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NACIONALISMO LITERÁRIO

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Teoricamente, o nacionalismo independe da literatura, pois o significado fundamental de nação, mesmo o mais difundido na literatura, é político. Com efeito, há nessa arte uma inegável aspiração nacional, o que explica, inicialmente, o vínculo do significado político com o uso estético da linguagem. De maneira geral o Romantismo foi o grande tributário do nacionalismo, embora nem todas as suas manifestações se integrassem nele (Antonio Candido: Formação da Literatura Brasileira. 1993, p. 15). A tendência dessa conexão, que vinha se acentuando desde o século XVIII, encontra no Romantismo o intuito patriótico e o tema da identificação nacional e tudo que nele estava implicado. O encontro das aspirações de atender o propósito histórico da construção das diversas identidades nacionais concomitantemente com a formação das respectivas literaturas nacionais estabelece a dupla orientação que define as principais relações entre literatura e nacionalidade.

Os nacionalismos literários ganharam diversas formas, cujo leque variado se estende entre dois extremos. Em um deles, limitado às dimensões predominantemente localistas, reflete uma concepção ontológica, fixa e permanente de nacionalidade. A outra compreensão, mais voltada para a universalidade e o reconhecimento das diferenças, é baseada na inconstância, alteridade e multiplicidade. Como a identidade nacional não tem existência objetiva, ambas as concepções, e as diversas gradações existentes entre elas, passam necessariamente pela dimensão da ficcionalidade, posto que a representação de nacionalidade é fundamentalmente baseada no sentido e sentimento de pertença ou compartilhamento que os integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social têm de fazer parte de uma mesma “comunidade imaginária” (Bennedict Anderson: Nação e consciência nacional, Brasil, 1989, p.33). A literatura, então, fornece aos nacionalismos a expressão dessa ficção, que é a impressão de que os diferentes indivíduos de um grupo social comparticipam simultaneamente de uma mesma realidade social, histórica, cultural e, principalmente, identitária.

Desse modo o nacionalismo, em seus diversos matizes, baseia-se na idéia da unidade nacional e, para isso, enraíza-se no propósito coletivo da igualdade interna e, outrossim, na diferença externa. A igualdade interna decompõe-se do fundamento de um caráter e, por conseqüência, essência que caracterizaria um povo, sua cultura e história. Evidentemente essa essência, na medida em que contempla os vínculos internos de parentesco e ancestralidade comuns, também observa atentamente a diferença aos elementos externos tais como outros grupos sociais, culturas e nações.

Por isso, a definição do caráter predominante de um povo revela-se imprescindível para configurar o imaginário da identidade nacional. Essa percepção pressupõe formas de afiliação social e textual, porque é estabelecida por uma série de narrativas sociais e literárias que fornecem imagens, cenários, símbolos e histórias que representam o sentimento imaginário de uma realidade compartilhada e coexistente, que configura o alicerce da idéia de nação. Esse conjunto de narrativas que tem na literatura o seu aliado decisivo denomina-se “narrativa da nação” (Stuart Hall: A identidade cultural na pós-modernidade, Brasil, 1997, p. 56).

As narrativas nacionais, como entidades culturais, são produzidas a partir da rede intertextual que representa a coesão da coletividade ligada a uma suposta ancestralidade comum a todos e é atualizada à medida que novos textos passam a integrá-la, produzindo novos sentidos, mas sempre se referindo a um passado pretensamente imutável. Desta forma, conforme Stuart Hall, mesmo com a constante fragmentação das identidades na modernidade e ainda que tensionada, a nacionalidade permanece constituindo “uma das principais fontes de identidade cultural” (p. 51). Enfim, é uma identidade que se realiza pelo desenho simbólico das fronteiras de um espaço limitado em que uma população imaginariamente coexiste, compartilhando uma hipotética realidade e construindo uma cultura que constitui um sistema de representações no qual a população identifica-se como povo.

Em função de os nacionalismos estarem sujeitos ao caráter imaginário e simbólico das narrativas nacionais, as respectivas literaturas centralizam a elaboração desse sistema, conjugando a construção de uma identidade nacional na mesma medida em que se assume como um sistema literário que possui uma razão própria e interna. Assim sendo, o sistema literário organiza-se em torno e adere à problemática da identidade nacional. O sistema literário estrutura-se em torno da expressão – que pode ser também problematizada – de um modelo instituído a partir de um influxo interno que o liga a uma tradição textual e, fundamentalmente, intertextual. O nacionalismo literário aderido ao sistema literário dessa forma organiza-se na relação de uma obra com as demais. Configura-se, assim, um movimento duplo de alimentação do passado para projeção no futuro. A tradição, que sinaliza a confirmação de uma identidade, consolida-se à medida que consegue renovar e se atualizar no tempo, projetando o passado no futuro, de modo que seus pontos de referência são encontrados no interior do próprio sistema, ainda que sem deixar de considerar as contribuições exteriores assimiláveis.

Como os nacionalismos literários são processos intertextuais e relacionais, a construção identitária encontra o seu espaço, definindo-se pela posição que cada obra ocupa em relação às antecedentes e também aos demais discursos que lhe são contemporâneos. O sistema literário, nesse sentido, torna-se, assim, espaço de afirmações e réplicas que se constrói e pode ser lido e relido de forma satisfatória e renovada nos diálogos intertextuais estabelecidos. Tal sistema evolui nas configurações consensuais e nas dissonâncias, de forma paradoxal, em permanente e dinâmico processo de construção e reconstrução.

O nacionalismo literário alimentado pela identidade nacional só adquire vitalidade à proporção que evolui constantemente, evitando o imobilismo que decretaria sua falência. Esta é a principal razão de sua formulação no interior do sistema literário, ainda que dele se propague constantemente para outras áreas do conhecimento e da sociedade.

É preciso considerar também que a idéia de nação, a qual está subjacente a problemática do nacionalismo literário, tem um fundamento original mítico, assenta-se em uma cosmovisão e, portanto, ao constituir-se narrativamente, deve encontrar formas para sua constante reiteração. A imagem que traduz a idéia de nação configura-se literária e artisticamente, pois é da plurissignificação que ela extrai a possibilidade de sua renovada e constante leitura e atualização. Em contínuo movimento de obra a obra, sem fixar-se, porque assim decretaria o seu definitivo colapso, o mito original desloca-se pelo sistema, nele se renovando e o alimentando. Assim o nacionalismo literário e as questões dele decorrentes são centralizadores, constituindo um pólo organizador dos sistemas literários nacionais.

Convém ressaltar que a origem da relação entre literatura, nacionalidade e identidade nacional floresceu num momento propício a tal associação. O conceito de nação é relativamente recente e remonta ao século XVIII, na Europa. O Romantismo, segunda metade do século XVIII e primeira metade do século XIX, por suas características intrínsecas, acolheu a missão de construir as identidades nacionais das nações emergentes, tanto na Europa, como, mais tarde, nos processos de independências das colônias americanas. A razão mais relevante para tal acolhimento é o fato de o Romantismo eleger a emoção, em detrimento do intelecto e da razão, como principal fundamento da natureza e da experiência humana. Ao propor a separação entre corpo e mente e consolidar a idéia de que as emoções são naturais e vivem no corpo, e o intelecto vem da civilização e existe na mente, elegeu a experiência afetiva como fonte de sabedoria, da autenticidade e da criatividade. Essas condições permitiram que o culto da natureza e a importância da paisagem possibilitassem erigir a figura do herói nacional, personagem quase sempre modelar e arquetípico, simbolizando a perfeita harmonia entre a natureza e o homem idealizado. A literatura, fazendo uso da ficção, estabeleceu o princípio de uma identidade nacional unitária e ontológica porque era fixa e centralizadora, e encontrou a forma adequada principalmente no modelo monológico do romance romântico, uma vez que nele o nacional configurava-se como valores organizados em torno da figura do herói pátrio, centralizador e em harmonia com o cenário, o espaço e a paisagem. O Romantismo, baseado na figura humana idealizada e numa ancestralidade mítica, derivava de um passado eqüidistante que lhe fornecia os princípios da ancestralidade. Dessa forma, cria um nacionalismo que se contrapõe à idéia de progresso, futuro e modernidade, posto que o passado e a tradição eram seus princípios basilares.

Tal paradoxo gera a crise da relação entre identidade nacional e literatura e, por conseqüência, dos nacionalismos literários, principalmente com os reflexos da Revolução Industrial, a crescente urbanização do mundo ocidental, o surgimento e crescimento das grandes metrópoles e a sua contínua e constante urbanização. A idéia de progresso suplanta a concepção de uma tradição fundamentada no passado. Com o romance moderno a noção de nacionalidade deixa o primeiro plano e passa a uma posição subjacente. A forma polifônica e dialógica do romance moderno aciona uma nova representação humana e social que despoja a essência monológica do nacionalismo romântico, que adotava um ponto de vista narrativo quase sempre fixo e totalizante. Nessa forma, a visão de mundo apresentada o era em detrimento de outras e acaba por operar inclusões e exclusões, lembranças ou esquecimentos, valorização ou desvalorização, aceitação ou rejeição, estereótipos positivos ou negativos.

O romance moderno passa a representar as cenas sociais a partir da relativização do ponto de vista narrativo e os personagens são apresentados de formas parciais e dinâmicas. Tanto os personagens mudam no decorrer do tempo e dos diferentes ambientes ou situações, como o próprio narrador, dependendo na posição que ocupa no tempo e no espaço. Essa parcialidade e dinamicidade narrativas corroem, ou pelo menos evidenciam, as hierarquias sociais, morais, étnicas, religiosas e lingüísticas que sustentavam a nacionalidade ontológica. Com a visão do narrador em movimento por pontos parciais e relativos, a realidade passa a ser enfocada em sucessivas transformações principalmente no que tange aos valores dominantes.

Pela realidade que o novo romance representa, o nacionalismo literário, ou a representação de uma identidade nacional, não conseguiu mais ocupar um plano fundamental e unificador. Senso assim, o que parecia a princípio a falência da união da literatura com o nacionalismo não indica o seu total desaparecimento, haja visto que o sujeito moderno, despojado de um sentimento de pertencimento que a nacionalidade lhe ofertava, tende a experimentar um profundo sentimento de perda da subjetividade. O nacionalismo literário, que perpassa o simbólico, o imaginário e, portanto, o ficcional, ainda oferece ao indivíduo um sistema de representações culturais que lhe permite experimentar o sentimento de compartilhamento, ainda imaginário, no sentido que liga o presente do indivíduo ao fundamento de passado primordial de que todos partilham. Isso não impede que surjam novos nacionalismos literários representando a identidade nacional, não mais com um caráter unificador e hierarquizante das demais formas de diferenciações internas e externas, mas as apresenta em todos os seus matizes, diversidades, conflitos, paradoxos e, mesmo consensos, para revelar como as novas e velhas identidades buscam remontar as diferenças sobre outras unidades, uma vez que as idéias de compartilhamento e de totalidade não desapareceram da realidade e da experiência humanas, pelo menos enquanto desejo.



Nacionalismo cultural



Bib.: Demétrio Magnoli: O corpo da pátria (1997); Eric J. Hobsbawm: Nações e nacionalismo desde 1780. (Rio de Janeiro: 1990; Gilbert Durand: As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arquetipologia geral (São Paulo: 2001); Gilbert Durand: O imaginário: ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem (Rio de Janeiro: 1998); Homi K. Bhabha: O local da cultura (Belo Horizonte, 1998); Ian Watt: A ascensão do romance (São Paulo: 1996); Mikhail Bakhtin: Questões de Literatura e de estética: a teoria do romance (São Paulo, 1988); Northrop Frye: Fábulas de identidade: ensaios sobre mitopoética (São Paulo: 2000).



Ricardo Ferreira do Amaral

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