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Gênero misterioso

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Como a sua própria designação aponta, este género centra-se no surgimento ou na prévia existência de um mistério que urge resolver, com particular relevo para a busca da respectiva decifração. Na grande maioria das narrativas integráveis no misterioso, o enigma é quase sempre resultante de (ou associado a) determinada ocorrência insólita que permanece por explicar ou envolta numa teia de secretismo, como a perseguição, o assassinato, o desaparecimento de uma pessoa ou a vingança tenebrosa. Daí, por sua vez, decorre em geral uma acção frequentemente rica em suspense ou, mesmo, atemorizante, ainda que nunca inclua, pelo menos de forma explícita, situações de algum modo conotáveis com o sobrenatural. Ao longo dela, encontrar a solução do enigma pelos mais diversos meios constituirá a preocupação dominante de certas personagens, uma das quais desempenha em regra uma função central no decurso da intriga.

Assim, as realizações possíveis do género estendem-se por um amplo espectro, conforme o teor insólito da acção evocada e a complexidade do que se pretende averiguar. Entre a vasta gama de textos por ele abarcada, contam-se a simples adivinha, o romance policial, o romance de espionagem, o thriller e, mesmo, as narrativas de terror não sobrenatural. Daí, naturalmente, decorrem narrativas com esquemas diegéticos muito diversificados. Surgem, assim, problemas de solução mais ou menos difícil, questões de vida ou de morte envolvendo indivíduos, instituições ou estados, bem como situações em que, por momentos, se tornará admissivel a intervenção de alguma entidade alheia à natureza conhecida. No tocante a estas últimas, o misterioso ronda uma zona imprecisa em que certos textos podem já revelar algumas semelhanças com o género estranho. A fronteira entre as duas classes de narrativas poderá ser delimitada de forma razoavelmente aproximativa mediante comparação entre The Hound of the Baskervilles (1902) de Arthur Conan Doyle e Ten Little Niggers (1939) de Agatha Christie. O primeiro romance, explicando racionalmente, após o climax, a presumível entidade sobrenatural, não deixa quaisquer dúvidas quanto ao facto de se circunscrever ao estranho. O segundo ( cuja acção, apesar da sua índole perturbante, em momento algum aparenta ostensivamente ser invadida por manifestações alheias à natureza ) situa-se numa área algo periférica do misterioso, onde também se integram as narrativas de terror não sobrenatural. A vertente enigmática do misterioso já surge em alguns dos textos mais antigos de várias literaturas como as adivinhas. De há muito correntes na tradição oral e perdurando até à actualidade sob diversas formas, aquelas propõem em regra charadas, expressões com significado oculto ou perguntas habilidosas e não raro enganadoras cuja decifração ou resposta adequada exigem elevados graus de perspicácia e imaginação. Por outro lado, tanto o mistério considerado insondável como o enigma a solucionar têm aparecido ao longo da história quase universalmente associados a mitos, divindades e religiões. Caso emblemático de profundo alcance literário e cultural, o mito de Édipo envolve não só o conhecido problema com que a esfinge confronta o herói, mas também o facto de este cometer crimes horrendos (parricídio e incesto) cuja índole monstruosa apenas mais tarde vem a descobrir.

Embora muito antigo, o interesse dos escritores pelas potencialidades estéticas do mistério acentuou-se assinalavelmente durante a vigência do Romantismo, em particular com a voga do romance gótico. No século XIX, Edgar Allan Poe terá sido a figura literária que delas se serviu de modo mais inovador, realizando superiormente o género. Tal sucede com textos de características não obstante algo diversas, entre as quais se contam “The Murders in the Rue Morgue” (1841), “The Mystery of Marie Roget” (1842), “The Purloined Letter” (1845), “The Cask of Amontillado” (1846) ou “Hop-Frog” (1849). Enquanto os três primeiros evidenciam os traços básicos da narrativa de detecção, mais conhecida por romance policial, os restantes, embora com eles mantenham óbvias afinidades genológicas, são típicas histórias de terror não sobrenatural.

De resto, a mesma diversidade se verifica em textos como, por exemplo, The Thirty-Nine Steps (1915) de John Buchan, The Long Good-bye (1953) de Raymond Chandler, “The Golden Girl” (1964) de Ellis Peters ou Tinker, Taylor, Soldier, Spy (1974) de John Le Carré. A extraordinária multiplicação das obras daqueles dois tipos, a par do thriller e das narrativas de espionagem ao longo do século XX, o seu não raro assinalável interesse estético e ideológico, assim como a respectiva diversidade temática e caractereológica, parecem plenamente susceptíveis de garantir ao género uma fecunda longevidade.

LITERATURA DE ESPIONAGEM; ROMANCE GÓTICO; ROMANCE POLICIAL; thriller

Bib.:Michael L. Cook, Mystery, Detective, and Espionage Magazines (1983); David I. Grossvogel, Mystery and its Fictions (1979); David Skene e Anne Skene Melvin (eds.), Crime, Detective, Espionage, Mystery, and Thriller Fiction and Film: A Comprehensive Bibliography of Critical Writing Through 1979 (1980)

Filipe Furtado

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