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Semiologia

sábado, 26 de dezembro de 2009

Em minha primeira visita ao espetacular Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo-SP, situada na artenovista Estação da Luz (estação ferroviária), uma jovem, que se dizia “deficiente” (mas qual ser humano não padece de alguma deficiência?), perguntou-me que disciplina eu ministro no curso de pós-graduação de minha universidade federal. Respondi-lhe: “semiologia”; interrogado, de novo, sobre o que seria “semiologia”, desfechei-lhe, em vernáculo, como um mágico que tira um coelho da cartola, a clássica definição do fundador da teoria dos signos, ou, semiologia, o genebrino Ferdinand de Saussure: “On peut concevoir une science qui étudie la vie des signes au sein de la vie sociale; elle formerait une partie de la psychologie sociale, et par conséquent de la psychologie générale; nous la nommerons sémiologie (du grec semion, signe). Elle nous apprendrait en quoi consistent les signes, quelles lois les régissent.” Face ao espanto de minha interlocutora, assegurei-a de que, mesmo com uma definição tão abstrata e abstrusa, a semiologia não é um bicho de sete cabeças e trata de uma imensa variedade de fenômenos do nosso mais prosaico dia-a-dia, fenômenos esses que têm um ponto em comum, na medida em que são considerados signos, isto é, algo que, em alguma circunstância, representa algo para alguém, sugerindo, para além deles próprios, o que quer que seja. Tratando do que há de mais cotidiano, a semiologia segue o exemplo da filosofia grega antiga, que ensinava nas praças públicas, nas feiras populares, observando tartarugas, assistindo a corridas de atletas, vendo arqueiros atirando flechas, montando espetáculos em cavernas (visitei, em Macau, a caverna em que Camões escreveu Os Lusíadas e imaginei um encontro, ali mesmo, entre ele e Platão, que filosofava em torno de sombras nas paredes de uma caverna qualquer). Também certos filósofos contemporâneos elaboram sua filosofia a partir do que há de mais comum em nossas vidas, como o francês Gaston Bachelard, que, meditando sobre a chama de uma vela, teceu considerações metafísicas. Embora constituída como ciência, ou método de pesquisa, apenas nos albores do século XX (o Curso de lingüística geral, de Saussure, data de 1916), a semiologia começou, como tudo, aliás, na cultura ocidental, na Grécia arcaica, com os filósofos denominados “Pré-socráticos”, que se inquietavam com signos e máscaras. Cada vez que alguém – continuava eu minha inesperada preleção sobre semiologia – olha como signos as palavras e as coisas está fazendo uma semiose, ou seja, traça uma interpretação que ultrapassa as meras aparências, as espessuras, a acusticidade, os odores, os sabores, tudo aquilo que a semiologia designa como “significante”; pela semiose, o leitor, o ouvinte, o espectador, o fuidor cria e recria significados, ou significações, como prefere o semiólogo francês Roland Barthes. Investir algo com a natureza de signo significa conferir-lhe o poder de produzir infindas significações. A partir de Charles Morris, a semiologia dividiu-se em três ramos: a sintaxe, a semântica e a pragmática; portanto, todo signo tem uma dimensão sintática, na medida em que faz parte de um sistema, ou combinação, não podendo existir isoladamente, já que um signo reenvia a outro signo (“palavra puxa palavra”, enuncia o poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade); em sua dimensão semântica, o signo produz uma significação, remete a uma idéia, um significado; o aspecto pragmático leva o leitor do signo a tomar uma atitude, a desenvolver certo comportamento, nem que seja o da pura omissão. Diante dos semáforos (ou sinais de trânsito, como se fala no Rio de Janeiro), o transeunte vê que o vermelho, o amarelo e o verde não existem separadamente, mesmo se falta um; os semáforos são lidos, ou decodificados: o vermelho sinaliza a parada, o amarelo alerta, o verde faculta a travessia; a partir dessa leitura, o sujeito assumira um comportamento, mesmo que transgressor com relação ao sistema sígnico com que se depara. Neste Museu da Língua Portuguesa – prosseguia eu minha improvisada aula de semiologia -, há, no primeiro andar, uma exposição em homenagem ao cinqüentenário da publicação do romance Grande sertão: veredas, do mineiro João Guimarães Rosa, o mais importante romance contemporâneo brasileiro, filho, direto e dileto, bastardo e abastado, de Macunaíma, o herói sem nenhum caráter (1928), do paulistano Mário de Andrade. A curadora da exposição, Bia Lessa, desmontou, literalmente, o romance homenageado, cujas páginas, em sua primeira edição, corrigida à mão pelo escritor, ignoraram o suporte tradicional do livro, a folha de papel; folhas de lona, numeradas, alçadas por cordas, que o visitante puxa para ler, balançam frases e rasuras. Na transcodificação, operada na exposição, as palavras fogem do papel, são inscritas em tijolos, na face de água, lidas por espelhos, focalizadas a partir de círculos, adivinhadas no topo de escadas, enfim, arma-se todo um circo, um canteiro de obras, que traduzem a magnificência sígnica do Grande sertão: veredas. Uma vertiginosa intersemiose circula na vasta sala da megalópole, subitamente transformada em sertão das Gerais. As palavras de toda raça, montadas pelo escritor-médico-diplomata, tornado, precariamente jagunço para poder escrever sobre a saga dos jagunços, viraram estátuas, instalações, desenhos, pinturas, reflexos, degraus, danças, configurando e constituindo todo um esplendoroso e reverberante universo de signos.

Estava eu no meio de minha propedêutica semiológica, oferecida a uma desconhecida, quando, na “Praça da Língua” começou um espetáculo em torno da palavra poética. Fecharam-se as portas do pequeno anfiteatro, em luminosa penumbra. Ouvíamos palavras, víamos imagens, líamos textos, numa apoteose de signos. O barroco poema “Verdade/Vergonha”, por exemplo, do baiano Gregório de Matos foi transcodificado para a linguagem do rap. Poemas em cenas vinham da verve absoluta de Fernando Pessoa, sob os heterônimos Alberto Caeiro e Ricardo Reis, e da libertina pena do pernambucano Manuel Bandeira, em “Onda”. A célebre “Canção do exílio”, do romântico maranhense Gonçalves Dias, recebeu semioses várias, como as do poeta mineiro Murilo Mendes e do eruditíssimo poeta paulistano José Paulo Paes. Na rubrica “Amor”, surgiu como signo máximo o soneto “Amor é fogo que arde sem se ver”, de Luís de Camões, traduzido parafrasticamente por Mário de Andrade, em “Lira paulistana”, pela paródia “Quadrilha”, de Carlos Drummond de Andrade, que suscitou sonora gargalhada da platéia, até aquele momento religiosamente silenciosa. Também fragmentos do romance roseano foram projetados como a poesia saída da prosa das veredas do sertão. Naquele espetáculo com poemas e formas, o expectador dá-se, cada vez mais, conta de que a linguagem verbal é, sem dúvida, a forma mais importante e mais articulada da expressão simbólica, ocupando, então, de iure et de facto, um lugar de relevo ímpar na semiologia.

Terminado o espetáculo na “Praça da Língua”, do Museu da Língua Portuguesa, não mais revi minha fortuita aluna de semiologia, que certamente terá ido para o segundo andar do Museu deliciar-se com telões que exibem sons, imagens, palavras em torno da plussignificativa e multiétnica cultura brasileira. Quanto a mim – “semiólogo de plantão”, como fui cognominado, certa vez, por alguém que carregava no sentido pejorativo do sintagma -, continuei minhas veredas, entusiasmado com o desafio e o gozo dos signos, o prazer da semiologia, enfim.

Intersemioticidade; Semiose; Semiótica; Signo

BIB: Ferdinand de Saussure, Cours de linguistique générale, p. 33 (1955). Gaston Bachelard, La flamme d’une chandelle (1961). Latuf Isaias Mucci, Palavra fatal, ao pórtico da semiologia ( 2002). Roland Barthes, Eléments de sémiologie (1965). Charles Morris, Signs, language and behavior, p. 217 ss (1946).

Latuf Isaias Mucci

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