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Jogo II

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Conceito-chave da hermenêutica gadameriana da experiência da obra de arte com o qual o autor discute a subjectivação pós- kantiana da problemática filosófica da estética.A tese de fundo de que o autor parte é a seguinte : a experiência da obra de arte e a experiência do literário obrigam a alargar o conceito habitual de experiência, pois, suspendem os parâmetros possessivos do método como via única da verdade. Não deixam , no entanto, como se pensou a partir de Kant, de representar uma forma válida do conhecimento humano e da verdade.O encontro com a arte é uma forma de conhecimento e de enriquecimento que se reflecte no modo de ser do existir - - tal é a tese de Gadamer. Mas para que isto possa ser reconhecido, é necessário discutir a limitação do âmbito, por excelência intersubjectivo, do sentido da obra de arte ao juízo formal do gosto ou ao da cogenialidade romântica.Há que defender a experiência da obra de arte como um precioso modo da autocompreensão humana, esquecido e menorizado pelo pacto estabelecido a partir da Modernidade entre verdade e método. Modo lúdico- festivo que urge reabilitar, quando finalmente se compreende, nos dias de hoje (nomeadamente depois da crise das filosofias do sujeito), que o homem também habita poetica e ludicamente o mundo, sendo esta aliás a sua natureza distintiva..

É pois no contexto da crítica que o autor faz à redução moderna do âmbito humano da verdade ao discurso unívoco e constringente da ciência mecanicista da natureza que deve ser compreendida a hermenêutica da experiência da obra de arte, aparecida, em primeira mão, na primeira parte da conhecida obra Verdade e Método.O autor situa-se aqui face ao Neokantismo e ao Positivismo reclamando — a partir de uma poética dos possíveis antropológicos (que, de modo nenhum, se limitam ao primado do instrumental) — um conceito de experiência que permita compreender a obra de arte como experiência, capaz de modificar quem a faz .O horizonte em que se situa é, claramente, o da crítica heideggeriana à tradição substancialista clássica, nomeadamente à sua vertente antropocêntrica moderna.O objectivo da sua reflexão - - mostrar como a experiência da obra poética e literária é uma forma válida da verdade e um correctivo para o ideal da certeza objectiva e para a Hybris do conceito — Gadamer confessa tê-lo sentido como primordial desde os seus primeiras tentativas para pensar filosoficamente.São, assim,os pressupostos puramente teleológico-conceptuais do modo filosófico-tradicional de pensar a experiência, enquanto raíz do conhecimento, que Gadamer procura desmontar em nome de uma experiência da alteridade, que só pode acontecer por meio da representação lúdica e do efeito da palavra poética, dado que esta não se reduz nem à transcendência separada nem ao modelo puramente pragmático da objectividade.Consegue-o, desde logo, com a sua hermenêutica da obra de arte, cujo verdadeiro fio condutor vai ser justamente o jogo ôntico-ontológico do Belo.

O autor parte do conceito de jogo, enquanto fenómeno essencial da vida e cultura humanas, fenómeno que pressupõe uma concepção de experiência à qual é inerente todo um esquema interpretativo que ultrapassa o cartesianismo dogmático da autoconsciência, tal como o ponto de vista puramente pragmático da relação homem-mundo.Modo de ser do existir, o jogo é um movimento de inter-acção que não serve um determinado fim ou uso específico de uma subjectividade, à partida, já constituída. Pertence-lhe um peculiar modo de ser caracterizado pelas categorias da relação, da suscitação conjunta e da representação Não há jogo que se reduza ao comportamento do jogador.A condição de qualquer jogo é justamente ultrapassar os pontos de vista singulares. O jogo tem as suas próprias regras, uma seriedade própria que envolve o jogador e exige uma suspensão das leis e costumes da vida pragmático- quotidiana.O próprio uso linguístico do termo, lembra-nos Gadamer, nomeadamente os seus significados metafóricos, referem uma forma de movimento puramente autotélico,cuja irresistibilidade envolvente torna absurda a questão respeitante a a quem o realiza.É um movimento que carece de substracto pois é ele mesmo que se desenrola ou joga não permitindo a sua redução a qualquer sujeito que possa distinguir-se como aquele que joga.

É assim natural pensar a experiência do belo — que desde os gregos se distinguia claramente da experiência do útil — a partir do horizonte referencial do jogo.O próprio

Kant descrevera a ausência de todo o interesse particular, a liberdade perante os fins e a ausência de conceitos face ao prazer diante do belo como o estado da mente no qual as nossas faculdades intelectuais jogam um jogo livre.

Para Gadamer, no entanto, só uma análise fenomenológica do conceito de jogo permite

hoje desvinculá-lo das conotações subjectivistas que adquirira justamente com Kant e nomeadamente com Schiller.É que o verdadeiro ser do jogo joga-se entre o eu e o tu ; exige participação; é movimento, exibição, espectáculo , isto é um acontecer de sentido que põe em cena a dimensão icónica ou não especializada da condição humana.No jogo surge o vaivém de um movimento que continuamente se repete sem obedecer ao cumprimento de qualquer objectivo ou fim que lhe dê sentido. Tal movimento implica a metaforização do sujeito e a da sua abertura relacional ao mundo. Assim, o verdadeiro pano de fundo impilcado na natureza ontológica particular do fenómeno lúdico é, segundo Gadamer, o conceito grego de mimesis : isto é , uma forma de produção que não fabrica coisas utilitárias mas na qual algo chega à sua representação. No jogo joga-se, de facto, sempre a algo . A verdadeira finalidade do jogo está no próprio jogo que ,por sua vez, nada é sem as suas encenações.O primado do jogo perante a consciência do jogador exprime-se pelo próprio facto de a noção de jogador implicar uma metamorfose do modo habitual de ser do sujeito. O jogo só pode realmente surgir quando não há já sujeitos que se comportam ludicamente mas antes indivíduos que , suspendendo as suas exigências quotidianas, se abandonam totalmente ao ritmo e harmonia do movimento lúdico. Jogar é, então, fundamentalmente ser jogado, isto é, participar num acontecer que consegue transportar jogadores e espectadores para um espaço próprio: o mundo lúdico que se distingue do mundo quotidiano pelo facto de propôr a quem nele participa um horizonte de relações possíveis e inéditas..Aqui reside o fascínio habitualmente ligado à ideia de jogo: o horizonte de possibilidades que ele consegue oferecer à variação imaginativa do eu enquanto movimento em que se joga a algo. Isto é, enquanto é um movimento em que se cumpre uma tarefa que não implicando uma solução ou resolução, retira o seu sentido da co- participação dos jogadores na forma de auto-apresentação inerente ao movimento lúdico.

Com a análise do jogo, como paradigma da racionalidade hermenêutica própria da arte e do literário, Gadamer pretende revelar uma estrutura ontológica particular, sempre esquecida pela tradição Reconhece, assim, no movimento lúdico o acontecer original da figuração simbólica, própria da ideia de linguagem. Previne-nos quanto à natureza da sua forma de representação: ela não deve entender-se como uma cópia que descreve ou como uma pura alteração do original ( o mundo lúdico surge como uma suspensão do mundo quotidiano, mas não pode existir sem ele) mas como a autêntica transmutação exigida pela própria coisa, que se transforma de repente numa outra coisa e assim alcança o seu ser verdadeiro (frente ao qual o seu modo anterior de ser nada era). Deste modo, deixa também de ter qualquer sentido a contraposição habitual entre a vida e a arte. Pelo contrário, a experiência da arte confronta o existir com uma forma concreta da sua autocomprensão: aquela cuja dizibilidade rejeita a luz puramente antropomórfica do conceito ou o pontualismo vivencial da genialidade estética e requisita aquele que nela participa no reconhecimento do sentido outro do mundo.Recusando a opacidade e a neutralidade da objectividade das coisas, lembra-nos Gadamer, o belo é o que por si mesmo atrai e encanta - - ”a linguagem da coisa” que dorme em todos nós , apesar de não estarmos habitualmente preparados para a ouvir. Na arte, como no literário, não é apenas algo que pertence ao passado ou diga exclusivamente respeito ao presente que acontece , mas o que se lhes re(a)presenta como possível e, no entanto, mesmo e igual: a abertura transfinita do homem — desde sempre implicada na atitude simbólico-metafórica, hoje seriamente comprometida pelo império do conhecimento especializado e operatório. E isto quer dizer que a dimensão lúdico-metafórica da linguagem deve ser reabilitada como verdadeiro fio condutor do acesso a uma verdade, sem a qual o homem acaba por se reduzir a autómato, e cuja dizibilidade ultrapassa os critérios habituais da verdade - segurança, certeza e eficácia .A abertura ao Outro representada pela experiência lúdica do estético e literário descentra o sujeito do seu narcisismo habitual devolvendo-lhe uma outra forma de habitar o mundo: a experência da relação e da compreensão.

HERMENÊUTICA

Bibliografia: H.-G.GADAMER, Gesammelte Werke 1. Hermeneutik 1. Wahrheit und Methode-I. Grundzuege einer Philosophischen Hermeneutik, Tuebingen, Mohr, 1986; ID., Gesammelte Werke, 2 .Hermeneutik II: Wahrheit und Methode-2. Ergaenzungen, Register, Tuebingen, Mohr, 1986; ID., Die Aktualitaet des Schoenen. Kunst als Spiel, Symbol und Fest , Stuttgart, Reclam, 1977.ID, Gesammelte Werke. Aesthetik und Poetik I. Kunst als Aussage , Tuebingen, Mohr, 1993, Bd.8 ; ID, Gesammelte Werke. Aesthetik und Poetik. II. Hermeneutik im Vollzug, Tuebingen, Mohr,1993, Bd.9.

Maria Luísa Portocarrero F. Silva

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