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ROMANCE POLICIAL

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Subgénero do romance muito popular na literatura dos últimos dois séculos. Embora apresente várias ramificações e seja designado de diferentes maneiras (maneiras que podem ou não implicar diferenças entre formas distintas de policial), certas características mantêm-se reconhecíveis desde a origem deste subgénero. As características próprias duma narrativa policial formam um paradigma reconhecido por partes substanciais da população, pois bebe as imagens, ambiências, estruturas próprias e ideologia subjacente a várias fontes: filmes, séries de televisão, B.D., etc. As designações deste género variam entre línguas (se em português se aplica o adjectivo policial, em inglês prefere-se o termo detective story para designar basicamente o mesmo tipo de estruturas) e dentro de cada língua (em inglês existem várias designações ligadas ao detective story: crime story, thriller, hard-boiled novel, etc.). Apesar de as estruturas do romance policial poderem ser encontradas em contos e novelas — aliás, o arranque deste género é normalmente localizado no conto “The Murders in the Rue Morgue”, de Edgar Allan Poe (1841) —, é sob a designação de romance policial que o paradigma a que aqui nos referimos é mais comummente descrito em português.

Dentro do género policial, há várias distinções a fazer. Em primeiro lugar, o romance policial pode ser de detective ou de polícia. O primeiro é característico das literaturas anglo-saxónicas e o segundo das literaturas do continente europeu (embora ambas as formas possam ocorrer em todas as literaturas). No primeiro, o herói é um detective particular (por isso este tipo de estruturas denominam-se detective story em inglês); no segundo, o herói está ligado às estruturas policiais do estado. Como exemplos de detectives, temos Sherlock Holmes, de Conan Doyle, e Philip Marlowe, de Chandler. Como um exemplo bastante de polícia ficcional, temos Maigret, de Simenon. Por outro lado, o romance policial pode ser analítico (descrito pelo termo inglês whodunit) ou de aventura, sendo esta última forma encarnada de forma específica pelo thriller norte-americano, que, a despeito da objecção de muitos críticos (se o policial analítico já é muitas vezes considerado um género menor, o thriller é encarado como uma degenerescência popular do primeiro, com a sua ênfase na excitação e na acção gratuita), partilha a mesma estrutura básica do romance policial analítico, embora com várias diferenças: no romance policial analítico, o crime acontece quase sempre antes de se iniciar a investigação, sendo o enredo um desenrolar lógico dum puzzle para a resolução do qual apenas o herói está à altura; o thriller envolve normalmente uma conspiração continuada que o herói tem de derrubar, através dum enredo com muita acção física (a estrutura do thriller é, aliás, a estrutura subjacente à maioria dos filmes de acção). Porque mais geral e abrangente, iremos concentrarmo-nos nas características do romance policial analítico.

Há, apesar de toda a ambiguidade da designação romance policial, um conjunto de características próprias deste género que, de uma forma ou de outra, estão presentes nas mentes de todos os leitores, mesmo os que não apreciam este tipo de literatura (até porque, como dissemos, a estrutura básica destas obras é usada frequentemente no cinema e na televisão). Quais são os elementos próprios deste subgénero do romance? Para começar, há sempre uma interrupção do fluir normal do mundo. Esta interrupção apresenta-se como misteriosa, com resolução adiada, fonte de suspense e desejo de resolução. Assume quase sempre a forma de homicídio, produzindo uma vítima. O mundo apresentado pelo policial funciona dentro duma normalidade — uma ordem — valorada positivamente, sendo a interrupção dessa normalidade resolvida através da acção do herói, um indivíduo profissional e eficaz (que mostra a sua superioridade através dessa acção). Esta normalidade (e bondade essencial) do mundo onde irrompe o crime ou conspiração está presente mesmo nos romances policiais mais negros e cínicos: neste aspecto vislumbra-se a ideologia que subjaz ao romance policial — a ordem estabelecida é defendida, quem atenta contra ela é castigado, o final é sempre um happy end: a verdade foi encontrada, a ordem foi restabelecida (e confirmada), a vida continua na sua normalidade reconfortante, o perigo encontra-se afastado (morto, preso, descoberto, desmontado) e fica feito o aviso contra todos os que pensem atentar contra ela. Há ainda um outro ponto partilhado por muitos romances policiais: havendo um crime, todos são suspeitos até se encontrar o culpado (em Curtain, 1975, o último romance de Agatha Christie com Poirot como protagonista, o próprio detective é o culpado). Há, portanto, uma culpa que infecta toda a sociedade fechada em que o crime é cometido, culpa esta que só é extirpada com a descoberta do verdadeiro culpado. Este último aspecto é especialmente saliente em histórias policiais que se passam em ambientes muito fechados (lembremo-nos, mais uma vez, de Poirot fechado no Expresso do Oriente ou num barco que desce o Nilo). Outro dos elementos essenciais do romance policial é o herói, normalmente um agente da autoridade (embora haja quase sempre um certo afastamento deste agente em relação à estrutura burocrática que o apoia) ou um detective privado. Este herói apresenta características particulares, entre elas o extremo profissionalismo, uma certa frieza em relação ao caso que está a resolver e alguma solidão, que lhe dá uma espécie de superioridade cínica em relação ao que o rodeia (sem que chegue a pôr em causa a ordem estabelecida, a favor da qual trabalha). Além disso, este herói pode ser caracterizado por uma certa masculinidade agressiva e activa (que abrange muitas vezes a sexualidade), por uma competitividade individualista, no âmbito da qual a resolução do problema é uma prova de superioridade sobre os outros indivíduos. Este género apoia-se também no jogo dedutivo que este herói realiza, acumulando pistas e testemunhos aos olhos do leitor, para no fim chegar a conclusões que estavam implícitas em tudo o que se apresentou, mas que só ele conseguiu ver (o que nalguns casos representa um jogo com o próprio leitor: alguns romances policiais contêm pistas que podem levar o leitor, se for perspicaz, a descobrir o culpado). No thriller, este percurso dedutivo é posto um pouco de lado e a acção física passa para primeiro plano, com peripécias inesperadas que põem a perícia intelectual e física do herói à prova. Porém, o romance ou conto policial tenta sempre responder às seguintes questões: Quem é o culpado? Qual a razão do crime? Que processos se utilizaram para resolver esse mesmo crime? Estas perguntas são sempre convenientemente respondidas, a verdade não fica escondida nem adiada, surge fulgurante no clímax da história, sendo o seu desvendar o verdadeiro objecto de desejo tanto do herói como do leitor, leitor este que vê a história através dos olhos desse mesmo herói (mesmo quando o narrador não é o herói ou é heterodiegético, a focalização faz-se sempre através do herói). O herói constitui a voz única estruturante da visão que é transmitida pelo romance, sendo uma voz concomitante da voz ideológica que perpassa a sociedade retratada. Ou seja, mesmo que o herói se coloque à margem da sociedade, assume os valores desta e defende-os. Essa sua voz absorve todas as outras vozes que ouve até chegar à conclusão final — estas vozes não são visões alternativas do mundo como noutros tipos de romance (> ROMANCE POLIFÓNICO), mas apenas passos a percorrer até que a verdade seja encontrada e a ordem reparada.

Assim sendo, a estrutura básica do policial (em sentido lato), pode ser resumida pelos seguintes pontos: uma interrupção no fluir normal do mundo (cuja ordem é vista como positiva e merecedora de ser restabelecida e defendida); um herói forte e profissional que se dispõe a resolver essa desordem temporária em nome da sociedade ameaçada (mesmo que esteja, de certa forma, à margem dessa sociedade); um percurso dedutivo e activo para atingir a verdade e restabelecer a ordem (percurso que implica acumular pistas, ouvir testemunhos e neutralizar culpados). Por trás destes aspectos estruturais básicos está uma oposição clara entre o bem e o mal, o que pode explicar o sucesso deste subgénero do romance, onde a ambiguidade e a área de cinzentos pode ser maior ou menor mas no fim acaba sempre por descambar num mundo a preto e branco, com o bem vitorioso e certo de possuir a verdade e garantir a ordem. (Assinale-se que esta crença na necessidade de defender o sistema é o ponto cuja inversão é utilizada para a desconstrução do romance policial operada pelos romances também eles ditos policiais — mas que serão, mais propriamente, anti-policiais — que abundam nas últimas décadas e que colocam no centro da acção um herói que representa uma parte da população não defendida pelo sistema, segundo a imagem ideológica do mundo expressa nesses romances: um negro, uma mulher, um hispânico, etc.).

O paradigma do policial, como o acabámos de descrever, surge com o detective Dupin, de Edgar Allan Poe (criado para o já referido conto “The Murders in the Rue Morgue”). O surgimento deste tipo de narração no século XIX tem sido associado à explosão urbana, ao aumento do crime, à ascensão da ideologia burguesa e ao aumento do público leitor ocorridos nesse século. O detective que encarna o herói original do romance policial é Sherlock Holmes, de Conan Doyle (surgido em A Study in Scarlet, 1886). O romance policial começa, portanto, por ser inglês, intelectual (analítico) e urbano. Este início deu origem ao tipo de romance policial analítico: além de Poe and Doyle, temos E.C. Bentley (Trent’s Last Case, 1913 — que constitui uma paródia do seu próprio género), Agatha Christie (com o seu Poirot), Dorothy L. Sayers, para referir apenas alguns casos isolados. Este tipo de romance analítico continuou a ser desenvolvido na Europa e nos Estados Unidos, apesar de nestes últimos ter surgido um subgénero nativo — o romance hard-boiled, menos intelectual, mais físico, mais conspirativo, com menos consciência de classe e, de novo, mais urbano (fugindo a um paradigma que tinha evoluído para os romances de Agatha Christie, de classe alta, intelectual, menos urbano). Exemplos deste romance mais negro, mas não menos defensor do sistema (apenas mais individualista e menos intelectual, talvez mais americano), são Dashiell Hammet e Raymond Chandler, que com o seu Philip Marlowe estabelece o paradigma de todo o género, na sua versão americana. No pós-II Guerra Mundial, desenvolve-se na Europa o romance policial em que o herói é um polícia (o que acabará por condicionar o nome do género em português). O exemplo acabado desse paradigma propriamente policial é o protagonista dos romances de Simenon, Maigret (surgido no romance Pietr-le-Letton, 1931).

Nas últimas décadas, as estruturas do romance policial têm sido utilizadas por muitos autores, num desenvolvimento constante que é fruto da valorização pós-modernista de géneros considerados menores ou populares, mas também da utilização por parte de toda a literatura das estruturas específicas deste subgénero do romance. Sem sair deste subgénero, as últimas décadas assistiram à publicação de romances policiais (ou anti-policiais) de cariz político (em que a inversão do paradigma policial tem objectivos ideológicos anti-sistema, como no caso do americano Walter Mosley, que coloca negros no centro dos seus policiais), de cariz paródico (basta lembrar O Xangô de Baker Street, 1996, de Jô Soares — afinal, este é um género que nasceu com um paródia de si mesmo: o culpado do conto de Poe era um animal), sem deixar de ter em conta os policiais e thrillers puros e duros, que não questionam o género, mas o utilizam com fins comerciais — afinal, a popularidade do policial propriamente dito pode explicar por que é utilizado tão frequentemente para fins políticos e paródicos: os autores podem assim fazer chegar as suas ideias a um público mais vasto. As estruturas do policial, a sua forma particular de perseguir a verdade, têm invadido todos os géneros do romance, muitas vezes como forma de mostrar a impossibilidade de atingir essa mesma verdade. Os exemplos são inúmeros: em Portugal, José Cardoso Pires utiliza as estruturas policiais (com origem na literatura, cinema, etc.) para criar a Balada da Praia dos Cães (1982); Umberto Eco criou um romance com evidentes ecos policiais em O Nome da Rosa (1980); Arturo Pérez-Reverte utilizou estas mesmas estruturas em O Clube Dumas (1993): utilizamos estes exemplos de forma algo aleatória, mas também como forma de mostrar como a utilização do paradigma policial está por trás de muitos dos sucessos da literatura das últimas décadas. O policial é uma forma fixa com origem na literatura popular que a literatura erudita aproveita de forma descarada e criativa — numa época em que a diferença entre esta e aquela se dilui, este efeito é amplificado (tendo antecedentes na utilização das formas folhetinescas no romance em geral a partir do século XIX — estruturas que também neste caso acabaram por ter influência noutras artes e meios de comunicação).

O romance policial é um subgénero com um riqueza por vezes ignorada, utilizado por autores desde Raymond Chandler (cujo Marlowe é o homem duro americano, simples, anti-intelectual e físico) até Manuel Vásquez Montalbán (cujo Pepe Carvalho é um homem envolvido nas ambiguidades culturais europeias, apaixonado pela culinária, amante da cultura erudita, pessimista como poucos e com uma amoralidade que horrorizaria Marlowe) e que tem uma importância fundamental na criação literária das últimas décadas (tanto através da sua utilização, como da sua crítica, paródia e aproveitamentos noutros tipos de romances).

ROMANCE; SUSPENSE; WHODUNNIT

Bib.: Andrew Pepper: The Contemporary American Crime Novel. Race, Ethnicity, Gender, Class (2000); Carlos Rodriguez Joulia Saint-Cyr: La Novela de Intriga (1970); Ernest Mandel: Delightful Murder. A social history of the crime story (1984); Jerome H. Dalamater & Ruth Prigozy (ed.): Theory and Practice of Classic Detective Fiction (1997); Jerry Palmer: Thrillers. Genesis and Structure of a Popular Genre (1978); Scott McCracken: Pulp. Reading Popular Fiction (1998); Stephen Knight: Form & Ideology in Crime Fiction (1980)

http://detective-stories.classic-literature.co.uk/

http://gaslight.mtroyal.ca/vandine.htm http://members.tripod.com/volobuef/biblio_policial.htm

http://www.chesterton.org/gkc/murderer/defence_d_stories.htm

http://www.mysteryguide.com


Marco António Franco Neves

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