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LÍNGUA

sábado, 5 de setembro de 2009

No livro Leçon (1978), que constitui o texto de sua aula inaugural, em 7 de janeiro de 1977, do curso que ministraria, de 1977 a 1980, no Collège de France, Roland Barthes (1915-1980), depois de proferir, no limiar daquela tradicionalíssima instituição, “onde reinam a ciência, o saber, o rigor e a invenção disciplinar” (p. 8), um discurso protocolar, enuncia, literal e contundentemente: “Esse objeto em que se inscreve o poder, desde toda eternidade humana, é: a linguagem – ou, para ser mais preciso, sua expressão obrigatória: a língua. A linguagem é uma legislação, a língua é seu código” (p. 12). Tendo estabelecido uma fronteira, incisiva, mas móvel, entre língua e linguagem (distinta da fala, ou linguagem, a língua é, no entanto, dela solidária, ensina Saussure, à página 27 de seu Curso de lingüística geral ), o semiólogo francês define a língua, ao mesmo tempo que lhe revela os pecados capitais, neste termos lapidares (o significante “lapidares” terá, aqui, para além da corriqueira conotação de “concisos”, a significação de “que apedrejam”): “Não vemos o poder que reside na língua, porque esquecemos que toda língua é uma classificação, e que toda classificação é opressiva: ordo quer dizer, ao mesmo tempo, repartição e cominação. Jákobson mostrou que um idioma se define menos pelo que ele permite dizer, do que por aquilo que ele obriga a dizer” (p. 12-13). Depois de citar três “exemplos grosseiros” da língua francesa, o autor de Eléments de sémiologie (1965) estatui que “assim, por sua própria estrutura, a língua implica uma relação fatal de alienação. Falar, e com maior razão discorrer, não é comunicar, como se repete com demasiada freqüência, é sujeitar: toda língua é uma reição generalizada” (p. 13). Tendo dialogado com o filósofo e filólogo Joseph Ernest Renan (1823-1892), Barthes maneja toda a força da Retórica e desfere o aforismo fatal: “Mas a língua, como desempenho de toda linguagem, não é nem reacionária, nem progressista; ela é simplesmente: fascista: pois o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer” (p. 14).

Revelando pagar tributo a Roman Jakobson (1896-1982), “o poeta da lingüística”, segundo Haroldo de Campos (1929-2003), Barthes transparece ter bebido nas fontes lingüísticas de Ferdinand de Saussure (1857-1913), o insigne pai da lingüística e padrinho da semiologia barthesiana. No entanto, rebela-se contra a lingüística, perpetrando o assassinato do pai, na medida em que, contrariamente a Saussure, que postulava ser a lingüística - dado que a linguagem é um sistema de signos - parte da semiologia, instaura a semiologia sob o signo da lingüística. Outro ponto de atrito entre os dois pensadores, um suíço, outro francês, é o fato de Barthes não conferir, prioritariamente à linguagem ou fala ou, ainda, discurso, a natureza comunicativa, mas a de sujeição.

Canonicamente, lemos Saussure, em seu discurso-fundador, onde conceitua, separada e conjuntamente, língua e linguagem, irmãs-siamesas do mesmo sistema de signos: “Mas o que é a língua? Para nós, ela não se confunde com a linguagem; é somente uma parte determinada, essencial dela, indubitavelmente. É, ao mesmo tempo, um produto social da faculdade da linguagem e um conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo corpo social para permitir o exercício dessa faculdade nos indivíduos. Tomada em seu todo, a linguagem é multiforme e heteróclita; a cavaleiro de diferentes domínios, ao mesmo tempo física, fisiológica e psíquica, ela pertence além disso ao domínio individual e ao domínio social; não se deixa classificar em nenhuma categoria de fatos humanos, pois não se sabe como inferir sua unidade. A língua, ao contrário, é um todo por si e um princípio de classificação. Desde que lhe demos o primeiro lugar entre os fatos da linguagem, introduzimos uma ordem natural num conjunto que não se presta a nenhuma classificação”(p. 17). Portanto, a langue (língua) - estrutura (note-se que Saussure não usou o signo “estrutura”, que lhe é posterior, mas “sistema”) abstrata, fundamental - distingue-se da parole (palavra, linguagem, discurso); a língua seria fixa, ao passo que a linguagem – realização ou atualização da língua - se mobilizaria em uma diversidade infinita de expressões; no entanto, visto ser a língua de natureza social, na medida em que uma comunidade adota suas convenções, a língua pode modificar-se, constituindo, assim, um movimento diacrônico, que daria conta do caráter evolutivo da língua; já a análise sincrônica estabelece um corte num dado momento da história da língua. “(...) Sincronia e diacronia designarão respectivamente um estado de língua e uma fase de evolução”, conforme Saussure ( p. 96). A língua é um tipo particular de código; código, entende-se como uma estrutura semiótica que propicia a comunicação entre o emissor e o receptor. Em termos tomistas ou escolásticos, a língua seria potentia, ao passo que a linguagem será actus.

Código, portanto fato social par excellence (o epíteto “social” soa pleonástico; no entanto a redundância opera, no sintagma em questão, significações importantes), a língua é o locus privilegiado da ideologia. Na Babel em que nos coube viver e discursar, caberia, também, uma pergunta de cunho ideológico, até porque a língua é uma instituição eminente social, como, aliás, insiste Saussure: haveria uma língua superior? Sabe-se que, no decorrer da História, as conquistas, através de guerras, fazem-se com a imposição da língua dos vencedores aos vencidos. O império da língua configura o que Barthes designou como “cominação”, ato de sujeição, ato de submissão, dominação pela língua “vitoriosa”. Assim como não há, no concerto das artes, clássicas e contemporâneas, uma arte superior, não pode haver uma língua hegemônica, apesar de a famigerada globalização impor o inglês estadunidense como língua universal, bem como a expansão e massificação da Internet inculcar uma língua esdrúxula, cheia de abreviações, mutilada, arrogantemente hermética, praticada, sobretudo, pelos mais jovens, que têm preguiça de escrever uma palavra com sua extensão, naturalmente poética. Desde que existe, há algum tempo, a Internet a cabo e a rádio, não mais procede a desculpa da economia de impulsos telefônicos, que levava a cortar palavras; mas o vício terá permanecido, insuportável para todos aqueles que amamos as palavras em seu desenho, voluptuoso, meditativo e polissêmico. Como parêntesis diacrônicos, prestamos homenagem ao pensador sardo Antonio Gramsci (1891-1937), que, por detrás das grades de seu cárcere vitalício e mortal, conferiu ao signo “hegemonia” uma instigante atualidade para se pensar a estrutura como um todo, vale dizer, a infra-estrutura e a supra-estrutura, ou, em termos gramscianos, o “bloco histórico”. No “império dos signos” (Barthes), não há, definitivamente, qualquer lugar para a hegemonia de determinada língua. Aliás, em Depois de Babel: aspectos da linguagem e tradução, George Steiner, discutindo a quase infinita proliferação das línguas, “esta multiplicidade desvairada”, mystère suprême da antropologia, segundo Lévi-Strauss, reflete, amplamente, sobre uma inexistente relação de dependência entre país, dito desenvolvido, e língua desenvolvida, ou país “subdesenvolvido” e língua “subdesenvolvida” (2002): “Não dispomos de padrões (ou só de padrões extremamente aventurosos) que nos permitam afirmar que qualquer língua humana é superior a uma outra, que sobrevive por combinar mais eficazmente que outras as exigências da sensibilidade e da existência física” (p. 83-84); na “álgebra da língua”, são muito mais complexos os problemas do que podem supor nossas vãs lingüística e semiologia. Já Karl Marx (1818-1883) não deslindava o mistério de a Grécia, país com infra-estruturas arcaicas, ter produzido uma arte tão sublime. Há muitas mais coisas entre o céu e a terra do que possa elucubrar nossa vaidosa filosofia. Ainda sob a rubrica do traço essencialmente social da língua, cumpre assinalar a recente publicação do livro História social da língua nacional, com a organização de Ivana Solze Lima e Laura do Carmo, que discute como a língua portuguesa no Brasil tem uma história própria, marcada por condições culturais e sociais específicas, relacionadas à colonização, à escravidão, à relação com os indígenas e à imigração.

Com relação ao amor à língua, recite-se o texto de Clarice Lispector (1920-1977), escritora brasileiríssima, nascida na Ucrânia:

Declaração de amor

Esta é uma confissão de amor: amo a língua portuguesa. Ela não é fácil. Não é maleável. E, como não foi profundamente trabalhada pelo pensamento, a sua tendência é a de não ter sutilezas e de reagir às vezes com um verdadeiro pontapé contra os que temerariamente ousam transformá-la numa linguajem de sentimento e de alerteza. E de amor. A língua portuguesa é um verdadeiro desafio para quem escreve. Sobretudo para quem escreve tirando das coisas e das pessoas a primeira capa de superficialismo.
Às vezes ela reage diante de um pensamento mais complicado. Ás vezes se assusta com o imprevisto de uma frase. Eu gosto de manejá-la - como gostai a de estar montada num cavalo e guiá-lo pelas rédeas, às vezes lentamente, às para nos dar para sempre uma herança de língua já feita. Todos nós que escreve-nos atamos fazendo do túmulo do pensamento alguma coisa que lhe dê vida.
Essas dificuldades, nós as temos. Mas não falei do encantamento de lidar com uma língua que não foi aprofundada. O que recebi de herança não me chega.
Se eu fosse muda, e também não pudesse escrever, e me perguntassem a que língua eu queria pertencer, eu diria: inglês, que é preciso e belo. Mas como não nasci muda e pude escrever, tornou-se absolutamente claro para mim que eu queria mesmo era escrever em português. Eu até queda não ter aprendido outras línguas: só para que a minha abordagem do português fosse virgem e límpida.

“Minha pátria é a língua portuguesa”, terá decretado Bernardo Soares, semi-persona de Fernando Pessoa (1888-1935), que, no seu desassossego, inclusive lingüístico, escolheu, definitivamente, o idioma de Camões (1524-1580). O poeta baiano Caetano Veloso retoma, para além de uma plêiade de outros signos culturais, esses dois poetas-expoentes lusos e canta o hino “Língua”, onde urde um jogo de significância, não só entre as várias e variadas figuras de linguagem, como na tensão entre a denotação e a conotação, na medida em que o signo “língua” goza, tanto do sentido de órgão físico da fonação, quanto do sentido de código sensorial, sensual, seminal:

Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões
Gosto de ser e de estar
E quero me dedicar a criar confusões de prosódia
E uma profusão de paródias
Que encurtem dores
E furtem cores como camaleões
Gosto do Pessoa na pessoa
Da rosa no Rosa
E sei que a poesia está para a prosa
Assim como o amor está para a amizade
E quem há de negar que esta lhe é superior?
E deixe os Portugais morrerem à míngua
“Minha pátria é minha língua”
Fala Mangueira! Fala!

Flor do Lácio Sambódromo Lusamérica latim em pó
O que quer
O que pode esta língua?

Vamos atentar para a sintaxe dos paulistas
E o falso inglês relax dos surfistas
Sejamos imperialistas! Cadê? Sejamos imperialistas!
Vamos na velô da dicção choo-choo de Carmem Miranda
E que o Chico Buarque de Holanda nos resgate
E – xeque-mate – explique-nos Luanda
Ouçamos com atenção os deles e os delas da TV Globo
Sejamos o lobo do lobo do homem
Lobo do lobo do lobo do homem
Adoro nomes
Nomes em ã
De coisas como rã e ímã
Ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã
Nomes de nomes
Como Scarlet Moon de Chevalier, Glauco Mattoso e Arrigo Barnabé
e Maria da Fé

Flor do Lácio Sambódromo Lusamérica latim em pó
O que quer
O que pode esta língua?

Se você tem uma idéia incrível é melhor fazer uma canção
Está provado que só é possível filosofar em alemão
Blitz quer dizer corisco
Hollywood quer dizer Azevedo
E o Recôncavo, e o Recôncavo, e o Recôncavo meu medo
A língua é minha pátria
E eu não tenho pátria, tenho mátria
E quero frátria
Poesia concreta, prosa caótica
Ótica futura
Samba-rap, chic-left com banana
(– Será que ele está no Pão de Açúcar?
– Tá craude brô
– Você e tu
– Lhe amo
– Qué queu te faço, nego?
– Bote ligeiro!
– Ma'de brinquinho, Ricardo!? Teu tio vai ficar desesperado!
– Ó Tavinho, põe camisola pra dentro, assim mais pareces um espantalho!
– I like to spend some time in Mozambique
– Arigatô, arigatô!)
Nós canto-falamos como quem inveja negros
Que sofrem horrores no Gueto do Harlem
Livros, discos, vídeos à mancheia
E deixa que digam, que pensem, que falem.

Analisando a poesia da paulista Hilda Hilst (1930-2004), em Ficções (1977), Leo Gilson Ribeiro enuncia: “Não será através de todas as palavras de uma língua que se exorcizará a Angústia. O dicionário inteiro não abolirá o Tempo, a Morte, o apodrecimento da carne” (1977, p. XI). No entanto, as palavras “em estado de dicionário”, como declara Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), poderão, através do movimento poético, trapacear o tempo, a morte e todas as vicissitudes da condição simplesmente humana.

LINGUAGEM; CÓDIGO

Bib. BARTHES, Roland. Aula. Trad. De Leyla Perrone-Moisés. (1980). LIMA, Ivana Stolze e CARMO, Laura. História social da língua nacional. (2008). LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. (1984). RIBEIRO, Leo Gilson. In: HILST, Hilda. Ficções ( 1977). SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral. Trad. Antônio Chelín, José Paulo Paes e Isidoro Blikstein. (1969). STEINER, George. Depois de Babel: aspectos da linguagem e tradução. Trad. Miguel Serras Pereira. (2002).


Latuf Isaias Mucci

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