com outras como “literatura decadente”, “literatura da decadência”, “decadismo”, “snobismo”, “diletantismo”. Em França foi modismo na designação da consciência decadente descrita e analisada por Ch. Nodier (1780-1844) já em princípios do século XIX. O sentimento cultural finissecular com ela relacionado, caracterizado pelo ostensivo pendor voluptuoso para a morbidez, impregnado de luxo e refinamento na busca de sensações novas, mais intensas, fruídas na temática extravagante e no requinte da forma, procedia de uma situação de tensão face ao contexto socio-económico e político. A consciência da ruína cultural da época encontra-se em estreita relação com a observação do ocaso do poder político. Em França, já Musset se lamentava do declínio do poder napoleónico. No nosso país, Antero de Quental (1842-1891), por seu turno, analisa, no âmbito de uma série de conferências no Casino Lisbonense, a 27 de Maio de 1871, as Causas da decadência dos povos peninsulares nos últimos três séculos (Prosas, vol. II, Coimbra, 1926), dando voz à ibérica ambiência agónica, numa reflexão sobre a problemática do declínio pátrio, peculiar tratamento tópico da decadência nacional, tão agudizado pela geração de 70 e a tarefa semelhante se consagra o espanhol Ángel Ganivet (1865-1898), considerado o percursor da geração de 98, em Espanha, na sua obra Idearum Español (1897). De facto, as análises pessimistas foram, em grande parte, confirmadas por acontecimentos políticos: a França perde a guerra de 1870/71 contra a Prússia-Alemanha, Portugal sofre a “vergonha” do Ultimatum inglês de 1890 (incidente diplomático com profundas repercussões no imaginário colectivo da época). A Espanha perde, em 1898, a guerra contra os Estados-Unidos. Apenas a Itália parece viver um eufórico sentimento de união política, com a conversão de Roma, em 1870, como capital de um país unificado.

No sentido mais restrito, a “decadência” é, no plano estético, uma corrente da literatura francesa desde meados do século XIX com o seu apogeu nos anos 80. No quadro da reacção irracionalista (o retorno ao onirismo, aos mitos, à imaginação, ao fantástico), espiritualista (catolicismo estético, rosa-crucianismo, budismo, por exemplo) e ocultista (magia, cabala, espiritismo, teosofia, quiromancia, astrologia) do fim-de-século contra o positivismo e o cientismo, o decadentismo integra uma lata e plural renovação estética, de teor antinaturalista e antiparnasiana, distinguindo-se como arte de crise correspondente a uma paradoxal atitude, dúbia e ambivalente, perante a sociedade urbano-industrial (miticamente percepcionada como processo de declínio irreversível, o finis Latinorium) e face aos efeitos da moderna racionalidade científica e pragmática, em que o materialismo burguês despontava como algo de abjecto. Daí a recusa do utilitário, de um praticismo social unicamente orientado para os valores mercantis e, como contraponto, a projecção para o “culto do eu” que, tanto no plano do estético como do vivencial, relevava a diferença entre a élite e as massas. Daí, igualmente, o culto exarcebado do artifício, do anti-natural (na tradição baudelairiana), do excesso, do decorativismo sensualista (a predominância dos universos de simulacro, a sofisticação ritualística dos objectos, o fascínio pela flora exótica ou artificial, o ludismo sinestésico, a sintaxe dos odores) e o culto do individualismo (expressão dum egotismo absoluto, clara hipertrofia do eu), a centripetação subjectiva (especularidade narcísica), a ficcionalização de um narcisismo paroxístico. Sob o primado destas tendências temático-formais (a que poderíamos acrescentar, entre outras, o amor ritualmente lascivo e inibitório, o fascínio pela figura ambivalente de Salomé tal como surgia nos quadros do pintor simbolista Gustave Moreau, o erotismo anómalo, a volúpia transgressiva do vício e do sangue, o imaginário nosológico, monstruoso e necrófilo) o decadentismo reclama o novo, pretendendo os estetas libertar a literatura e as artes das convenções da moral burguesa, conscientes que estavam da desilusão de um século que parecia ter esgotado todas as potencialidades de um romantismo reduzido a cinzas. Estes sentimentos encontraram fortíssima expressão literária na obra de J.-K Huysmans (1848-1907), particularmente em A rebours (1884) que, sob a influência tardia do pessimismo de Schopenhauer (1788-1860), empreende uma síntese intensificadora da estética decadente na criação da personagem Des Esseintes, paradigma do dândi finissecular. As representações mentais do “fin-de-siècle” pareciam, deste modo, corresponder à chamada “decadência” e difundir-se-iam, por volta do penúltimo decénio do século XIX , ultrapassando as fronteiras da área franco-belga, persistindo na Europa e na América Latina, ora até aos alvores do século XX (constituindo incontornável substrato da fermentação das estéticas da modernidade emergente, importante momento do conflito entre a modernidade estética pós-baudelairiana e a modernidade científico-sociológica de matriz iluminista), ora até ao imediato pós-Guerra. Representantes desta sensibilidade, exteriores à área linguística francófona, foram, entre outros, Hofmannsthal (1874-1929) na Áustria, Pascoli (1855-1912) e D’Annunzio (1863-1938) em Itália, W. Pater (1839-1894), E. Dowson (1867-1900) e O. Wilde (1854-1900) na Grã-Bretanha, Ramón del Valle-Inclán (1869-1936) em Espanha, os poetas hispanófonos do “modernismo”, do “modernisme” catalão e muitos autores do simbolismo e pós-simbolismo português (Eugénio de Castro, António Nobre, Cesário Verde, Afonso Lopes Vieira, João Barreira, Gomes Leal, entre outros). Em Portugal o decadentismo manifesta-se cedo, na tentativa de decidida modernidade inspirada no prólogo de Ch. Baudelaire e Th. Gautier, através da criação do imaginativo poeta Carlos Fradique Mendes, cujos poemas foram escritos por Antero de Quental e Eça de Queirós, germinando nos anos 80, consolidando-se e implantando-se entre 1889 e 1891 e atingindo o auge entre 1892 e 1902, constituindo a dominante da renovação literária finissecular promovida pelo grupo portuense de Os Nefelibatas e da Revista d’hoje (Raul Brandão, João Barreira, Júlio Brandão, D. João de Castro, entre outros) e por círculos das revistas coimbrãs Boémia Nova e Os Insubmissos (António Nobre, Alberto Osório de Castro, Alberto de Oliveira, Eugénio de Castro), acompanhados pela evolução literária de figuras como Gomes Leal e Fialho de Almeida que alcançam notória manifestação na poesia e na narrativa ficcional respectivamente, manifestando-se ainda, em parte, na novelística do modernista Mário de Sá-Carneiro, em inícios do nosso século. Em Espanha, o decadentismo foi “absorvido” pelo “modernismo”, fundado por Ruben Darío e, na área linguística do Catalão, a decadência, no sentido francês do termo, não se desenvolveu independentemente, mas como corrente tributária do “modernismo” e apenas durante um curto período de tempo (cf. J. Maragall, Estrofes decadentistas). “Decadència”, no sentido catalão, é basicamente uma designação hoje recusada, da época dos historiadores românticos catalães que pretenderam, deste modo, separar a sua própria época de renovação (“Renaixença”) da época de abatimento político da Catalunha (séculos XVI-XVIII). Influenciada pela “boémia” e por Ch. Baudelaire, entre 1860 e 1880, a Itália conhece a “Scapigliatura”, denominação devida ao romance homónimo de Carlo Righetti, Gli scapigliati (1826), um movimento que revela certas semelhanças com a decadência francesa na sua luta contra a moral burguesa e contra a estética classicista. No entanto, D’Annunzio revelar-se-á como o máximo representante do decadentismo no país transalpino. Poder-se-á dizer que o decadentismo antecede imediatamente o simbolismo, acompanhando-o, contudo, epigonalmente, miscigenando-se com tendências neo-românticas até se diluir em simbioses ornamentalistas no domínio das letras e das artes, esgotando, deste modo, o seu período de vigência histórica.

SIMBOLISMO

Bib.: AA.VV., L’esprit de décadence, Paris, 1980 (vol.I), 1984 (vol.II); E. Ghidetti: Il Decadentismo (1977); Fernando Guimarães: Ficção e Narrativa no Simbolismo (1988); H. Hinterhaüse: Fin de siècle, Munique (1977); Jan Flechter (ed.): Decadence and the1890’s (1979); Jean Pierrot: L’Imaginaire décadent, Paris (1977); José Carlos Seabra Pereira: Decadentismo e Simbolismo na Poesia Portuguesa (1975); id.: História Crítica da Literatura Portuguesa (Do Fim-de-Século ao Modernismo), vol.VII (1995); Jósef Heistein: Décadentisme, Symbolisme, Avant-Garde dans les littératures européennes (1987); U. Horstman: Aesthetizismus und Decadenz (1983).

José António Costa Ideias

Carnavalização

segunda-feira, 29 de junho de 2009

No livro A Obra de François Rabelais e a Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento (escrito em 1940 e publicado em 1965), Mikhail Bakhtine desenvolve uma inovadora teoria da cultura popular e da sua apropriação pela literatura, baseada nos conceitos de carnaval e carnavalização. Carnaval não se refere aqui apenas ao período antes da Quaresma e centrado no Mardi gras ou Fastnacht, que continua a ser celebrado nas sociedades contemporâneas, mas compreende determinadas festividades que, durante a Idade Média e o Renascimento, decorriam também noutros momentos do ano associados a comemorações sagradas, como o Corpus Christi, e chegavam a totalizar cerca de três meses. As suas origens remontam certamente aos cultos dos mortos e rituais propiciatórios e celebratórios de comunidades agrícolas primitivas que ocorriam durante o tempo das sementeiras e das colheitas, a figuras há muito estudadas pelos antropólogos, como o bode expiatório e o rei sacrificial, e em particular às festas em honra do deus Saturno, que na Roma antiga tinham lugar em Dezembro e eram conhecidas como as Saturnalia. À semelhança do "mundo às avessas" do Carnaval, no tempo em que duravam as Saturnalia vivia-se quotidianamente a inversão da ordem social normal: os escravos tomavam o lugar dos senhores e entregavam-se a toda a espécie de prazeres habitualmente proibidos, numa imitação simbólica do reinado de Saturno, a Idade de Ouro da felicidade e abundância reproduzida na utopia medieval e renascentista do País de Cocanha ou Schlaraffenland.

Para Bakhtine, o Carnaval constituía simultaneamente um conjunto de manifestações da cultura popular e um princípio de compreensão holística dessa cultura em termos de visão do mundo coerente e organizada. O elemento que unifica a diversidade de manifestações carnavalescas e lhes confere a dimensão cósmica é o riso, um riso colectivo que se opõe ao tom sério e à solenidade repressiva da cultura oficial e do poder real e eclesiástico, mas que não se limita a ser negativo e destrutivo, antes projecta o povo-que-ri em liberdade fecunda e regeneradora como a própria natureza.

São três as grandes formas que revestia o riso carnavalesco.

1) Espectáculos e rituais cómicos: não só as complexas procissões do Carnaval propriamente dito, que ocupavam as ruas durante dias, mas também outras festas, ritos, protocolos e representações constitutivos do tempo do Carnaval por toda a Europa, como a festa dos loucos (festum stultorum) ou a festa do burro, em que se celebrava uma paródia da liturgia perante um burro paramentado, várias formas convencionalizadas de risus paschalis, autos, mistérios e soties, festas e feiras organizadas pelas paróquias locais onde pontificavam anões, gigantes e monstros. Da pletora de tipos ou figuras públicas de que o Carnaval era feito, sobressaía sem dúvida o louco (néscio, parvo, bobo, palhaço, truão), representante do próprio espírito carnavalesco, geralmente eleito rei cómico e, nessa condição, alvo de todo o género de abusos jocosos. O que caracteriza estes rituais é, antes do mais, a sua natureza não oficial, configurando, como diz Bakhtine, uma segunda vida do povo, um duplo das práticas da Igreja e do Estado, em que todo o povo participava numa comunhão utópica de liberdade e abundância, de suspensão de todas as hierarquias e de dissolução da fronteira entre a arte e o mundo.

2) Composições verbais cómicas: em estreita ligação com o Carnaval proliferou ao longo da Idade Média uma infinidade de textos de cariz paródico, em latim ou vernáculo, muitos deles produzidos nos mosteiros e destinados a serem utilizados nos ritos carnavalescos. A chamada parodia sacra parodiava todos os aspectos do culto: liturgia, hinos, salmos, Evangelhos e orações, mas outros géneros eram igualmente alvo do riso paródico: decretos, epitáfios, testamentos, etc., cujo sentido residia no rebaixamento ou destronamento de tudo o que era elevado, dogmático ou sério. Bakhtine menciona a coena Cypriani como a mais antiga e popular instância desta literatura, que se cruza com outras tradições afins, muitas vezes de produção e transmissão oral, materializadas nas canções goliárdicas e nos fabliaux e Schwänke. Fortes influências desta discursividade carnavalesca são visíveis, por exemplo, no Decameron, de Boccaccio (1349-51), em Os contos da Cantuária, de Chaucer (1386/7-1400), em A nave dos loucos, de Sebastian Brant (1494) e em O elogio da loucura, de Erasmo (1508).

3) Vários tipos e géneros de linguagem familiar e grosseira da praça pública. A este respeito o Carnaval institui uma nova forma de comunicação, baseada no gesto e no vocabulário que decorre do nivelamento social e da abolição das formalidades e etiquetas. O uso generalizado de profanidades e blasfémias, juras, imprecações, obscenidades e expressões de teor insultuoso definem a linguagem carnavalesca na sua função ambivalente: ao mesmo tempo humilhante e libertadora. Certas obscenidades ainda hoje conservam um sentido simultaneamente de insulto e elogio. Também as pancadas e outras formas de abuso físico cómico, como as que sofre D. Quixote, são características do comportamento carnavalesco, representando a redução do alto ao baixo, simbolizando a morte que dá vida.

Outros três aspectos do universo do Carnaval são dignos de nota.

1) A representação carnavalesca do corpo, a que Bakhtine chama realismo grotesco, é centrada nas imagens deformadas e exageradas do "baixo corporal": a boca, a barriga, os órgãos genitais. Trata-se de um corpo em processo, em metamorfose, em permanente relação com a natureza e com a incessante dinâmica de morte e rejuvenescimento, representado nos actos de comer, defecar, urinar, copular, dar à luz, privilegiando, por um lado, os orifícios com que o corpo se liga ao exterior e, por outro, a representação da infância e da velhice. Muito da tradição da caricatura radica nas imagens grotescas do corpo carnavalizado.

2) O uso da máscara simboliza uma das características mais marcantes do Carnaval: a confusão e dissolução das identidades pessoais e sociais, o triunfo da alteridade durante aquele tempo convencionalmente reservado à transgressão.

3) A relativização da verdade e do poder dominantes constitui um dos sentidos profundos do riso carnavalesco nas suas multímodas manifestações; ao ridicularizar tudo o que se arroga de uma condição imutável, transcendente, definitiva, o Carnaval celebra a mudança e a renovação do mundo.

No livro acima referido, Bakhtine lê Rabelais como o autor que, na história da literatura ocidental, mais exemplarmente carnavaliza a sua obra, isto é, que se apropria de modo mais perfeito e radical das formas, imagens e linguagem do Carnaval. Ao longo de uma extensa e meticulosa análise dos cinco livros de Rabelais (em especial Gargantua e Pantagruel), outros autores são, contudo, frequentemente apontados como modelos de carnavalização da literatura, particularmente Shakespeare e Cervantes. É neste contexto que os conceitos bakhtinianos se têm mostrado extremamente fecundos para a investigação recente em estudos literários e têm sido extensivamente utilizados para uma reinterpretação de certos textos à luz da sua afinidade com os rituais e os géneros carnavalescos. A recuperação e elaboração bakhtiniana do Carnaval permite reconsiderar, por exemplo, a linguagem de Joane no Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente, ou as figuras de Falstaff em Shakespeare e Sancho Pança em Cervantes, ou a imagem de Gulliver apagando com urina o fogo no palácio imperial de Lilliput, como elementos tipicamente carnavalizados.

Mas não só na literatura canónica a teoria do Carnaval tem sido aplicada; outras práticas culturais revelam a sua afinidade com o carnavalesco: o espectáculo teatral (o teatro religioso medieval, a "commedia dell'arte", o "happening"), a pintura (Bosch, Breughel, Chagall), o "cartoon", os graffiti, o cartaz, a publicidade, manifestações de rua, ritos populares residuais, como os cardadores do Vale do Ílhavo e as bugiadas de Sobrado (Valongo). Também os novos meios de comunicação se têm deixado carnavalizar, e não será irrelevante mencionar, no nosso tempo e espaço, esse flagrante avatar do espírito carnavalesco que é a obra televisiva de Herman José.

cómico; PARÓDIA; pós-modernismo

Bib.: Mikhail Bakhtin, Rabelais and His World (1968); Mikhaïl Bakhtine, L'oeuvre de François Rabelais et la culture populaire au Moyen Age et sous la Renaissance (1970); Julio Caro Baroja, El Carnaval (1965); Javier Huerta Calvo et al., Formas carnavalescas en el arte y la literatura (1989); Mikita Hoy, "Bakhtin and Popular Culture", New Literary History, 23, 3 (1992); Gary Saul Morson, Bakhtin: Essays and Dialogues on His Work (1986); David Shepherd (ed.), Bakhtin: Carnival and Other Subjects, Critical Studies, 3/2 e 4 (1991, 1992); Maria J. Teles et al., O discurso carnavalesco em Gil Vicente (1984).
João Ferreira Duarte

Beat generation

sábado, 27 de junho de 2009

Num sentido restrito, o termo beat originalmente significa "cansaço" e "derrota", para depois conotar "beatitude espiritual", o que permitiu que os nova-iorquinos que imigraram para São Francisco ficassem conhecidos por "franciscanos". Foi seu criador Jack Kerouac (1922-69), autor de obras em prosa como On the Road (1957), The Dharma Bums (1958) e Big Sur (1962). Kerouac inventou a expressão beat generation em 1948, mas só quatro anos mais tarde o seu amigo John Clellon Holmes escreveu um artigo no New York Times Magazine com o título "This is a beat generation". Esta geração refere-se a um pequeno grupo de escritores americanos activos nos anos 50, com especial destaque para os poetas que divulgaram a chamada beatnik poetry, com um estilo muito personalizado e fechado numa gíria muito particular repescada na música jazz, e que teve importantes repercussões na cultura popular. PRIVATE

A designação beatnik (o sufixo nik foi emprestado de Sputnik, o satélite russo que havia sido entretanto lançado), que expressava a alienação cultural e social, foi cunhada por uma colunista norte-americano e tem um sentido pejorativo em face da atitude de demissão dos beatniks perante a política (embora tenham alinhado nos movimentos anti-nucleares) e os problemas sociais. Os escritores beat sentiam-se derrotados ("beat") porque não acreditavam em empregos fáceis e tinham que lutar para sobreviver em apartamentos modestos. Viajavam constantemente e à boleia, porque não suportavam estar no mesmo sítio muito tempo. A expressão que os congregou em geração literária e definiu um género literário particular pretendia fazer eco da expressão lost generation que Hemingway havia escolhido para definir a geração nascida na I Guerra Mundial. O centro de actividade destes escritores foi San Francisco, mas também Greenwich Village em Nova Iorque. Os pais espirituais da beat generation foram Walt Whitman, Henry Miller, Kenneth Rexroth, Norman Mailer. William S. Burroughs (Junkie, 1953; The Naked Lunch, 1959) foi reabilitado pelo movimento.

Assumindo uma atitude social de contravenção, repudiando qualquer intelectualismo ao mesmo tempo que negavam os valores sociais das classes médias, os escritores desta geração foram buscar a sua inspiração ao jazz, ao budismo Zen e a certos cultos índios e esforçavam-se por se distinguirem até no aspecto físico, calçando sandálias, usando jeans e deixando crescer a barba, atitude que precede os hippies dos anos 60.

Construíram uma imagem de rebeldes com causa anárquica, escolhendo um estilo de vida recheado de drogas, sexo livre, álcool q.b., e todo o tipo de desafio das convenções mais respeitadas da sociedade moderna, atitude que a poesia de Allen Ginsberg (Howl and Other Poemas, 1956, e Kaddish, 1963) resume. Os poetas beat, como Gregory Corso (Gasoline, 1958), Lawrence Ferlinghetti (A Coney Island of the Mind, 1958), Gary Snyder (Riprap, 1959), tentaram libertar a poesia de academismos, procuraram trazê-la para a rua, libertaram-na de exigências formais, cultivaram a expressão caótica e a linguagem obscena, porque acreditavam que a poesia devia ser pura espontaneidade, sem planificações nem estruturas premeditadas ou pré-fixadas e desafiando qualquer inteligibilidade.



BLACK MOUNTAINISTS; JAZZ POETRY

Bib.: Ann Charters: Beats and Company: Portrait of a Literary Generation (1986); Bruce Cook: The Beat Generation (1971); David Kherdian (ed.): Beat Voices: An Anthology of Beat Poetry (1995); Edward H. Foster: Understanding the Beats (1992); Gregory Stephenson: Daybreak Boys: Essays on the Literature of the Beat Generation (1990); Lee Bartlett (ed.): The Beats: Essays in Criticism (1992); Park Honan (ed.): The Beats: An Anthology of “Beat” Writing (1987); The Beat Book (Shambhala, 1995); The Beat Generation Writers (Pluto Press, 1995).

Carlos Ceia

Valor estético

sexta-feira, 26 de junho de 2009

O valor estético de uma obra literária não é algo que possa ser proposto como um absoluto em si mesmo, na medida em que circula por ordens muito próprias de existência social e cultural dos objectos considerados artísticos. A relação de dependência mútua entre o valor estético, a função estética e a norma estética foi brilhantemente estudada pelo checo Jan Mukarovský, durante as décadas de Trinta e Quarenta, no âmbito mais geral da pesquisa teórica e crítica levada a cabo pelo chamado Estruturalismo Checo*, e antes de Mukarovský cair no erro infeliz de, sobretudo a partir de 1951, negar toda a sua obra anterior em nome da adesão a uma triste ortodoxia comunista (veja-se R. Wellek, 1970).

É ainda operativo o quadro teórico por que Jan Mukarovský, o mais brilhante continuador do pensamento dos formalistas russos e um dos patronos incontestados, juntamente com Felix Vodicka, da estética da recepção alemã, colocou a problemática da literatura no quadro sociológico dinâmico de uma realização simultaneamente semiótica e comunicativa. Partindo da premissa de que «a obra literária é um signo, e portanto, pela sua própria essência, um facto social» (J. Mukarovský, 1936, 1977: 94), Mukarovský destaca a importância dos valores extra-estéticos contidos numa obra, tanto nos seus componentes formais como temáticos e, por aí, introduz o receptor como ser social, isto é, como uma figura cujos dados intelectuais, emocionais e volitivos globais se confrontam com os factos inscritos na obra: “As experiências que vibram no receptor graças ao impacto da obra de arte transmitem os seus movimentos à imagem global da realidade na mente do receptor” (loc. cit.).

É por esta relação entre a construção interna da obra e os paradigmas de conhecimento vigentes na colectividade que a recebe que Mukarovský propõe, por um lado, um entendimento da função estética como uma construção cultural variável no tempo e no espaço e, por outro lado, um entendimento da norma estética como critério estabilizador do valor estético—sujeita, por isso, a constantes violações e sucessivas alternâncias (vd. id.: 60-61). Se o estético não é uma característica real das coisas, nem tão pouco está relacionado de maneira unívoca com qualquer característica das coisas, a função estética também não está sob o domínio pleno do indivíduo: “A estabilização da função estética é um assunto da colectividade, e a função estética é uma componente da relação entre a colectividade humana e o mundo. Por isso, uma extensão determinada da função estética no mundo das coisas está relacionada com um conjunto social determinado. A maneira como este conjunto social concebe a função estética determina finalmente também a criação objectiva das coisas com o fim de conseguir um efeito estético e a atitude estética subjectiva em relação às mesmas” (id.: 56).

Por outro lado, a norma estética, que tende para uma obrigatoriedade sem excepções sem atingir nunca a validade de uma lei (isto é, sem se negar como norma), autolimita-se permanentemente, não só pelas possibilidades que constantemente existem de ser violada, mas também porque qualquer norma pode coexistir (e normalmente coexiste) com outras normas aplicáveis ao mesmo caso concreto. Ambas possuem o mesmo valor e ambas competem entre si: “A norma está (...) baseada numa antinomia dialéctica fundamental entre a validade incondicional e a potência meramente reguladora, e inclusive só orientadora, que implica a possibilidade da sua violação” (id.: 61). E ainda: “As normas que se enraizaram muito fixamente em qualquer sector da esfera estética ou em algum meio social podem sobreviver muito tempo; as normas novas estratificam-se paulatinamente a seu lado, e assim surge a convivência e a competição de muitas normas estéticas paralelas” (id.: 71).

A conceptualização do valor estético decorre naturalmente deste entendimento da existência da função e da norma. Partindo do princípio de que o cumprimento da norma não é uma condição indispensável do valor, Mukarovský desloca a problemática do valor estético para a validade e alcance da valoração estética, fazendo depender, no entanto, o estudo dessa problemática do reconhecimento fundamental da variabilidade da própria valoração estética: “O valor estético é (...) variável em todos os seus graus, sendo impossível que se mantenha numa imobilidade passiva. Os valores «eternos» mudam e transformam-se em parte mais lentamente, em parte de maneira menos perceptível do que aqueles que estão em níveis inferiores. Mas nem sequer o próprio ideal da durabilidade invariável do valor estético, independente das influências do exterior, constitui em todas as épocas e em todas as circunstâncias o mais alto e o único desejável” (id.: 82).

A variabilidade surge, assim, inscrita na própria essência do valor estético. Mesmo aqueles autores sinalizados pelos chamados «valores eternos», como por exemplo Shakespeare, não estão isentos desta inscrição. Por um lado, porque é possível observar, em relação ao drama shakespeariano, «oscilações» valorativas importantes. Por outro lado, e principalmente, porque há diferenças substanciais entre as obras de Shakespeare que cada tempo, cada lugar, cada espaço cultural sente(m) como «vivo», ou «histórico», ou «representativo», ou «escolar», ou «exclusivo» ou «popular» (vd. id.: 81).

Neste sentido, o valor estético, porque não é unívoco nem invariável, não será um estado (ergon) supra-social ou trans-histórico, mas um processo (energeia) decorrente da lógica da evolução social e do seu sistema de dominações. Por isso, ainda que se apresente sem mudanças no tempo e no espaço, o valor estético surge como um processo multiforme e complexo, manifestando-se, por exemplo, nos desacordos entre os críticos acerca de obras recém-criadas, na instabilidade dos gostos no mercado artístico, na valorização ou desvalorização súbitas de certos autores, etc. (vd. id.: 83).

Por outro lado, o valor estético também se encontra dependente da influência de instituições sociais que actuam directa ou indirectamente no sistema de valoração. Para além da acção institucional da crítica, o condicionamento da valoração estética surge desde logo na educação, em particular na educação artística, no mercado das obras e nos meios publicitários, nas exposições, nos museus, nos concursos e nos prémios públicos e, não raras vezes, na censura. Todas estas instituições, em conjunto com outras cuja acção é menos evidente mas não menos eficaz, representam tendências sociais específicas e, portanto, não só determinam que «o processo de valoração estética [esteja] relacionado com a evolução social» (id.: 84), mas também que «o carácter colectivo e incondicional da valoração estética se reflicta nos juízos individuais» (loc. cit.).

Função, norma e valor estéticos são assim entendidos por Mukarovský, nas suas múltiplas e complexas relações, como factos sociais, isto é, dependentes das contingências de diferentes formações sociais, de diferentes programas colectivos de conhecimento, de diferentes contextos históricos e culturais. A produtividade teórica e crítica destes aspectos nucleares do pensamento de Mukarovský mantém-se ainda viva e actuante.

Bibliografia:

Jan Mukarovský, Escritos de Estética e Semiótica del Arte; Jordi Lovet (org.), Barcelona, 1977.

Peter Steiner (org.), The Prague School. Selected Writings, 1929-1946, Austin, 1982.

René Wellek: “The Literary Theory and Aesthetics of the Prague School”, in Discriminations: Further Concepts of Criticism; New Haven, 1970.



Manuel Frias Martins

Jogos de Linguagem

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Em entrevista ao jornal carioca O Globo, em 5 de agosto de 2006, no Caderno “Prosa e verso”, o escritor português Mário de Carvalho, respondendo, sobre seu romance Um deus passeando pela brisa da tarde, - livro lançado, na quarta edição da “Festa Internacional do Livro de Paraty”, ocorrida de 9 a 13 de agosto de 2006, na cidade fluminense de Paraty - à pergunta da jornalista Cristina Zarur “ A linguagem concisa do livro foge do rebuscamento estilístico. Porém, descritiva e rica, explora detalhes e vocabulário. Como você define sua dicção literária?”, declara: “ Tenho um grande respeito pelos velhos preceitos horacianos de adequação e decoro. Me esforço para que a linguagem esteja conforme ao assunto. Neste livro talvez alguns reconheçam a toada latina. Procuro estar atento a todos estes jogos de linguagem (grifo nosso) e manter um propósito de verossimilhança e necessidade que torne forma e fundo inseparáveis”. Ilustrando a observação do romancista, inscrevemos três poemas, dois dos quais do poeta curitibano contemporâneo Paulo Leminski e um soneto do italiano Guido Cavalcanti (circa 1259-1300), o mais significativo expoente do stil nuovo, poemas que urdem instigantes jogos de linguagem e confirmam a presença insofismável, em todas as épocas e estéticas, desses jogos :



“Uma poesia ártica,
claro, é isso que eu desejo.
Uma prática pálida,
três versos de gelo.
Uma frase-superfície
onde vida-frase alguma
não seja mais possível.
Frase, não, Nenhuma.
Uma lira nula,
reduzida ao puro mínimo,
um piscar do espírito,
a única coisa única.
Mas falo. E, ao falar, provoco
nuvens de equívocos
(ou enxame de monólogos?)
Sim, inverno, estamos vivos”.



“Lápide
epitáfio para o corpo

Aqui jaz um grande poeta.
Nada deixou escrito.
Este silêncio, acredito,
são suas obras completas”.





"Avete 'n vo' li fior' e la verdura
e ciò che luce od è bello a vedere;
risplende più che sol vostra figura:
chi vo' non vede, ma' non pò valere.

In questo mondo non ha creatura
sì piena di bieltà né di piacere;
e chi d'amor si teme, lu' assicura
vostro bel vis' a tanto 'n sé volere.

Le donne che vi fanno compagnia
assa' mi piaccion per lo vostro amore;
ed i' le prego per lor cortesia.

che qual più può più vi faccia onore
ed aggia cara vostra segnoria,
perché di tutte siete la migliore."



Até aqui, operamos, com os exemplos citados, um recorte no sintagma “jogos de linguagem”, sintagma esse recortado, igualmente, do signo mais amplo “jogo”, que, desde sempre, tem perpassado teorias nos vários campos do saber humano. Com efeito, o conceito de jogo assume importância apical no pensamento de Johan Huizinga, que tudo estuda sub specie ludi (sob a égide do jogo) e exibe o homo ludens ( o homem que brinca, joga), contraposto ao homo sapiens e ao homo faber: a civilização é um jogo, a cultura é um jogo, a sociedade é um jogo, tudo se resolve em jogo, não apenas no que concerne às práticas humanas; o jogo constitui uma atividade de todo ser vivo, o próprio Universo define-se como jogo. Segundo a teoria lúdica de Huizinga, um Ariel invisível e poderoso está sempre jogando com um selvagem Calibã. A esta altura, podemos intertextualizar o homo ludens do historiador holandês com o Deus ludens de Leibniz, que enuncia: “Cum Deus calculat fit mundus” (“Enquanto Deus calcula, o mundo faz-se”); parafraseando o filósofo das mônadas, dizemos: Cum Deus ludet mundus fit (Enquanto Deus brinca, o mundo faz-se), enunciado que promove o jogo como atividade eterna, in fieri, confirmando o universo como obra aberta, in progress ou in process. O jogo assume, portanto, uma natureza, que elide qualquer noção de irresponsabilidade e descomprometimento, significando uma essência lúdica, criativa, livre, que encontra, na expressão estética, sua melhor tradução, representação, reapresentação. Aliás, Schiller em suas Cartas sobre a educação estética do homem, (mais especificamente na “Carta 15”), afirma ser o impulso lúdico o fundamento do impulso artístico. Por seu turno, o poeta mexicano Octavio Paz, analisando o fantástico jogo da heteronímia de Fernando Pessoa, afirma que a arte é um jogo e outras coisas. Mas, sem esse jogo, não há arte.

Gozando de seminal fortuna crítica, a ontologia do jogo, também estudada por, entre outros filósofos eminentes, Eugen Fink, pelo “último Heidegger”, por Hegel e por Hans-Georg Gadamer, assume valor fulcral em Ludwig Wittgenstein (1889-1951), nomeadamente no “último Wittgenstein” , que trata dos “jogos de linguagem” ou “jogos lingüísticos”. De acordo com o filósofo austríaco, os jogos, todos os jogos, inclusive os jogos de linguagem, têm “um ar de família”, na medida em que todo jogo obedece a regras, sejam regras formais, sejam regras estratégicas, que são criadas no curso do próprio jogo. No que tange aos jogos de linguagem, o autor do Tractatus logico-philosophicus postula que o mais importante, na linguagem, não é a significação, mas o uso. Nesta altura, somos remetidos ao “papa” da comunicação mediática, o canadense MacLuhan, segundo o qual, para além de “a mensagem ser o meio”, “the meaning is the use”. Portanto, para se entender uma linguagem, mister se faz, primeiro, compreender como ela funciona., o que reenvia ao pensamento do lingüista norte-americano Noam Chomsky, para quem “é errado pensar que é uma característica da utilização da linguagem humana o desejo ou o fato de transmitir informação”. Abre-se, então, a célebre rubrica, tão bem estudada por Roman Jakobson, das funções da linguagem. Haverá tantas linguagens quanto jogos de linguagem, caracterizando-se a linguagem como um jogo, o jogo, que varia segundo o seu uso. Não haverá, destarte, dicotomia entre o locutor e sua vida, que se insere no jogo da linguagem que ele usa. Mais do que uma trama de significações, a linguagem constitui-se, a partir de seu uso, uma trama vital, que vai engendrar significações. Pode soar paradoxal a teoria dos “jogos de linguagem” da filosofia wittgensteiniana, quando se entende que o uso precede a significação. No entanto, o próprio uso da linguagem possui uma significação, que, num determinado jogo de linguagem, vai tramando outros jogos com a própria linguagem e com outras linguagens.

Mãe de todas as artes, arquétipo de toda linguagem de arte, matrix et motrix studiorum, a Literatura configura o lugar onde se pensam e melhor se praticam os jogos de linguagem, pulsantes, sobretudo, a partir da modernidade, continuada, transgredida, relida em nossa conturbada contemporaneidade.

Analisando a filosofia de Foucault, o filósofo português Vergílio Ferreira pondera que “(...) justamente a grande novidade do saber do nosso tempo é a radical reflexão da língua sobre si própria. O discurso é retomado em si mesmo ao modo do século XVI. Com a diferença, porém, de que ele não remete para nenhum outro discurso oculto, mas se fecha nos seus próprios limites. E daí a conclusão singular de que pela primeira vez o ser do homem e da linguagem tenderão a reunir-se num só todo – o que jamais aconteceu. A palavra é agora uma entidade por si. Assim, pela primeira vez surge a ‘Literatura’, anunciada nos fins do século XIX num Nietzsche e num Mallarmé, isto é, a arte da palavra que vive da própria palavra, a põe a ela em questão, a força à transparência de si mesma, a força a dizer o que está nela, sendo o que está nela é só o que está nela e não o que está para além”. Portanto, a linguagem joga consigo mesma, reflete-se e refrata-se no espelho indubitável do texto, figurando caleidoscópica mise en abyme. No fundo das águas da linguagem, Narciso brinca.

Mais do que jogo, tudo, no Universo, e na linguagem que o representa e reapresenta, é mistério, mistério que o haicai da premiada poetisa carioca Roseana Murray nos apresenta belamente:



Amor é o mistério maior

O jogo mágico que se joga

Com pedras sagradas.



Quando, paradoxal e quase sagradamente, o próprio Wittgenstein estabelece, com um jogo de linguagem entre a palavra e o silêncio, que o que não se pode dizer é mais importante do que o que se pode dizer, significando uma necessária delimitação do dizível, podemos inferir que o “indizível” ou, em linguagem de Derrida, o “indecidible”, identifica-se com o ético, que promoveria a liberdade do ser humano



Funções da Linguagem



BIB. Mário de Carvalho, O Globo, 5 de agosto de 2006. Johan Huizinga, Homo ludens (1940). Latuf Isaias Mucci, Da educação estética (1994). Michel Foucault, “Questionação a Foucault e a algum estruturalismo”. As palavras e as coisas, p. 33 (1988). Ludwig Wittgenstein, Investigações filosóficas (1953). Ludwig Wittgenstein, Tractatus logico-philosophicus (1922).

Latuf Isaias Mucci

Gêneros Literários

terça-feira, 23 de junho de 2009

Forma de classificação dos textos literários, agrupados por qualidades formais e conceptuais em categorias fixadas e descritas por códigos estéticos, desde a Poética de Aristóteles e os tratados de retórica de Horácio, Cícero e Quintiliano até às modernas monografias sobre teoria da literatura. Na cultura ocidental até ao século XX, não se faz qualquer distinção entre essas categorias fixadas historicamente (romance, conto, novela, tragédia, comédia, elegia, ode, epopeia, cantiga, etc.) e a a sua explicação fenomenológica, não datada historicamente, que nos conduz à reflexão sobre os modos de produção do literário (modo narrativo, modo lírico, modo dramático, etc.). Nos diferentes códigos ou tratados sobre a natureza da literatura e suas concretizações, assume-se que um género literário é em si mesmo um universal, onde convergem todas as questões ontológicas e epistemológicas sobre o fenómeno literário, incluindo as discussões sobre a tradição, a memória, a originalidade, a verosimilhança, a imitação, etc. Contudo, as mais recentes propostas no campo da teoria da literatura, recomendam a distinção clara entre géneros literários (categorias históricas do texto literário) e modos literários (formas meta-históricas ou arquitextuais de concretização do literário). Na sua influente Teoria da Literatura (1942), Wellek e Warren chamam a atenção para que os géneros são formas discursivas históricas que não devem ser confundidos com as suas formas a-históricas (“géneros fundamentais”).

A longa história da teoria dos géneros literários pode ser resumida em três etapas: clássica, de Platão (Livro III, da República) e Aristóteles (Poética) até ao neoclassicismo; romântica, da Estética de Hegel até aos poetas ingleses, de que é exemplo o Preface to Lyrical Ballads (1798), de William Wordsworth, que ignora premeditadamente o problema dos géneros literários nesse texto programático; do formalismo russo do princípio do século XX até aos nossos dias. As diferentes teorias sobre o problema dos géneros literários evoluem em torno de um denominador comum de reflexão: o que é que representa o literário e como é que essa representação se produz.

Platão começa por afirmar que todos os textos literários são uma narrativa ou diegesis de acontecimentos, o que pressupõe três modalidades de concretização: por um simples acto narrativo, dominado pelo discurso de primeira pessoa do próprio narrador-poeta (como no ditirambo), por um acto mimético (a instância da mimesis), dominado pelo discurso das personagens (como na tragédia e na comédia), e por um modo misto, que combina os dois modos de representação anteriores, alternando as vozes do narrador-poeta e das personagens (como na epopeia). Aristóteles propõe-nos depois uma teoria sobre a origem dos géneros literários. A genologia aristotélica é a primeira a insinuar uma distinção entre os modos literários (a imitação narrativa que produz o literário) e as diferentes formas de representação textual que resultam do processo mimético artístico (os diferentes géneros). No início da Poética, Aristóteles anuncia que vai falar da poesia e das suas “espécies” (Poética, tradução de Eudoro Sousa (Lisboa, 1964, 1994), entendendo-se nesta tradução que a arte da poesia se concretiza em diferentes modalidades (géneros) a partir de um modo único de realização: a mimesis. Toda a poesia é imitação, reclama Aristóteles, que encontra nas diferentes “espécies” ou géneros literários como a epopeia, a tragédia ou a poesia ditirâmbica a mesma matriz de interpretação da realidade. Os géneros literários só são, portanto, distinguíveis pelos meios da imitação (ritmo, canto e verso), pelos objectos que imitam (pelas personagens que são superiores ao próprio homem, como na epopeia e na tragédia; ou pelas personagens que lhe são inferiores, como na paródia e na comédia) e pelos modos de imitação (narrativo, como na epopeia, e dramático, como na tragédia e na comédia). Esta é a primeira distinção sistemática de dois géneros literários: a imitação narrativa e a imitação dramática. Fica, para já, de fora a poesia lírica, porque esta não pertence ao domínio da poiesis (ou “acção”, à qual pertencem a música, a dança e a poesia épica, por exemplo) e também porque Aristóteles não considera a poesia lírica uma forma de imitação narrativa ou dramática.

O imperador Augusto escrevera a Horácio queixando-se de que o Poeta tinha enviado cartas em verso para toda a gente excepto para ele. A resposta de Horácio foi a dedicatória do livro II das Epístolas, que contém a célebre epístola aos Pisões, a qual Quintiliano passaria a designar por Ars poetica. Aí se encontra uma divisão elementar dos géneros literários segundo critérios temáticos, métricos e estilísticos.

O renascimento redescobre a paixão por grandes códigos para servir a arte literária, de preferência segundo a lição versificada de Horácio. Das numerosas artes poéticas que se ocupam também da questão dos géneros literários, destacam-se a do bispo italiano Girolamo Vida, De Arte Poetica, escrita em latim, publicada em três livros em 1527, que viria a ser ofuscada pela A Defense of Poesy ou An Apologie for Poetry de Sir Philip Sidney (1595) e, já na última parte do século XVII, pela Art Poétique do francês Boileau (1674) e nos inícios do séc.XVIII pelo Essay on Criticism do inglês Alexander Pope (1711). A questão dos géneros literários concorre, curiosamente, com a questão do decorum ou conformidade do estilo com o assunto, uma convenção ética de sabor clássico que é, afinal, uma das grandes motivações de quem procura agradar a um público letrado exigente pela boa concordância com o cânone de escrita estabelecido, que o homem do renascimento não pretende ainda discutir livremente.

O neoclassicismo parte do pressuposto de que a teoria dos géneros tradicionais da literatura é uma evidência em si mesma, por isso não necessita de explicitação ou de uma nova sistematização. Antes, procuram reflectir sobre aspectos mais fenomenológicos como a pureza dos géneros literários, que repudia a mistura de vários estilos, temas ou emoções num mesmo texto, posição defendida, por exemplo, pelos neoclássicos franceses que discordavam das soluções discursivas mistas do teatro de Shakespeare, argumento que aparece defendido, em outra dimensão, por John Dryden em Of Dramatick Poesie — An Essay (1688), onde defende o drama inglês contra o clássico e o teatro neoclássico francês então dominante; a hierarquia (aceitando a epopeia e a tragédia como géneros maiores) e a invenção de novos géneros literários (Boileau, na sua Arte Poética, de 1675, chama a atenção para a reinvenção do soneto e do madrigal e Johnson defende uma nova “poesia local”); e a sociologia dos géneros literários, proposta pelo filósofo inglês Thomas Hobbes, que entendia que cada género devia ser consagrado à sua respectiva classe social (a poesia heróica para a corte, a sátira e a comédia para a cidade e a poesia pastoral pra o campo). Hobbes publicou a sua própria tradução da Odisseia (1675), cujo prefácio encerra uma reflexão teórica sobre o género literário maior da epopeia. Aí nos dá a receita para fazer um bom poema épico: 1) vocabulário vernáculo, sem estrangeirismos nem termos técnicos, porque o público leitor deve poder entender o vocabulário do poema — e as mulheres têm tanto direito de compreender e ter acesso à leitura de um poema épico como os homens, já que elas não são supostas ter a mesma competência linguística; 2) o estilo deve ser natural, sem estar preso a regras de rima e metro; 3) o modo de apresentação formal do poema — narração do poeta ou das personagens — e a sequência temporal dos factos narrados devem ser adequadamente medidos; 5) toda a inspiração poética deve ser moderada pela razão e pelo juízo, anulando toda a possibilidade de validar criações fantásticas e maravilhosas; 6) originalidade e correcção no uso de imagens; 7) respeito pelas figuras históricas e 8) variedade de apresentação formal.

O pré-romantismo alemão conheceu já uma forma de constestação contra a teoria fixa dos géneros literários. O movimento Sturm und Drang quis destacar a autonomia da obra de arte literária em relação a quaisquer convenções impostas previamente para a sua criação e recepção. O romantismo foi mais longe ao aceitar a multiplicidade e a diversidade das obras literárias ao mesmo tempo que reclama o carácter absoluto da arte em relação a quaisquer intervenções exteriores ao artista. A tripartição dos géneros literários aprendida desde Platão é retomada por Schlegel, por exemplo, mas com uma nova enunciação, acrescentando-se agora a função subjectiva da lírica por oposição à função objectiva do drama. Em termos dialécticos, Schlegel entende a épica como a tese, a lírica como a antítitese e o drama como a síntese de todas as realizações subjectivas e objectivas da imaginação artística. A Hegel ficou-se a dever a mais completa sistematização sobre a teoria dos géneros literários neste período do romantismo europeu. Na sua Estética, correlacionou a tripartição dos géneros com as categorias temporais do passado, do presente e do futuro.

O século XIX é marcado pelos estudos do francês Ferdinand Brunetière e do italiano Benedetto Croce. O primeiro interpreta a génese dos géneros literários em tom evolucionista: o género literário é como uma organismo vivo que nasce, como a tragédia francesa que nasceu com Jodelle, vive e desenvolve-se, como a tragédia viveu com Corneille, e morre, como antes de Victor Hugo. Croce apresentará uma doutrina bem diferente, livre do dogmatismo que caracterizava as teses de Brunetière, aproximando-se já de certas formas de pensamento liberal que marcam hoje o estudo da teoria da literatura. Em termos actuais, Croce chama a atenção para o facto de muitas vezes o crítico/leitor de literatura estar mais preocupado em saber se um dado texto está conforme as convenções do género a que deve estar ligado do que em saber se esse texto exprime alguma coisa e o que é que realmente significa. Na obra Estetica: come scienza dell'espressione e linguistica generale: teoria e storia (Adelphi, Milão, 1990, 1ª ed., 1902), Croce aceita a utilidade dos géneros literários na sistematização da história literária, desde que não sirvam para abstracções e generalizações que acabam sempre por sacrificar os melhores autores da literatura.

O carácter dialogante da teoria dos géneros literários proporciona reflexões muito díspares entre si por força da ligação que o fenómeno literário terá sempre à criatividade artística. Cada época constrói os seus códigos e, à medida que a modernidade se afirma, poucos artistas resistem ao desafio das convenções clássicas. Esta evidência não obriga necessariamente a eficazes sistematizações do literário, descrevendo as suas estruturas segundo princípios estéticos característicos de determinadas realizações textuais. A tentação de produzir uma nova teoria dos géneros como resultado de uma visão individual e comprometida da arte, sem o necessário distanciamento crítico, pode ter resultados tão díspares como a proposta do inglês E. S. Dallas, em Poetics: An Essay on Poetry (1852) e a proposta de John Erskine, em The Kinds of Poetry (1920). Dallas distingue três classes fundamentais de poesia (drama, conto e canção), que se desdobram em três possibilidades genológicas (poesia dramática, poesia épica e poesia lírica) marcados por uma referência gramatical (2ª pessoa, do tempo presente; 3ª pessoa, do tempo presente; 1ª pessoa, do tempo futuro). Erskine, por sua vez, propõe-nos uma interpretação ético-psicológica dos géneros literários fundamentais (lírica, para o tempo presente; tragédia, para o tempo passado que o homem reavalia; épica, para o tempo futuro, que revela o destino de uma nação).

A influente reflexão teórica de Wellek e Warren sobre os géneros literários, inserida no capítulo fundamental da sua Teoria da Literatura (1942), que marca o início de uma nova época nos estudo teórico da literatura, intitulado “O estudo intrínseco da literatura”, chama a atenção para o facto de que a moderna teoria dos géneros literários não é normativa mas descritiva. Estamos claramente a seguir uma metodologia diferente das poéticas clássicas: estas impunham regras de criação textual e determinavam as espécies literárias que deviam ser cultivadas, ao passo que as modernas teorias acabam por consagrar aquela modalidade mista que combina diferentes tipo de discurso numa mesma instância literária que Aristóteles apenas havia previsto para a epopeia. A dificuldade histórica da teoria dos géneros literários é comum a qualquer tentativa de encontrar uma tabela de valores referenciais para uma ciência. A partir do momento em que a criação literária não pode estar presa a nenhuma lei discursiva implacável, nunca será possível alcançar uma tipologia universal, irrefutável e imutável. Wellek e Warren observaram que os critérios para definir os géneros sempre foram subjectivos, podendo incluir a atitude do artista perante o mundo, as temáticas sociais, as modalizações linguísticas, etc. Todo o acto artístico que envolve a criatividade não é, de facto, susceptível de ser guardado numa categoria intemporal. O universo de discursos que podemos estar sempre a (re)descobrir e a (re)inventar obrigar-nos-á a rever constantemente a teoria dos géneros literários.

Os estudos sobre o pós-modernismo literário privilegiam também as totalidades, as multidisciplinaridades, as intersecções discursivas, a promiscuidade completa entre todos os géneros literários. Parece-me um bom ponto de partida o seguinte comentário de Jacques Derrida, neste ponto uma voz pós-moderma discordante da própria filosofia universalista do pós-modernismo: “Can one identify a work of art, of whatever sort, but especially a work of discursive art, if it does bear the mark of a genre, if it does not signal or mention it or make it remarkable in any way? (...) A text cannot belong to no genre, it cannot be without or less a genre. Every text participates in one or several genres, there is no genreless text; there is always a genre and genres, yet such participation never amounts to belonging.” ("The Law of Genre", in On Narrative, ed. por W. J. Mitchell, The University of Chicago Press, Chicago e Londres, 1981, pp.60-61.). Sem a definição de género, ficamos apenas com proto-narrativas, com textos sem identidade crítica, reduzidos à mais crua enunciação do ficcionismo. Não há ficcionismo inclassificável, como não há textos narrativos de ficção desprovidos de género. Se a definição de género é uma condição geral do texto literário, irrecusável, a inserção desse texto numa escola ou movimento literário é um acto arbitrário que depende de vários factores e admite a rejeição total. Que Ulysses seja um romance, é uma evidência teórica; que Ulysses seja um romance modernista, é uma afirmação crítica provável mas refutável, pois também pode ser lido como romance pós-modernista ou mesmo como romance não datado. O que se pretende concluir é que um texto literário não pode escapar à lógica do género a que pertence, mas pode desafiar a lógica da contextualização que o aprisiona. Essa lógica caracteriza-se por uma total abertura à definição do seu mecanismo. Vale a pena lembrar a defesa que Bakhtin faz do romance como género que não receia a constante renovação, participando do próprio progresso histórico. Em The Dialogic Imagination, argumenta que o romance rejeita o despotismo da sua própria classificação, porque se trata de um género sempre em auto-avaliação: "a genre that is ever examining itself and subjecting its established forms to review. Such, indeed, is the only possibility open to a genre that structures itself in a zone of direct contact with developing reality" (The Dialogic Imagination, University of Texas Press, 1981, p.39). Aceite a necessidade de definição do género, deve notar-se ainda que o texto de ficção também não fica prisioneiro da classificação que lhe é atribuída nem nos casos em que o próprio autor a consagra nem nos casos em que os críticos literários e os historiadores a determinam. Os romances pós-modernos jogam precisamente com os limites da definição do género literário a que as suas obras devem pertencer. Mas é preciso ter em atenção que neste campo de investigação nada é definitivo, nem mesmo aquilo a que chamamos romance. Repare-se, por exemplo, que autores de hoje como José Saramago ou António Lobo Antunes têm optado por escolher para o título dos seus romances termos que aludem a outros géneros literários ou paraliterários: do primeiro autor temos um Manual de Pintura e Caligrafia (1977), um Memorial do Convento (1982), uma História do Cerco de Lisboa (1989), um Evangelho segundo Jesus Cristo (1991), e um Ensaio sobre a Cegueira (1995); do segundo, temos: uma Memória de Elefante (1979), uma Explicação dos Pássaros (1981), um Auto dos Danados (1985), um Tratado das Paixões da Alma (1990), um Manual dos Inquisidores (1996), e uma Exortação aos Crocodilos (1999). Esta paródia dos géneros literários através de um género maior (romance) mostra por um lado a flexibilidade deste género, mas também mostra que o romance não aceita pacificamente qualquer definição dogmática. Os exemplos de Saramago e de Lobo Antunes não são originais. Desde a origem do romance inglês que tal prática de resistência à definição dos limites do romance é visível, o que era muitas vezes declarado pelo próprio autor em prefácios ou posfácios: Richardson declarou que Clarissa (1748) não era “a light Novel, or transitory Romance” mas uma “History of Life and Manners”; Fielding definiu a sua escrita como “comic romance” ou “comic epic poem in prose”, embora o título da obra que continha esta fórmula era The History of the Adventures of Joseph Andrews (1742). Os autores pretendem não deixar cair as suas narrativas em modelos pré-concebidos que facilmente o leitor codificaria por um simples exercício de analogia. Se um “tratado”, por exemplo, equivale a um estudo profundo sobre uma determinada matéria, o leitor não espera que uma obra de ficção se apresente com este perfil e terá de proceder de forma não analógica para compreender o verdadeiro estatuto do texto que quer ser um Tratado das Paixões da Alma ao mesmo tempo que se apresenta como romance.

ARQUITEXTUALIDADE; MIMESIS; MODOS LITERÁRIOS; TEXTO LITERÁRIO; TEXTUALIDADE

Bib.: AA. VV.: Théorie des genres (1986); A. Fowler: Kinds of Literature: An Introduction to the Theory of Genres and Modes (1982); A. García Berrio e J. Huerta: Los géneros literarios (1992); C. Segre: "Géneros", in Enciclopédia (Einaudi), vol.17 (1989); Cristina Mello: O Ensino da Literatura e a Problemática dos Géneros Literários (1996); Jean-Marie Schaeffer: Qu’est-ce qu’un genre littéraire? (1989); Jonathan Culler: Literary Theory: A Very Short Introduction (1997); M. A. Garrido Gallardo (ed.): Teoría de los géneros literarios (1988); Marc Angenot et al.: Théorie littéraire - Problèms et perspectives, 1989. (Teoria Literária, trad. de Ana Luísa Faria e Miguel Serras Pereira, Lisboa, 1995); P. Hernadi: Beyond Genre: New Directions in Literary Classification (1972); René Wellek e Austin Warren: Theory of Literature, 1942. (Teoria da Literatura, 4ª ed., trad. de José Palla e Carmo, Publicações Europa-América, Mem Martins, s.d.); T. Todorov: Les Genres du discours (1978); Vítor Manuel de Aguiar e Silva: Teoria e Metodologia Literárias (1990).

Carlos Ceia

Realismo mágico

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Expressão empregada desde os fins dos anos 40 para denominar um tipo de ficção hispano-americana que reagia contra o realismo/naturalismo do século XIX e contra a “novela da terra”, um tipo de regionalismo que imperava nas primeiras décadas do século XX. O momento mais expressivo e polémico desse novo tipo de narrativa teria sido por volta dos anos 40, com Jorge Luis Borges, Alejo Carpentier e Arturo Uslar Pietri, mas logo se estendeu para outros autores, como Miguel Ángel Asturias, Juan Rulfo, Adolfo Bioy Casares, Juan Carlos Onetti, José Lezama Lima, José María Arguedas e, teve seu ponto culminante nos autores mais jovens então, que formaram o famoso boom da literatura latino-americana: Carlos Fuentes, Gabriel García Márquez, José Donoso e outros. Já sem a força polémica primeira, atinge uma geração mais jovem ainda, como é o caso da escritora Isabel Allende e de Laura Esquivel autoras, respectivamente, de A casa dos espíritos e Como água para chocolate, obras muito divulgadas, inclusive através de sua versão cinematográfica. O primeiro de todos os autores a empregar a expressão realismo mágico foi o venezuelano Uslar Pietri, em Letras y hombres de Venezuela (1948). Para ele essa nova narrativa viria a incorporar o “mistério” e uma “adivinhação (ou negação) poética da realidade”. Dessa maneira procurava corrigir os limites do realismo puro. Daí ele sugerir “o que na falta de outra palavra poderia denominar-se um realismo mágico”. No mundo académico foi, porém, Angel Flores o primeiro a usar o sintagma “realismo mágico”, na conferência “Magical Realism in Spanish American” ( Nova York, MLA, 1954) publicada depois em Hispania, 38 (2) , 1955. Este trabalho divulgou a designação que passou a ser usada para a nova narrativa hipano-americana. Observava Flores que a novidade dessa literatura era um tipo de representação em que coexistem fantasia e realidade. Ele situa o começo do realismo mágico em Jorge Luis Borges, com a Historia universal de la infamia (1935). Apenas em 1967 (vinte anos depois de Uslar Pietri ter lançado a denominação), surge um trabalho do crítico Luis Leal, “El realismo mágico en la literatura hispanoamericana”, que faz a revelação do contexto em que foi primeiramente cunhada a expressão. Ela fora empregada por Franz Roh em Realismo mágico. Post- expressionismo. Problemas de la pintura europea más reciente, livro que teve grande êxito no mundo espanhol, traduzido e publicado pela Revista de Occidente em 1927. Roh, autor alemão, referia-se a um novo realismo (pós-expressionista), uma nova arte que visava à “restauração do objecto, sem renunciar, entretanto, aos privilégios do sujeito” e ainda acusava o expressionismo de uma acentuada preferência por “objectos fantásticos, supraterrestres, remotos” (Roh, p.35). Reagia ao mergulho subjectivo operado pelo expressionismo. Esta estética, que posteriormente vem a ter um desdobramento simplificador e indesejável ( no nacionalismo do Terceiro Reich), nada tinha em comum com o novo romance hispano-americano que muito deveu ao expressionismo, mormente a Franz Kafka. O crítico italiano da geração de Roh, Massimo Bontempelli em L’avventura novecentista (1938) usa do mesmo modo, a fórmula “realismo mágico” – que não se sabe se herdou ou não de Roh – para designar a arte italiana pós-futurista, que pretendia não só superar o futurismo, como também o realismo anterior a este. Uslar Pietri conhecera Massimo Bontempelli em Paris e, posteriormente, na Itália, trava contacto com essa estética. Mais tarde vem a conhecer a obra de Roh, difundida através da tradução espanhola. Provavelmente desse conjunto de influências surgiu o emprego de “realismo mágico” designação que, na origem, nada tinha de comum com a nova narrativa que surgia então na América hispânica. Esta nomenclatura, primeiramente proposta por Uslar Pietri, não tinha, portanto, uma base teórica sólida, acrescido o facto de que o adjetivo “mágico” provém de uma outra série que não a literária (da antropologia, de magia), não tendo, portanto, uma tradição na crítica e na história da literatura. Alejo Carpentier propõe, no prefácio de seu livro El reino de este mundo (1949), chamar a esse mesmo fenómeno, tal como o título de seu prólogo “De lo real maravilloso”. Sublinhamos que o termo maravilhoso, com um vasto enraizamento no universo da tradição literária, desde os mitos, melhor se adapta a esse tipo de nomenclatura. O autor aproxima o maravilhoso surrealista de Breton ao “vivenciado” por ele no Haiti. Situa este nas vidas dos homens que fizeram a história do Continente, nos “buscadores da Fonte da Eterna Juventude até certos heróis da primeira hora […]”. Carpentier acentua a excelência do real maravilhoso americano. O prefácio em questão acabou por ser o prólogo do novo romance latino-americano. Luis Leal vem posteriormente a associar o “realismo mágico” ao “real maravilhoso”. Ambos os sintagmas são aparentemente paradoxais, já que juntam os realia e os mirabilia e definem um tipo de discurso narrativo em que ambos se misturam sem solução de continuidade e sem criar tensão (como acontece no género vizinho, o fantástico*). Assim, em Cem anos de solidão de Gabriel García Márquez , o leitor lerá a respeito do personagem Melquíades, o cigano: “Havia estado na morte, com efeito, porém havia regressado porque não pôde suportar a solidão” e não estranhará porque nesse mundo de ficção o espaço da vida e o da morte são contíguos não havendo, portanto antinomia entre um e outro. A partir da aceitação da convenção dessa particular forma de discurso de ficção, nenhuma emoção é suscitada, nem nos personagens e, nem no leitor, em consequência. Jorge Luis Borges será o maior defensor desse tipo de narrativa, mostrando sua superioridade sobre uma arte mimética (ver em:Prefácio a La invención de Morel, obra de Bioy Casares ou em “El arte narrativo y la magia” em Discución, 1932).

Nas duas últimas décadas do século XX, deparamo-nos com a tendência dos cultural studies aproximarem “realismo mágico” e pós-modernismo, uma vez que muitos dos autores reconhecidamente pós-modernistas praticam um tipo de ficção que poderia ser tributária do “realismo mágico”. Dentre os autores mais citados estão Salman Rushdie com Shame, Angela Carter com Nights and the Circus, D. M. Thomas, com The White Hotel, José Saramago e outros. O que se pode aduzir é que de facto muitos autores pós-modernistas usam as possibilidades de trangressão que o realismo mágico abriu para a ficção e o fazem bem, porém dentro de um novo esquema de pensamento. Pois o realismo mágico mesmo surgiu numa época extremamente utópica (e em nada pós-moderna) e traz no discurso as suas marcas. Época em que a América Latina estava sendo desvelada ao mundo, em que mais do que nunca revelava-se a excelência da cultura pré-colombiana (cf. Alfonso Reyes, Octavio Paz), em que a mestiçagem, um dos seus valores étnicos e culturais, começava a ser valorizada (cf. Arturo Uslar Pietri, Fernando Ortiz, J. C. Mariátegui, Ezequiel Martínez Estrada) em que as crónicas da conquista da América estavam sendo lidas como a pré-história da América. Sublinhe-se que o discurso destas, pleno de elementos do maravilhoso, tornou-se um valioso intertexto para García Márquez e outros autores (Rodrigues, 1992). O realismo mágico tem, portanto, um profundo enraizamento cultural numa época e num espaço.

Bib.: Irlemar Chiampi: O realismo maravilhoso. Forma e ideologia no romance hispano-americano. São Paulo, Perspectiva, 1980. Emir Rodríguez Monegal, “Para uma nova poética da narrativa”, in: __, Borges: uma poética da leitura, Trad. Irlemar Chiampi, São Paulo, Perspectiva, 1980. __, El boom de la novela latinoamericana, Caracas, Tiempo nuevo, 1972. Jorge Luis Borges, “El arte narrativo y la magia”, Discusión, Obras completas, 1923-1972. Buenos Aires, Emecé, 1974. __, Prefácio a La invención de Morel, de A. Bioy Casares, na tradução brasileira: A máquina fantástica, Trad. Vera Pedroso, Rio de Janeiro, Expressão e Cultura, 1974. Selma Calasans Rodrigues, Macondamérica. A paródia em Gabriel García Márquez. Rio de Janeiro, Leviatã, 1993. __, O fantástico. Col. Princípios, São Paulo, Ática, 1988. __, “O maravilhoso no Novo Mundo: ecologia e discurso”, in: Angélica Soares org, Ecologia e discurso. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1992, pp. 115-129. Theo L. D’Haen, “Magical Realism and Postmodernism: Descentering Priviledged Centers”, in: Louis P. Zamora and Wendy B. Faris, Magical Realism: Theory, History and Community. Duhan and London, Duke University Press, 1995, pp. 191-208. Wendy B. Faris, “Sherazade’s Children. Magical Realism and Postmodern Fiction”. Ibidem, pp. 163-190.

Selma Calasans Rodrigues

Teatro de vanguarda

sábado, 20 de junho de 2009

Expressão que designa todo o teatro que em determinada altura foi contra as convenções vigentes da época, inovando dessa forma. O termo vanguarda aparece no século XIX. Caracteriza-se como um fenómeno puramente burguês do capitalismo e da situação socio-económica por ele criada. A vanguarda põe em causa os valores, mas dentro de um grupo restrito de letrados, não sendo o conjunto da sociedade considerado e dessa forma não participando nela. É importante lembrar que toda a arte é um fenómeno social. Este é um termo militar que deriva do francês avant-garde e significa a dianteira de um exército, ou seja, a parte do exército que marcha à frente do grosso das tropas, na primeira linha. É feito um uso metafórico dessa palavra, ao aplicá-la a uma escrita que mostre evidentes inovações no estilo, forma e assunto. Em todas as épocas, a vanguarda é como que um ataque frontal, muitas vezes organizado, às formas e tradições literárias estabelecidas no seu tempo. Ela visa a destruição do adversário, tornando irreconhecíveis os traços que o especificam.

Todos os movimentos literários nascem de alguma forma como vanguardas. O seu uso em literatura é devido à luta que esta, a partir de determinada altura, empreende na frente ideológica. Designa, então, um conjunto de “–ismos” literários que surgem como reacção a uma ideologia dominante. Nesse conjunto, encontra-se o modernismo, o futurismo, o surrealismo, o expressionismo, entre outros. Porém, nem tudo o que se reclama como vanguarda o é. Erroneamente se julgou que o novo seria o que se acrescentasse á ultima novidade. Para se ser considerado vanguarda é necessário uma inovação, uma antecipação do que está para vir. Hoje em dia, no entanto, vanguarda é muitas vezes sinónimo de extravagante, tornando-se num conceito demasiado vago.

Quando se emprega este termo em teatro, quer demonstrar-se as inovações de determinada peça ou autor. Assim, pode-se dizer que o teatro escrito por William Shakespeare é considerado de vanguarda, embora na altura não se tenha utilizado esse termo para o descrever. Qualquer peça de teatro que demostre qualidades diferentes das anteriormente estabelecidas, pode ser classificada como teatro de vanguarda. Pode comparar-se, assim, uma peça de Shakespeare a uma de Samuel Beckett, considerando que em determinada altura elas foram peças de vanguarda.

No século XX, a mudança mais importante acontece na figura do encenador. Este é a figura central, ultrapassando em importância, a figura do dramaturgo. É possível ver a inovação nos cenários e palcos, passando estes a ser em locais pouco convencionais, como é o caso de circos e fábricas. Há um maior destaque para a iluminação, sendo esta explorada até aos limites, pela tecnologia.

As primeiras peças a serem consideradas como teatro de vanguarda, foram, no entanto, as dos artistas russos das três primeiras décadas do século XX. Esta vanguarda artística acreditava que poderia criar um local onde as suas utopias pudessem existir. Assim, com o final da guerra civil, passam a concretizar as profecias dos futuristas, acabando com a ideia de arte separada da vida. Procuravam novas formas que expressassem as novas realidades da vida soviética e faziam-no em todos os ramos da arte. O teatro era, sem dúvida, o melhor meio para estes artistas realizarem a sua visão de síntese de todas as artes. Isto é, em parte, devido à forte ligação que os russos sempre tiveram com o teatro. Os palcos, as cortinas e os fatos utilizados eram muitas vezes criados em colaboração com produtores como Vsevolod Meyerhold, utilizando ideias construtivistas.

É com a companhia teatral de Meyerhold, e o seu afastamento do realismo, que se começa a pesquisar inovações teatrais ao nível corporal e espacial. Há uma preparação física intensa por parte dos actores, dentro de um método que Meyerhold denominará de biomecânica. Além desta inovação, ele vai também recorrer ao simbolismo e às formas cénicas populares (teatro de feira, music-hall, circo, pantomina) de forma a produzir uma nova e desejada teatralidade. Como encenador, dá muita importância à linguagem cénica e chega a dispensar o proscénio em algumas das peças encenadas por si. Esta inovação veio quebrar a tradição teatral. Com a colaboração de Liubov Popova e de Várvara Stiepanova, cria cenários que sugerem engrenagens de máquinas, andaimes, trapézios e, também, um guarda-roupa apropriado a tais inovações. Meyerhold parte do princípio que toda a relação humana e consequente conduta, expressa-se através de olhares, passos e atitudes e não de simples palavras. Assim, o corpo seria a “linguagem” por excelência, nas suas encenações. Esta introdução de novos e absurdos elementos, criando quebras lógicas, tinha o objectivo de reestruturar e reorientar a realidade.

Mas nem todos partilhavam deste entusiasmo e havia a preocupação que tais experiências artísticas não fossem compreendidas pelas massas. Devido às condições políticas da época, os seus trabalhos tornaram-se meios para propaganda e agitação. Com Estaline chegado ao poder, todas as energias, tanto culturais como ideológicas, tiveram que se submeter aos seus objectivos. Onde houvesse discordância, haveria traição. O gosto era agora pelo romântico e idealista, e os formalistas do passado reconheciam, agora, os seus ditos desvios de percurso. Isto leva ao suicídio de Maiakóvski.

É só mais tarde, após a segunda guerra mundial, que volta a estar em voga o chamado teatro de vanguarda. Este não faz mais do que seguir um movimento já estabelecido na literatura e pintura. Contudo, a condição do teatro é bem mais complexa que a da literatura e pintura, pois estas só dependem do próprio escritor/pintor. O teatro é uma obra colectiva. Uma peça depende do encenador, do autor, dos actores e até do público.

É nas encenações da Rive Gauche parisiense que nomes como Eugène Ionesco, Samuel Beckett, Arthur Adamov e Jean Genet se impõem. Este movimento chega a Inglaterra e passa a ser conhecido pelo nome de teatro do absurdo. A peça Ubu Roi (1888) de Alfred Jarry e as experiências futuristas, são consideradas percursoras desta nova vanguarda teatral. Esta constitui-se por um grupo reduzido de autores, que buscavam a renovação incessantemente. As suas peças caracterizam-se pela ausência de acção e por personagens risíveis. Como processos para atingir esse fim, os autores utilizam a réplica imprevista dentro do discurso normal, a pulverização da linguagem que deixa de ter como objectivo a comunicação, o absurdo do mundo em que o homem vive, o desmoronamento das situações convencionais e a recusa da continuidade cronológica. Procura-se dar ao teatro uma dimensão metafísica, em que o homem é surpreendido pela sua tragédia, pelo absurdo e pela solidão derivada da sua incomunicabilidade.

O autor de vanguarda é avançado em relação ao tempo em que se insere, é revolucionário pela sua forma de pensar e escrever, e é sobretudo revolucionário pela sua concepção de teatro. Sabe que as suas peças não serão aceites por todas as pessoas, mas ele escolhe o seu próprio público. Ele é uma excepção no movimento artístico e intelectual do seu tempo.

O problema desta nova vanguarda reside no facto de se ter limitado a um público específico (os intelectuais). Porém, Sanguinetti afirma que a nova vanguarda é um problema de mercado e não um problema político ou de classes. É necessário que haja uma política cultural que seja capaz de propiciar o encontro entre massas e arte. As massas não entendem esta vanguarda porque estão imersas numa sociedade de alienadas ideologias. É por essa razão que não se reconhecem na obra que pretende representar a sua própria condição. Assim, teatro de vanguarda em vez de abrir caminhos, cria apenas labirintos pois não fornece indícios para a sua interpretação.

O teatro experimental de Peter Brook e os Happenings iniciados pelo pintor Allan Kaprow e pelo músico John Cage, são formas de teatro de vanguarda em voga até aos dias de hoje.



LITERATURA DE VANGUARDA; TEATRO EXPERIMENTAL; TEATRO DO ABSURD

Bib: A. M. Ripellino Maiakóvski e o Teatro de Vanguarda (1971); Edoardo Sanguinetti “Sociologia da Vanguarda” in Literatura e Sociedade – Problemas Metodológicos em Sociologia da Literatura (1978); Fernando Guimarães “Um Problema Teórico: Vanguarda e Produção Textual” e “O Modernismo e a Tradição da Vanguarda” in Simbolismo, Modernismo e Vanguardas (1982); George E. Wellwarth Teatro de Protesta Y Paradoja: La Evolución del Teatro de Vanguardia (Madrid: Alianza Editorial, 1963); Georges Pillement “La Condition De L’Auteur D’Avant-Garde” e André Villiers “Perspectives Ouvertes Et Fermées De L’Avant-Garde” in Jean Jacquot : Le Theatre Moderne – Hommes et Tendances (1958); João Barrento Vanguarda, Ideologia e Comunicação (1977); Leonard C. Pronko Théâtre d’Avant-Garde: Beckett, Yonesco et le Théâtre Experimental en France: Essai (1962); Luiz Francisco Rebello “A Utilidade da Arte e a Arte Utilitária” in O Jogo dos Homens (1971); Marcelin Pleynet e Philippe Sollers “A Vanguarda de Hoje” in Roger Pillaudim (dir.): Escrever... Para Quê? Para Quem?, tradução de Raquel Silva (1975); Peter Burger, Theory of the Avant-Garde, (Lisboa: Editora Vega, 1993); Sábato Magaldi “Qualitativos em Voga - Vanguarda” in Iniciação ao Teatro (1985);

http://www.theatre-link.com/thresor.html#other

http://geocities.yahoo.com.br/vinicrashbr/artes/teatro/teatro.htm



Andrea Peixoto

Verossimilhança

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Em sentido genérico e comum, verossimilhança é a qualidade ou o caráter do que é verossímil ou verossimilhante; e verossímil, o que é semelhante à verdade, que tem a aparência de verdadeiro, que não repugna à verdade provável. Como se sabe, o entendimento do que seja verossimilhança é fundamental para o estudo da literatura e das artes em geral desde a Poética de Aristóteles, que entendia que "pelas precedentes considerações se manifesta que não é ofício do poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade” (Aristóteles, Poética, Abril Cultural, 1984).

Diferentemente da noção de verdade e de verdadeiro, entende-se desde então por verossímil na ordem narrativa tudo o que está ligado ao campo das possibilidades simbólicas relativas ao homem e à história. Desde então, todo questionamento quanto aos possíveis sentidos da verossimilhança está relacionado ao entendimento das referências que norteiam a sua constituição.

Passou-se assim à possibilidade de consideração de duas grandes modalidades ou formas de verossimilhança inter-relacionadas: (a) a interna, que emerge da própria estrutura da obra apresentando os componentes fundamentais de sua coesão interna, congruentes com as demais partes da construção narrativa que dessa forma não parece imposta ou enxertada como um corpo estranho dentro da obra narrativa. Esta forma de verossimilhança está diretamente relacionada ao modo mesmo como a obra está sendo concebida como objeto de representação lingüística e simbólica e assim confunde-se com a própria mímese tanto em seu sentido de produto como de produção; (b) a externa, que estuda principalmente a estrutura do discurso narrativo e suas possíveis relações com a série dos outros discursos disponíveis na sociedade e na cultura onde a obra se dissemina e tem o seu modo de recepção. Isto assim posto significa que todo critério de verossimilhança que venha a se estabelecer é relativo e em parte dependente da ordem constituinte dos discursos que o cercam e se constituem como princípio de realidade ou de referencialidade. Porque em última instância, é disso que se trata: qual a realidade que a obra literária apresenta e representa ao leitor?

A verossimilhança externa utiliza um conhecimento já sedimentado por parte do receptor da obra artística, o que facilita sua leitura e aceitação. Aí se integram tanto exemplos de Aristóteles sobre a referência às famílias ilustres apresentadas pelos trágicos, quanto às modernas novelas de televisão que reciclam constantemente a mesma narrativa, tornando a qualidade desta verossímil a cada vez por um processo de redundância típica da cultura de massa. A certeza do receptor, ou no caso, do consumidor, decorre de indicadores externos, de discurso já arqueologicamente constituído e fixados como sentido comum. A verossimilhança interna, ao contrário, apóia-se intrinsecamente na necessidade morfológica da própria organização da narrativa. Na verossimilhança externa, a referência é bastante explícita ou pelo menos de mais fácil verificação. Na interna, depende da composição, do arranjo das partes entre si e da significação que pode então produzir. Segundo Luiz Costa Lima "verossimilhança (...) sempre resulta de um cálculo sobre a possibilidade de real contida pelo texto e sua afirmação depende menos da obra que do juízo exercido pelo destinatário. A obra por si não se descobre verossímil ou não. Este caráter lhe é concedido de acordo com o grau de redundância que contém" (Luiz Costa Lima, Estruturalismo e Teoria da Literatura, Vozes, 1973). A partir deste foco, a especificidade do que seja artístico fica na dependência da ordem de interpretação ou recepção do destinatário que com ela dialoga.

Conforme ficou anteriormente dito, o conceito de verossimilhança está na dependência do possível e do necessário. Sem esses elementos, a mímese, como pensada por Aristóteles, ainda seria dependente do modelo platônico que estabelecia uma relação de sacralidade com a idéia original, e a criação artística pôde deixar de ser uma imitação da imitação, uma forma menor da atividade humana. O conceito de mímese só adquiriu seu sentido próprio quando, ao discutir a noção de unidade de ação, Aristóteles considerou que a unidade de qualquer objeto que possa ser objeto da mímese não decorre da pura e simples imitação, pois "há muitos acontecimentos e infinitamente variáveis, respeitantes a um só indivíduo, entre os quais não é possível estabelecer unidade alguma" (Aristóteles, Poética, Abril Cultural, 1984). É a partir deste momento da Poética que se estabelece relação estreita entre verossimilhança, possibilidade e necessidade. Ou seja, que não é ofício do poeta narrar o que aconteceu e sim de representar o que poderia acontecer, aquilo que é possível, verossímil e o necessário à organização de uma determinada obra. Por isso poeta e historiador são figuras tão distintas entre si, pois o primeiro narra fatos sucedidos e o segundo, fatos possíveis.

Podemos então perceber que qualquer operação mimética é conduzida por um critério fundamental que, em última instância, é a verossimilhança. É ela que situa a mímese na fronteira do possível, objeto morfológico da mímese por excelência e não verdade ou realidade em qualquer de suas acepções. Devemos então considerar que é o critério de verossimilhança que subordina a dupla articulação da mímese: a externa, ligada às referências exteriores de tempo e espaço, e a interna, referida à seleção e disposição estrutural do material discursivo do tema desenvolvido. Dada a ênfase aristotélica na dependência maior da mímese ao seu princípio de organização, a verossimilhança interna acaba por se impor como critério fundamental para a produção literária ou artística, onde tudo é verossímil ou possível, mesmo aquilo que possa vir a ser considerado como inverossímil, desde que devidamente determinado, representado ou simulado como possível ou admissível por aqueles que interagem com a obra artística e suas possíveis leituras.

A verossimilhança, cujo grau maior exigido pela ação é a necessidade, tem por função principal a coesão e a unidade entre as partes da narrativa que assim não precisa ser historicamente “verdadeira”, bastando que seja verossímil dado que o poeta, o artista tem liberdades e obrigações no que diz respeito à ação e seus desdobramentos. É por essa razão que o maravilhoso, comentado por Aristóteles em sua Poética, não apresenta nenhuma contradição frente às possibilidades da produção da mímese e sua competência como possível e verossímil.



Bibliografia:

Aristóteles. Poética. São Paulo: Abril Cultural, 1984.

Heinrich Lausberg. Manual de retórica literária. Fundamentos de uma ciência de la literatura. Madrid: Gredos, 1967.

Jose Guilherme Merquior. A astúcia da mimese: ensaio sobre lírica. Rio de Janeiro: José Olympio, 1972.

_____. Formalismo e tradição moderna. O problema da arte na crise da cultura. São Paulo: Forense-Universitária, 1974.

Luiz Costa Lima. Estruturalismo e Teoria da Literatura. Petrópolis: Vozes, 1973.

_____. Mímesis e modernidade: formas das sombras. Rio de Janeiro: Graal, 1980.

René Wellek e Austin Warren. Teoria da Literatura. Mira-Sintra: Publicações Europa-América, 1976.

Wolfgang Iser. O fictício e o imaginário: perspectivas de uma antropologia literária. Rio de Janeiro: EDUerj, 1996.



Aristides Ledesma Alonso

Crítica filológica

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Tipo de crítica literária ligado aos estudos linguísticos, analisando em particular os aspectos formais dos registos escritos. Por se ocupar da análise formal de fontes escritas, a crítica filológica combina-se com a epigrafia e a paleografia. Por se ocupar ainda da fixação correcta de um texto literário, está também relacionada com a crítica textual, disciplina de que também é sinónima. Finalmente, a hermenêutica antiga, apoiada no estudo das fontes bíblicas, depende sobremaneira do estudo filológico dos textos sagrados, pelo que as duas disciplinas se complementam.

Os primeiros campos de análise da crítica filológica incluíram o conjunto das línguas bíblicas, como o hebraico do Velho Testamento ou o grego helenístico do Novo Testamento (século I d.C.), por exemplo. Também a literatura grega antiga mereceu interesse particular da crítica filológica , que conheceu particular desenvolvimento na Escola helenística de Alexandria, destancando-se um grupo de gramáticos do século III ªC. como Aristófanes de Bizâncio, Aristarco e Zenódoto, que se dedicaram ao estudo dos textos dos primeiros poetas, sobretudo Homero e Hesíodo. Na Roma antiga, Varrão introduziu novo método filológico em De lingua latina (século I ªC.) que influenciará os gramáticos posteriores. Após a afirmação do Cristianismo, os estudos filológicos incidiram sobretudo na análise dos clássicos, o que foi feito pelos filólogos bizantinos do século VIII, como Fócio, até ao século XII, como Eustácio. No final da Renascença italiana, surgem aí os sábios bizantinos que tentam as primeiras edições (sem ainda rigor crítico) dos textos gregos e latinos. Só a partir do século XVI podemos dizer que se introduzem na crítica filológica regras precisas de análise para o estudo dos textos antigos. Falamos a partir de aqui de apparatus criticus, que concede ao texto original credibilidade científica.

A chamada Escola de Praga, representativa do estruturalismo checo, ficou conhecida pelos seus trabalhos filológicos. Trubetskoy e os seus seguidores não aceitaram a teoria americana do fonema como a unidade mínima de significação, preferindo analisar tais unidades em termos de séries de traços distintivos. Cada fonema é estudado em função das suas características articulatórias e daquilo que o distingue de todos os outros na linguagem. Assim, por exemplo, /p/ e /b/ distinguem-se dos restantes porque são labiais; /f/ e /v/, porque são fricativos; /m/ e /n/, porque são nasais. Jakobson associou este princípio básico de dualidades às funções cognitivas da linguagem, base de trabalho da chamada fonologia generativa.

CRÍTICA TEXTUAL; EPIGRAFIA; ESTRUTURALISMO CHECO; FILOLOGIA; FUNÇÕES DA LINGUAGEM; PALEOGRAFIA

Bib.: A. Blecua: Manual de crítica textual (Madrid, 1983); J. Vachek: A Prague School Reader in Linguistics (1964); Paul Garvin (ed.): A Prague School Reader on Esthetics, Literary Structure and Style (1955); V. Branca e J. Starobinski: La filologia e la critica letteraria (Milão, 1977).

Carlos Ceia

Campo literário

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Ao que nos parece, somente a fisica emprega a palavra campo como termo técnico especializado, isto é, sujeito a definição rigorosa e por isso veículo de um conceito. Assim, nessa disciplina, "Se da el nombre de campo a toda magnitud A que queda descrita en un dominio espacial en función de las coordenadas. Ejemplos: campo de potencial, campo gravitatorio, campo eléctrico, campo de fuerzas, campo de ondas eletrónicas, campo mesónico, etc." (Franke, 1967, v. 1, p. 188‑9).

Fora da física, porém, campo constitui apenas uma metáfora mais ou menos evidente, passível de algum aproveitamento epistemológico menos como conceito do que como mera noção. Tentemos, pois, alcançar uma possível caracterização epistemológica da noção de campo, para verificar depois sua eventual pertinência aos estudos literários.

Como uma quase-metáfora — como noção aproximativa que a ninguém ocorre definir melhor — fala‑se com freqüência em campo de estudos. Trata‑se de idéia tangente à de objeto, mas dela distinta. Se quisermos exercer nosso empenho de rigor, podemos dizer que o primeiro termo nomeia algo mais fluido e amplo, ao passo que o segundo se refere a um recorte mais limitado e preciso que se pode operar no interior do campo. Nesse sentido, um campo de estudos se estabelece pela intervenção do elemento teoricamente primário do método cientifico, isto é, a observação, primeiro ato metodologicamente orientado no sentido de circunscrever certa região da realidade a fim de submetê‑la a investigação. Assim, a observação compõe um campo — dito de estudos, ou mesmo campo de observação (a expressão é empregada por Roland Barthes: A retórica antiga. In: Jean Cohen et alii. Pesquisas de retórica. Petrópolis [Rio de Janeiro]: Vozes, 1975. p. 148) —, constituído por um conjunto de dados por ela protocolados. Esse conjunto de dados produzidos pela observação, por sua vez, pode ser alvo de apropriações conceituais diversas e mais elaboradas, o que se viabiliza mediante a eleição de certo centro de interesse, ou, em outros termos, mediante a intervenção de elementos do método posteriores à singeleza da observação. Os dados constitutivos do campo, em princípio evidências observáveis mas que não apresentam maiores interconexões imediatamente visíveis, conduzem então à formulação de problemas, como, por exemplo, modos mais racionais e econômicos de ordená‑los visando à sua apresentação intersubjetiva, inter‑relações que possam contrair uns com os outros — do tipo causa e efeito, antecedente e conseqüente, complementaridade, implicação mútua, etc.—, processos de integração entre eles, explicações para seu funcionamento isolado ou integrado, utilidades práticas que possam revelar, etc. Ora, essa manipulação problematizante dos dados, segundo interesses variáveis e aparelhamentos conceituais específicos, é que permite, a partir de um campo de estudos (ou de observação), a construção de objetos.

Para que a explicação fique menos aérea, sejamos temerariamente amplos numa ilustração. Digamos que a natureza seja um campo de estudos; sua vastidão e fluidez, no entanto, impõem uma problematização segmentada, que permite o recorte de objetos construídos segundo interesses distintos e instrumentos conceituais apropriados. Assim, o campo de estudos natureza se decompõe em problemas propostos e equacionáveis em limites conceituais a que chamamos disciplinas, donde, no caso em apreço, a física, a química e a biologia com seus respectivos objetos específicos, embora recortados no mesmo campo (objetos sempre mais delimitados, por certo, são passíveis de construção no interior do macro‑objeto de uma disciplina; um biólogo, por exemplo, no interior do macro‑objeto vida pode fixar‑se no objeto reino vegetal e, daí, em níveis crescentemente específicos, na fisiologia, no desenvolvimento, na reprodução, etc.).

Segundo o entendimento ora exposto, um campo de estudos não coincide com uma disciplina, dando margem — isto sim — à constituição de diversas. Assim, pode‑se admitir que a expressão campo literário seja útil para designar um conjunto de dados estabelecido mediante observação de certos fenômenos da linguagem e suas implicações adjacentes. Esse campo tem sido recortado por diversas disciplinas, cada qual constituindo um objeto próprio a partir de seus específicos interesses e aparato conceitual, a saber: retórica Þ verossimilhança ou mimesis persuasiva; poética Þ verossimilhança ou mimesis catártica; estética Þ sensibilidade e beleza; história da literatura Þ origens e evolução; teoria da literatura Þ literariedade.

É claro que a relação de disciplinas ora apresentada pressupõe simplificações imprescindíveis para a viabilidade da presente exposição, segundo seus limites e objetivos, donde a necessidade das seguintes ressalvas: 1 ‑ para as designações utilizadas, teve‑se em conta o caráter corrente dos termos nas várias línguas ocidentais (assim, por exemplo, não se incluiu ciência da literatura, termo equivalente ao alemão Literaturwissenchaft, mal aclimatado em outros idiomas); 2 ‑ o termo crítica literária foi também preterido, não obstante seu amplo curso para nomear disciplina — cremos que sobretudo em inglês —, pois preferimos entender por crítica menos uma disciplina e mais uma espécie de atitude de interesse na questão do valor, atitude onipresente sob diversas formas nas mais variadas explorações do campo literário: 3 ‑ as disciplinas listadas sugerem uma série histórica evolutiva, bem como limites nitidos a separá‑las; no entanto, é indispensável considerar sobrevivências residuais de umas nas outras, como também uma rede complexa de interferências recíprocas aproxiamando‑as entre si; 4 ‑ o objeto ou interesse apontado para cada uma (por exemplo, "verossimilhança ou mimesis persuasiva" para retórica) pode certamente ser bem mais detalhado, ou ainda formulado em outros termos; 5 ‑ na expressão campo literário, o adjetivo deve ser entendido como derivado não de literatura — palavra que veicula conceito mais circunscrito, pelo menos segundo usos técnicos atuais —, e sim de letras — termo que se refere a espaço mais amplo e difuso constituído pelas questões do discurso em geral; por esse raciocício, não há sobreposição entre as idéias de literatura e de campo literário, sendo preferível que se compreenda aquela como um dos recortes possíveis deste (assim, por exemplo, a retórica se exerce sobre o campo literário, mas seu objeto não é propriamente a literatura).

Além desse delineamento do campo literário como espaço recortado por disciplinas da mesma área — nesse sentido, por assim dizer, "autóctones" desse campo —, outros rendimentos epistemológicos podem esperar‑se dessa noção. Imediatamente, o campo literário pode suscitar o interesse de outras disciplinas — sociologia, antropologia, lingüistica, história, psicanálise, etc. —, que nele poderão encontrar questões transformáveis em objetos de suas respectivas alçadas. Juntamente com essa possibilidade, o caráter menos determinado da idéia de campo permite viabilizar certa relativização das especialidades disciplinares correlativas do destaque concedido à idéia limitadora de objeto. A noção de campo, desse modo, favorece o que se tem chamado interdisciplinaridade, ou, mais apropriadamente, transdisciplinaridade: “Interdisciplinaridade quer dizer, para mim, em primeiro lugar, capacidade de diálogo entre cientistas, os eruditos provenientes de horizontes diversos, trabalhando sobre um tema comum, através da metodologia específica de sua matéria. É esta faculdade de compreender os outros e, por esse viés, de se questionar, que é determinante. Para fazer isto, a condição sine qua non é possuir um conhecimento profundo e sólido de sua própria disciplina. Seria muito mais apropriado, aliás, falar em transdisciplinaridade, em lugar de interdisciplinaridade, uma vez que nos referimos à faculdade de pensar além de sua própria disciplina” (Berchen, 1990, p. 21-2).



Bib.: Berchen, Theodor. A missão da universidade na formacão e no desenvolvimento culturais: a diversidade dentro da universidade. Cadernos Plurais; série Universidade, Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 5: 7‑29, 1990; Danziger, Marlies K. & Johnson, W. Stacy. Frames of reference. In: ---. An introduction to the study of literature. Lexington/Toronto/London: D. C. Heath, 1965. p. 129-56; Franke, H. Campo. In: ‑‑‑, org. Diccionário de física. Barcelona: Labor, 1967. V. 1, p. 188‑9; Khéde, Sônia Salomão, coord. Os contrapontos da literatura; arte, ciência, filosofia. Petrópolis [Rio de Janeiro]: Vozes, 1984; Lerner, L. The frontiers of literature. 1988; Reis, Carlos. O conhecimento da literatura; introdução aos estudos literários. 1995; Souza, Roberto Acízelo de. Formação da teoria da literatura. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico; Niterói: EDUFF, 1987; -‑‑‑­‑‑. Teoria da literatura. In: Jobim, José Luís, org. Palavras da crítica. Rio de Janeiro: Imago, 1992. p. 367‑89; ‑‑‑‑‑‑. Teoria da literatura e ciência. Cadernos do Mestrado/Literatura, Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 4: 7‑15, 1993; ------. Teoria da literatura. São Paulo: Ática, 1996.


Roberto Acízelo de Sousa

Metadiscurso

terça-feira, 16 de junho de 2009

Termo que se relaciona intimamente com o termo “texto” no campo da Semiótica, mais concretamente relativo às análises de Greimas: “On pourrait dire que la sémiologie constitue une sorte de signifiant que, pris en charge par un palier analogique quelconque, articule le signifié symbolique et le constitue un réseau de significations différenciées” (Sémantique Structurale, Larousse, Paris, 1966, p.60) uma vez que “Qualquer sistema semiológico é composto por três termos diferentes, havendo uma correlação que os une: há, assim, o significante, o significado e o signo, que é o total associativo dos dois termos” (Roland Barthes, Mitologias, Círculo de Leitores, Lisboa, 1987, p.207).

Gadamer (Vérité et Méthode. Les Grands Lignes d’une Herméneutique Philosophique, Éditions du Seuil, Paris, 1988) fala do processo hermenêutico no qual considera estar implicado o fenómeno de manutenção do significado de textos passados no presente, atribuindo a permanência dos valores e convenções subjacentes ao significado do discurso. Uma vez que a semiótica é o estudo dos signos e a tudo o que a eles se liga: o seu funcionamento, a sua relação com outros signos, a sua produção e a sua recepção pelos que os utilizam. “Quando o estudo dos signos se concentra na sua classificação, na sua classificação, na sua relação com outros signos, na forma como cooperam no seu funcionamento, é um trabalho de sintaxe semiótica. Quando se concentra na relação dos signos com os seus referentes e com a interpretação que daí resulta, é um trabalho de semântica semiótica. Quando o estudo dos signos considera a sua relação com os destinadores ou os destinatários, é um trabalho de pragmática semiótica” (A. K. Varga, Teoria da Literatura, Presença, Lisboa, 1981, p.197, sublinhado do autor).

Ora, um texto literário onde conteúdo narrativo seja individuável e formulável traduzirá a sua natureza semiótica, porque se trata do significado (ou melhor, um dos significados: o narrativo) da história apresentada no discurso. Se ele aparecer enunciado verbalmente passa a constituir uma metanarração. Se o conteúdo do discurso narrativo é a sua síntese metalinguística, também a acção deverá articular-se linguisticamente: tratar-se-á do discurso sob o discurso, ou o M. “Este discurso, porém, apresenta características próprias: discurso virtual que se transforma em acto, apenas através das tentativas de interpretação; discurso que, por definição, resolve as ambiguidades do discurso explícito. Teremos assim uma convergência entre uma teoria do discurso e uma teoria da acção.” (C. Segre, “Discurso” in Encilopédia Einaudi, Vol.17, Literatura-Texto, Imprensa Nacional Casa da Moeda, Lisboa, 1989, p.30).

Com efeito, uma só obra literária pode encerrar em si, simultaneamente, tipos de discurso extremamente distintos: a Odisseia homérica como primeiro texto é repetida, na mesma época, na tradução de Bérard, nas explicações indefinidas dos textos, e até em Ulysses de Joyce. Assim sendo, o texte première e o texte seconde (expressões de Foucault, L’Ordre du Discours, Éditions Gallimard, s.l., 1971, p.27) têm dois papéis que são solidários. Por um lado ele permite construir novos discursos através de um estatuto de discurso reactualizável em que o sentido se multiplica apresentando-se numa possibilidade aberta de falar, num M. constante – o novo discurso que se diz em aberto. Por outro lado, contudo, o M. deverá dizer pela primeira vez que apesar ter sido já dito e repetido aquilo que nunca havia sido dito: “il permet bien de dire autre chose que le texte même, mais à condition que ce soit ce texte même qui soit dit et en quelque sorte accompli. [...] Le nouveau [discours] n’est pas dans ce qui est dit, mais dans l’événement de sont retour” (Michel Foucault, L’Ordre du Discours, Éditions Gallimard, s.l., 1971, p.29).

Há no entanto um outro princípio de rarefacção de um M.: “Il s’agit de l’auteur” enquanto princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem dos seus significados e significações, consoante a sua coerência.

2. Remetemos M. para o conceito de interdiscurso, onde se depreende que “todo o discurso convoca outros discursos, para eles remete, com eles se cruza, com eles dialoga de múltiplas formas” (J. Fonseca, Pragmática Linguística. Introdução, Teoria e Descrição do Português, Porto, 1994, p.81).

“Bref, on peut soupçonner qu’il y a, très régulièrement dans les sociétés, une sorte de dénivellation entre les discours : les discours qui se « disent » au fil des jours et des échanges, et qui passent avec l’acte même qui les a prononcés; et les discours qui sont à l’origine d’un certain nombre d’actes nouveaux de paroles qui les reprennent, les transforment ou parlent d’eux, bref, les discours qui, indéfiniment, par-delà leur formation, sont dits, restent dits, et sont encore à dire” (Michel Foucault, L’Ordre du discours, Éditions Gallimard, s.l., 1971, p.24.



DISCURSO; METATEXTO



Bib.: C. Segre: “Discurso” in Enciclopedia (Einaudi), vol.17 (Lisboa, 1989); Erich Heller : In the Age of Prose. Literary and Philosophical Essays (Cambridge, 1984); Gérard Genette: Nouveau Discours du Récit (Paris, 1983); Hans-Georg Gadamer: Vérité et Méthode. Les Grands Lignes d’une Herméneutique Philosophique (Paris, 1988); Iuri Lotman, A Estrutura do Texto Artístico (trad. Maria do Carmo Vieira Raposo e Alberto Raposo) (Lisboa, 1978); J. Fonseca: Pragmática Linguística. Introdução, Teoria e Descrição do Português (Porto, 1994); Jaime Ferreira e Vítor Oliveira: Morfologia do Conto (Lisboa, 1983); Jean-Pierre Étienvre (org. e ed.): Le Temps du Récit (Casa de Velázquez, 1989); Michel Foucault, L’Ordre du Discours (s.l., 1971); Tzvetan Todorov: Géneros do Discurso (1981).



Sofia Rosado