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Ambiguidade

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Termo que traduz a ocorrência de mais do que um sentido em palavras, frases, proposições ou textos. Relaciona-se com as noções de ambivalência, anfibolia, anfibologia, asteísmo, double entendre e equívoco. Distingue-se das noções de indeterminação e de indefinição (em inglês, vagueness; em espanhol, vaguedad). Por exemplo, o "olhar" é um termo vago (quantos significados pode traduzir um olhar?), mas não é ambíguo, pois cada um dos sentidos da ambiguidade pode ser bastante preciso. Max Black, em "Vagueness: An Exercise in Logical Analysis", defende esta distinção entre indefinição (vagueness) e ambiguidade, pois a primeira refere-se a enunciados cuja aplicação não está definida e a segunda tem sempre um quadro referência determinável. C. G. Hempel, comentando a tese de Black em "Vagueness and Logic", concluirá que nenhum termo da linguagem natural está totalmente isento de indefinição. Note-se que um termo vago não implica que seja desprovido de significação, circunstância que pode explicar outros pontos de vista que tendem a ver a indefinição como um caso particular de ambiguidade (tese sustentada, por exemplo, por I. M. Copilowish, em "Border-Line Cases: Vagueness and Ambiguity"). Veja-se, por exemplo, o título do famoso ensaio de Jacques Derrida “Le facteur de la vérité” (Poétique, 21, 1975), que é um comentário do ensaio de Lacan “Le séminaire sur ‘La lettre volée’ ” (Écrits I, 1966), a propósito do conto “The Purloined Letter”. O título de Derrida joga com a ambiguidade do termo “facteur”, que em francês tem o duplo sentido de “carteiro” e “termo de uma operação matemática ou produto”, ambos servindo o objectivo do ensaio: questionar o postulado lacaniano de que uma carta chega sempre ao seu destino e, consequentemente, analisar o problema da destinação da verdade em psicanálise.

A ambiguidade na linguagem está associada aos fenómenos da conotação e da polissemia, embora no quadro lógico-linguístico moderno esta correspondência não seja aceite. O termo "vaga" é ambíguo porque pode referir-se (1) a uma elevação da superfície do mar ou (2) a um lugar disponível num hotel, escola, empresa, etc.. Quando um termo polissémico possui diferentes etimologias nas suas aplicações possíveis, os filólogos costumam tratá-lo como constituindo na realidade duas palavras diferentes; os filósofos tendem a compreender esse termo como um só; e os escritores exploram livremente todas as possibilidades de aplicação. Quando tomamos o sentido (2) de "vaga" pelo sentido (1), por exemplo, falamos de um equívoco. A ambiguidade lexical ocorre em certo tipo de palavras que encerram múltiplos significados como a palavra-ômnibus, por exemplo, "legal", e a palavra-portmanteau. Um exemplo corrente desta última é o neologismo introduzido por Jacques Derrida: différance - que significa ao mesmo tempo "diferição", "retardamento", "adiamento" (do fr. différer, "diferir") e "diferença", referindo-se ao acto de dissemelhança, ao diferente (não exactamente ao diferido). O termo cunhado por Derrida é propositadamente pronunciável da mesma forma nas expressões différance e différence, porque a escritura não copia exactamente a fala, pretende ser uma síntese deste duplo movimento de ser diferente/dissemelhante e diferente/retardado. A ambiguidade desta palavra-portmanteau resulta deste duplo sentido.

O mesmo é válido para a sintaxe e não apenas para termos isolados. Sejam as frases: (3) A Joana vê televisão. e (4) O Manuel fixou o olhar na Joana. Em (3) temos apenas um sentido, sem que certas informações sejam reveladas (por exemplo, a que horas, onde, que programas, etc.) - trata-se de uma frase indeterminada; em (4) temos várias possibilidades de significado para o olhar do Manuel, que pode conotar desejo, ódio, aprovação, reprovação, admiração, suspeita, etc. - trata-se de uma frase ambígua. De alguma forma, podemos dizer que qualquer frase que traduza uma realidade é indeterminada, pelo princípio de que não é possível uma frase conter todas as informações ou variantes de sentido que essa realidade suporta.

Em português, existem exemplos típicos de ambiguidade sintáctica que podem ser explorados didacticamente. Um problema conhecido é o do seguinte enunciado: (1) Deixo os meus bens a minha irmã não a meu sobrinho jamais será paga a conta do alfaiate nada aos pobres. Verifica-se que o apagamento da pontuação tornou a frase ambígua, não ficando explícito a quem é que o sujeito deixou os seus bens. Diferentes soluções de pontuação podem levar a diferentes atribuições desses bens: (1a) Deixo os meus bens a minha irmã. Não a meu sobrinho. Jamais será paga a conta do alfaiate. Nada aos pobres. (1b) Deixo os meus bens a minha irmã? Não. A meu sobrinho. Jamais será paga a conta do alfaiate. Nada aos pobres. (1c) Deixo os meus bens a minha irmã? Não. A meu sobrinho? Jamais. Será paga a conta do alfaiate. Nada aos pobres. (1d) Deixo os bens a minha irmã? Não. A meu sobrinho? Jamais. Será paga a conta do alfaiate? Nada. Aos pobres. Em termos linguísticos, podemos dizer que a estrutura de superfície (1) oculta várias estruturas profundas (1a; 1b; 1c; 1d), que constituem os sentidos exactos da frase ambígua (1). Esta tetra-significação da frase (1) mostra também que a ambiguidade não é uma circunstância fortuita da linguagem; que é possível exercer um certo poder sobre a ambiguidade (decidir por um dos destinatários); que não devemos desleixar o vazio aparente de sentido de uma frase ambígua nem nos determos apenas num sentido possível; que devemos excluir as hipóteses de sentido das soluções que não estejam em correlação (por exemplo, em (1), seria de excluir uma hipótese como (1e) Deixo os meus bens? Não a minha irmã e a meu sobrinho. Jamais será paga a conta do alfaitate. Nada aos pobres., porque nenhuma relação se estabeleceu entre os bens e os possíveis destinatários, acrescentando-se uma nova ambiguidade: será que eu quero deixar os meus bens a alguém? ).

Anfibolia, anfibologia e ambiguidade são termos que têm sido confundidos, pelo menos, desde Quintiliano, que em Institutio oratoria, assevera: "amphibologia id est ambiguitas" (VII, 9). A anfibolia (do gr. amphibolia, "ambíguo") é um termo da lógica que se refere a qualquer locução ou proposição de duplo sentido, sendo, neste caso, sinónima de anfibologia. Um exemplo de anfibolia na literatura portuguesa pode encontrar-se na fala da personagem alegórica Alma, do Auto da Alma de Gil Vicente, que diz: "Venho por minha ventura / amortecida." A palavra "ventura" tem, nas épocas arcaica e clássica, o sentido duplo de "má sorte" e "boa sorte". Neste caso, a anfibolia depende do contexto (não da estrutura sintáctica) para poder ser descodificada num só dos sentidos possíveis, que é, neste caso, "má sorte". Por sua vez, a anfibologia (do gr. amphíbolos, "ambíguo") é uma forma de ambiguidade do sentido numa construção sintáctica. Como termo lógico, a anfibolia traduz também o uso transcendente dos conceitos, segundo o sentido consagrado no sistema kantiano, falando-se então em anfibolia transcendental, conceito distinto, neste outro caso, do de anfibologia. Esta distinção entre anfibolia e anfibologia não é aceite por todos os dicionários, sendo a tendência geral o repúdio da forma anfibologia. André Lalande, no seu Vocabulaire technique et critique de la philosophie (15ª ed., 1985), propõe "utilizar de preferência ambiguidade para as palavras ou os termos, anfibolia para as frases ou as proposições, e equívoco no sentido geral." A validade desta proposta está fundamentada na distinção que o próprio Aristóteles faz nas Refutações Sofísticas entre anfibolia e homonímia. Por regra, considerava que a anfibolia é uma forma de expressão incorrecta, se não tiver um fim determinado, como acontece nas sentenças oraculares. Pesando a relação entre anfibolia e homonímia, Aristóteles assume primeiro que ambas são formas de refutação e fornece exemplos como: 1) de homonímia: "São aqueles que sabem que aprendem, porque os gramáticos aprendem as coisas que os seus discípulos lhes são ditam. Porque aprender é um termo ambíguo, pois é ao mesmo tempo compreender por meio do conhecimento e também adquirir conhecimento." (165b 1); 2) de ambiguidade: "Falar do silêncio é possível, porque 'falar do silêncio' tem um duplo sentido: pode significar que o locutor está em silêncio ou que as coisas de que fala estão silenciosas." (166a 1). A homonímia será, portanto, a ambiguidade de palavras e a anfibolia, a ambiguidade de construções. As anedotas recorrem com frequência à combinação de ambos os processos para obterem o efeito de cómico pretendido, por exemplo: “Que juros cobra?”, “Vinte por cento… “, “É carinho!”, “Pois é, eu para os amigos sempre fui muito carinhoso.”.

Um dos jogos de palavras que mais se presta à construção de enunciados ou termos ambíguos é o chamado pun, que James Joyce usou com abundância em Finnegans Wake (1939). A ambiguidade do pun resulta em particular de situações de homonímia, podendo ser relacionado com o tropo da paronomásia. Duas formas correntes de pun são o asteísmo e o equívoco. O asteísmo é uma figura de retórica que recorre à ambiguidade para distorcer, conforme a conveniência da situação discursiva, o verdadeiro sentido da mensagem. Está, pois, relacionado com todas as formas de double entendre, que geralmente comportam uma insinuação moderadamente irónica. O equívoco é uma forma especial de jogo de palavras.

O discípulo de I. A. Richards, William Empson, explicou a dificuldade da determinação do sentido com uma teoria da ambiguidade, que relançou a questão na teoria literária, sobretudo no interior do New Criticism. Empson publica Seven Types of Ambiguity (1930) aos 24 anos, e adopta um estilo de análise textual que recorre às leituras cerradas (close readings). O principal resultado da investigação de Empson foi o de considerar que a ambiguidade era afinal a primeira virtude da poesia, ao contrário do que até aí se supunha. A ambiguidade é então a origem da eficácia poética. Os sete tipos apresentados são: 1) A função multidireccional de um termo ou estrutura gramatical; 2) A fusão de dois ou mais sentidos num só; 3) A paronomásia, que determina que dois sentidos aparentemente desconexos ocorram simultaneamente; 4) A não concordância de dois ou mais sentidos que se combinam para tornar claro o estado de espírito do autor; 5) A descoberta que o autor faz das suas ideias no acto da escrita, ou quando não tem consciência imediata dessas ideias; 6) A produção de enunciados contraditórios ou irrelevantes que obrigam o leitor a inventar enunciados próprios susceptíveis de serem conflituosos entre si; 7) A contradição completa de um enunciado, os dois valores da ambiguidade, que marcam uma divisão na própria mente do autor. Enquanto o New Criticism separava o texto do contexto social, Empson insistiu em tratar a poesia como uma espécie de linguagem "comum", capaz de ser racionalmente parafraseada - tese já defendida por Wordsworth no prefácio à 2ª ed das Lyricall Ballads. Empson é um intencionalista puro e confesso, que apenas se interessa pelo sentido ditado pelo autor. Longe de existir como um objecto hermeticamente fechado entre si, a obra literária, para Empson, é aberta: a compreensão da obra envolve mais a compreensão dos contextos gerais, nos quais as palavras são usadas socialmente, do que a identificação dos padrões de coerência verbal interna. Esses contextos provavelmente serão sempre indeterminados, pois, assim acredita Empson, a linguagem conota pelo menos tanto quanto denota. No sentido em que a ambiguidade se pode associar a toda a construção plurissignificativa da linguagem, Empson pode dizer que a poesia é, por excelência, o lugar das "maquinações da ambiguidade". A teoria de Empson depressa despertou discussões animadas, sobretudo por causa do excessivo esquematismo da proposta. John Crowe Ransom, em "Mr. Empson's Muddles" (The Southern Review, 4, 1938), conta-se entre os comentadores mais críticos.

Se oposta a clareza, lucidez e inteligibilidade - atributos dos enunciados de natureza científica -, a ambiguidade pode ser vista como um erro de expressão e assim foi, pelo menos até ao modernismo. Contudo, quando intencional, como no caso mais evidente dos enunciados poéticos, pode funcionar como uma qualidade do discurso. A prática crítica de I. A. Richards chamou a atenção para este facto e Empson teorizou sobre as condições de ocorrência da ambiguidade sobretudo na poesia, na certeza de não poder nunca funcionar como recurso retórico (não é, a rigor, um artifício poético, como quer, por exemplo M. H. Abrams, que no seu A Glossary of Literary Terms (6ªed., Harcourt Brace College Pub., Fort Worth, 1993), apresenta a ambiguidade como um "poetic device"), como algo por que se possa optar arbitrariamente, porque se trata de uma função natural da linguagem apenas realçada pelas plurissignificações que relevam da poesia.

Para além da poesia, outras formas de expressão utilizam a ambiguidade nas suas várias realizações discursivas: o pun, o enigma, a adivinha e a anedota são enunciados que baseiam a interpretação da sua mensagem em representações indirectas de nomes, termos e ideias, jogando com sentidos duplos. Por exemplo, na seguinte anedota: "Como é que se distingue um pára-quedas alentejano?", "É o que abre com o impacte.", a ambiguidade baseia-se no jogo de pré-conceitos colectivamente assumidos por uma comunidade linguística (a falta de inteligência dos alentejanos e a lentidão dos seus movimentos), que se concretiza num jogo de palavras que leva o intérprete a esperar um determinado desfecho pelas informações do enunciado introdutório, sendo depois surpreendido pela impossibilidade lógica do segundo enunciado, criando um efeito de cómico. Este esquema simples é comum a muitos textos humorísticos. O humor depende invariavelmente de uma situação inesperada, o que se consegue com a introdução de elementos ambíguos ou deslocando elementos para contextos morfossintácticos diferentes.



adivinha; AMBIVALÊNCIA; anedota; ASTEÍSMO; CONOTAÇÃO; DOUBLE ENTENDRE; enigma; EQUÍVOCO; HOMONÍMIA; palavra-ômnibus; palavra-portmanteau; PARONOMÁSIA; PLURISSIGNIFICAÇÃO; POLISSEMIA; pun



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Carlos Ceia

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