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Didática da Literatura

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Disciplina que se ocupa do ensino do modo de ser da literatura. Introduzida nos currículos universitários portugueses apenas na década de 1980, na formação inicial de professores de Português, esta disciplina concentra-se em problemas aprioristicamente pragmáticos da literatura, que envolvem tanto a definição daquilo que se ensina como de quem ensina e, sobretudo, como é que se ensina. É esta última questão, talvez, o principal fim da didáctica.

Num texto muito conhecido e admirado ainda hoje, "Como Ensinar Literatura", incluído na primeira edição de Ao Contrário de Penélope, Jacinto do Prado Coelho separa rigorosamente a literatura da pedagogia, acrescentando então: "A literatura não se fez para ensinar: é a reflexão sobre a literatura que nos ensina." (Bertrand, Lisboa, 1976, p.46). Outra formulação idêntica na aparência já havia sido defendida por Jorge de Sena: "a literatura não pode ser ensinada. Ensinar seja o que for é apresentar um instrumental adequado e explicar a maneira de uma pessoa tirar proveito dele. Daí resulta que se ensina a escrever estudos sobre literatura, e estudos sobre os estudos de literatura, indefinidamente; ou ainda se ensina a ensinar literatura" (O Reino da Estupidez, vol. I, 3ª. ed., Edições 70, Lisboa, 1984, pp.96-97). Estas crenças exigem alguma discussão, porque se é claro que a literatura seja distinta da pedagogia não deixa de ser menos verdade que podemos falar de ensino ou didáctica da literatura sem que com isso se menospreze ou adultere o valor individual de cada uma. Se a formulação de Jorge de Sena se refere a um determinado contexto (a criação de um obra literária), a didáctica da literatura só é rasurável (a didáctica da literatura) se pensarmos no ensino do ser da literatura (muito diferente da definição que propusémos na abertura: a didáctica como o ensino do modo de ser da literatura). Por outro lado, é evidente que existe uma aprendizagem de quem trabalha com esta arte, em face do que se entende por literatura. O que convém esclarecer ab ovo é aquilo que se ensina de facto quando pretendemos ensinar literatura. A definição geral apresentada por Margarida Vieira Mendes pode servir de referência quando queremos acertar o passo da didáctica específica da literatura: "A Didáctica é, dentro das disciplinas que constituem os Estudos Literários, aquela que trata da arte de ensinar a Literatura. Tem como objectivo uma techné, um saber fazer, mas não dispensa a especulação, não se limita a um receituário de técnicas eficientes de aprendizagem, como se afirma com ligeireza num manual clássico (Introdução à Didáctica Geral, de Imídeo G. Nérici)." ("Didáctica da Literatura: um espaço devido na Faculdade de Letras", in Ensino da Literatura, org. por Maria Isabel Rocheta e Margarida Braga Neves, Cosmos, Lisboa, 1999, p.33).

O que é que se ensina na teoria e prática do ensino da literatura? A rigor, não se ensina literatura enquanto arte, mas antes os factos objectivos que instituem e disciplinam essa arte. Enquanto expressão artística, a literatura é uma abstracção conceptual, ao passo que os factos que nos permitem identificar objectivamente tal expressão e indiciá-la como fenómeno artístico é que constituem o lado ensinável da literatura. Qualquer definição de literatura é o fim da literatura e não o seu fim, no sentido de finalidade determinada em função dos dados literários indiciados. O mais facto mais belo de uma definição de literatura é a sua eterna impossibilidade de poder a vir ser uma definição. É sempre em função do que sabemos a priori sobre o fenómeno literário que construímos definições de literatura, quando a literatura em si mesma é anterior a cada nova definição encontrada. Quando julgamos ter finalmente encontrado os limites ou os contornos certos do que seja a literariedade dos textos, já estamos atrasados em relação aos textos que vão ser escritos/criados amanhã. De nada serve definir o que já está determinado em si mesmo, quando o único objectivo é levar a ver melhor aquilo que está perante os nossos olhos. A prática corrente nas escolas de introduzir o fenómeno literário a partir de definições apriorísticas de literatura é uma falácia, pois está-se, no fundo, a pedir ao iniciado no estudo da literatura que defina aquilo que ainda não viu, que saiba descrever aquilo que ainda não tocou, não que não tenha em si mesmo, em reminiscência, a possibilidade desse conhecimento, mas porque quem o ensina não sabe como fazê-lo emergir. É esta prática que, em grande parte, é responsável pela crença de que se ensina literatura, simplesmente. Ora, o que se ensina na verdade e por respeito à mesma verdade é o facto literário e não a abstracção do conjunto de todos os factos que reconhecemos como literários e que constituem, em última instância, a literatura. Posso ensinar o sentido de um texto, mas estou na prática a ensinar como é que consegui factualizar um conjunto de significantes/significados dispostos num texto. Por outro lado, só posso ensinar o sentido de um texto tal como eu, leitor livre, o concebo. A literatura-arte não está nunca dependente da intervenção de um leitor para que a sua existência original seja validada; mas todo o ensino dos dados objectivos da literatura depende exclusivamente do trabalho de um leitor sobre os textos que se dizem literários. Ensinamos literatura essencialmente porque investimos o nosso olhar naquilo que faz essa literatura e não naquilo que a define aprioristicamente.

É correcto introduzir o estudo da literatura a partir de uma definição de literatura? Os programas e manuais de Português para os Ensinos Básico (3ºciclo) e Secundário (em vigor em 1995/96) resolveram o problema erradicando, pura e simplesmente, tal prática, que contudo, subsiste em muitos programas universitários de Introdução aos Estudos Literários e Teoria da Literatura. Ambos partem de um equívoco: os primeiros porque existe uma forma legítima de investigar o conceito de literatura; os segundos, porque estão convencidos à partida do que seja tal conceito.

Todo aquele que inicia o ensino da literatura por uma definição do conceito de literatura está convencido que sabe o que está a definir. Raramente este pedagogo se predisporá à investigação, no sentido da skepsis platónica. Na verdade, ele inicia a investigação do que não se sabe pela conclusão do que já julga ser o saber. Em termos de ironia socrática, diríamos que tal indivíduo nunca virá a saber o que é verdadeiramente a literatura. Só Sócrates sabe que não sabe, por isso só ele poderá interrogar o fenómeno literário sem perturbar a sua essência; quero dizer, só pela discussão de sucessivas hipóteses, só pela procrastinação assumida da resposta à pergunta "O que é a literatura?" se pode chegar perto do que ela traduza de facto. O que ensinamos, na verdade, é a symphonia das opiniões ou das hipóteses formuladas em face do fenómeno reconhecido como literário. Mas isto não faz com que nos possamos apresentar a uma assembleia como depositários de qualquer explicação definitiva. O iniciado nos estudos literários tem que ser conduzido como o iniciado no estudos filosóficos: enunciando e aprofundando as hipóteses, multiplicando-as, confrontando-as, mas não deixando que o conceito se resolva, não deixando que a skepsis se esgote. Deste modo, aproximar-nos-emos de uma verdade aceitável e, se conseguirmos que esta verdade seja confirmada empiricamente, estaremos a ensinar literatura sem perturbar a sua existência in petto . É uma metodologia adequada o recurso à tese do desmos (ou encadeamento) de opiniões verdadeiras e ao ajustamento respectivo nos textos. O professor de literatura que apenas recorre a juízos apodícticos (ou que assume para si próprio que aquilo que enunciou é irrefutável), em vez de os fazer circular dialecticamente, integrando-os na malha das hipóteses, regra geral, consideram o seu saber e o seu ensino como infalíveis. Na prática, a sua estratégia pedagógica não é muito diferente da erística que valeu aos sofistas o descrédito secular.

O saber sobre a literatura, ou sobre qualquer outra arte, só se alcança pelo diálogo de hipóteses. Se "filosofia" quer dizer "amor (mas não posse) de saber", então "crítica literária" há-de querer igualmente dizer a arte de discutir um texto (mas não posse do saber sobre esse texto, do qual se exclui inclusive o seu próprio autor). O professor que segue o caminho dos juízos apodícticos, ou sobre conceitos ou sobre textos, e faz desses juízos o cerne do seu ensino há-de repetir para si o que Sócrates diz do escravo com quem dialoga no Ménon: "Vês, Ménon, como eu nada lhe ensino...", com a diferença de que o escravo aprende de facto alguma coisa, por exemplo, as propriedades do quadrado, e o iniciado nos estudos literários não aprende mesmo nada, porque o quadrado lhe é desenhado à frente dos olhos por mão alheia.

Por outro lado, a didáctica da literatura que é comandada pela pergunta "O que é?" e que exige que cada resposta seja objecto de uma refutação (elenchos) é perfeitamente aceitável. Mais, a teoria platónica da reminiscência serve na perfeição a qualquer tentativa de estabelecimento de um decreto sobre a essência do fenómeno literário: se as perguntas de Sócrates não ensinam de facto rigorosamente nada mas apenas trazem à consciência do indivíduo um conhecimento adormecido, portanto que ele já detinha, também o ensino dialéctico do fenómeno literário nada transmite, uma vez que, inconscientemente, já sabemos aquilo que edifica esse fenómeno. O iniciado nos estudos literários encontra-se, decididamente, no mesmo estádio de aprendizagem daquele em que se encontra o escravo de Ménon, que nada sabendo aprioristicamente de geometria, à custa de um diálogo orientado por um filósofo despretencioso, acaba por conseguir dar respostas correctas, sábias, às perguntas "sem nexo" do mestre. Não se actua como o sofista que apenas discute pelo (f)acto de discutir sem o prazer de chegar perto da verdade. O professor de discurso assertório é aquele que toma a literatura como facto consumado e diz pseudo-socraticamente: "Não vou investigar nem aquilo que sei nem aquilo que não sei, porque é inútil investigar sobre aquilo que já sei (definir "literatura") e é impossível fazê-lo se não souber que coisa ("literatura") investigar." O pseudo-socratismo deste professor reside não no enunciado do paradoxo de Ménon mas naquilo que ele não consegue ver para além dele. Retomando as palavras de Sócrates, "é preciso não nos deixarmos persuadir por esse raciocínio erístico. Ele tornar-nos-ia preguiçosos e só seria agradável de ouvir a homens sem espinha dorsal. Este (o meu raciocínio) torna as pessoas trabalhadoras e agarradas ao estudo." (Ménon, 81d). O raciocínio de Sócrates é o dos juízos problemáticos, aqueles cuja afirmação ou refutação é considerada como possível.

Como ensinar os factos que indiciam a literatura? A definição do estatuto existencial uma ciência não pode nunca partir do pressuposto de anular à partida qualquer relação com outras ciências. A literatura pode ganhar a sua individualidade independentemente das formas de relação que adoptar com outras ciências ou práticas de conhecimento. A literatura é fundamentalmente uma prática epistemológica da estética, isto é, um exercício de re-criação do mundo através da linguagem que nos esforçamos por realizar em determinadas condições e produzir determinados efeitos e cujo resultado final terá de ser sempre a produção de um novo significado, que escreveremos Significado, para dizer que se trata de um universo de sentidos. Sendo a literatura marcada pela presença necessária da linguagem, sendo na poética clássica desde Aristóteles, uma forma de representação pela linguagem, oposta, por exemplo à representação pela imagem que identifica a pintura, tal facto não esgota todas as possibilidades: se é representação pela linguagem também deve ser entendido como trabalho de representação (do autor) e representação de uma representação (o texto que representa uma linguagem particular). Um investigador formalista ocupar-se-á apenas com os registos finais da representação, isto é, com o texto em si sem olhar para dentro; um investigador socrático pré-ocupar-se-á com o trabalho textual executado por um autor (não confundir com a pesquisa falaciosa da intenção autoral), com os efeitos que o texto executado produz no entendimento, com as condições que fizeram com que o texto seja representativo de uma determinada linguagem e inclusive averiguará se o texto não representa coisa nenhuma. A poesia é uma representação pela linguagem. - Esta definição clássica não significa apenas que a literatura seja, à maneira como a estética romântica veio a defini-la, uma arte da linguagem, mas também quer dizer que se trata de uma arte da representação. O investigador formalista ocupa-se apenas do primeira "arte"; o investigador socrático recreia-se entre ambas, tentando compreender porque é que a literatura é representação e porque é que é linguagem, que são dois caminhos complexos e distintos, até chegar à síntese do enunciado aristotélico.

A partir daqui, toda a reflexão sobre os produtos a que se convencionou chamar textos literários origina uma outra ciência, a crítica literária, que é, por definição sumária, o estudo crítico dos princípios, hipóteses e resultados da prática epistemológica da estética a que chamamos literatura, visando determinar os fundamentos lógicos, o valor e o alcance objectivo dos textos ditos literários. Ora, dizer que a "literatura não se fez para ensinar", retomando as palavras de Jacinto do Prado Coelho, pode sugerir, em primeiro lugar, que a literatura está em conflito com a pedagogia; em segundo, que a génese do fenómeno literário tem uma determinada relação com a pedagogia e que essa relação se funda numa negatividade ou exclusão recíproca; e em terceiro, que a literatura, não podendo ser ensinada, isto é, existindo virada somente para si mesmo, nunca poderá ser objecto de estudo. Qualquer das leituras é incorrecta: a literatura não está em conflito com a pedagogia ou nenhuma outra ciência, a não ser que esse conflito sirva para fazer literatura; a génese do fenómeno literário não se faz naturalmente com o objectivo de se relacionar com a pedagogia, da mesma forma que a pedagogia se constitui em ciência independentemente do facto de vir a utilizar a literatura como objecto de realização; a literatura não se fez para ser ensinada, mas de certeza que se pode ensinar sem com isso excluirmos a sua originalidade nem nos servirmos deste facto de relação para a separarmos da pedagogia. "É a reflexão sobre a literatura que nos ensina", diz Jacinto do Prado Coelho. Esta proposição é mais clara, mas não deve insinuar que tal reflexão exige a negação da pedagogia, pela simples razão que a pedagogia, uma vez aplicada à literatura, é isso mesmo: reflexão sobre literatura.

Em "Psychoanalysis and Education: Teaching Terminable and Interminable", Shoshana Felman recuperou a lição pedagógica de Jacques Lacan, a partir do Séminaire II, onde se parte da seguinte ideia, traduzida aqui livremente: Não se pode ensinar Freud, mas unicamente a(s) condição(ões) que nos permite(m) estudar Freud. Lacan também nos adverte de que aquilo a que chama conhecimento textual é o objecto de estudo do professor de literatura e que tal ciência é afinal de contas conhecimento do funcionamento da linguagem. O ensino da literatura pode fazer-se por esta via analítica. A literatura é tão indefinível como o conhecimento, pelo que qualquer forma de ensino da literatura tem que passar por uma condição de indeterminação. Ensinar passa a ser equivalente à criação de condições de acesso ao conhecimento mais do que à falsa convicção de que é possível deter conhecimento e transmiti-lo, porque quem segue esta via está normalmente convencido de que não tem nada para aprender e que sabe o suficiente para cumprir profissionalmente a sua missão. Da mesma forma que não se pode ensinar Freud também não se pode ensinar o conhecimento nem, por conseguinte, a literatura. Mas da mesma forma que se podem ensinar as condições que permitem estudar Freud, também se podem ensinar as condições que permitem estudar a literatura. Se em filosofia, normalmente se aceita que o conhecimento é a representação de alguma coisa, o ensino da literatura terá de ser sempre a representação de alguma coisa ao espírito. Em que consiste essa coisa representada? Quer a didáctica da literatura quer a própria literatura constituem exercícios naturais das funções vitais da vida cognitiva, fazendo uso de todas elas: a percepção externa do mundo sensível e dos seus fenómenos corresponde à criação textual do autor; a consciência corresponde ao conhecimento do eu textual (todos aqueles que podem representar esta identidade: autor, narrador, personagens) e dos seus actos; a razão corresponde ao trabalho de leitura textual, facilmente identificado no trabalho crítico do estudo das relações necessárias entre os sentidos de um texto, das identidades, causalidades, finalidades, leis e princípios de significação. A percepção externa e a consciência são funções experimentais que competem aos criadores artísticos; procedem por observação do mundo, exercendo sobre ele a imaginação e a memória criativa e dão-nos dados para o conhecimento em forma de conhecimento.



CRÍTICA LITERÁRIA; LITERATURA; TEORIA DA LITERATURA



Bib.: AAVV: Actas do Congresso sobre a Investigação e Ensino do Português (ICALP, Lisboa, 1989); AAVV: Formar Professores de Português, Hoje (1996); AAVV: Didáctica da Língua e da Literatura - Actas do V Congresso Internacional de Didáctica da Língua e da Literatura, vol.1, Coimbra, 6-8 de Outubro de 1998 (2000); Carlos Ceia: A Literatura Ensina-se? — Estudos de Teoria Literária (1999); Carlos Reis e J. V. Adragão: Didáctica do Português (1990); Cristina Mello: O Ensino da Literatura e a Problemática dos Géneros Literários (1998); Danièle Sallenave: À quoi sert la littérature? (1997); E. D. Hirsch: Cultural Literacy: What Every American Needs to Know (1987); Eduardo Prado Coelho: A Letra Litoral. Ensaios sobre a Literatura e seu Ensino (1979); Gerald Graff: Professing Literature - An Institutional History (1987); Harold Bloom: O Cânone Ocidental (Lisboa, 1997); J. Miller: Eccentric Propositions: Essays on Literature and the Curriculum (1984); Jorge de Sena: O Reino da Estupidez, vol. I (1984); L. Bredella: Introdução à Didáctica da Literatura (1989); Jacinto do Prado Coelho: Ao Contrário de Penélope (1976); James Engell e David Perkins (eds.): Teaching Literature - What Is Needed Now (1988); Jonathan Culler: “Literary Theory in the Graduate Program”, in The Pursuit of Signs (1981); Maria Isabel Rocheta e Margarida Braga Neves (orgs.): Ensino da Literatura: Reflexões e Propostas a Contracorrente (1999); New Literary History, vol.XIV, nº2: «Literary Theory in the University - A Survey» (1983); S. Doubrovsky e T. Todorov (eds.): L' Enseignement de la littérature (1971); Stanley Fish: "Professional Anti-professionalism", Times Literary Supplement (10-12-1982); Vítor Aguiar e Silva: “Teses sobre o ensino do texto literário na aula de Português”, “As relações entre a teoria da literatura e a didáctica da literatura: Filtros, máscaras e torniquetes”, Diacrítica, 13-14 (1998-99).



Carlos Ceia

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