Anúncio provido pelo BuscaPé

Literariedade

sábado, 12 de setembro de 2009

A borboleta

O Fenômeno Literário e as Manifestações de Literariedade

“O enigma é falar coisas certas reunindo termos absurdos”
Aristóteles in A Poética.

1- A borboleta: uma analogia com o fenômeno literário

Em símile ao ciclo de vida de uma borboleta, situa-se o fenômeno literário. No inicio a palavra é automatizada, conduz ao senso comum - é uma lagarta-, contudo algo se interrompe, a metamorfose ocorre: ela fica por algum tempo dentro de um casulo- os procedimentos artísticos – para ganhar vôo e beleza de uma borboleta. Após isso, a palavra literária ganha a forma, movimento e condensa dentro de si inúmeros significados; faz vôos estranhos e singulares cuja compreensão prolonga-se a cada olhar. Como uma borboleta que não se deixa pegar facilmente; necessita-se de uma leitura atenta à palavra literária- à forma do vôo, a fim de apreendê-la.

É lícito dizer que a forma do vôo varia de um movimento rítmico circular, mais metafórico - a poesia- a um movimento mais voltado à seqüência, metonímico - a prosa. Esta em linhas contínuas, um novelo que vai se abrindo aos poucos; aquela em linhas descontínuas, um novelo que segue e volta para o mesmo ponto inicial.

No entanto, essa borboleta- a palavra literária- pode manifestar-se dessas duas formas em liame, de maneira a propiciar um desequilíbrio entre suas fronteiras; cita-se, a exemplo, a prosa poética de Guimarães Rosa em “o burrinho Pedrês”. Perceba a sonoridade bem à moda de poesia, as aliterações (b e v) e rimas produzem esse efeito.

“Um boi preto, um boi pintado,

cada um tem sua cor,

Cada coração um jeito

De mostrar o seu amor”.

Boi bem bravo, bate baixo, bota baba, boi berrando... Dança doido, dá de duro, da de dentro, dá direito... Vai, vem, volta, vem na vara, vai não volta, vai varando...

GUIMARÃES ROSA, João. Sagarana.15. ed. Rio de janeiro: J. Olympio, 1972.

E, da mesma forma a poesia com a prosa. Observe o poema a seguir de Manuel Bandeira cuja tessitura dá uma idéia de seqüência.

Poema tirado de uma Noticia de Jornal

João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro

[da Babilônia num barracão sem número.

Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro

Bebeu

Cantou

Dançou

Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.



Manuel Bandeira in Libertinagem

1.1 A Manifestação de literariedade e sua visibilidade em o Áporo

“Penetra surdamente no reino das palavras

Lá estão os poemas que esperam ser escritos”.

Carlos Drummond de Andrade

O fenômeno literário engendra-se de maneira peculiar, possui características específicas às quais se dá o nome de literariedade: termo, provindo do formalismo, pelo qual se distingue a linguagem literária da linguagem referencial. Em concernência a essa idéia, Aristóteles, em a Poética, já notava algo impar na Poesia- o nome que denominava qualquer espécie de obra literária para os gregos-, dizia que clara e vulgar era a linguagem formada pelas palavras correntes e, nobre e elevada, a linguagem que empregava termos raros: os metafóricos e alongados e todos os que fogem aos de uso corrente.

Deduz-se, assim, que tanto a poesia como a prosa estruturam-se concernente a suas próprias leis, não precisam necessariamente estarem ligadas ao mundo referencial. E, indubitavelmente, elas não o imitam perfeitamente, mas sim o desconstrói para que emanem as dúvidas das ações dos homens; se assim o faz, é com fim de trazê-lo com suas nuanças elementares, através de um enigma formal; na poética de Aristóteles, isso aparece explícito quando ele fala: “O enigma é falar coisas certas reunindo termos absurdos”. Disso posto, pode vincular-se o conceito de mimese, a imitação não dos homens, mas sim de suas ações. Por isso, um isento como em A Metamorfose de Franz Kafka, por meio de aparência absurda, não representa um homem, contudo traços, ações humanas. O absurdo traz, recupera a realidade em sua profundidade.

Partindo desse pressuposto, considera-se um princípio errôneo querer que a linguagem literária se comporte como a linguagem comum; os procedimentos que a arquitetam são de natureza distinta, manifestam-se por outro ângulo: o da forma. O que importa não é o que dito, mas de que forma é dito; o conteúdo entrelaça-se à expressão. Por essa via, entende-se que um áporo não teria o mesmo valor como aparece no poema de Drummond; a forma o torna o Áporo , ou seja, a literariedade o singulariza. Nesse sentido, o poema tem um corpus autônomo, o qual se deve analisar, imanentemente, tendo em vista sempre os seus aspectos intrínsecos. Conforme os formalistas Jakobson e Eichembaum, o importante é o estudo do objeto literário, isto é, a obra e seus procedimentos artísticos . Entende-se, assim, que não interessa recorrer diretamente à biografia do autor e pontos da realidade para compreender o fenômeno literário. Análoga a essa afirmação encontra-se a idéia de Aristóteles em A poética , “a diferença é que na poesia tais efeitos devem decorrer unicamente da ação, sem expressar-se formalmente”. Note-se a importância dada a ação cujo significado é sinônimo de procedimento,



ÁPORO



Um inseto cava

Cava sem alarme

Perfurando a terra

Sem achar escape.



Que fazer, exausto,

Em país bloqueado,

Enlace de noite

Raiz e minério?



Eis que o labirinto

(oh razão, mistério)

presto se desata:



em verde, sozinha,

antieuclidiana,

uma orquídea forma-se.





Carlos Drummond de Andrade



Ao ler o poema, vem à baila o estranhamento- a percepção prolonga-se na linguagem, um efeito distinto o promove, corta os laços com a linguagem prosaica. A sensação apriori é de espanto, o código lingüístico de seqüência é quebrado, desaparece a lógica do senso comum: a imagem do Áporo estranha pelo fato de dizer o comum por uma outra forma. Por esse estranhamento se distancia a realidade; mas a recria sob outro prisma de tal modo a trazer à tona uma sensação de novidade. Como diz Pound, a literatura é novidade que permanece novidade, conclui-se que nunca é mesma percepção.

Destarte, esse processo em conluio com a ambigüidade- a qual contorna a tessitura do poema, pois se erige em torno de um significante (áporo) mais de um significado-, articulam uma desautomatização do olhar. À literatura significar-se mais, com o mínimo de palavras, é algo que lhe é típico; segundo Ezra Pound, é a linguagem carregada de significado até o máximo grau possível.

À luz da função poética de Jakobson, a qual torna proeminente a mensagem, tem-se de fato a metáfora sobre a metonímia. A escolha das palavras prevalece, o eixo de combinação segue em segundo plano; a relação se faz por analogia das imagens que sugerem a luta do inseto-homem para sair do labirinto, faz com que a adversidade, o obstáculo, se transformem em verde esperança e, como por mistério, o inseto se faz orquídea. Dessa forma, vale-se a imagem por sua capacidade de transmitir uma idéia: não aparece no texto literário apenas de forma pictórica, integra-se, fundamentalmente, ao sentido; contribui para uma nova percepção da realidade ao ponto que se distancia dela.

Quanto à manifestação da literariedade na forma, o áporo situa-se no âmbito da poesia, manifesta-se em versos, a sonoridade e o ritmo a diferenciam da prosa; não possui uma seqüência, volta-se para si mesmo, é um signo-de (termo de Décio Pignatari) que se encadeia pela similaridade.

Todavia, emana outra manifestação de literariedade do poema, a qual se concatena com o conteúdo e a forma de dizer: o lírico. Diz-se, assim, tratar-se de um poema lírico, e o é pela forma de orientar-se para um “eu”: para um visão particular do mundo. Os pontos que o evidenciam encontram-se nas interrogações(segunda estrofe) e nas exclamações (oh razão, mistério) das quais sobrevém uma emoção de um “eu”. Por tratar-se de uma poesia a função poética é a dominante no poema, mas outra função vem à baila na forma de dizer, a função emotiva: ela vale-se da subjetividade, das emoções do eu lírico.

2- Outras Manifestações de Literariedade: O lírico, o épico e o Dramático.

À perspectiva de Aristóteles, as manifestações literárias distinguem-se pelo método de imitar. Daí surgiram as nomenclaturas Épico, Lírico e Dramático. O Épico é modo pelo qual se imita os objetos narrando-os; o lírico é a imitação quando se assume a primeira pessoa e o Dramático é quando as personagens agem por elas mesmas

· O Lírico

O Lírico valoriza a subjetividade, “o eu”: configura-se com marcas lingüísticas e sinais envolvidos pela função emotiva. O conteúdo do lírico é, pois, a maneira pela qual a alma, com seus juízos subjetivos, alegrias e admirações, dores e sensações, toma consciência de si mesma no âmago deste conteúdo. Veja o exemplo o poema o Sentimento do mundo de Drummond no qual perpassa toda uma subjetividade; ”o eu” explicita-se pela primeira pessoa de modo que as marcas lingüísticas ( em negrito) sempre se referem ao interior do eu lírico.

Tenho apenas duas mãos

E o sentimento do mundo,

Mas estou cheio de escravos,

Minhas lembranças escorrem

E o corpo transige

Na confluência do amor.

Entretanto, percebe-se, atualmente, que as marcas lingüísticas não precisam aparecer explicitamente marcadas, como no poema acima, para ele ser lírico. Outros meios estão à mercê do lírico perceba-os no poema a seguir.

O mundo inimigo

O cavalo mecânico arrebata o manequim pensativo

Que invade a sombra das casas no espaço elástico.

Ao sinal do sonho a vida move direitinho as estátuas

Que retomam seu lugar na série do planeta.

Os homens largam ação na paisagem elementar

E invocam os pesadelos de mármore na beira do infinito.

Os fantasmas vibram mensagens de outra luz nos olhos,

Expulsam o sol do espaço e se instalam no mundo.

Observa-se a face do lírico não pelos pronomes como no poema anterior, mas pela presença do adjetivo “direitinho” e “elástico” que engendra toda uma subjetividade: a visão do particular do eu lírico diante do mundo inimigo fantástico; ele o descreve sob sua ótica; erige um tom pessoal no poema.

· O épico

Destoando do lírico no que tange à subjetividade, o épico volta-se ao “não eu”, quebra os laços da emoção e segue o plano exterior. Desse modo a poesia épica, segundo Jakobson, centra-se na terceira pessoa, põe intensamente em destaque a função referencial da linguagem, pelo fato de procurar narrar um não “eu”.

Nasceu na antiga Grécia com as epopéias Ilíada e Odisséia de Homero, perdurou no Império Romano com a epopéia Eneida de Virgilio, no final da Idade Média ganhou força com as novelas de Cavalaria, passou por Camões com os Os Lusíadas e no século XVIII derivou-se no romance, sua forma atual e de maior circulação.

A narrativa é o ponto primordial do épico, prioriza o objeto, mesmo que o objeto seja às vezes a vida do próprio narrador. No plano da narrativa tudo vira um “ele”, pense no romance Memórias Póstumas de Braz Cubas, no qual o autor defunto conta sua história; ao narrar se despe de toda subjetividade; sua vida torna-se um objeto ( um ele) no plano da narrativa.

· O Dramático

Em concernência a etimologia, drama significa “ação”. Nessa manifestação de literariedade, os personagens se apresentam por si, não há narrador e as ações vão se desenvolvendo pela própria apresentação, pois estes textos, em poesia ou prosa, são feitos para serem encenados.

As formas clássicas são a Tragédia- representação de um fato trágico, apto por trazer à tona compaixão e terror- e a Comédia, a representação de um fato inspirado na vida e no sentimento comum, de riso fácil, em geral criticando costumes.

Últimas palavras: a forma é o diferencial

De tudo exposto, fica evidente que o fenômeno literário se materializa de diversas formas. Contudo forma significa um dizer particular, por isso a literatura é o manifestar-se em uma forma singular, estranha e com procedimentos que lhe são particulares. Ler poesia é sentir o ritmo, a sonoridade e perceber a imagem de maneira a torná-las um pensamento integrado e analógico. Em símile na prosa, o leitor tem perceber a integração da forma: o enredo, os personagens e a perspectiva de narrar, para que, de fato, compreenda o fenômeno literário. A forma é o diferencial.

Bibliografia:

ARISTÓTELES(s/d) “Arte Poética” em Arte Retórica e Arte Poética, Rio de Janeiro: Ediouro.

JAKOBSON, Roman (1975) “Lingüística e Poética” em Lingüística e Comunicação. São Paulo: Cultrix.

VÁRIOS. (1976) Teoria da Literatura – Formalistas Russos. Porto Alegre: Globo.

0 comentários: