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A linguagem que fala de si mesma: Metalinguagem

terça-feira, 22 de setembro de 2009

A palavra metalinguagem, formada com o prefixo grego meta, que expressa as idéias de comunidade ou participação, mistura ou intermediação e sucessão, designa a linguagem que se debruça sobre si mesma. Por extensão, diz-se também: metadiscurso , metaliteratura, metapoema e metanarrativa .

Em seu estudo sobre as funções da linguagem, Roman Jakobson (1974) considera função metalinguística quando a linguagem fala da linguagem, voltando-se para si mesma. Tal função reenvia o código utilizado à língua e a seus elementos constitutivos. A gramática, por exemplo, é um discurso essencialmente metalinguístico porque se trata do código explicando o próprio código. Quando se faz análise sintática, faz-se uso dessa função.

Quando consultamos o dicionário para nos inteirarmos do significado da palavra metalinguagem, estávamos nos valendo da função metalinguística, pois o dicionário é um repertório de palavras sobre palavras, à disposição do falante, nativo ou não. É interessante registrar, contudo, que o que parece ser uma mera lista de palavras no seu sentido denotativo, mais corriqueiro e imediato, já contém potencialmente a múltipla carga de significações e, conseqüentemente, de sedução da língua.

Mesmo no dia-a-dia, fazemos uso constante da função metalinguística sem, muitas vezes, nos darmos conta disso. Ao interromper um falante para perguntar o significado de uma palavra, estamos também nos utilizando desta função.

Mas há um conceito de metalinguagem mais específico e complexo porque envolve um trabalho mais elaborado do código sobre o código. O cinema, os quadrinhos, a propaganda, as artes plásticas e a própria literatura fazem amplo uso dessa função. Assim, quando um escritor escreve um poema e discute o seu próprio fazer poético, explicitando procedimentos utilizados em sua construção, ele está usando a metalinguagem.



Eu faço versos como quem chora

De desalento... de desencanto...

Fecha o meu livro, se por agora

Não tens motivo nenhum de pranto.



Meu verso é sangue. Volúpia ardente...

Tristeza esparsa... remorso vão...

Dói-me nas veias. Amargo e quente,

Cai, gota a gota, do coração.



E nestes versos de angústia rouca

Assim dos lábios a vida corre,

Deixando um acre sabor na boca.



Eu faço versos como quem morre.

(BANDEIRA, 1990, p.119)



O poeta, no ato mesmo de fazer o poema, expõe seu conceito de poesia, explicitando sua função catártica, ou seja, aquela de meio de vazão dos sentimentos, de alívio mesmo de sofrimentos. Fundem-se, em seus versos, a idéia de poema e vida e, paradoxalmente, a de representação da morte. Registre-se que, no caso desse texto, o poeta não se distingue do eu lírico, pois ele se declara o autor. Essa característica que dá ao verso um toque pessimista pode ser considerada uma marca da poesia de Manoel Bandeira. Por outro lado, o eu lírico/autor busca no poema transcrito a adesão do leitor visando a compreensão do código, aqui visto no sentido mais específico de concepção do poema. É como se o poeta quisesse fazer um pacto com seu leitor, dando-lhe uma chave do que entende por poesia naquele momento. Este é o caso do poema Os meus versos, da poeta portuguesa Florbela Espanca:



Rasga estes versos que eu te fiz, amor!

Deita-os ao nada, ao pó, ao esquecimento,

Que a cinza os cubra, que os arraste o vento,

Que a tempestade os leve aonde for!

Rasga-os na mente, se o souberes de cor,

Que volte ao nada o nada dum momento!

Julguei-me grande pelo sentimento,

E pelo orgulho ainda sou maior!...



Tanto verso já disse o que eu sonhei!

Tantos penaram já o que eu penei!

Asas que passam, todo o mundo as sente...



Rasga os meus versos...Pobre endoidecida!

Como se um grande amor cá nesta vida

não fosse o amor de toda a gente!...

(ESPANCA, 1987, p. 72)



O interlocutor expresso na poesia seria, num primeiro momento, o ser amado pelo eu lírico, para, em seguida, tornar-se qualquer leitor que já tenha amado. É curioso observar que a expressão “Pobre endoidecida”, no último terceto, opera uma ambigüidade em relação ao eu que enuncia e ao receptor, pois pode ser vista como aposto ou como vocativo.

Como ressalta Décio Pignatari, vivemos uma infinidade de linguagens e o processo metalinguístico é inerente ao trabalho criador:

A multiplicação e a multiplicidade de códigos e linguagens cria uma nova consciência de linguagem, obrigando a contínuos cotejos entre eles, a contínuas operações intersemióticas e, portanto, a uma visada metalinguística, mesmo no ato criativo, ou melhor, principalmente nele, mediante processos de metalinguagem analógica, processos internos ao ato criador. (PIGNATARI, 1974, p.79)

Drummond, no seu livro Farewell, publicado postumamente, toma como tema de alguns poemas quadros famosos, apropriando-se inclusive de seus títulos. Assim fala de “O Grito”, conhecido quadro de Edward Munch:



A natureza grita, apavorante.

Doem os ouvidos, dói o quadro.

(ANDRADE, 1996, p.30)



Note-se que o escritor escreve seu poema enquanto lê o quadro: sua escrita é, simultaneamente, leitura intersemiótica uma vez que se trata de um poema voltado para um outro código, no caso o pictórico.

Os processos metalinguísticos não são, porém, exclusivos da literatura. A metalinguagem se faz presente muito freqüentemente nos filmes e na propaganda. Desde o título, o filme “Cinema Paradiso” evidencia o procedimento metalinguístico uma vez que seu enredo trata do próprio cinema. Na verdade, é um hino de amor ao cinema, que nos é apresentado como um forte elo entre o velho operador Alfredo - responsável pela projeção dos filmes - e Totó - seu ajudante e futuro cineasta. É interessante lembrar a cena final, posterior à morte de Alfredo. Totó, já adulto, retornando à cidade para o enterro do amigo, recebe uma lata com um filme feito por Alfredo com todos os beijos cortados pela censura na ocasião da exibição das fitas. São “beijos de amor” ao cinema. Além disso, pode-se associar a figura do Totó, enquanto cineasta, à do diretor do filme a que assistimos, contando sua própria história. Vale a pena ver ainda, nesse mesmo sentido, filmes como A Rosa Púrpura do Cairo e Tiros na Brodway, de Woody Allen, A mulher do tenente francês, de Karel Reisz, Carmem, de Carlos Saura, A flor do meu segredo, de Almodóvar e muitos outros.

Nas artes plásticas, tal recurso pode ser observado, por exemplo, no famoso quadro de Velázquez, “As meninas”, onde o pintor se retrata pintando o quadro. Num jogo de olhares com o espectador, ele o traz para dentro do quadro, deslocando lugares instituídos. É a pintura retratando o ato de pintar, uma maneira mesmo de se encarar esse ato.

Uma forma especial de metalinguagem é justamente a crítica que nomeia procedimentos do texto literário. Porque a análise literária trabalha diretamente com a função poética, ela se vale da função metalinguística que lhe fornece a terminologia necessária:

(...) a crítica haverá de convocar todos aqueles instrumentos que lhe pareçam úteis, mas não poderá jamais esquecer que a realidade sobre a qual se volta é uma realidade de signos, de linguagem portanto. (CAMPOS, 1992, p.11-12)

Sobre a característica metalingüística da atividade da crítica nos fala ainda Haroldo de Campos:

Crítica é metalinguagem. Metalinguagem ou linguagem sobre a linguagem. O objeto - a linguagem-objeto - dessa metalinguagem é a obra de arte, sistema de signos dotado de coerência estrutural e de originalidade. (CAMPOS, 1992, p.11)

Na verdade, enquanto o poeta faz a relação da linguagem com o mundo, o crítico faz a relação com a linguagem do poeta, mantendo, assim, certa hierarquia entre os discursos. Registre-se que, na crítica contemporânea, existe uma tendência a se abolir as fronteiras discursivas, isto é, a linguagem do crítico mistura-se à do autor, erigindo-se também como um discurso criativo. Essa crítica é chamada de escritural ou crítica-escritura por incorporar na sua a linguagem criativa para a qual se volta.

Também o romance se faz ensaio e discute, não apenas sua própria construção, como a construção de outras formas literárias em sua relação com a produção e a recepção. A esse tipo de romance, que tem consciência de si mesmo, dá-se o nome de metaficção já que ele relativiza e dramatiza as fronteiras entre ficção e crítica. A esse propósito, diz Mark Currie na introdução de um livro, Metafiction, coletânea de ensaios sobre o assunto:

O romance auto-consciente tem, assim, o poder de explorar não apenas as condições de sua própria produção, mas as implicações da explanação narrativa e da reconstrução histórica em geral. (CURRIE, 1995, p.14)

Assim, vê-se que a metalinguagem atravessa formas diversas de linguagem de forma recorrente e interativa já que a maioria das produções culturais vale-se desse processo auto-reflexivo.



Bib.:

ANDRADE, Carlos Drummond. Farewell. Rio de Janeiro : Record, 1996.

BANDEIRA, Manuel. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1990.

CAMPOS, Haroldo. Metalinguagem e outras metas: ensaios de teoria e crítica literária. 4.ed, São Paulo: Perspectiva, 1992.

CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa. 2a. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.

CURY, Maria Zilda Ferreira e WALTY, Ivete Lara Camargos. Textos sobre textos: um estudo da metalinguagem. Belo Horizonte: Dimensão, 1998.

CURRIE, Mark (Ed). Metafiction. London: Longman, 1995.

ESPANCA, Florbela. A mensageira das violetas. São Paulo: LP&M, 1997.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio Eletrônico. V 1. 3. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994.

JAKOBSON, Roman. Lingüística e Comunicação. Trad. Izidoro Blikstein e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1974.

PIGNATARI, Décio. Semiótica e literatura. São Paulo: Perspectiva, 1974.

TODOROV, DUCROT. Dicionário Enciclopédico das Ciências da Linguagem. Trad. Alice Miyashiro et al.. São Paulo: Perspectiva, 1977.

CHALUB, Samira. A Metalinguagem. (1986)



Ivete Lara Camargos Walty e Maria Zilda Ferreira Cury

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