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Alegoria

quinta-feira, 30 de abril de 2009

Aquilo que representa uma coisa para dar a ideia de outra através de uma ilação moral. Um bom exemplo em português é-nos apresentado pelo Padre António Vieira: “Notai uma alegoria própria da nossa língua. O trigo do semeador, ainda que caiu quatro vezes, só de três nasceu; para o sermão vir nascendo, há-de ter três modos do cair: há-de cair com queda, há-de cair com cadência, há-de cair com caso. A queda é para as coisas, a cadência para as palavras, o caso para a disposição. A queda é para as coisas, porque hão-de vir bem trazidas e em seu lugar hão-de ter queda; a cadência é para as palavras, porque não hão-de ser escabrosas, nem dissonantes, hão-de ter cadência; o caso é para a disposição, porque há-de ser tão natural e tão desafectado que pareça caso e não estudo: Cecidit, cecidit, cecidit.” (Sermão da Sexagésima, V, Obras Escolhidas, vol.XI, Sá da Costa, Lisboa, 1954, p.222).

Etimologicamente, o grego allegoría significa “dizer o outro”, “dizer alguma coisa diferente do sentido literal”, e veio substituir ao tempo de Plutarco (c.46-120 d.C.) um termo mais antigo: hypónoia, que queria dizer “significação oculta” e que era utilizado para interpretar, por exemplo, os mitos de Homero como personificações de princípios morais ou forças sobrenaturais, método que teve como foi especialista Aristarco de Samotrácia (c.215-143 a.C.). A alegoria distingue-se do símbolo pelo seu carácter moral e por tomar a realidade representada elemento a elemento e não no seu conjunto. Muitas vezes definida como uma metáfora ampliada, ou, como dizia Quintiliano, no Institutio oratoria, uma “metáfora continuada que mostra uma coisa pelas palavras e outra pelo sentido”, a alegoria é um dos recursos retóricos mais discutidos teoricamente ao longo dos tempos. A mesma correlação é estabelecida por Cícero no De Oratore, onde a alegoria é vista como um sistema de metáforas. Uma forma de distinguir metáfora e alegoria é a proposta pelos retóricos antigos: a primeira considera apenas termos isolados; a segunda, amplia-se a expressões ou textos inteiros.

Na tradição grega mais antiga, uma aplicação possível da proto-ideia de alegoria é o ensino dos pitagóricos, cujo sistema filosófico, apoiado em relações numéricas simbólicas, contém associações de natureza alegórica. Tal acontece, por exemplo, na doutrina do dualismo essencial entre limite e ilimitado, que se funda na composição de dez pares de opostos, alguns alegóricos como Luz/Trevas e Bom/Mau.

Regra geral, a alegoria reporta-se a uma história ou a uma situação que joga com sentidos duplos e figurados, sem limites textuais (pode ocorrer num simples poema como num romance inteiro), pelo que também tem afinidades com a parábola e a fábula. Seja o exemplo seguinte de uma fábula de Esopo: “O leão e a rã”: Certa vez, um leão, ao passar perto de um pântano, ouviu uma rã coaxar muito alto e com muita força. Dirigiu-se então na direcção do som, supondo que ia encontrar um animal grande e possante, correspondente ao barulho que fazia. Por isso, ao avançar, nem reparou na pequena rã e pôs-lhe a pata em cima. “Vê lá onde pões os pés!”, gritou a rã. O leão olhou, admirado, e disse: “Se és assim tão pequena, porque é que fazes tanto barulho?” Se substituirmos a rã por “o Orgulho” e o leão por “o Poder”, transformamos a fábula numa alegoria; se em vez da rã colocássemos “o Ministro Sem Pasta” e em vez do leão “o Pai Severo”, teríamos uma parábola, que esconde personagens reais por detrás de uma máscara alegórica. De notar que é usual na alegoria o recurso a personificações ou prosopopeias, em especial de noções abstractas, prática muito comum sobretudo na literatura medieval.

A decifração de um alegoria depende sempre de uma leitura intertextual, que permita identificar num sentido abstracto um sentido mais profundo, sempre de carácter moral. Dizer que a alegoria é um desenvolvimento de uma fábula pode não ser suficiente. Vejamos, por exemplo, o enigma da Esfinge, no mito de Édipo. A questão central é esta: «Qual é o ser que, tendo uma única voz, ora caminha com dois pés, ora com três, ou ainda com quatro, e que é tanto mais fraco quantos mais pés tiver?» Quando Édipo chega a Tebas, resolve o enigma, respondendo: «É o homem, que gatinha a quatro patas enquanto é criança, caminha erecto nas suas duas pernas quando é jovem, e se encosta a uma bengala na velhice.», a Esfinge, derrotada, suicida-se. O desenvolvimento da fábula da Esfinge grega depende de duas condições essenciais para se constituir como alegoria: não estar limitada a um fim didáctico, como todas as fábulas (sem a conclusão do enigma, a tragédia de Sófocles não poderia progredir); não jogar com a significação metafórica, isto é, não produzir mais do que uma leitura do sentido abstraído, porque é próprio da alegoria não fazer uso da ambiguidade ou da plurissignificação, sob pena de se perder a ilação moral procurada. Uma alegoria necessita de um certo imobilismo do sentido, facto que será utilizado, pelo menos até ao Romantismo, para governar de alguma forma certas interpretações de textos clássicos, estando em primeiro lugar a Bíblia. As primeiras exegeses alegóricas concentraram-se nas epístolas de S.Paulo, onde se compara a Igreja a uma noiva. Santo Agostinho contribuiu decisivamente para esta interpretação, na sua A Cidade de Deus (XVII, 20). A fábula da Esfinge torna-se alegórica apenas no acto hermenêutico, como acontece, aliás, com os textos bíblicos. Este tipo de hermenêutica levou um poeta como Boccaccio a comparar a teologia à poesia, precisamente por intermédio da alegoria. No seu tratado sobre mitologia, De Genealogia Deorum, Boccaccio defende que teologia e poesia são a mesma coisa ou têm a mesma natureza: “Afirmo que teologia e poesia podem ser quase consideradas como a mesma coisa, quando o assunto é o mesmo; digo até que a teologia não é outra coisa senão a poesia de Deus. Que é ela senão uma ficção poética, quando, na Escritura, chama a Cristo ora leão, ora cordeiro, ora verme, e ainda por vezes dragão ou rocha, e ainda muitas outras coisas que omito por uma questão de brevidade? Que vêm a ser as palavras do Salvador nos Evangelhos senão um sermão que não significa aquilo que parece significar? É o que nós chamamos, para empregar um termo bem conhecido - alegoria.”

Numa alegoria, é também necessário que as abstracções que determinam o sentido alegórico procurado sejam de imediata compreensão: o enigma da Esfinge é a história do drama existencial humano. Se introduzíssemos algum dado que pudesse desviar o leitor desta conclusão, construiríamos uma metáfora e não uma alegoria. A linguagem alegórica não possui o mesmo dinamismo que a linguagem metafórica, que é susceptível de variações semânticas mais profundas, ao ponto de não suportar a repetição de um mesmo significado nem depender de significados pré-fixados. Em todas as alegorias das narrativas clássicas, podemos encontrar sentidos mais ou menos fixos em certas representações como os hieróglifos, por exemplo, cujas figuras obedecem sempre a um processo inalterável de descodificação: um olho simbolizará sempre Deus e um abutre designará a Natureza. Por outro lado, o entendimento das possibilidades significativas da alegoria só poderá ser alargado quando as exegeses não estiverem ao serviço de colégios hermenêuticos, mas sim do poder criativo de leitores descomprometidos. A longa história da literatura alegórica é também paralela à história das interpretações dessa literatura, que sempre tentaram fixar um sentido único. A abertura do sentido da alegoria é uma conquista apenas da teoria da literatura do século XX.

Entre os exemplos clássicos de grandes alegorias, podemos apontar o mito de Orfeu e Eurídice como alegorias da redenção e da salvação; o mito da caverna na República de Platão, que, por um processo alegórico, mostra como a alma passa da ignorância à verdade (embora deva ser notado que Platão sempre se opôs às interpretações alegóricas dos mitos antigos como parte da educação dos jovens, porque “quem é novo não é capaz de distinguir o que é alegórico do que não é.” (República, II: 378d); as parábolas do semeador e do joio (Mateus, 13:1ss), que contêm matéria alegórica; O Asno de Oiro, de Apuleio, que recupera os mitos de Cupido e Psique; a Psicomaquia, de Prudêncio, que mostra o conflito entre a virtude e o vício na alma do crente, num texto que será estudado e imitado na Idade Média em toda a literatura teológica, numa época em que predominam as moralidades que se servem da alegoria para lições edificantes; a alegoria erótica que será recuperada pós-modernamente por Umberto Eco, Le Roman de la rose, começado por Guillaume de Lorris e concluído por Jean de Meung em c.1277, que personifica o Amor, a Virtude, o Vício, etc.; a Divina Comédia de Dante, a obra-prima das alegorias teológicas; Os Triunfos de Petrarca, que especula filosoficamente sobre o Amor, a Castidade, a Morte, a Fama, etc.; o Horto do Esposo, que apresenta a Sagrada Escritura através da imagem alegórica de um jardim maravilhoso; o Boosco Deleitoso, que narra a peregrinação da alma desterrada no mundo dos homens até Deus a chamar a si; todas as moralités francesas e as morality plays inglesas do século XV, a que podemos juntar o Auto da Alma de Gil Vicente, que recorre à alegoria para recontar a parábola do Samaritano em tom moralista; o Pilgrim’s Progress, de John Bunyan, alegoria da salvação de Cristo para traduzir a peregrinação terrestre do homem sujeito a provações para poder conquistar um lugar no Céu; The Faerie Queene, de Edmund Spenser, uma glorificação da rainha Elizabeth I; Absalom and Achitopel, de John Dryden, que usa personagens bíblicas para fazer sátira política; todas as figuras do Sermão de Santo António aos Peixes, de António Vieira, que incluem, por exemplo, o polvo como alegoria da hipocrisia e da traição; o Endymion, de John Keats e o Prometheus Unbound, de Shelley, embora sejam textos românticos de matéria simbólica, podem ser lidos como alegorias sobre o destino do poeta no mundo e a luta do homem pela sua própria liberdade, respectivamente; O Mandarim, de Eça de Queirós, que é inspirado nas alegorias renascentistas; O Doido e Morte, de Teixeira de Pascoaes, Jacob e o Anjo e O Príncipe com Orelhas de Burro, de José Régio e o Render dos Heróis, de José Cardoso Pires, são exemplos na literatura portuguesa do século XX; Between the Acts, de Virginia Woolf, Animal Farm, de George Orwell, Watership Down, de Richard Adam, O Processo e O Castelo, de Kafka são exemplos na literatura universal contemporânea.

Até à Idade Média inclusive, a alegoria serviu de instrumento de defesa de teólogos, que recorreram às interpretações alegóricas da Bíblia para superarem todas as dúvidas heréticas. A própria Igreja foi muitas vezes referenciada na literatura teológica com nomes alegóricos como Cidade, Arca ou Aurora. Santo Agostinho ensinou que a Bíblia devia ser lida de forma alegórica: “No Velho Testamento, o Novo Testamento está dissimulado; no Novo Testamento, o Velho Testamento é revelado.”. Para o Autor de A Cidade de Deus, a alegoria não está nas palavras, mas deve ser encontrada nos acontecimentos históricos. Ao homem não é permitido o conhecimento literal e imediato das Escrituras, pois só por um sentido segundo o homem se poderá aproximar (mas nunca chegar totalmente) da Verdade divina. S. Tomás de Aquino estabeleceu uma distinção importante entre a alegoria teológica, que não é vista como um artifício retórico mas como uma visão do Universo, e a alegoria secular ou literária. Depois da escolástica, a teologia opta gradualmente por proceder a interpretações bíblicas que privilegiem o sentido literal das Escrituras. Mesmo na arte medieval, o processo de construção das grandes catedrais, como a de Chartres, por exemplo, obedece também a complicados esquemas alegóricos, pois acredita-se que tudo na Natureza significa algo mais do que o simplesmente observável.

A distinção fundamental entre a alegoria e o símbolo foi estabelecida durante o Romantismo, em Coleridge no Statesman’s Manual (1816 ) e em especial com Goethe e Schlegel. Ao princípio de Schlegel que defendia que toda a obra de arte devia ser uma alegoria, começou Hegel por contrapor: “Isso só será assim se significar que toda a obra de arte deve representar uma ideia geral e implicar uma significação verdadeira. Ora, pelo contrário, o que nós aqui designamos com o nome de alegoria é um modo de representação secundária tanto no conteúdo como na forma e só de um modo imperfeito corresponde ao conceito de arte.” (Estética, trad. de Álvaro Ribeiro e Orlando Vitorino, Guimarães Eds., Lisboa, 1993, p. 226). De uma forma geral, podemos dizer que a crítica romântica da alegoria não é de carácter rigorosamente científico e rege-se mais por critérios de gosto de escola, embora tenha sido recebida com tal entusiasmo que ainda hoje a desconfiança com que se olha a alegoria como processo criativo pode dever-se a essa tradição. Goethe distinguiu assim os dois procedimentos retóricos: “A simbólica [die Symbolik] transforma o fenómeno em ideia, a ideia em imagem, e de tal modo que na imagem a ideia permanece sempre infinitamente eficaz e inatingível e, ainda que pronunciada em todas línguas, continuaria a ser indizível. A alegoria transforma o fenómeno num conceito, o conceito em imagem, mas de tal modo que na imagem o conceito permanece limitado e susceptível de ser completamente apreendido e usado, e pronto para ser expresso por essa mesma imagem.” (Máximas e Reflexões, trad. de José M. Justo, in Obras Escolhidas de Goethe, vol.5, Círculo de Leitores, Lisboa, 1992, pp.188-189). Goethe entende que o símbolo é dotado de maior amplitude de significação em relação à alegoria e chega mesmo a defender a tese de que a distinção entre ambos é a prova de fogo para qualquer aspirante a poeta. Esta posição está de acordo com o princípio geral romântico que vê a alegoria como uma mera tradução de ideias abstractas, ao passo que o símbolo parte sempre de imagens poéticas para construir a sua significação final. É assim que Coleridge coloca a questão em Statesman’s Manual: “Hoje a alegoria não é mais do que uma tradução de noções abstractas para um quadro linguístico que em si próprio não é mais do que uma abstracção de objectos sensíveis; (…) Por outro lado, um símbolo (…) caracteriza-se por uma diafaneidade do particular no indivíduo, ou do geral no particular, ou do universal no geral. Acima de tudo, pela diafaneidade do eterno através do e no temporal.” (Samuel Taylor Coleridge, ed. por H. J. Jackson, Oxford University Press, Oxford, 1985, p.661).

A discussão sobre as diferenças entre símbolo e alegoria continua no século XX, salientando-se as reflexões de Walter Benjamin, Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Paul de Man. Todos tentam, de uma forma ou de outra, estabelecer a conciliação de ambos os conceitos, que está negada pelos românticos.

Walter Benjamin, em Ursprung des deutschen Trauerspiels (Origens do Drama Trágico Alemão, 1928), traz a alegoria para o campo exclusivo da estética. Partindo do sentido etimológico do termo, Benjamin viu a alegoria como a revelação de uma verdade oculta. Uma alegoria não representa as coisas tal como elas são, mas pretende antes dar-nos uma versão de como foram ou podem ser, por isso Benjamin se distancia da retórica clássica e assegura que a alegoria se encontra “entre as ideias como as ruínas estão entre as coisas”. Por isso Benjamin fala da alegoria como expressão da melancolia: “Quando o objecto se torna alegórico sob o olhar da melancolia, deixa escapar a vida, fica como morto, fixado para a eternidade. Assim se depara ao artista alegórico, a ele destinado para a glória ou infortúnio; quer dizer, o objecto é totalmente incapaz de irradiar sentido ou significado, apenas lhe cabendo como sentido aquele que o alegórico lhe conceda.” (Ursprung des deutschen Trauerspiels, R.Tiedemann, Frankfurt, 1963, p.204). O filósofo alemão distinguiu dois tipos de alegoria: a “cristã”, que se atesta no drama barroco e que nos dá a visão da finitude do homem na absurdidade do mundo, e a “moderna”, atestada na obra de Baudelaire, colocada ao serviço da representação da degenerescência e da alienação humanas. É importante a distinção que Benjamin faz entre alegoria e símbolo, recuperando a oposição romântica: a primeira, enquanto revelação de uma verdade oculta - ou “uma verdade escondida sob bela mentira”, na célebre definição de Dante, no Convívio -, é temporal e aparece como um fragmento arrancado à totalidade do contexto social; o símbolo é essencialmente orgânico. O exame da relação entre o simbólico e o alegórico no Romantismo alemão será continuado por Lukács, na sua Estética, em diálogo distanciado com Benjamin, investigando o conceito de alegoria à luz de um dos paradigmas marxistas: a ideologia.

Heidegger estudou a natureza da obra de arte como sendo constitutiva de uma realidade alegórico-simbólica indivisível: “A obra de arte é, com efeito, uma coisa, uma coisa fabricada, mas ela diz ainda algo de diferente do que a simples coisa é, ‘allo agoreuei’. A obra dá publicamente a conhecer outra coisa, revela-nos outra coisa: ela é alegoria. À coisa fabricada reúne-se ainda, na obra de arte, algo de outro. Reunir-se diz-se em grego symballein. A obra é símbolo.” (A Origem da Obra de Arte, Edições 70, Lisboa, 1992, p.13). Na sua magnum opus, Wahreit und Methode (1960), Hans-Georg Gadamer estabelece as semelhanças entre alegoria e símbolo: ambos se referem a algo cujo sentido não consiste na respectiva aparência externa ou imagem acústica, mas numa significação que os supera; em ambos, uma coisa quer dizer outra. E conclui que a principal diferença reside no facto de o símbolo se opor à alegoria da mesma forma que a arte se opõe à não-arte.

Paul de Man reapreciou também o debate romântico sobre a alegoria e o símbolo e, em Allegories of Reading (1979), apresentou as suas próprias leituras como alegorias, observando que o exemplo de Rousseau pode contrariar o senso comum que vê o Romantismo como a afirmação do símbolo em detrimento da alegoria. Paul de Man expõe a diferença entre ambos os termos desta forma: “Enquanto o símbolo postula a possibilidade de uma identidade ou identificação, a alegoria designa acima de tudo uma distância em relação à sua própria origem, e, renunciando à nostalgia e ao desejo de coincidência, fixa a sua linguagem no vazio desta diferença temporal.” (“The Rhetoric of Temporality”, in Blindness and Insight, 2ª ed., Routledge, Londres, 1989, p. 207).

O próprio exercício da teoria e da crítica literária se tem servido de processos alegóricos: Ruskin escreveu o tratado clássico Queen of the Air (1869), onde define o mito como uma história alegórica; as obras de Freud e Jung fizeram escola na interpretação alegórica de sonhos e mitos; os doze volumes do estudo comparado de religiões Golden Bough (1911-15), de James Frazer, fornece interpretações alegóricas de mitos primitivos que se tornaram referências fundamentais no género; Walter Benjamin, no ensaio “O narrador” (in Illuminationen, 1969), distingue alegoricamente dois tipos ideais de narrador: o marujo, que nos permite aproximar de lugares distantes e exóticos, e o velho camponês, que conta histórias antigas; Cleanth Brooks, em The Well Wrought Urn (1947), alegorizou todos os poemas que leu de forma a transformá-los em parábolas para a própria natureza da poesia; a chamada crítica arquetípica defende, como o faz Northrop Frye em The Anatomy of Criticism (1957), que toda a análise literária deve ser alegórica.

ANAGOGIA; APÓLOGO; BESTIÁRIO; CRÍTICA ARQUETÍPICA; EMBLEMA; EXEMPLUM; METÁFORA; MITO; SÍMBOLO

Bib.: A. D. Nutall: Two Concepts of Allegory (1967); A. Katzenellenbogen: Allegories of the Virtues and Vices in Medieval Art (1939); Angus Fletcher: Allegory: The Theory of a Symbolic Mode (1964); C. S. Lewis: The Allegory of Love: A Study in the Medieval Tradition (1936); Charles Hayes: “Symbol and Allegory: A Problem in Literary Theory”, Germanic Review, 44 (Nova Iorque, 1969); David Adams Leeming: Encyclopedia of Allegorical Literature (1996); Deborah L. Madsen: Rereading Allegory: A Narrative Approach to Genre (1994) e Allegory in America: From Puritanism to Postmodernism (1996); Dinko Cvitanovic et al.: Estudios sobre la expresion alegorica en España y America (1983); E. D. Leyburn: Satiric Allegory: Mirror of Man (1956); Edwin Honig: Dark Conceit: The Making of Allegory (1959); Flávio R. Kothe: A Alegoria (1986); Francis Fergusson: Trope and Allegory: Themes Common to Dante and Shakespeare (1977); Friedrich Gaede: “Allegorie”, in Dieter Borchmeyer e Viktor Zmegac (eds.): Moderne Literatur in Grundbegriffen (1994); G. Lukács: Ästhetic I. Die Eigenart des Äesthetischen (1963); G. P. Caprettini: “Alegoria”, in Enciclopédia (Einaudi), vol.31 (1994); Gerhard Kurz: Metapher, Allegorie, Symbol (1982); H. R.Jauss: Genèse de la poésie allégorique française au Moyen Âge (1180 à 1246) (1962); Hans-Georg Gadamer: “The Limits of Erlebniskunst and the Rehabilitation of Allegory”, in Truth and Method (2ª ed., 1993); Jean Charles Payen: “Genèse et finalités de la pensée allégorique au moyen âge”, Revue de Metaphysique et de Morale, 78 (1973); Jean Pépin: Mythe et allégorie: Les origines grecques et les contestations judéo-chrétiennes (1958); John Jr. Gatta: “Coleridge and Allegory”, Modern Language Quarterly, 38 (1977); John MacQueen: Allegory (1970); Jon Whitman: Allegory: The Dynamics of an Ancient and Medieval Technique (1987); Joseph-A. Mazzeo: “Allegorical Interpretation and History”, Comparative Literature, 30 (1978); Kevin Matthew Gavin: «Toward a Theory of Epic Forms: Mimesis, Symbol, and Allegory», Tese de Doutoramento, Univ. de Michigan (1994); Manuel Frias Martins: “Para uma compreensão e fundamentação teórica do conceito de ‘alegoria literária’ ”, Colóquio-Letras, 79 (1984); Mark L. Caldwell: “Allegory: The Renaissance Mode”, ELH, 44 (Baltimore, 1977); Marlies Kronegger e Anna Teresa Tymieniecka (eds.): Allegory Old and New in Literature, the Fine Arts, Music and Theatre and Its Continuity in Culture (1994); Martin Heidegger: A Origem da Obra de Arte (1950); Maureen Quilligan: The Language of Allegory: Defining the Genre (1979); Michael Murrin: The Allegorical Epic: Essays in Its Rise and Decline (1980); Morton W. Bloomfield (ed.): Allegory, Myth, Symbol (1981); N. A. Halmi: “From Hierarchy to Opposition: Allegory and the Sublime”, Comparative Literature, 44, 4 (1994); Norbert Hopster: “Allegorie und Allegorisieren”, Der Deutschunterricht: Beitrage zu Seiner Praxis und Wissenschaftlichen Grundlegung, 23, 6 (1971); P. M. Bitsilli: “The Revival of Allegory”, TriQuarterly, 17 (Evanston, IL, 1970); Paul de Man: Allegories of Reading: Figural Language in Rousseau, Nietzsche, Rilke and Proust (1979) e “The Rhetoric of Temporality”, in Blindness and Insight: Essays in the Rhetoric of Contemporary Criticism (2ª ed., 1983); R. Hinks: Myth and Allegory in Ancient Art (1939); Robert Hill: “Pascal, de Man, and the Question of Allegory”, Cahiers du dix-septième, 6, 1 (Athens, 1992); Rosemond Tuve: Allegorical Imagery (1967); Stephen A. Barney: Allegories of History, Allegories of Love (1979); Stephen J. Greenblatt (ed.): Allegory and Representation (1981); Walter Benjamin: Ursprung des deutschen Trauerspiels (1928); Willi Erzgraber: “Zum Allegorie Problem”, LiLi: Zeitschrift fur Literaturwissenschaft und Linguistik, 30-31, (1978); William J. Kennedy: “Irony, Allegoresis, and Allegory in Virgil, Ovid and Dante”, Arcadia: Zeitschrift fur Vergleichende Literaturwissenschaft, 7 (1972); W. T. H. Jackson: “Allegory and Allegorization“, Research Studies, 32 (Pullman, WA, 1965).



Carlos Ceia

Diegese

Termo de origem grega divulgado pelos estruturalistas franceses para designar o conjunto de acções que formam uma história narrada segundo certos princípios cronológicos. O termo já aparece em Platão (República, Livro III) como simples relato de uma história pelas palavras do próprio relator (que não incluía o diálogo), por oposição a mimesis ou imitação dessa história recorrendo ao relato de personagens. Por outras palavras, o sentido da oposição que Sócrates estabelece entre diegesis e mimesis corresponde, respectivamente, à situação em que o poeta é o locutor que assume a sua própria identidade e à situação em que o poeta cria a ilusão de não ser ele o locutor. De notar que a teoria de Sócrates diz respeito à diferença entre o drama (que é sempre mimesis) e o ditirambo (que é sempre diegesis), salvaguardando-se a natureza da épica (que é ambas as coisas). Divergindo desta oposição clássica, a partir dos estudos da narrativa cinematográfica de Étienne Souriau (que chamava diegese àquilo que os formalistas russos já haviam chamado fábula) aplicados por Gérard Genette à narrativa literária, considera-se diegese o conjunto de acontecimentos narrados numa determinada dimensão espácio-temporal ("l'univers spatio-temporel désigné par le récit"), aproximando-se, neste caso, do conceito de história ou intriga. Não se confunde com o relato ou o discurso do narrador nem com a narração propriamente dita, uma vez que esta constitui o "acto narrativo" que produz o relato.

Conforme o narrador se posiciona na diegese assim recebe diferentes designações: homodiegético (se for uma personagem participante na história que narra); heterodiegético (se não for participante numa história narrada); autodiegético (se se tratar da narração do próprio protagonista da história).

Em outro plano da narrativa, consideram-se textos metadiegéticos aqueles que remetem para um plano subordinado da narração (quando um narrador introduz uma personagem que se assume ela própria também como narrador de uma história secundária); neste caso, diz-se que o primeiro narrador/texto narrado é extradiegético. A significação de diegese inicialmente proposta por Genette (de alguma forma ainda hoje repetida sem ponderação) pode levar-nos a uma aporia de difícil resolução. Como bem observa Jeremy Hawthorn no seu A Concise Glossary of Contemporary Literary Theory, "if diegesis is equivalent to story, then extradiegetic must mean 'outside the story', and therefore could refer us to the actual telling of the story, the comments from a narrator who is not a member of the world of the story. But this is exactly the opposite of what we started with: for Socrates, we may remember, referred to those cases where the poet himself is the speaker, roughly what we have just termed extradiegetic." (s.v. "DIEGESIS and MIMESIS", 2ª ed., Arnold, Londres, 1994, p.44). De discutível aplicação, este termo e seus derivados não ajudam a clarificar as subtis diferenças entre termos que circulam com alguma especificidade em línguas diferentes: diegese, récit, plot, story, fábula, trama, enredo, intriga, história, narração, narrativa, etc. Por exemplo, se se considera a diegese o mundo que a narração representa, todo aquele que se coloca fora desse mundo pertence a uma ordem necessariamente diferente dos factos narrados. É neste sentido que o conceito de nível extradiegético é falível. Se a diegese for o conjunto de sentidos que atribuímos a uma história onde entram personagens e seus valores, num dado espaço e num dado tempo, então nada pode estar fora da diegese, nenhuma instância da diegese pode existir fora dela própria. Se não for assim, não se entende como é que um narrador de uma história pode ao mesmo tempo colocar-se fora dessa história e influenciar o (dis)curso dos acontecimentos. A única forma de um narrador se colocar fora da diegese sem perder o seu controlo é fingir-se estranho ou imitando a própria realidade (princípio que, naturalmente, se liga ao conceito de ficcionalidade); neste caso, voltaríamos à primeira forma platónica: o nível extradiegético não deixou de ser o nível da mimesis, o que parece indemonstrável. Argumenta-se assim que o conceito deixa de ser operatório se apenas traduzir o significado do texto narrativo, expressão que por si só não necessita de um termo que a substitua semanticamente. Contudo, a formulação de Genette, que se tornou paradigmática, não vai mais além de esta única acepção. Por esta razão, o termo tornou-se quase incompreensível na tradição anglófona, que sempre preferiu as discussões em torno da distinção entre história (story) e intriga (plot).

FABULA; INTRIGA; NARRATOLOGIA; NÍVEL; PLOT; récit

Bib.: David Lodge: "Mimesis and Diegesis in Modern Fiction", in Essentials of the Theory of Fiction, ed. por Michael J. Hoffman e Patrick D. Murphy (2ª. ed., 1996); Étienne Souriau (ed.): L'Univers filmique (1953); G. Genette: Figures III (1972); id.: Nouveau discours du récit (1983); Manuel Alcides Jofre: "Analisis textual de la diegesis", Alpha: Revista de Artes, Letras y Filosofia, 3 (1987); Per Aage Brandt: "La diegesis", in Prada Oropeza Renato. Linguistica y literatura (Xalapa, México: Univ. Veracruzana, 1978).

Carlos Ceia

Um intérprete modernista do Brasil

quarta-feira, 29 de abril de 2009

Este ano se comemora o centenário de nascimento de Sérgio Buarque de Holanda, o historiador, sociólogo e crítico literário que escreveu clássicos do ensaísmo como Raízes do Brasil e Visão do paraíso e foi, ao lado de Caio Prado Jr. e Gilberto Freyre, o criador de nossa identidade cultural contemporânea

Manuel da Costa Pinto

Sérgio Buarque de Holanda forma, com Gilberto Freyre e Caio Prado Jr., a tríade de "intérpretes do Brasil", responsáveis pelo que hoje entendemos por identidade nacional. Os três surgiram para nossa cena intelectual após a Revolução de 30, procurando dar uma resposta teórica às mudanças sofridas pelo país sob o impacto econômico da industrialização e sob o impacto cultural do modernismo. Em três obras clássicas - Casa grande & Senzala (1933), Raízes do Brasil (1936) e Formação do Brasil contemporâneo (1942) -, eles suplantaram uma historiografia descritiva e uma sociologia positivista (que via determi-nismos climáticos e raciais por trás de fatos históricos), adotando uma visão culturalista (no caso de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda) ou socio-econômica (no caso de Caio Prado Jr.) do processo de formação do Brasil.

Essa renovação teórica, sintonizada com a antropologia e a sociologia anglo-saxãs, não apaga contudo as diferenças específicas entre eles. Se Caio Prado Jr. pode ser mais facilmente classificado como um historiador marxista, atento aos condicionamentos econômicos da luta de classes, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda partilham um mesmo horizonte temático de preocupações e se distinguem mais nitidamente pelo viés interpretativo, pelas tendências políticas e, last but not least, pelo estilo literário.

Discípulo dos antropólogos Mali-nowski e Franz Boas (que rejeitavam uma leitura evolucionista - de matriz biológica ou étnica - da vida social), Gilberto Freyre dissecou a peculiaridade do brasileiro a partir da miscigenação racial e de sua base material - a monocultura dos latifúndios. Seguramente o melhor "escritor" dentre os três, Freyre criou em Casa grande & Senzala um gênero singular de reflexão, oscilando constantemente entre a análise conceitual e uma prosa memoria-lística repleta de reminiscências de sua infância nos engenhos pernambucanos. (Não à toa, Roger Bastide usou a expressão "sociologia proustiana" para definir o livro de 1933.)

Mas a forma nostálgica e voluptuosa pela qual ele transforma a promiscuidade entre a casa grande e a senzala num emblema de nossa identidade teria desdobramentos ideológicos pouco felizes: afinal, se a valorização do "caráter na-cional" já era - do ponto de vista conceitual - um resquício da noção evolucionista de raça no coração de uma abordagem culturalista, a glorificação de nossa sensualidade mestiça também serviria para legitimar ideologicamente a conservação de uma infra-estrutura patriarcal e autoritária intrinsecamente ligada à "brasilidade", levando Gilberto Freyre a apoiar o ditador português Salazar (cujo domínio colonial na África expandia o "luso-tropicalismo") e o regime militar brasileiro.

Em seu principal livro - Raízes do Brasil -, Sérgio Buarque de Holanda faz eco às preocupações metodológicas de Gilberto Freyre, dando um peso equivalente a razões de ordem cultural e econômica na tentativa de definir nossa estrutura social e política. À diferença do autor de Sobrados e mucambos, porém, Sérgio Buarque teve como matriz fundamental a sociologia alemã, com a qual mantivera contato em 1929-1930, quando foi para a Alemanha como correspondente de jornais brasileiros e da Associated Press, assistindo a aulas de Friedrich Meinecke, Fer-dinand Tönnies e Max Weber.

É a partir de Weber que Sérgio Buar-que cria uma tipologia cujos pares de contrários permitem detectar algumas constantes que perpassam o tecido social do Brasil desde a colônia até o século XX:

o trabalhador e o aventureiro; o urbano e o rural; a burocracia e o caudilhismo; a impessoalidade e a afetividade. Tais conceitos mapeiam os traços deixados pela cultura ibérica na estrutura social brasileira e são uma anatomia de nossa identidade: personalismo, carência de uma "moral do trabalho", baixa capacida de de organização social, prevalência do prestígio pessoal sobre o princípio de hierarquia e - como conseqüência paradoxal desse sentimento da falta de fundamento do dever - obediência cega à arbitrariedade de ditaduras e de instituições como o Santo Ofício.

Como observa a historiadora Maria Odila Leite da Silva Dias em ensaio do livro Sérgio Buarque de Holanda e o Brasil (Fundação Perseu Abramo), "em oposição às tendências racionali-zadoras do capitalismo moderno apontadas por Marx e Weber, Sérgio Buar-que documentou no Brasil republicano a persistência do compadrio e de laços de relacionamento afetivo e pes-soal" - magnificamente expressos na célebre imagem do "homem cordial".

Pelo fato de perceber as linhas de força da identidade nacional a partir de seus opostos, a partir de uma relação dialética, Raízes do Brasil é um livro atento às transformações pelas quais o país passa no início do século XX - e, nesse sentido, é muito mais contemporâneo de sua própria época do que Casa grande & Senzala, com sua descrição de um universo estático. Da mesma forma, por ter afirmado mais integralmente o caráter dinâmico da história e por ter uma visão menos idílica do Brasil, Sérgio Buarque assumiu publicamente posições diametralmente opostas às de Gilberto Freyre. Exemplos disso são a Carta de declaração de princí-pios contra a ditadura Vargas que ele assinou em 1945, seu ingresso no Partido Socialista Brasileiro, sua solida-riedade aos intelectuais perseguidos pela ditadura militar e seu papel na fundação do PT, em 1980, dois anos antes de sua morte, em 4 de abril de 1982.

Esse paralelo não estaria completo, porém, se não tocasse ao menos superficialmente nas relações de Sérgio Buarque com a literatura. Se é verdade que ele nunca atingiu a densidade poético-narrativa de Casa grande & Senzala, pode-se dizer em contrapartida que sua obra manteve um diálogo muito mais cerrado com a tradição literária do que a obra de Gilberto Freyre. Visão do paraíso, por exemplo, é um mergulho na mitologia dos colonizadores em que a pesquisa histórica é indissociável de um estudo das formas de transmissão dos arquétipos do imaginário edênico - como demonstra o ensaio de Luiz Costa Lima publicado neste dossiê, em que o crítico aborda a influência do filólogo e romanista alemão Ernst Robert Curtius no livro de Sérgio Buarque.

Mas é em seus textos jornalísticos que se descobre que Sérgio Buarque foi não apenas um crítico literário militante, mas um leitor da envergadura de um Otto Maria Carpeaux ou de um Sérgio Milliet. Essa atividade jornalística começaria ainda em São Paulo (onde Sérgio Buarque nasceu), com colaborações nos periódicos A Cigarra, Revista do Brasil e Correio Paulistano, e continua-ria no Rio de Janeiro, para onde ele vai em 1921, matriculando-se na Faculdade de Direito e trabalhando como representante da revista Klaxon, fundada pelos modernistas da Semana de 22.

Nas décadas seguintes, Sérgio Buarque manteria - paralelamente a cargos ocupados no Instituto Nacional do Livro, na Biblioteca Nacional, e já de volta a São Paulo em 1946, no Museu Paulista e na USP - uma intensa colaboração em jornais como Diário de Notícias, Diário Carioca, Folha da Manhã, Correio Paulistano e Diário de S.Paulo e no "Suplemento Literário" de O Estado de S.Paulo. Esses textos críticos de assombrosa erudição, publicados entre 1920 e 1959, estão reunidos nos dois volumes de O espírito e a letra (Companhia das Letras), minuciosamente organizados e anotados por Antonio Arnoni Prado.

Estas reflexões - que vão de Me-tastasio e Goethe a André Gide e Ezra Pound, de Cláudio Manuel da Costa e Machado de Assis a Clarice Lispector e João Cabral, de Auerbach a Mario Praz - são testemunhos de um crítico que levava para o microcosmo da exegese textual suas preocupações de historiador, desvelando na superfície da escrita os processos de formação da obra literária e de sua inserção numa tradição literária que expressa de forma privilegiada as identidades na-cionais. Nesse sentido, Sérgio Buarque de Holanda é o mais modernista dos "intérpretes do Brasil".

O surto da ficção e a capitulação da crítica

Na década de 80, a ficção portuguesa viu surgir uma constelação de autores que deram continuidade à vocação experimental e à exploração dos limites da escrita romanesca, mas acabou por gerar um clima de euforia e complacência contrário ao caráter autocrítico desse gênero literário, que assim foi diluído na proliferação indiscriminada de romances

Abel Barros Baptista

Num depoimento recente sobre a própria obra e a ficção portuguesa contemporânea, a romancista portuguesa Lídia Jorge, reportando-se ao ano em que publicou o primeiro livro, 1980, afirmava que "será uma falta imperdoável não reconhecer que, a partir desse período, se começou a falar em termos respeitosos do romance português, em questão de quantidade, diversidade, bem como em originalidade". Foi esse, de facto, um período crucial para a literatura portuguesa, de que a publicação em 1982 do Livro do desassossego - esse "texto supremo da nossa literatura deste século, aquele que instalado no coração da própria ficção a torna luminosamente supérflua", para usar palavras de Eduardo Lourenço - ficará provavelmente como o marco simbólico decisivo. E mesmo quem não partilhe o optimismo de Lídia Jorge deverá reconhecer que durante a década de 80 a ficção portuguesa conheceu um surto invulgar. No entanto, não exagero se disser que todo o problema da avaliação da condição actual da literatura portuguesa passa pelo esclarecimento quer do sentido quer das conseqüências dos tais "termos respeitosos": porque é indesmentível que durante a década de 80 "se começou a falar em termos respeitosos do romance português" e, sobretudo, que se sublinhou, se ostentou e se reafirmou que "se começou a falar em termos respeitosos do romance português". Num certo sentido, a ficção portuguesa viveu por essa altura um período de "felicidade", de que conviria talvez sublinhar os aspectos principais.

Em primeiro lugar, alguns dos escritores que definiram a ficção portuguesa no começo da segunda metade do século, e que se estrearam nos anos 40 e 50, publicaram livros que representaram um relançamento ou um novo fôlego da sua obra, fosse por iniciarem uma nova fase, ou por interromperem um silêncio longo, ou fosse ainda por terem conseguido chamar a si a atenção de que até então não dispunham: foi o caso de Vergílio Ferreira ( Para sempre, 1983), de Agustina Bessa-Luís ( Os meninos de oiro, 1983), de José Cardoso Pires ( Balada da Praia dos Cães, 1982), de Augusto Abelaira ( O bosque harmonioso, 1982), talvez mesmo de Fernando Namora ( O Rio Triste, 1982), mas ainda o de Fernanda Botelho ( Esta noite sonhei com Brueghel, 1987, depois de um silêncio de quinze anos). Por outro lado, escritores cujo trabalho se iniciou nos anos 60 publicaram obras decisivas, prolongando a vocação experimental do romance e a exploração dos limites da escrita romanesca. É o caso de Maria Velho da Costa, que depois de um romance que já a tornara autora da ficção mais problemática dos últimos vinte anos, Maina Mendes, de 1969, e depois de Casas pardas, de 1977, publica em 1983 Lucialima e sobretudo Missa in albis, um dos romances centrais da década, que aparece em 1988. E é o caso também de Maria Gabriela Llansol, que se estreara com uma colectânea de contos, Os pregos na erva, em 1963, mas apenas se tornaria conhecida durante a década de 80, assinando a que será a mais radical experiência de exploração dos limites do romanesco durante esse período: Causa amante (1984), Um falcão no punho (1985) ou Contos do mal errante (1986) confirmam o que já se anunciara no Livro das comunidades, de 1977.

Todos os nomes mencionados estão ligados, de uma forma ou de outra, à grande viragem que se operou na ficção portuguesa entre os princípios dos anos 50 e os finais dos anos 60: digamos, entre o aparecimento de A Sibila, de Agustina, e Maina Mendes, de Maria Velho da Costa. A sobrevivência de quase todos, o ressurgimento de alguns, a renovação de muitos ou a afirmação definitiva de outros, tudo isso, enfim, mostra à evidência a impossibilidade de avaliar esse brilhante período da nossa literatura com recurso à noção de "geração": trata-se antes de uma constelação de escritores que definiu a situação em que a nossa ficção se encontraria no 25 de Abril de 1974 e que viria a definir a ficção posterior ao 25 de Abril de 1974, mantendo-se ainda activa durante todo um período de quinze ou vinte anos. E até se poderia dizer que se permaneceu intacta, não fosse o relevo de algumas das baixas: a década de 80 conheceu o silêncio de uma grande contista, Maria Judite de Carvalho, e os últimos livros significativos de um escritor precocemente consagrado, Almeida Faria, mas sobretudo não pode contar com algumas figuras entretanto desaparecidas, como Ruben A. (em 1975), Jorge de Sena (em 1978), Carlos de Oliveira (em 1981) e Nuno Bragança (em 1985).

Os "termos respeitosos" a que se referia Lídia Jorge, entretanto, devem pouco a uma imagem de continuidade: o que então se dizia, e os factos pareciam atestar, é que essa constelação de escritores que vinha de antes do 25 de Abril foi capaz de conviver pacificamente e até de dialogar com uma nova constelação, cujas estrelas despontavam todos os dias, a ponto de não ser já possível distinguir uma da outra. Nem todas as estrelas eram novas, é certo, mas algumas - coisa inédita - eram efectivamente estrelas e alcançaram um sucesso internacional nunca visto em Portugal. Foi em 1980 que se publicou Conhecimento do Inferno, o terceiro romance de António Lobo Antunes (os dois primeiros saíram ambos em 1979, e até ao fim da década o romancista publicaria ainda mais quatro romances), talvez aquele, entre os novos escritores, que mais notoriamente adoptou uma atitude de irreverência contra a instituição literária estabelecida, posto inarticulada com a novidade dos seus romances. Mas a década de 80 conhece sobretudo o estranho caso de José Saramago, que aos sessenta anos inicia uma segunda carreira literária, que, como se sabe, chegaria ao Nobel: publica o seu primeiro êxito intra muros, Levantado do chão, em 1980, enquanto o célebre Memorial do convento data de 1982 (são ainda dos anos 80 livros como O ano da morte de Ricardo Reis, 1984, Jangada de pedra, 1986, e História do cerco de Lisboa, 1989, que completam a primeira fase caracteristicamente saramaguiana).

É ainda nesta década que se estreiam em livro dois dos escritores mais originais entre a geração dos quarenta anos: Mário de Carvalho e Luísa Costa Gomes - e a importância destes dois nomes na resistência à corrente dominante da ficção portuguesa ainda está por avaliar -, como é nesta época que aparecem Lídia Jorge, Hélia Correia, Teolinda Gersão, Clara Pinto Correia, João de Melo, Teresa Veiga ou Paulo Castilho. Além disso, e atestando o enorme prestígio que o romance assumiu, alguns poetas tentaram pela primeira vez a ficção ou afirmaram-se mesmo definitivamente como romancistas: Vasco Graça Moura, Manuel Alegre, Mário Cláudio, Al Berto, João Miguel Fernandes Jorge. Neste grupo, merece menção separada David Mourão-Ferreira, que embora tenha publicado em 1986 o seu primeiro e único romance, Um amor feliz, dera à literatura portuguesa contemporânea duas obras-primas da ficção: Gaivotas em terra, novelas, de 1959, e Os amantes e Outros contos, de 1968.

Outros elementos importantes completam este quadro: a Associação Portuguesa de Escritores instituiu o Grande Prémio de Romance e Novela - atribuído pela primeira vez a José Cardoso Pires em 1983 -, que passou a funcionar como principal instância crítica, concentrando polémicas e catalisando crispações; os editores portugueses começaram a procurar os autores portugueses, foi mais fácil publicar o primeiro livro, alguns autores puderam encarar a profissionalização; o leitor português, por seu lado, descobriu maravilhado que havia escritores portugueses, surgiram vários enormes sucessos de livraria, a beneficiar tanto escritores consagrados como estreantes ignorados do grande público.

Perante tudo isto, dizer que a década presente, e que quase acaba, perde no confronto, é dizer muito pouco. A verdade é que não tem existência autónoma do ponto de vista da ficção romanesca: quando muito mera continuação da anterior, não conheceu novidade de monta nem revelou nenhum grande escritor. E no entanto, os "termos respeitosos", se não desapareceram, rarearam, perderam intensidade, e na atmosfera do mundo literário dissipou-se aquela nota de euforia que indicava o período de "felicidade". Apenas a persistência e até alargamento do sucesso de José Saramago, culminando com a atribuição do Nobel no ano passado, rompeu com esse clima de refluxo, ou mais precisamente mascarou-o: a pressa com que muitas vozes reclamaram que este também era um Nobel para a literatura portuguesa denunciava, além do óbvio lugar-comum de orgulho nacionalista, o esforço para transformar a vitória de Saramago no resultado de um vasto e nacional movimento de renovação e afirmação da literatura portuguesa, de que Saramago seria apenas a cabeça visível, quer dizer, internacionalmente visível.

Não interessa muito, suponho, afirmar que esse movimento não existe, como não adianta insistir na lógica dessa nova "literatura internacional" que impede que Saramago tenha chegado ao Nobel enquanto representante da literatura portuguesa. O que importa desarticular é justamente a ilusão presente nos "termos respeitosos" de que falava Lídia Jorge: de facto, durante toda a década de 80, eles surgiram a suprir outros termos, os críticos, permitindo que a euforia substituísse o debate e a complacência expulsasse a análise. Não essencialmente porque a maioria dos romances então publicados fosse medíocre quando muitos os supunham obras-primas: apenas aconteceu que essa década de "felicidade" foi também a década da capitulação da crítica - e não falo da crítica como actividade delimitada da instituição literária, mas sobretudo enquanto dimensão inerente à criação literária e por isso envolvendo tanto os leitores e os críticos como os próprios escritores. Se é hoje visível que, na sua maioria, os novos romancistas revelados na década de 80 não são escritores críticos - mostram uma pobre capacidade para pensar o próprio trabalho e uma enorme dificuldade para equacionar a relação dele com a tradição literária e com a noção de literatura, as mais das vezes superando os embaraços com uma celebração inocente da ficção e com uma reiteração enfadonha de lugares-comuns -, é também certo que a crítica não afinou o seu discurso pelas novas condições e foi manifestamente incapaz de as pensar.

Basta ver, por exemplo, que não dispomos de um ensaio crítico que represente para os anos 80 algo de semelhante ao que o célebre ensaio de Eduardo Lourenço "Uma literatura desenvolta ou os filhos de Álvaro de Campos" representou em 1966 para o período de 1953 a 1963. O que houve de mais próximo de uma idéia crítica não passou de um logro: dizia-se, ou repetia-se, que afinal o romance não morrera, que estava pleno de vitalidade e que ficara provada a falsidade da antiga idéia que fazia os portugueses incapazes do romance por força da exacerbação do carácter lírico. Logro, não porque essa idéia persista válida, pois nunca o foi, mas porque abrigava a ilusão de que os portugueses tinham enfim atingido uma meta que não se movera um centímetro enquanto eles tardaram a lá chegar.

Por outras palavras, esses anos decorreram como se o romance não se tivesse alterado enquanto género literário específico e, em particular, como se não se tivesse também alterado o seu lugar e o seu desempenho na sociedade. Sob a pressão de uma realidade social em transformação, na seqüência de um período revolucionário que quase atingiu o delírio, a ficção portuguesa vergou ao peso da missão de testemunhar a mudança, de interrogar o passado, de iluminar o presente e de participar da construção do futuro, tudo propósitos muito louváveis, sem dúvida, não fosse a exclusão, que implicavam, da dimensão crítica, ou seja, a rasura da interrogação da possibilidade de o romance continuar o meio adequado a tão nobres missões e a conseqüente inconsciência da corrosão a que a noção de literatura foi sendo sujeita depois dos modernismos. Assim, se por um lado se assistiu ao culto inocente, celebrado as mais das vezes, do "regresso à narrativa", como se esta fosse uma modalidade intemporal, com conseqüente abandono ou mesmo repúdio da experimentação romanesca, o que permitiu que alguns novos escritores reduzissem o seu ideário literário à crença ingénua de que o papel histórico do romance é representar a realidade e fornecer versões alternativas da história, por outro lado, gerou-se a hipertrofia da problemática nacional, na ilusão de que se resolveria no romance e pelo romance um problema tão extenso e complexo como o dito da identidade nacional. Ora, o romance é um género autocrítico por condição, mas nisso perverso: a forma própria de não suportar a inconsciência crítica consiste precisamente na proliferação indiscriminada de romances. Aí está, em suma, um dos factores decisivos daquele surto invulgar de produção romanesca.

Paradoxalmente, o atrás referido Grande Prémio de Romance e Novela constituiu-se o melhor representante da capitulação da crítica. José Saramago, por exemplo, o mesmo que viria a ganhar o Nobel em 1998, foi quatro vezes preterido nesse prêmio: viria a ganhá-lo apenas em 1991, com O Evangelho segundo Jesus Cristo, numa altura em que o seu êxito internacional era irreversível, sobre esmagador. É irrelevante debater se os romances que venceram Memorial do convento, O ano da morte de Ricardo Reis, A jangada de pedra ou História do cerco de Lisboa eram melhores ou piores romances que estes: interessa, sim, sublinhar que, durante toda a década de 80, a crítica, com pouquíssimas excepções, paralisada perante o sucesso de um escritor relançado inusitadamente, não encontrou meios de lhe entender os livros, como se precisasse de mais tempo para assimilar uma radical novidade, o que até nem era o caso.

Mas o episódio realmente significativo, e que aliás marca a viragem da euforia para a disforia, ocorreu em 1989, quando da atribuição do prémio relativo a 1988. O júri, bem afinado pelo espírito eufórico do tempo, fazendo praça de um preocupante antiintelectualismo, recusou o prémio a um dos romances mais extraordinários da literatura. Mas nada disto foi causado por falta de talento, de inteligência, de competência ou sequer de comparência, pelo menos no que respeito aos críticos. Na verdade, aqueles anos 80 foram antes anos de inexorável mutação na instituição literária. A lógica industrial chegou ao mundo editorial e literário, o sucesso de livraria adquiriu um peso até aí desconhecido na edição e circulação das obras, o romance encontrou concorrentes mais fortes na tarefa de fornecer alternativas à história e ao quotidiano, a crítica literária perdeu o privilégio de instância de mediação entre os escritores e o público leitor. Essas transformações afectaram o panorama da literatura portuguesa e afectam-no ainda. Aliás, que diabo! foi o mundo que mudou: e perante isso, os termos respeitosos ou as celebrações levadas do orgulho nacional valem pouco.


Abel Barros Baptista é professor da Universidade Nova de Lisboa, diretor da revista portuguesa Colóquio-Letras, autor de Em nome do apelo do nome (Litoral Edições) e Autobibliografias (Relógio d'Água), entre outros.

Estética e Literatura

terça-feira, 28 de abril de 2009

Do Renascimento ao século 20, os caminhos cruzados da arte das letras e da arte das imagens

Márcio Seligmann-Silva

Tratar da relação entre Estética e literatura exige uma abordagem com um viés duplo: do ponto de vista da teoria estética a literatura sempre ocupou um local central. A Estética, desde seus primórdios - antes mesmo do surgimento propriamente dito da disciplina "Estética" no século 18 -, ocupa-se de textos da literatura. Já do ponto de vista da produção literária e da disciplina que a estuda, a teoria literária, a Estética aportou importantes idéias e deixou naquela última uma marca profunda, impossível de ser contornada.

Desde a Antiguidade greco-romana a teoria das artes foi pensada a partir dos tratados de poética. A reflexão sobre as imagens foi em grande parte derivada de uma análise de obras literárias. A Poética de Aristóteles teve um papel fundamental na reflexão sobre as artes, assim como sua Retórica e, posteriormente, tratados latinos de autores como Horácio, Cícero e Quintiliano. Poucos textos da Antiguidade se detêm na reflexão mais aprofundada das artes plásticas. Tratados como o Naturalis historiae, de Plínio, contêm uma incipiente história da arte, mas não podem ser comparados com o grau de complexidade da teoria poética alcançada então.

Os artistas plásticos do Renascimento não possuíam um acervo de regras e preceitos nem de longe tão rico quanto os vários tratados de retórica e de poética herdados da Antiguidade. Roger de Piles, no século 17, lamentava o fato de que tanto os tratados de pintura da Antigüidade, como também as próprias pinturas daquela época longínqua houvessem sido destruídos. Leon Battista Alberti, o primeiro pintor renascentista que resolveu diminuir essa desvantagem dos pintores diante dos poetas, baseou o seu De pictura (1435) em obras de oradores e teóricos da poesia antigos.

Em decorrência desse fato a própria concepção de pintura e de escultura será, de início, eminentemente lingüística. Se entre os teóricos da Antiguidade a poesia era esporadicamente comparada com a pintura - lembremos, sobretudo, o famoso verso da poética de Horácio: " ut pictura poesi" ("Poesia é como pintura") -, no Renascimento essas comparações esporádicas, que tinham um papel meramente ilustrativo, ganham um peso que não existia nos seus contextos de origem.

Aristóteles, apesar de não ter deixado um tratado de artes plásticas, fundamenta a sua teoria da tragédia com base na noção de mímesis. Todas as artes seriam miméticas. O importante dessa concepção é que, apesar da centralidade da reflexão sobre a poesia na Antiguidade, esse tratado de Aristóteles, com sua ênfase na arte como imitação, coloca o ideal das artes como sendo um ideal imagético e, portanto, mais próximo da pintura que das artes das palavras. O paradoxo aqui é que o discurso, logos, é visto como meio privilegiado para essa realização da mímesis.

O pintor moderno se torna teórico e realizador de uma pintura voltada, sobretudo, para a representação da narração, ou seja, da História. Esse pintor deve ser, para cumprir essa nova função, um pictor doctus (pintor erudito), cópia do doctus poeta (poeta erudito, com uma larga bagagem de leitura): sem essa erudição ele não poderia corresponder à doutrina do decorum. Por fim, o pintor está submetido a um rigoroso código de regras sociais, de âmbito moral, político e religioso. Nesse último sentido a pintura torna-se ilustração, um meio didático de atingir de modo mais "imediato" o que a escrita não consegue realizar; basta lembrar do papel fundamental atribuído a ela na era da Reforma e da Contra-Reforma. A pintura, desde o Renascimento, é, de certo modo, uma pintura de e sobre palavras. O seu fim também é o (re)despertar, no espectador, das palavras que ela encerra em si: se a poesia, como vimos, quer ser imagem, a pintura quer ser lida, traduzida em comentários, quer voltar a ser texto. A pintura histórica ocupa o local privilegiado dentro da hierarquia dos gêneros de arte, o que também dá provas da valorização da Idéia sobre o elemento material nas artes. Graças ao predomínio da invenção é que se pôde afirmar a traduzibilidade entre as artes.

Criaram-se correspondências entre os personagens principais de cada uma delas: Zêuxis seria um Homero; Michelangelo, um Dante; Giotto, o Petrarca. Nessa série em espelho refletem-se também conceitos herdados da filosofia - sobretudo do neoplatonismo - como a oposição entre o olho e o espírito, entre visível e Idéia, sendo que constituía um lugar comum no neoplatonismo renascentista, com sua concepção panteísta de mundo, atribuir ao olhar a função central dos sentidos, pois o mundo seria ele mesmo uma escrita divina e os nossos olhos seriam as portas de acesso para o Saber. O pintor não deveria representar o objeto individual; isso não importava, não era digno de ser representado. Ele visava representar o macrocosmo através do microcosmo. A pintura buscava o universal, o tipo, vale dizer: o Belo absoluto.

A partir do final do século 17 essa situação se modifica. Aos poucos uma retórica anti-racionalista vai se impondo. Dubos, com seu tratado de 1719 sobre a literatura e pintura, já anuncia as idéias de artista como um original, e não mais como um imitador. Em Breitinger, por exemplo, importante teórico suíço da literatura e contemporâneo de Voltaire, fica evidente a combinação na então incipiente Estética entre, de um lado, a filosofia de Christian Wolff, com sua tendência iluminista para a valorização dos conceitos claros e distintos (da linguagem discursiva) e, do outro, a retórica irracional e sensualista. É nesse contexto que um novo conceito de imaginação começa a ser delineado.

A imagem ou, mais exatamente, o elemento imagético do conhecimento, é vista como um momento indispensável na formação do conhecimento racional. A obra de Breitinger representa justamente um passo importante no desenvolvimento da Estética como campo de estudo desse elemento imagético, o que significou a superação do tradicional rebaixamento do valor dos sentidos na constituição do aparelho racional. O renascimento da retórica irracional e as tentativas de conectá-la à criação de uma linguagem "direta", imagética, são pressupostos sem os quais a fundação dessa nova disciplina, a Estética, teria sido impossível. A comparação entre as artes revelou-se para esse e muitos outros autores daquele século como um campo fértil para desenvolver essa teoria da imaginação.

A teoria estética propriamente dita nasce em 1750, com Alexander Gottlieb Baumgarten, a partir de questões tanto filosóficas como literárias. A Estética se desenvolve justamente enquanto uma "ciência" que tenta mediatizar entre o absolutamente único (pensado tanto como o individual percebido na natureza, como a obra fruto do "gênio") e o universal (campo ao qual a arte pertenceu até o séc. 17). A reflexão intersemiótica que está na sua base leva a uma teoria dos signos: o meio de ligação entre o indivíduo e o mundo, entre o sujeito e o objeto. A Estética é a disciplina que se desenvolveu para dar conta dessa faculdade anímica das imagens, "ponte" entre a percepção - aisthesis - e os conceitos, entre o individual-imagético e o universal-conceitual, que, por sua vez, não existe sem as imagens. (Lembremos a famosa máxima kantiana: "Conceitos sem intuição são vazios..."). Se o mundo se torna ao longo do século 18 mais e mais um fato lingüístico, a nossa linguagem, por sua vez, torna-se um "fato imagético e conceitual". A doutrina da comparação entre as artes e a literatura vai, por assim dizer, se dissolvendo nesse novo paradigma da linguagem: se tudo é linguagem e imagem, a discussão não deve se dar mais nos termos da mímesis, mas sim em termos de uma teoria da linguagem produtora do mundo.

Os grandes teóricos da Estética do final do Iluminismo e do Idealismo, como Diderot, Moses Mendelssohn, G.E.Lessing, Herder, Kant, Schiller, Schelling e Hegel vão transitar em seus exemplos entre as artes plásticas e a literatura, mas de um modo geral podemos dizer que a literatura continua a predominar (o que já era o caso no próprio Baumgarten), tendo em vista a familiaridade maior daqueles autores com obras literárias do que com a história da arte. Kant pouco conhecia desta última. A moderna teoria literária, por sua vez, nasceu de um diálogo daquelas reflexões estéticas com a tradição filológica anterior. Além dos autores já citados, outros, como Friedrich Schlegel, Novalis e Baudelaire foram fundamentais para a reflexão sobre a literatura, e em todos os três a teoria literária nunca deixou de ser realizada ao lado da teoria das artes plásticas e da própria criação de obras literárias. É apenas ao longo do século 19, com a criação dos departamentos de filologia nacionais, que surgem os teóricos especializados apenas em literatura.

No século 20 vemos tanto filósofos que tiveram uma importante produção de teoria literária e de estética (Heidegger, W. Benjamin, Adorno, H-G. Gadamer, P. Ricoeur, J. Derrida e G. Deleuze), como teóricos da literatura que influenciaram o pensamento estético (G. Bataille, M. Banchot, R. Barthes, T. Todorov, G. Genette). Adorno pode ser visto como o último filósofo que ainda tentou escrever a sua teoria estética dentro da tradição idealista alemã (mas também contra ela). Desde as últimas décadas do século 20 detectamos uma dissolução das fronteiras entre as disciplinas Estética e teoria literária, que ocorre tanto em função de uma crise das disciplinas das humanidades, de um modo geral, como devido ao surgimento de novas abordagens e de novos temas. A midialogia, por exemplo, incorpora elementos dessas duas tradições. Com a web, a distinção entre literatura e artes visuais entra em crise também. Mas a Estética, onde quer que ela seja pensada, ainda tem uma grande dependência em relação à literatura, mesmo que esta agora seja concebida cada vez mais como imagem.

Márcio Seligmann-Silva é professor livre-docente de Teoria Literária na UNICAMP

Fábula

Na teoria dos formalistas russos sobre a narrativa, em primeiro lugar nas análises temáticas de Alexander Veselovsky, distingue-se a história ou fabula da trama ou sjuzhet. (Em português, para distinguir do conceito preciso de fábula como género literário, é preferível utilizar o termo na sua expressão latina.) B. Tomachevski define-a como o “conjunto dos acontecimentos ligados entre si que nos são comunicados ao longo da obra. (...) A fábula opõe-se ao assunto, que é constituído pelos mesmos acontecimentos, mas que respeita a sua ordem de surgimento na obra e a sequência das informações que no-los designam.” (“Temática”, 1989, pp.145-146). A fabula diz, portanto, respeito à história em si mesma, à protoforma do material narrativo, tal e qual o autor o encontrou na sua primeira manifestação; o sjuzhet reporta-se ao modo como é narrada a fabula, esse material original que o autor manipulou e transformou. Uma dada história ocorre numa sequência cronológica simples, de acordo com a progressão natural do tempo. Em outro plano da criação literária, um autor pode jogar com diferentes tempos, recuando ou avançando acções, para (re)contar a fabula original.

Os estruturalistas franceses recuperaram esta distinção, distinguindo então histoire ou récit (para fabula) e discours (para sjuzhet). Esta distinção não traz nada de novo à teoria dos formalistas e pode até contribuir para uma confusão simples entre a noção linguística de história (matéria não identificável com a narração) e discurso (forma de expressão oral ou escrita). Várias distinções similares são propostas um pouco em todos os quadrantes: E. M. Forster estabelece uma correspondência análoga entre story e plot (Aspects of the Novel, 1990, 1ª ed. 1927); Lubomír Dolezel construiu um modelo que inclui o nível dos motivemas ou descrição dos actos praticados pelo actante (identificável com o conceito de fabula), a estrutura dos motivos ou realizações de motivemas que permitem a sua actualização em personagens e acções (corresponde ao nível do sjuzhet) e a textura dos motivos ou conjunto de enunciados narrativos que verbalizam os motivos da intriga (cf. “From motifemes to motifs”, Poetics, 4, 1972); Cesare Segre estabelece uma distinção mais complexa entre discurso, intriga, fabula e modelo narrativo, integrando a fabula num nível de preparação teórica da intriga, ordenando-a logica e cronologicamente nos seus elementos constitutivos (La struture e il tempo, 1974); para Seymour Chatman, a distinção faz-se entre story ou conjunto de acontecimentos, personagens e cenários (incluindo o seu arranjo literário, facto que Genette, por exemplo, só reconhece no discours) e discourse ou a forma pela qual se comunica o acontecido (Story and Discourse: Narrative Structure in Fiction and Film, 1978).

As noções de fabula, récit ou story para designar a matéria pré-literária não conhecem consenso sobre um único termo para designar esta circunstância, complicando a operacionalização dos conceitos. Acresce uma crítica comum que tem sido feita a estas divisões entre matéria pré-literária ordenada cronologicamente e matéria literária que recupera os dados iniciais, sem a obrigaroriedade de os ordenar pela mesma sequência cronológica: introduz-se com esta divisão a ideia refutável de uma narrativa literária ser um desvio simples ou uma transfiguração programada de uma história originalmente disponível. Também é discutível que tal divisão seja criticamente frutífera, pois envolve sempre o risco de se introduzirem dissecações sobre a natureza do desvio realizado pelo autor no percurso que há-de ir da fabula ao sjuzhet, como se um discurso literário fosse programável a partir de uma cadeia de acções preparadas laboratorialmente.

DIEGESE; DISCURSO; HISTÓRIA; NARRATOLOGIA; PLOT; SJUZHET

Bib.: B. Tomachevski: “Temática”, in Teoria da Literatura II, ed. Por T. Todorov (Lisboa, 1989); Jonathan Culler: “Fabula and Sjuzhet in the Analysis of Narrative: Some American Discussions”, Poetics Today: Theory and Analysis of Literature and Communication, 1:3 (1980); Mieke Bal: Narratology: Introduction to the Theory of Narrative (1997).

Carlos Ceia

Murilo Mendes: um poeta visionário.

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Por Gilfrancisco

Ao amigo Haroldo de Campos (1929-2003),

que me introduziu no vidente mundo muriliano.





Murilo Mendes foi uma das mais interessantes e controvertidas figuras do mundo literário brasileiro, um poeta difícil e por isso mesmo, pouco divulgado. Tinha uma personalidade desconcertante, sua vida também constitui uma obra de arte, cheia de passagens curiosas de acontecimentos inusitados, que amava Mozart e ouvia suas músicas de joelhos na mais completa ascese mística, não permitindo que os mais íntimos se acercassem dele nessas ocasiões e certa vez telegrafou a Hitler, protestando em nome de Mozart contra o bombardeio de Salzburgo.



Na mais completa liberdade de ação, sempre mergulhando no âmago das coisas, sua magnífica obra, além de bastante extensa, compreendendo cerca de doze livros de poemas, três em prosa e vários inéditos, está exigindo um estudo aprofundado, onde se possa aquilatar com justiça seus altos méritos, já iniciados pelos ensaístas Haroldo de Campos e José Guilherme Merquior, ambos falecidos. Poeta excêntrico e inquieto, perquiridor, está completando 31 anos de morto, mas festejado em absoluto silêncio.



Pouco citado e omitido em antologias e estudos sobre o movimento de 1922, Murilo Mendes é hoje um poeta que tem uma obra definida, pessoal, livre de alguns chavões do próprio grupo modernista, poeta alheio a grupos, sempre trabalhando isoladamente, construiu uma obra bastante pessoal, enriquecendo-se de um universo lingüístico, quanto na experimentação formal, a cada novo livro publicado.



Inúmeras foram suas aventuras intelectuais inconformistas: "conciliador de contrários, incorporador de eterno ao contingente", como disse Manuel Bandeira, procurou restaurar em colaboração com Jorge de Lima, a poesia em Cristo, intentou disciplinar o caótico e o pânico, aspirou a inaugurar no mundo o estado de confusão transcendente, contendo a abundante inspiração e a contundente inventiva nos versos de intensas sintaxes e insuperável rigor.



Murilo Monteiro Mendes nasceu em Juiz de Fora, Minas Gerais, em 13 de maio de 1901, onde iniciou seus estudos primários e secundários, continuados em Niterói, mas logo interrompidos. A partir de 1920, fixa residência no Rio de Janeiro e torna-se pouco depois amigo do pintor Ismael Nery, que teria grande influência em seu espírito. A década de 20 é a do desenvolvimento do movimento modernista, que eclode com a Semana de Arte Moderna, em São Paulo, no ano de 1922. Apesar de não ter participação ativa, o poeta declara: "Em 1922 eu estava no Rio, olhando de longe e com simpatia o movimento, mas sem aderir oficialmente, porque nunca tive instinto gregário, o que sempre me impediu de fazer parte de qualquer grupo".



Mário de Andrade assinala no seu famoso ensaio A poesia em 1930 diz que esse ano, o que marca a poesia brasileira é a publicação de quatro livros, Alguma Poesia, Carlos Drummond de Andrade; Libertinagem, Manuel Bandeira; Pássaro Cego, Augusto Frederico Schmidt e Poemas, de Murilo Mendes: "Todos são poetas feitos, e embora dois deles só apareçam agora com seus primeiros volumes, desde muito que podiam ser poetas de livro. Mas quiseram escapar dos desastres quase sempre fatais da juventude. Se fizeram e fazem versos não é mais porque sejam moços, mas porque são poetas"1.



Mário refere-se aos estreantes Drummond e Mendes. Sobre o livro, afirma ele: "...historicamente é o mais importante dos livros do ano. Murilo Mendes não é um surrealista no sentido de escola, porém me parece difícil da gente imaginar um aproveitamento mais sedutor e convincente da lição surrealista. Negação da inteligência superintendente, negação da inteligência seccionada em faculdades diversas, anulação de perspectivas psíquicas, intercâmbios de todos os planos, que não exemplifico porque são todo o livro. O abstrato e o concreto se misturam constantemente, formando imagens objetivas".



Com a publicação de Poemas, modesta edição impressa em Juiz de Fora, paga por seu pai e prêmio da Fundação Graça Aranha, inicia-se nessa época, um segundo momento do modernismo, menos voltado para as contestações e mais voltado ao desenvolvimento de suas idéias. A partir de então, temos um Murilo Mendes modernista, surrealista, místico, messiânico, anárquico, barroco, católico e vanguardista. Os poemas dessa primeira fase, parecem casos típicos de antropofagia, como por exemplo, o da "Família Russa no Brasil", vitimado pelo caráter antropófago da nossa civilização, que Oswald de Andrade, por uma das suas extraordinárias intuições, soube em evidência, num movimento cuja significação capital, somente anos depois poderiam reconhecer.



A publicação desse livro, considerado como "um dos poetas mais interessantes desse momento", atingindo à riqueza e obtendo todo o rendimento do seu lirismo, numa imersão definitiva e fatal. É uma obra em que o poeta é um homem para quem o mundo exterior existe. Murilo trouxe uma contribuição pessoal e nova, que bastaria para assinalar o desejo de uma forma essencial, isenta de qualquer intemperança efusiva. Ou seja: "Com o sr. Murilo a poesia brasileira parece ter perdido irremediavelmente o pé. Dir-se-ia que nenhum ponto de apoio, nada mais, a sustém, e que ela voga equilibrando-se como pode, ao sabor das ondas insubordinadas da imaginação"2.



Em seu segundo livro, História do Brasil, os fatos da história brasileira são demolidos anárquica e irreverentemente, numa atitude que se aproxima da desmoralização, mas cujo intento é rever a história de uma outra ótica, opondo-se aos manipuladores de interesses. Esse livro, que segundo Aníbal Machado é mais fiel que a de Rocha Pombo, mais sintética que a de João Ribeiro, e a única verdadeira. "É sem dúvida o primeiro livro de versos sobre os fatos do Brasil, onde o poeta colheu as passagens mais graves dos quatrocentos anos de nossa existência política para o registro sóbrio e pitoresco".



Apesar dos versos provocarem risos e o imprevisto da linguagem que nele parece uma vocação, no fundo do que se mostra como mera brincadeira, existe um tom de melancolia disfarçada. A vivacidade crítica salta da primeira à última página de História do Brasil, cuja leitura é um prazer, onde o autor se mete nos assuntos mais sérios para apreciá-los com leveza sintética e sutil. É um livro de humor, mas também de pensamento, extraindo conceitos impressionantes de fatos que em outros provocariam apenas a deformação da charge ou da paródia. Uma obra destinada a fazer sorrir, mas também não raro a meditar.



Em Tempo e Eternidade, o título é referente a uma passagem bíblica em que narra um episódio de solidariedade ao Cristo, lançado em 1935, juntamente com o poeta alagoano Jorge de Lima. O livro reúne dois autores de temperamento e expressão diversa, mas unidos na causa pelo mesmo desejo de servir liricamente ao credo religioso que os empolgou. Com esse livro, Murilo parece ter abandonado para sempre o culto do epigrama cortante, que todos retinham na memória e todos os amigos do humor repetiam. Agora, o que lhe interessa é cantar aquelas entrevisões da alma profunda em que se comprazem os iluminados da poesia católica. Vamos encontrar, ainda, uma poesia totalmente rumo a Deus; ao contato de Deus, tudo se diviniza. Todo o seu fervor, todo o seu grande deslumbramento vem de Deus e vai para Deus. É dali que vem o sentido universal, amplo, envolvente e grandioso da poética de Murilo Mendes, todas virtudes cristãs, principalmente a piedade. O co-autor da coletânea, é o poeta serenidade, da majestade e do amor a Deus, o poeta do deslumbramento divino.



Poesia em Pânico (1936-1937), publicada no ano seguinte, é uma obra onde o autor das Metamorfoses (1941), tenta conciliar a sua existência aprisionada com a criação poética libertadora. É a bipartição entre Deus e a Musa, pois a Igreja lhe disputa o amor da Musa, esta vence e recolhe o amor que deveria ser consagrado à igreja, e o poeta fica em pânico a identificar mulher e pecado, segundo a linha que vem da Tentação e da Queda. O tom é de denúncia, a temática central dessa obra é a procura da conciliação, e o próprio poeta nos diz o seguinte: "Preocupei-me com a aproximação de elementos contrários, a aliança dos extremos, pelo que dispus muitas vezes o poema como um agente capaz de manifestar dialeticamente essa conciliação, produzindo choques pelo contato da idéia e do objeto díspares, do raro e do cotidiano, etc. Palavras extraídas tanto da bíblia quanto dos jornais, procurando mostrar que o social não se opõe ao religioso".



Ainda sobre o livro, Mário de Andrade dedicou um violento artigo3, onde procura mostrar os equívocos do seu percurso poético em relação à religião, e embora fosse também católico, Mário foi muito infeliz ao cometer imperdoáveis erros, ou seja: incompreensão do processo de sua obra, ao afirmar que: "...além de um não raro mau gosto, desmoraliza as imagens permanentes, veste de modas temporárias as verdades eternas, fixa-se anacronicamente numa região do tempo e do espaço o Catolicismo, que se quer universal por definição. Nesse sentido, o catolicismo de Murilo Mendes guarda a seiva de perigosas heresias".



Com Visionário (1930-1933), Murilo retoma alguns temas já apresentados no seu livro de estréia, ao questionar o mistério do tempo, "...que se manifesta simbolicamente na mulher, guardiã, em seu corpo, da semente que faz brotar a vida, pois seu ventre é o depositário do passado e do futuro, amadurecendo e se renovando a cada gestação". Sua primeira tentativa na prosa é O Discípulo de Emaús (1945), composto de algumas centenas de aforismos, em que ele diz: "Passaremos do mundo adjetivo para o mundo substantivo". Murilo passou por vários estágios, explodindo ou implodindo no seu próprio âmago conflitante. É nessa época, que o poeta colaborou com freqüência na imprensa brasileira, escrevendo muito sobre música, como por exemplo em Letras e Artes, suplemento do jornal A Manhã, publicando uma longa série de artigos, intitulada Formação de Discoteca, onde revelou seu atuante e profundo conhecimento de música, além de escrever também sobre artes plásticas.



O sensualismo permeado por uma visão mágica é outra área de conflito, que junto à religiosa e à surrealista, formam a base de sustentação da poesia de Murilo Mendes, como se essas transcendências ou exuberâncias verbais se conjugassem no infinito. Esse conflito jamais resolvido e sempre renovado, entre forma e transparência, faz com que seja necessário recorrer à noção de polivalência ou autonomia, para compreendê-la e avaliá-la devidamente. Sempre a experimentar novos caminhos formais e temáticos, delineando seu auto-retrato, nas suas obras seguintes, evidenciará a indefectível consciência literária, lutando até o fim por conciliar os opostos de sua formação, para ganhar concisão e colocar-se entre os maiores poetas do tempo.



Aparentemente hermético, Murilo Mendes é um dos nossos poetas, que viveu em comunhão mais estreita com o mundo, com as variações sociais, políticas e morais do tempo. Essa era uma das características de sua obra desde Poesia Liberdade (1943-1945), publicada em 1947. Nesse livro, Murilo Mendes apresenta duas séries de poemas enfeixados, que testemunham e refletem o que houve de mais terrível nesses dois anos: a guerra e as decepções provenientes dos efeitos da própria guerra e da paz ainda longínqua. Murilo sabe que a função do poeta é a de ser aquele "ouvido resistente", que "poderá perceber o choque do tempo contra o altar da eternidade". Poesia Liberdade é o grito do homem livre contra o absurdo da guerra, num mundo em que "o homem é a cobaia do homem", em que "a cruz gerou um universo de cruzes", o poeta vagueia "pelos campos semeados de metralhadoras". Resulta daí uma poesia de contraste, de conciliação dos contrários, do estímulo de liberdade interior.



Em 1949 o poeta mineiro apresenta-nos Janela do Caos, seleção de seus dois volumes anteriores, e cinco anos depois, Contemplação de Ouro Preto (1949-1950), onde a forte dosagem da poesia religiosa se faz presente, sendo o resultado de uma viagem de volta à sua Minas Gerais. Não obstante a atmosfera surrealista, o barroquismo domina amplamente e a escolha do tema deve-se à sua importância histórica e sua luminosa beleza. A linguagem profética lhe fornece suas figuras e metáforas, pois a visão tem sempre uma dupla carga: negativa, quando se refere ao presente e positiva, quando o que vê, toca a eternidade. Segundo Flora Sussekind, num brilhante estudo, diz ser o poeta "testemunha, olho do mundo, exilado, observador visionário, escravidão: epítetos geralmente atribuídos aos profetas são transferidos em Murilo, para o poeta-profeta"4.



O certo é que desde seu primeiro livro, já estão presentes a dimensão erótica e a inquietação espiritual, visto que alguns críticos de tendências diversas concordam em apontar sua excentricidade em nossa literatura. O próprio poeta contribui de forma acentuada nesse sentido, com inúmeros poemas onde há caracterização de um "eu" rebelde, múltiplo e desorganizado. Portanto, o discurso muriliano entra em cena num momento em que a situação política se encontra em aberto, e exige uma decisão.



Era a Revolução de 30, o fim da hegemonia da burguesia do café e o aparecimento de uma nova forma de Estado, caracterizada por uma maior centralização, pelo intervencionismo e por um acordo que se dá entre as várias frações burguesas. Daí a grande importância de sua obra e de sua concepção de história, pois, o poeta não apenas se converte ao catolicismo, mas também a sua linguagem poética é convertida a ele. Portador de uma linguagem freqüentemente solene ou como afirma José Guilherme Merquior "o que Murilo tem de sacro, tem de plástico"5, ou seja, ele renova sua poesia pela incorporação aberta ao moderno, sobre a vitória dos novos poemas, graças à audácia de suas imagens e o feitio irredutível de seu ritmo. Esse visionário se apresenta com uma luminosidade total.



"Bumba-meu-poeta", composto à maneira folclórica do bumba-meu-boi, é uma dramatização crítica da ordem social, em que a realidade brasileira é apresentada de forma alegórica. Escrito em 1930 e publicado na Revista Nova, de Paulo Prado, dois anos depois, integra na demolição modernista, esse auto de Natal popular nordestino, que pode ser representado em praça pública ou em residência particular. Só surgiria em forma de livro, em 1959, no volume Poesias, reunião da obra completa até então. Com a exclusão de História do Brasil e inclusão de novos livros — Sonetos Brancos (1946-1948), Parábola (1946-1952) e Siciliana (1954-1955) —, resultante das viagens do poeta6. Sobre a obra muriliana diz o poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto: "sua poesia me foi sempre mestra, pela plasticidade e novidade de imagem. Sobretudo foi ela quem me ensinou a dar precedência à imagem sobre a mensagem, ao plástico sobre o discursivo".



Em Murilo Mendes vida e poesia caminham juntos, sempre na mesma direção, cada livro da longa obra do poeta juiz-forense em prosa e em versos, "escreve em ritmo marítimo, convulsivamente, em voragem, em vertigem, em voracidade, em veracidade, em estado de febre permanentemente, em estado de bagunça transcendente, em alucinação da cachola, sabendo que tudo é ritmo de cérebro do poeta". Murilo é um poeta cósmico, cuja preocupação com o fazer poético levou-o a uma constante reflexão sobre a estética, a fome estética que o consumiu até o fim.



Tempo Espanhol (1950), somente publicado nove anos depois, em Lisboa, reúne cerca de setenta poemas inspirados na Espanha: em seus poetas, seus santos, seus artistas e suas cidades, o próprio convívio diário, a convivência do cotidiano espanhol. É, na realidade, sua solidariedade à Espanha problemática e antológica, onde o autor testemunha in loco, e vai mostrando em toda a extensão, um aspecto de sua história. Conforme observa Haroldo de Campos, é um livro "domado e severo, de maturada maturidade"7, enquanto Merquior, em 1960, já falava seguramente da "Concisão, Arquitetura nítida, maravilhosamente adequada ao retrato de uma terra onde a clareza da paisagem é um convite à lucidez"8.



A estrutura intelectual do poeta, na busca constante de uma forma, não o separa dos outros homens, isolando-o na sua cela de artesão, ou nas diversas frentes da atividade e da sensibilidade humana. Encontramos um Murilo Mendes voltado para a experiência modernista, participante em cada instante da vida. O certo é que quando aparecem os Poemas, o modernismo já tinha feito o seu tempo, uma nova e profunda insatisfação reina no espírito dos seus próprios criadores. O movimento ia perdendo cada vez mais os seus adeptos: Manuel Bandeira escreve "Vou-me embora pra Pasárgada" e Murilo converte-se com Jorge de Lima ao catolicismo. Poemas é a espinha dorsal de toda a poesia muriliana, nasce numa atmosfera rarefeita e suspensa na busca de um Cristo moderno e humaníssimo, ou do equilíbrio por via transcendental. Esse discurso, que depois seria válido para toda a obra posterior — visto que todos os fermentos e estímulos são encontrados nas obras seguintes —, já está aqui, em embrião.



Em Convergência (1970), o poeta desenha grafitos verbais e ainda pratica os exercícios vocabulares dos barrocos, com seus inúmeros neologismos, onde a radicalidade da invenção se faz presente e cujos poemas se mostram em afinidade aos experimentos semânticos e fônicos os mais variados, além dos recursos de sinais gráficos das vanguardas poéticas, como a poesia concreta, e o próprio poeta se fez presente nas páginas da revista concretista, Invenção. Enfim, Murilo Mendes explora exaustivamente todas as possibilidades, montando e desmontando os jogos semânticos, traduzindo em palavras os novos tempos e integra-se às novas tendências da arte literária. Ou seja: "É resultado de um projeto e não de uma aderência". Na realidade, o poeta não aderiu a novidades, mas consumou um longo projeto: a evolução consciente de toda uma experiência de vida e criação.



Na Europa, onde vivia desde 1959, especialmente em Roma, onde havia fixado sua residência, e exercia seu labor de professor de literatura brasileira, além de divulgar nossa cultura, Murilo estabelece também um vínculo concreto com a cultura européia, realiza inúmeras conferências em universidades e se tornava, aos poucos, cada vez mais presente. Conhece escritores e artistas como André Breton, Guiseppe Ungaretti, Alberto Magnelli, Albert Camus, René Char, Ezra Pound, etc., publica em jornais e revistas e tem várias de suas obras traduzidas para o francês, espanhol e italiano. É nesse universo plural que ele invade outras linguagens, ultrapassando a existência de um projeto poético estabelecido, e em 1971 recebe o Prêmio Internacional de Poesia Etna-Taormina.



Poliedro (prosa), publicado em 1972, um ano antes dos Retratos-relâmpagos, seu último livro, é um descompromisso total com as formas até então vigentes de sua poesia. Rico, novo, mostrando que o mundo do poeta está ainda em constante efervescência. Deprimido, dominado pela angústia, mas entregue ainda à invenção de sua poesia, na casa de seu sogro Jaime Cortesão, no bairro da Estrela, em Lisboa, onde se encontrava de férias, morre Murilo Mendes, subitamente, de infarto, às 22 horas e 30 minutos, do dia 13 de agosto de 1975, aos setenta e quatro anos e três meses exatos.



Murilo deixou-nos uma obra ampla, indo da sátira aos temas religiosos (era profundamente católico), da irreverência lírica ao tom apocalíptico e do desassossego surrealista ao verso tenso e rigoroso. Além de vários livros inéditos: Carta Geográfica, Espaço Espanhol, Janelas-Verdes, Retratos-relâmpagos (2ª série), A Invenção do finito, Conversa Portátil, Papiers (texto original em francês) e Ipotesi (texto original em italiano). Murilo Mendes é um poeta fascinante e estranho à primeira vista, pela liberdade criadora. Sua poesia da fase inicial, fortemente acentuada pela influência surrealista, manifesta-se de um modo livre, apropriado à sua própria norma poética. É, sem dúvida, um dos nossos poetas mais difíceis e irregulares, construindo em sua poesia um mundo vizinho do onírico, interpenetrante aos planos real e metafísico, consubstanciando a visão agônica de um mundo decadente, amargurado e sofrido, desunido pela guerra. Sua poética, altamente simbólica, revela mais do que um modernista, o criador de uma poesia magistral, espiritualizada, que tenta transmitir a eternidade da existência pós-morte.










agosto, 2006




Gilfrancisco. Jornalista, pesquisador e professor universitário. Publicou Gregório de Mattos o boca de todos os santos; Crônicas e poemas recolhidos de Sosígenes Costa; Flor em Rochedo Rubro: o poeta Enoch Santiago Filho; Godofredo Filho & o Modernismo na Bahia; Poemas de Enoch Santiago Filho, dentre outros.

O Lirismo negro de Baudelaire

sábado, 25 de abril de 2009

O poeta e ensaísta Ivan Junqueira, tradutor e estudioso de Baudelaire, discute o legado do poeta francês

CULT - Qual a influência de Charles Baudelaire na poesia brasileira?
Ivan Junqueira - Uma influência imensa e, o que é mais importante, duradoura, já que Baudelaire, talvez mais ainda do que Edgar Allan Poe, é o fundador daquilo que hoje entendemos como modernidade. Essa influência, entretanto, é assimétrica, ou seja, sua intensidade não é a mesma nas diversas etapas de nossa evolução poética. Ela foi quase nula, por exemplo, durante a vigência do movimento modernista de 1922. Graças ao seu satanismo, Baudelaire causou funda impressão nos poetas de nossa segunda geração romântica, sobretudo em Álvares de Azevedo, e começou a ser muito traduzido entre nós a partir de 1871, quando os poetas Carlos Ferreira, gaúcho, e Luís Delfino, catarinense, o verteram pela primeira vez para o idioma de Camões. Sua influência foi avassaladora junto à geração simbolista, em fins do século XIX, e até mesmo os parnasianos, no início do século XX, não escaparam ao seu fascínio. Essa influência se acentuou entre 1932 e 1933, quando Félix Pacheco promoveu, nas páginas do Jornal do Commercio, um verdadeiro revival baudelairiano, com numerosas traduções do autor de As flores do mal, além de diversos estudos sobre a sua obra. Em seu Baudelaire no idioma vernáculo (1963), Tavares Bastos arrola, até o fim da década de 1960, nada menos que 468 versões de poemas de Baudelaire por parte de 46 diferentes tradutores brasileiros. E a partir daí esse fascínio só fez crescer, tanto assim que já dispomos hoje de três versões integrais de As flores do mal: a de Jamil Almansur Haddad (1958), a de Ignácio de Souza Motta (1971) e a minha própria, que é de 1985 e que foi depois acrescida da tradução dos poemas que constam da "Juvenília" do autor ( Baudelaire. Poesia e prosa, Nova Aguilar, 1995). Arrisco-me a dizer que a influência de Baudelaire jamais deixará de se exercer entre nós, pois é com ele, acima de qualquer outro, que tem início a poesia moderna no Ocidente. Baudelaire é um poeta eterno, assim como Homero, Dante, Petrarca, Camões ou Leopardi.

CULT - No seu ensaio introdutório ao livro As flores do mal, o senhor comenta acerca do caráter contraditório do cristianismo de Baudelaire. Poderia dizer algo a respeito?
I.J. - Penso que não há dúvida alguma quanto à vocação cristã de Baudelaire, mas é bom lembrar que há um abismo entre essa vocação e o que se poderia entender como sua atuação cristã. O que mais desconcerta no tocante a essa questão é perceber a fáustica oscilação de Baudelaire entre Deus e o Diabo, o que o leva amiúde à prática das mais ingênuas e primitivas formas de maniqueísmo, o que se agrava devido ao uso que fazia o poeta de termos litúrgicos inadequados e cujo exato sentido ele decerto não chegou a compreender. Por isso mesmo, sempre que abordam temas religiosos, seus poemas acusam uma dupla impertinência: a da linguagem e a das noções expressas por essa linguagem. Há que se entender ainda que Baudelaire não era propriamente uma anima naturaliter christiana, e sim uma anima naturaliter religiosa, capaz, portanto, de criar uma religião particular que nenhuma relação guardasse com a religião tradicional, como acontece no poema "As litanias de Satã", no qual o poeta estabelece um estranho gnosticismo neopagão e maniqueísta. Baudelaire tinha uma noção muito aguda do conceito de pecado original, bem como uma idéia muito clara e vital da redenção, mas seu cristianismo é dilacerado e dilacerante, além de subjugado por um dualismo que em parte lhe explica o dilemático perfil de anjo e demônio. Dentre os ensaístas católicos que lhe analisaram a obra, parece-me que T. S. Eliot foi um dos que mais perto chegaram do nervo da questão, quando sustenta que o satanismo baudelairiano poderia constituir uma oblíqua via de acesso ao cristianismo, já que, considerado em si próprio, ou seja, dissociado de sua parafernália imagística e conceitual, esse satanismo não deve ser entendido como simples afetação, e sim como uma tentativa de alcançar o cristianismo pela porta dos fundos. É isso o que se vê no medonho espetáculo da crucifixão encenado por Baudelaire no poema "Uma viagem a Citera", pois que aí o papel principal não cabe àquele que morreu na cruz para nos salvar, mas sim ao que nela deveria padecer para condenar aquele que não nos salvou.

CULT - A atividade de Baudelaire se dividiu entre a poesia, a crítica de arte e a literária e a tradução. Qual desses era o melhor Baudelaire?
I.J. - Sem dúvida, o poeta, pois, sem o concurso deste, Baudelaire não teria sido o crítico que foi. É o poeta que ilumina a atividade do crítico, como acontece, aliás, no caso de outros grandes poetas que se tornaram críticos notáveis. No caso de Baudelaire, tanto a crítica literária quanto a de artes plásticas são fundamentais para a compreensão do pensamento estético de sua época e de tudo o que viria depois, isto é, depois da arte romântica. Muitos escritores e pintores de meados do século XIX, como Manet, Délacroix, Degas, Daumier, Guys, Balzac, Victor Hugo, Vigny, Gautier, Stendhal, Flaubert, Banville ou Leconte de Lisle, e mesmo o compositor alemão Richard Wagner, devem boa parte de seu reconhecimento junto ao público europeu à sagacidade e à visão premonitória dos ensaios que lhes consagrou o autor de As flores do mal. Quanto à atividade tradutória, convém lembrar que se deve a Baudelaire a tradução para o francês de quase toda a obra em prosa de Poe, cuja doutrina estética, sobretudo no que toca à poesia, exerceu forte influência sobre o poeta francês.

CULT - Quais são os desafios e as alegrias de tantos anos de dedicação à obra de Charles Baudelaire?
I.J. - Quando me decidi, atendendo a um convite de Pedro Paulo Sena Madureira, a verter para a nossa língua toda a obra poética de Baudelaire, impus-me o mais árduo e áspero dos desafios, ou seja, o de manter, em português, a integridade de todos os esquemas métricos, estróficos e rímicos do original. No que concerne a Baudelaire, um dos mais consumados artistas do verso de que já teve notícia a literatura ocidental, essa imposição era inarredável. E aí começaram as dificuldades e as armadilhas de toda sorte, o que me levou por diversas vezes a cogitar de desistir da empreitada. Quem me impediu de fazê-lo foi o grande poeta Dante Milano, ele próprio competente tradutor não só de Baudelaire, mas também de Dante Alighieri e Mallarmé. Diante de meu desespero e de minha absoluta impotência perante os mistérios e desafios da poesia baudelairiana, ele costumava consolar-me, dizendo: "Ivan, pode-se sempre traduzir o que um poeta quis dizer, embora não se possa traduzir o que ele disse". Assim, ao longo de cinco anos, dediquei-me a verter para a nossa língua o que Baudelaire "quis dizer", já que o que ele "disse" disse-o apenas em francês. Não estou com isso querendo dizer que sua poesia, como a de qualquer outro grande poeta, seja intraduzível, mas apenas alertando para o fato de que uma tradução é aquilo que o homo ludens, o tradutor, serve sob a forma de "poesia alheia" a partir daquela que foi criada em outra língua pelo homo faber. Procurei apenas fazer com que Baudelaire falasse em português, pois o leitor brasileiro é quase sempre um monoglota, ou seja, somente fala e lê a sua própria língua. Esta é a razão pela qual as traduções são de suma importância em nosso país. Quanto às alegrias a que você se refere nesta última pergunta, correm elas por conta de um resultado final que considero pelo menos digno e que foi muito bem recebido pelo público e pela crítica, tanto assim que minha tradução soma dez edições. Talvez tenha valido a pena perder (ou ganhar?) cinco anos de minha vida engalfinhado com as "flores doentias" de Charles Baudelaire.

Ivan Junqueira nasceu no Rio de Janeiro (RJ) em 1934. É poeta, conferencista, ensaísta, tradutor. Publicou, dentre outros, Os mortos, O grifo, A sagração de ossos (poemas), O signo e a sibila, O fio de Dédalo (ensaios), e traduziu T.S. Eliot, Baudelaire, Leopardi e Proust.

Uma vida gravada na água

Oscar Wilde brilhou na sociedade inglesa até que seuenvolvimento homossexual com Lorde Alfred Douglas
o levasse à prisão, fazendo com que sua biografiarivalizasse em tragicidade, comicidade e excentricidade com obras-primas como O retrato de Dorian Gray e De profundis

Maria Cristina Elias

Oscar Wilde, escritor que colocou "todo seu talento em suas obras e todo seu gênero em sua vida", efetivamente, fez de sua vida (tomando emprestadas as palavras de Otto Maria Carpeaux) uma "obra de gênio". Tendo começado pela glória, o esteta que parecia estar fadado ao sucesso terminou seus dias no esquecimento, pagando à sociedade a dolorosa pena de sua natureza singular. Contudo, seus escritos, anteriormente rejeitados, hoje colecionam diversos admiradores, sobretudo na Inglaterra.

No dia 16 de outubro de 1854, nasceu, em Dublin, Oscar Fingal O'Flahertie Wills Wilde, filho de Sir William Wilde - personalidade de destaque, oftalmologista e oculista notório por sua vida amorosa conturbada - e de Jane Francesca Elgee - que, utilizando o pseudônimo "Speranza", era conhecida como uma poetisa nacionalista irlandesa e considerada um dos gênios mais eminentes de um famoso salão literário. Oscar Wilde tinha dois irmãos, William Wilde (1852-1899) e Isola Emily Francesca (1857-1867).

Nos estudos, Wilde sempre foi brilhante. Tendo iniciado sua carreira escolar na Portora Royal School, de Enniskillen, transferiu-se para a Trinity College de Dublin em 1873. Em 1874, obteve uma bolsa de estudos para a Magdalen College de Oxford, onde permaneceu até 1879. À época, a universidade de Oxford estava mergulhada numa efervescência de idéias. Escolas filosóficas como a dos neo-hegelianos (encabeçada por T.H. Green); teorias da evolução (formuladas por Darwin e Huxley); a música sirênica dos Poemas e Baladas de Swinburne; as novas tendências na decoração de interiores; e a estética dos pintores da Confraria dos Pré-rafaelitas (como Brown, Burne-Jones, Hunt, Millais, Rossetti e Waterhouse, que, devido ao desânimo face ao estado decadente da pintura britânica, formaram em 1848 uma associação, que, por meio de temas medievais e telas de conteúdo moral, buscava a sinceridade cristã dos artistas italianos anteriores a Rafael) influenciavam o modo de viver e pensar dos jovens estudantes de então. Nesse contexto, cabe ressaltar a influência decisiva da doutrina esteticista (cujos principais representantes foram John Ruskin e Walter Pater) sobre os jovens mais sensíveis do meio acadêmico de Oxford, dentre os quais Oscar Wilde.

Os seguidores do esteticismo, que fizeram da arte sua religião, não aceitavam a salvação da sociedade pela obediência a princípios morais e éticos. Entendiam que os tempos modernos estavam em decadência, refugiando-se em outras épocas, que consideravam mais artísticas e menos obscuras. Defensores da "arte pela arte", os adeptos dessa corrente buscavam um fim de "ordem imoral", ou seja, por meio da irresponsabilidade moral da arte escapavam aos imperativos sociais. Segundo Carpeaux, "a arte é, para os esteticistas, a atmosfera do relativismo ético; e para alcançar essa esfera, servem-se de mais outros instrumentos, afins ou fora das atividades artísticas de escrever, pintar e fazer música; colecionar objetos de arte, bibliofilia, dandismo, prazeres da cozinha e outros prazeres, sejam legítimos ou até proibidos pelo Código Penal" ( História da literatura ocidental). Os símbolos representativos desse novo culto estético eram "penas de pavão, girassóis, rodapés e porcelana azul, cabelos compridos e culotes de veludo".

Walter Pater teve participação incisiva na formação de Wilde, diferenciando-se de Ruskin por refutar o que considerava uma reminiscência da postura moral e teológica adotada por esse desde a adesão à igreja anglicana, ou seja, a sua consciência eminentemente social. Pater jamais se esforçou para cultivar o conhecimento de seu mais famoso discípulo, embora dificilmente tenha ignorado a existência de Oscar Wilde, que já era uma celebridade antes mesmo de sair de Oxford.

Por volta de 1880, Wilde - que abraçara com entusiasmo os "dogmas" do esteticismo, assumindo o papel de intelectual "almofadinha" e ocioso, de homem de espírito encarregado de divertir e animar festas e eventos promovidos pela alta sociedade - passou a ser alvo de pesadas e irônicas críticas, como as caricaturas publicadas pela revista Punch (que se estabelecera como porta-voz da opinião da classe média e coordenadora da campanha de ridículo contra os estetas); a "comédia estética" intitulada O coronel, escrita por F.C. Burnand, cujo protagonista era "Basil Giorgione, Cavaleiro do lírio"; e Patience, uma ópera cômica de Gilbert e Sullivan.

Como havia intenções de levar a ópera Patience aos Estados Unidos e o público americano apenas compreenderia seus traços irônicos caso conhecesse os ideais estetas, Wilde foi convidado a fazer um ciclo de conferências sobre a doutrina da "arte pela arte" no país. Dessa forma, em 1882, Oscar Wilde aportou em Nova York, dirigindo-se posteriormente a outras cinqüenta ou sessenta cidades do oeste. Devido à sua habilidade retórica e persuasiva, Wilde, que chegara aos EUA como uma personalidade engraçada, se não conseguiu convencer os americanos a adotarem suas idéias, ao menos conquistou seu respeito.

Retornando à Inglaterra com a reputação fortalecida, o escritor, que já contava com a ampla aceitação de seus Poemas (1881) e da fama decorrente dessa obra, começou a trabalhar como jornalista, editando a publicação The Woman's World e escrevendo artigos de crítica para diversos jornais.

Em 1884, Wilde casou-se com Constance Lloyd, que lhe deu dois filhos, Cyril e Vyvyan. Constance aderiu aos entusiasmos estéticos de seu marido, chegando a defender em comício a reforma do vestuário feminino.

Entre 1882 e 1888, escreveu pouco, fazendo, no entanto, freqüentes visitas a Paris. Na capital francesa, o escritor teve contato com autores como Flaubert e Baudelaire e com a principal corrente literária européia da época, a escola "decadente" francesa, cujo breviário era o livro À rebours de Huysman, publicado em 1884.

Sua produção literária foi retomada em 1888, com a coletânea de contos O príncipe feliz e Outras estórias, a qual foi seguida, após três anos, pela publicação de O crime de lorde Artur Savile e Outras estórias. O êxito desses títulos estimulou a ambição de Wilde, resultando no seu primeiro e único romance, O retrato de Dorian Gray (1891). Essa obra foi uma espécie de mate rialização ou de comunicação dos ideais de seu autor, consistindo na primeira indicação, embora não expressa, de seu homossexualismo (o escritor teria sido iniciado em práticas homossexuais em 1886, por Robert Ross).

O ano de 1891 foi decisivo na vida de Oscar Wilde, que já tinha se firmado como escritor consagrado e exercia um encanto quase irresistível sobre as pessoas que o rodeavam, de forma que o esteta costumava freqüentar círculos sociais onde seus hábitos e pensamentos eram reprovados. Nesse mesmo ano, Wilde foi apresentado - pelo poeta wykehamista, oxfordiano emérito e homossexual Lionel Johnson - ao Lorde Alfred Douglas (chamado de Bosie por seus colegas), com quem passaria a manter um intenso relacionamento.

Bosie e Wilde passaram a ser vistos juntos em diversos lugares e, apesar de controvérsias acerca do fato de terem sido amantes, Bosie - jovem arrogante, egoísta e exigente - procurava se comportar como se realmente o fossem. A longo prazo, Wilde passaria a ter sérios problemas financeiros devido às exigências de seu companheiro, que esperava ser suprido dos bens e ca prichos mais caros e receber dinheiro sempre que pedisse. André Gide, que certa vez encontrou o "casal" em Biaskra (norte da África), onde passavam férias, descreveu Bosie como uma pessoa "cínica, egoísta e terrível". Contudo, a suposta sordidez do jovem, embora tenha contribuído para arruinar a vida do escritor irlandês, compeliu-o a experimentar um dos únicos gêneros literários capaz de proporcionar suficiente retorno material - o teatro.

Dessa forma, em 1892, foi representada no teatro St. James de Londres a comédia O leque de lady Windermere, que, devido à sua sofisticação e espírito, consistiu num triunfo para Wilde. Aproveitando a onda de sucesso, em 1893 foi encenada Uma mulher sem importância. No intervalo entre essas duas peças, Wilde começou a ponderar a possibilidade de levar aos palcos o drama de Salomé, escrito em francês durante uma de suas visitas a Paris, no ano de 1891. Na montagem de Wilde, salpicada com requintes de satanismo, Salomé, num êxtase de necrofilia, beija em cena a cabeça decepada de João Batista. Sarah Bernhardt chegou a se interessar pela produção de Salomé em seu próprio teatro. No entanto, a atriz acabou desistindo de comprar os direitos de representação do drama, que à época lhe custariam trezentas ou quatrocentas libras (cerca de dez anos mais tarde, porém, Sarah Bernhardt deve ter experimentado alguns momentos de remorso, já que aquelas trezentas ou quatrocentas libras que teria pago por Salomé estariam valendo aproximadamente 30 ou 40 mil libras). As tentativas iniciais de encenação do drama foram frustradas, mas a peça foi impressa em Paris em 1893 e traduzida para a língua inglesa (por Lorde Alfred Douglas) em 1894. Apesar de algumas desilusões com Salomé, Wilde obteve grande sucesso com outras duas comédias de costumes, Um marido ideal e A importância de ser Prudente.

Animado pelo êxito de suas peças e no ápice de sua carreira, Oscar Wilde partiu em férias para o norte da África acompanhado por "seu rapaz", ignorando as advertências e proibições do opulento e cruento Marquês de Queensberry (pai de Bosie), o qual queria, a qualquer custo, ver o filho longe da "péssima companhia" do "pervertido e corruptor" escritor irlandês. As investidas contra as exigências do velho marquês acabaram resultando num cartão escrito por esse, deixado no Albermale Club e contendo inscrições ofensivas a Wilde (chamado por ele de "sodomita"). Embora seus amigos mais próximos tenham alertado sobre as perigosas conseqüências da eventual evolução dessa divergência, Wilde decidiu, em atenção aos desejos de Bosie, mover uma ação criminal por injúria contra o Marquês de Queensberry.

Contudo, o feitiço virou contra o feiticeiro e, com base em indícios retirados da interpretação de suas obras e em testemunhos de pessoas que tiveram, de alguma forma, acesso à rotina e aos costumes sexuais do escritor, Oscar Wilde foi condenado a dois anos de prisão com trabalhos forçados. Tendo passado por dois julgamentos - no primeiro o júri não alcançou um acordo e o acusado ficou sob liberdade assistida -, Wilde teve a oportunidade de fugir, mas optou por permanecer na Inglaterra e encarar a acusação, o escândalo e a iminente condenação.

Os primeiros seis meses da pena foram cumpridos na prisão de Wandsworth, onde Wilde, que sempre fora acostumado a uma rotina macia e luxuosa, recebeu um tratamento desumano. Depois, devido ao esforço de alguns amigos, foi transferido para o cárcere de Reading, em que a atmosfera aparentava ser mais acolhedora. Durante esses dois anos, Oscar Wilde sofreu intensamente, dando sinais de alienação, quase não falando e apresentando grande apatia. O Oscar Wilde "iluminado, radiante, rico, grandioso, belo, exalando alegria e distinção", descrito por Gide quando do encontro em Biaskra, não existia mais. Seus filhos e sua mulher, sucumbindo a fortes pressões sociais, substituíram o sobrenome Wilde por Holland.

Sua vida dera um salto para o inferno, onde, contudo, Wilde encontrou um espaço para reflexão acerca dos valores que cultuara até então. Foi na cela que escreveu a comprida carta a Bosie, posteriormente intitulada De profundis, que demonstra, com clareza, a generosidade essencial do escritor. De acordo com Albert Camus, em seu ensaio "O artista na prisão" ( A inteligência e o cadafalso e outros ensaios, editora Record), " De profundis não é nada além da confissão de um homem que admite ter-se enganado completamente, tanto sobre a vida quanto sobre a arte, à qual desejou dedicar sua vida exclusivamente. Wilde reconhece que, por ter desejado separar a arte da dor, cortara uma de suas raízes e retirara de si mesmo a verdadeira vida".
A condenação frutificou também no famoso e comovente poema A balada do cárcere de Reading, composto depois da libertação (em 1897), quando o escritor estava novamente acompanhado de seu antigo companheiro, Lorde Alfred Douglas. Esse permaneceu com Wilde até que seu dinheiro se esgotasse. Uma vez aban donado por Bosie, Oscar Wilde mudou para Paris, onde passou o restante de seus dias, atormentado por meningite associada à sífilis. Morreu a 30 de novembro de 1900, no pequeno Hôtel d'Alsace, na Rue de Beaux-Arts, logo após ter sido aceito na igreja católica romana.

Atualmente, o nome de Oscar Wilde, depois do de Shakespeare, é um dos mais conhecidos no âmbito da literatura de língua inglesa. O escritor foi tema do filme Wilde (1996), estrelado pelo ator Stephen Fry e dirigido por Brian Gilbert. Suas obras foram todas reeditadas e traduzidas para diversos idiomas e suas peças continuam sendo encenadas em vários países e adaptadas para o cinema, como é o caso de Um marido ideal, que em 1999 teve sua segunda versão cinematográfica.

Porém, mesmo sendo um dos pontos altos da literatura do século XIX, a obra do "artista das atitudes" acabou muitas vezes sendo suplantada por sua biografia em tragicidade, comicidade e excentricidade. André Gide, no livro Oscar Wilde, defende que "em vez de procurar esconder o homem atrás de sua obra, era preciso mostrar primeiramente um homem admirável e depois a própria obra se tornando luminosa".

Enfim, tomando emprestadas (novamente) as palavras de Gide para definir o grande homem que compunha o substrato de obras tão essencialmente diversas como O retrato de Dorian Gray e De profundis, pode-se dizer que "como os filósofos gregos, Wilde não escrevia sua sabedoria, mas conversava sobre ela, vivia-a, confiando-a de forma imprudente à memória fluida dos homens e gravando-a sobre a água".