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Alteridade

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Facto ou estado de ser Outro; diferição do sujeito em relação a um outro. Opõe-se a identidade, mundo interior e subjectividade. Este tema aparece com alguma insistência nos mais recentes estudos pós-coloniais, feministas, desconstrucionistas e psicanalíticos, e é também tratado no dialogismo de Bakhtin. A questão da alteridade (ing. otherness; fr. alterité; al. Anderssein) corre o risco de se tornar simplisticamente universal, no caso de considerarmos o Outro como uma categoria omnipresente, porque tudo está em oposição em relação a alguma coisa ou a alguém. É necessário delimitar a aplicação do conceito e, de preferência, pelo menos no que toca à literatura, considerá-lo apenas nas relações poéticas, dramáticas e nais que se abrem nos textos literários.

Entre 1918 e 1924, Bahktin escreve diversos ensaios cuja tema central é a relação entre o eu e os outros. O eu só existe em diálogo com os outros, sem os quais não se poderá definir. O processo de autocompreensão só se pode realizar através da alteridade, isto é, pela aceitação e percepção dos valores do Outro. O autor literário segue esta dialéctica: é uma entidade dinâmica que estabelece relações com todas as entidades textuais. Outros pensadores do século XX vão prosseguir o inquérito complexo da alteridade: Heidegger, Sartre, Lacan e Derrida.

Na sua concretização literária, consideremos a questão da alteridade segundo dois vectores fundamentais (entre outros possíveis, se pensarmos que a questão é inesgotável): 1) O Outro como Deus; 2) O eu como Outro.



1) Lacan introduz a escritura do Outro em oposição ao outro, que é simétrico do eu imaginário. O ensaio central de Lacan sobre a identificação do Outro com Deus é “Deus e o gozo d’ A mulher”, texto original que pertence ao Seminário XX de Lacan (1972-3), com o título Encore (“God and the Jouissance of The Women”, trad. inglesa de Jacqueline Rose: Feminine Sexuality: Jacques Lacan and the École Freudienne, editado por Juliet Mitchell e Jacqueline Rose, Macmillan, 1982, pp.137-148). O Outro não pode ser dito num sentido. Não há uma explicação gratuita que o defina de imediato. Ele é o grande Outro da linguagem, que está para a linguagem como o Dasein está para o ser: aí - estar/ser-aí, eis a natureza do Outro, que se interpõe como terceira entidade em toda a dialéctica ou diálogo. O Outro é, pois, aquele ser fantástico que se agita dentro de mim. É o Outro do desejo como inconsciente. Por isso o Outro é o verdadeiro dado inicial e não o sujeito. Concretizemos com o romance de Eça de Queirós, O Crime do Padre Amaro. O estado neurótico de Amaro define a sua angústia permanente perante a presença do Outro, que tanto pode referir-se à Mulher como a Deus. O Crime do Padre Amaro é não só um ensaio sobre o desejo, mas também um estudo sobre as possibilidades dialécticas do desejo enquanto pulsão sexual e enquanto pulsão mística (no sentido lacaniano). O Outro é também Deus, o Deus determinado desde sempre pela sexualidade masculina, mas é mais rigorosamente o lugar onde se realiza o sujeito que fala com aquele que é suposto ouvir (Deus). Quando ainda só suspeita que Amélia devia gostar dele, Amaro olha-se ao espelho e descobre não só o desejo do corpo da mulher, mas em igual medida significativo, descobre o seu próprio corpo, toda a dimensão do seu próprio corpo que até aí estava dividido pelo fantasma da castração: “E passeava pelo quarto com passadas de côvado, estendendo os braços, desejando a posse imediata do seu corpo [de Amélia]; sentia um orgulho prodigioso: ia defronte do espelho altear a arca do peito, como se o mundo fosse um pedestal expresso que só o sustentasse a ele!” (O Crime do Padre Amaro, Obras Completas de Eça de Queiroz, vol. 4, Círculo de Leitores, Lisboa, 1980, p.125).



2) Na Filosofia da Natureza, Hegel sustentou que a Ideia é considerada na sua alteridade (Anderssein), no tornar-se exterior a si própria no mundo natural. Esta concepção da Ideia alimenta a doutrina das Odes Modernas de Antero, profundamente racionalistas tal como expressamente se afirma no poema "Luz do Sol, Luz da Razão (Resposta à poesia de João de Deus 'Luz da Fé')" que termina com estes dois versos: “Por isso vos estimo... / Tu, sol, e tu, razão! (Odes Modernas, 3ªed., Ulmeiro, Lisboa, 1989, p.84). A percepção subjectiva do Outro, condição maior para a compreensão da alteridade, passa por este tipo de relação racional do sujeito com o Outro. Criada esta condição o homem está preparado para a consciência de si, essencial à compreensão do Outro como Deus. O ensaio A Bíblia da Humanidade de Michelet, escrito em 1865, tinha Antero 23 anos, tem afinidades com as teses de Feuerbach, a começar pelo princípio socrático de que dentro do homem existe um Deus desconhecido, repetido por variantes ao longo do ensaio. Sendo a principal tese de A Essência do Cristianismo, de Feuerbach, o princípio de que a religião não é mais do que "a consciência que o Homem tem de si mesmo considerando-se como outro", não podemos deixar de ver no postulado anteriano de que o homem é um Deus que se ignora a mesma redução de Deus à essência humana.



3) Não menos complexa é a tentativa de reduzir a alteridade a um princípio de identidade. Os poetas modernistas são hábeis neste tipo de jogo de destruição da barreira psicológica entre o eu e o Outro e muitos fizeram dessa relação o cerne da sua poesia. Está neste caso Mário de Sá-Carneiro, cujo entendimento da alteridade é investigado em «Eu-Próprio o Outro» (1913), novela do conjunto Céu em Fogo. O paroxismo do drama das relações entre o eu e o Outro pode-se ler a partir da doutrina dos eleatas, segundo a qual o mundo não passa de uma aparência vã: "Mas, coisa curiosa, até hoje nunca o vi chegar. Quando dou pela sua presença, já ele está em face de mim." A presença do Outro é sempre uma presença invisível. A única aspiração consiste na possibilidade de encontrar a unidade entre ambos, uma unidade parmenidiana capaz de desvelar o Ser uno e imutável. O problema da intersubjectividade parece pronto a resolver-se com a revelação do significado íntimo do sentimento do eu para com o Outro, que é um sentimento de ódio. De certa forma, "Eu-Próprio o Outro" prediz a «A Cena do Ódio» de Almada Negreiros. Em ambos os textos, o ódio é ódio a todos os outros num só, segundo uma regra que Sartre investigou no seu O Ser e o Nada. O que se procura atingir é o princípio geral de existência de outrem para reconquistar a liberdade ameaçada do eu, no fundo, para descobrir a sua ipseidade: “Em frente dele reconheço o que eu quisera ser: o que eu sou erradamente. Nele, não me sobejaria. (Mário de Sá-Carneiro, Prosa, vol.2, Círculo de Leitores, Lisboa, 1990, p.352). O Outro existe apenas para eu saber aquilo que não devo ser. Servir-me-á para corrigir o erro de ser-eu-deste-modo-errado. Como afirma Sartre, na sua teoria sobre a alteridade: "... o ódio é ódio a todos os outros num só. O que eu quero alcançar simbolicamente ao perseguir a morte de um tal outro, é o princípio geral da existência de outrem. O outro que odeio representa afinal os outros. E o meu projecto de o suprimir é projecto de suprimir outrem em geral, ou seja, de reconquistar a minha liberdade não-substancial de para-si.." (O Ser e o Nada, trad. de G. Cascais Franco, Círculo de Leitores, Lisboa, 1993, p.412).

Uma quadra de Mário de Sá-Carneiro encerra toda uma teoria de desconstrução da alteridade: “Eu não sou eu nem sou o outro, / Sou qualquer coisa de intermédio: / Pilar da ponte de tédio / Que vai de mim para o Outro.” (Poesias, Ática, Lisboa, [1991], p.94) Como no mito de Platão, o Poeta é esse homem obrigado a viver agrilhoado de costas para o mundo. Sá-Carneiro só antevê uma forma de triunfar perante as sombras do mundo dadas pela luz do sol: através do outro, ser para-si. A aporia fundamental do poema envolve uma só palavra: "pilar". O que é que significa o ser-entre, que é esse ser-qualquer-coisa-de-intermédio, ser o pilar da ponte entre Mim e o Outro? Pode haver algo entre o ser eu e o ser outro? O drama da intersubjectividade (e da alteridade) em Sá-Carneiro reside no facto do Poeta ter acreditado existir a possibilidade de uma relação sublime e positiva de um sujeito com outro sujeito, isto é, de um eu destroçado em busca de um outro eu restituído à sua harmonia por um qualquer demiourgos. Como Sartre, aceitamos existir apenas a relação sujeito-objecto, em que o meu olhar transforma o Outro em objecto ou então sou transformado em objecto pelo olhar do Outro.

DIALOGISMO; exotopia; IDENTIDADE; SUBJECTIVIDADE

Bib.: Carlos Ceia: De Punho Cerrado: Ensaios de Hermenêutica Dialéctica da Literatura Portuguesa Contemporânea (1997); Iris M. Zavala: “Bakhtin and Otherness: Social Heterogeneity”, Critical Studies, 2, 1-2 (1990); Michael Theunissen: The Other: Studies in the Social Ontology of Husserl, Heidegger, Sartre, and Buber (2ª ed., 1984); Steven Earnshaw: “Alterity: Martin Buber’s ‘I-Thou’ in Literature and the Arts”, in The Direction of Literary Theory (1996); Thomas Docherty: “Postmodern Characterization: The Ethics of Alterity”, in Edmund Smyth (ed.): Postmodernism and Contemporary Fiction (1991).

Carlos Ceia

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