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O formalismo russo e suas contribuições para a moderna crítica literária

terça-feira, 29 de setembro de 2009

A segunda década do século XIX mostrava grandes transformações socioculturais ao mundo. A Primeira Guerra Mundial [1] alterava de maneira drástica as relações políticas entre diversas nações, bem como todo o panorama cultural do globo; o rádio ampliava as comunicações humanas; os automóveis se expandiam; no campo das artes, alastravam- se movimentos de vanguarda, como o cubismo [2] , dadaísmo e o jazz; Charles Chaplin encantava o mundo com seus filmes, assim como o faziam outras produções do cinema mudo; Albert Einstein tecia valiosas contribuições à ciência; e a Rússia vivia um período de profundas mudanças em decorrência de sua grande Revolução Russa [3], que também afetava as produções artísticas, efervescentes nesse período da história do país. Foi nesse contexto que surgiu uma das mais importantes correntes críticas da literatura, o Formalismo Russo, que daria o pontapé inicial para os estudos modernos no campo das Letras.

Tzvetan Todorov, importante estudioso e divulgador das ideias dos formalistas, assim como Roman Jakobson, um de seus mais célebres membros, alegam que o nome dado ao grupo advém de uma falácia, já que era utilizado por seus detratores de forma pejorativa. Apesar de rejeitado, o termo acabou se consagrando.

Empiristas e positivistas [4] ignoravam premissas filosóficas ou metodológicas e, portanto, toda conclusão abstrata. Por se tratar de um grupo de críticos militantes, rejeitavam as doutrinas simbolistas quase místicas que haviam influenciado a crítica literária e, munidos de grande vontade prática e científica, focaram a atenção para os aspectos intrínsecos do texto literário. Desejavam chegar a uma ciência da Literatura, que tivesse por objeto não a Literatura, mas a literariedade do texto, ou seja, aquilo que lhe confere caráter literário. Dentre os seus membros, destacavamse Mikhail Bakhtin, Vladimir Propp, Viktor Chklovski, Óssip Brik, Yuri Tynianov, Boris Eikhenbaum e Boris Tomachevski, além do já citado Jakobson.

Alguns proeminentes alunos da Universidade de Moscou fundaram o Círculo Linguístico de Moscou, no inverno de 1914, com o objetivo de realizar estudos nos campos da poética e da linguística. Tais estudos foram inovadores desde o início por estabelecerem análises paralelas entre a literatura e a linguística, preocupação que seria dominante nos trabalhos realizados pelo grupo. O termo função poéticafoi cunhado nesta época, instituindo importantes considerações a respeito da linguagem literária.

O Círculo Linguístico de Moscou tinha entre seus membros importantes poetas, como Maiakovski, Pasternak, Mandelstam e Assiéiev. Tal aliança não se deu ao acaso, mas pelas intenções semelhantes dos formalistas e dos poetas vanguardistas, que estavam cansados da velha estética e buscavam novas formas em meio às profundas alterações da revolução. A poesia pretendia seguir por novos rumos estéticos enquanto a crítica já não se importava mais com a dicotomia existente entre os gêneros clássico e romântico, considerando tais preocupações ultrapassadas.

A primeira publicação do grupo, A Ressurreição da Palavra (1914), de Viktor Chklovski, foi seguida da coletânea Poética (1916), de Óssip Brik, que tencionava divulgar os primeiros trabalhos do grupo. Em 1917 surgiu, em São Petersburgo, a OPOJAZ (Sociedade para os Estudos da Linguagem Poética), da qual eram membros os dois autores supracitados.

A natureza autônoma da linguagem poética

O Formalismo Russo, pela sua diversidade de pensamentos e análises, não produziu uma doutrina unificada que servisse como padrão para todos os seus estudos, como atesta Eikhenbaum na mesma brochura citada: "Realmente, não falamos, nem discutimos sobre nenhuma metodologia. Falamos e podemos falar unicamente de alguns princípios teóricos que nos foram sugeridos pelo estudo de uma matéria concreta e de suas particularidades específicas, e não por este ou aquele sistema completo, metodológico ou estético."

Desde seus primeiros estudos, o Formalismo Russo caracterizou-se pela recusa de abordagens extrínsecas ao texto. Psicologia, sociologia, filosofia etc., que serviam de base para muitos estudos literários realizados até então, não poderiam constituir o escopo de análise da obra literária, que deveria ser efetuada por meio dos constituintes estéticos sem relevar aspectos externos. Em uma importante coletânea de textos traduzida para o português como Teoria da Literatura: Formalistas Russos (Globo, 1976), Boris Eikhenbaum descreve de forma sucinta a premissa do grupo do qual fazia parte: "O que nos caracteriza não é o formalismo enquanto teoria estética, nem uma metodologia representando um sistema científico definido, mas o desejo de criar uma ciência literária autônoma a partir das qualidades intrínsecas do material literário."

As opiniões dos formalistas entraram em conflito com os teóricos de inspiração marxista, pois estes consideravam que a nova poética não deveria ignorar as realidades sociais e sua relação com as manifestações artísticas. Os formalistas consideravam que a obra literária não era um mero veículo de ideias, tampouco uma reflexão sobre a realidade social: era um fato material plausível de análise. Era formada por palavras, não por objetos ou sentimentos, e seria um erro considerá-la como a expressão do pensamento de um autor.

Os formalistas tencionavam criar uma ciência da literatura, que deveria afastar-se de quaisquer aspectos extraliterários, e para que isso fosse possível, a literatura deveria ser estudada por si só, daí a necessidade de conceitualização da literariedade, que daria o respaldo necessário para aquilo que se almejava: o estudo da natureza autônoma da linguagem poética e sua especificidade como um objeto de estudo da crítica literária.

"A linguagem está
sempre inserida em um
diálogo constante com
a vida social e cultural;
dessa forma ela se torna
viva, múltipla, porque
marcada pelas vozes
presentes nas interações
sociais."

Mikhail Bakhtin,
linguista russo

A literariedade

"Embora (Roman)
Jakobson nem tenha
teorizado diretamente
sobre os problemas
da textualidade, para
esse tema contribui sua
concepção de poética
sincrônica que, no Brasil,
foi estudada por Haroldo
de Campos."

Irene Machado,
semióloga

Roman Jakobson cunhou uma das mais importantes considerações da postura formalista, que acabou se tornando quase um manifesto do movimento:

"A poesia é linguagem em sua função estética. Deste modo, o objeto do estudo literário não é a literatura, mas a literariedade, isto é, aquilo que torna determinada obra uma obra literária. E no entanto, até hoje, os historiadores da literatura, o mais das vezes, assemelhavam- se à polícia que, desejando prender determinada pessoa, tivesse apanhado, por via das dúvidas, tudo e todos que estivessem num apartamento, e também os que passassem casualmente na rua naquele instante. Tudo servia para os historiadores da literatura: os costumes, a psicologia, a política, a filosofia. Em lugar de um estudo da literatura, criava-se um conglomerado de disciplinas mal-acabadas. Parecia-se esquecer que estes elementos pertencem às ciências correspondentes: História da Filosofia, História da Cultura, Psicologia, etc., e que estas últimas podiam, naturalmente, utilizar também os monumentos literários como documentos defeituosos e de segunda ordem. Se o estudo da literatura quer tornarse uma ciência, ele deve reconhecer o ‘processo’ como seu único ‘herói’."

Acerca da literariedade proposta por Jakobson, Eikhenbaum tece algumas considerações: "Estabelecíamos e estabelecemos ainda como afirmação fundamental que o objeto da ciência literária deve ser o estudo das particularidades específicas dos objetos literários, distinguindo-os de qualquer outra matéria, e isto independentemente do fato de que, por seus traços secundários, esta matéria pode dar pretexto e direito de utilizá-las em outras ciências como objeto auxiliar."

Viktor Chklovski diz que a língua poética difere da língua prosaica pelo caráter perceptível de sua construção. Jakobson afirma que se a intenção da comunicação detém um objetivo puramente prático, ela faz uso do sistema da língua cotidiana (do pensamento verbal), na qual as formas linguísticas (os sons, os elementos morfológicos etc.) não têm valor autônomo e não são mais que um meio de comunicação.

Narratologia

Vladimir Propp foi um dos fundadores da Teoria da Narrativa, ou Narratologia, ao analisar os componentes básicos do enredo dos contos populares russos visando a identificar os seus elementos narrativos mais simples e indivisíveis. Seus estudos são um ótimo exemplo de análise probabilística aplicada à literatura, configurando o caráter puramente científico que os formalistas pretendiam atribuir aos seus estudos. Propp encarava os contos como algoritmos combinatórios, em que os nomes e os atributos dos personagens constituem valores permutatórios, enquanto suas ações ou funções permanecem constantes, ou seja, nos tais contos, as mesmas histórias eram repetidas, alterando-se apenas os personagens.

Em 1928, Propp publicou o livro A Morfologia dos Contos de Fadas, no qual estabelecia os elementos narrativos básicos que ele havia identificado nos contos folclóricos russos. Basicamente, Propp identificou sete classes de personagens ("agentes"), seis estágios de evolução da narrativa e 31 funções narrativas das situações dramáticas. A linha narrativa que ele traça, ainda que flexível, é fundamentalmente uma só para todos os contos.

Legado

Além dos já citados autores que permearam sobre os estudos da Teoria da Narrativa, o Formalismo Russo influenciou muitos estudiosos e deixou um enorme legado aos estudos literários e linguísticos. Entre seus sucessores está a Escola de Praga, ou Círculo Linguístico de Praga, fundado em 1926 por Roman Jakobson, que se mudou para a Tchecoslováquia após a dissolução do Círculo de Moscou, acusado de ser burguês e reacionário pelo novo regime comunista. O grupo adotava uma perspectiva semiótica geral para o estudo científico da literatura e, em outro campo, a fonologia viria a tornar-se sua base paradigmática num diferente número de formas.

Também fortemente influenciado pelo Formalismo Russo, o Estruturalismo, surgido na França, alcançou grande repercussão no fim da década de 1960 graças aos escritos de Roland Barthes[5] . A crítica estruturalista distinguia-se por analisar as obras literárias por meio da Semiótica, ou ciência dos signos.

Os conceitos de Mikhail Bakhtin a respeito de dialogismo, polifonia (linguística), heteroglossia e carnavalesco, bem como os conceitos de análise estrutural da linguagem, poesia e arte realizados por Roman Jakobson, foram de extrema importância para os estudos modernos nos campos da Linguística e da Teoria da Literatura, influenciando um sem-número de autores.

Notas:

[1] Primeira Guerra Mundial
Foi o primeiro grande conflito internacional (1914-1918). A guerra envolveu os países da Tríplice Entente (Grã- Bretanha, França e Rússia, até 1917) e EUA contra a Tríplice Aliança (Alemanha, Império Áustro-Hungaro e Império Turco-Otomano). Como resultado, aconteceram mudanças geopolíticas na Europa e no Oriente Médio.

[2] Cubismo
Movimento artístico nascido no início do século XX. Seus principais expoentes foram Pablo Picasso e Georges Braque. Caracteriza-se por tratar as formas da natureza por meio de figuras geométricas, com a representação de todas as partes de um determinado objeto em um mesmo plano, sem compromisso com a sua aparência real.

[3] Revolução Russa
A Revolução Russa (1917) foi um dos grandes acontecimentos políticos do século XX. Ela culminou com uma série de eventos que marcaram o fim do czarismo absolutista e a implantação do socialismo no país, posteriormente sob o controle de um partido único, o bolchevique. No processo revolucionário, foi criada a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Seus grandes líderes foram Lênin, Trotsky e Stalin.

[4]Positivistas
O positivismo, doutrina filosófica e política, foi um dos desenvolvimentos sociológicos do Iluminismo. Seu criador foi o francês Auguste Comte (1798-1857), que pregava a busca da explicação pelas coisas mais práticas na vida do ser humano, como no caso das leis, relações sociais e a ética, confinando-se ao estudo das relações existentes entre fatos que sejam acessíveis à observação.

"A Lingüística é a
parte do conhecimento
mais fortemente
debatida no mundo
acadêmico. Ela está
encharcada com o sangue
de poetas, teólogos,
filósofos, filólogos,
psicólogos, biólogos e
neurologistas além de,
não importa o quão
pouco, qualquer sangue
possível de ser extraído de
gramáticos?" Russ Rymer, jornalista
americano

[5] Roland Barthes
O francês Roland Barthes (1915-1980) é considerado um dos maiores e mais importantes críticos literários do Ocidente. Para ele, a unidade do texto não se encontra na sua origem, mas em sua destinação. Umas de suas principais obras é "Elementos da Semiologia", escrita em 1964.

Leonardo Passos é professor de Literatura e Redação. leonardopassos@bol.com.br

Fonte: Revista Língua - http://revistalingua.uol.com.br/

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