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Figuras de linguagem

sexta-feira, 17 de julho de 2009

O estudo das figuras de linguagem - ou figuras de retórica ou, ainda, figuras de estilo – não deve resultar numa inócua taxonomia, fastigiosa para o aluno do segundo grau e mais enfadonha ainda e infindável para o estudante universitário. Com efeito, as figuras estruturam a própria linguagem, potencializam o discurso, carregam com expressividade a fala, realçam o que Roman Jakobson denomina “função poética da linguagem”, sendo que toda linguagem é poièsis, vale dizer, criação. Aliás, é em sua Poética, e não em sua Retórica, que Aristóteles, o pai da teoria da teoria da arte e, metonimicamente, pai da teoria da literatura, trata de algumas figuras. Tradicionalmente, há um repertório infindo de figuras de linguagem, com nomenclaturas diversas, heterogêneas e, até, contraditórias. A própria ambigüidade da classificação das figuras revela a natureza conotativa de todo discurso: a denotação seria, então, uma utopia, na medida em que o poeta, por exemplo, almeja que a palavra seja a coisa, o ícone seja o real, o signo seja o ser. Para além da polissemia de todo enunciado, as figuras também se misturam, configurando um concerto significativo.

Grosso modo, o termo “figura” designa todos os procedimentos de estilo num determinado enunciado. De acordo com Marc Angenot, a figura é, “na retórica tradicional, todo fragmento de enunciado cuja configuração aparente não está conforme à sua função real e que resulta desde logo numa transgressão codificada do próprio código (fônico, gráfico, semântico, sintático, textual, lógico)”. Desde seus primórdios, a retórica, sobretudo sob a rubrica (ou figura) da elocutio, distingue as figuras de palavras, ou tropos, das figuras de pensamento, que intervêem mais diretamente na organização do conjunto do discurso. Em seu constantemente reeditado Dicionário de termos literários, Massaud Moisés retoma, citando Heinrich Lausberg, a distinção entre figuras de palavras, “que dizem respeito à formação lingüística e consistem na transformação desta, por meio de categorias da adiectio, detractio, transmutatio, e figuras de pensamento, que dizem respeito aos pensamentos (auxiliares), encontrados pelo sujeito falante para a elaboração da matéria e, por conseguinte, são, em princípio, objeto da inventio. Integrando o capítulo da linguagem figurada, distinguem-se dos tropos, visto que estes implicam a mudança semântica dos vocábulos”. Com base nas regras formuladas por Aristóteles, aos retores cabe, mais do que ensinar a maneira de elaborar um discurso (falado ou escrito, mas, sobretudo, escrito), trabalhar os processos do discurso e os processos do estilo, conhecidos sob o nome de figuras. Nessa pauta, o estatuto da retórica varia conforme se considerem as figuras como um ornatus adjacente ao pensamento que se exprime no texto ou como tópica de um trabalho específico sobre a própria significação (signifiance, na clave de Barthes); em todo caso, a retórica manifesta-se, sempre, como um código segundo, que se junta e eventualmente contradiz as prescrições do código lingüístico.

Na literatura – arte da palavra, ou, como conceitua Roland Barthes, arte da linguagem -, as figuras ocupam um lugar privilegiado de estudo, de mediação e de meditação. Cai sobre o estudo das figuras de retórica o pejo de serem ornamentos da linguagem ou, mais prosaicamente, a cereja que enfeita a torta do discurso ou, até, a construção de uma retórica do elogio, fácil ou ardiloso, ou da mera bajulação. Para além desse aspecto pejorativo, há outro, mais interessante, que caracteriza o estudo das figuras como argumentativo e lúdico, realçando os traços dialéticos da linguagem. No ludismo reside grande parte da sedução do discurso e da arte, em particular. Com sua longa, gloriosa e inglória história, a retórica renova-se no século XX: Roman Jakobson, articula duas fundamentais figuras de retórica - a metáfora e a metonímia - e duas importantes categorias da linguagem - a seleção e a combinação -, e formula esta hipótese fulcral: “ la fonction poétique projette le príncipe d’équivalence de l’axe de la sélection (ou: paradigmatique) sur l’axe de la combinaison (ou: syntagmatique)”, correlacionando os pólos metafórico e metonímico que configuram a estrutura lingüística; os novos retores do “Grupo de Liège” e semiólogos, da estirpe de Roland Barthes, que insiste sobre o papel cognitivo e hermenêutico da figura de retórica e que, tratando da “morte da retórica”, sinaliza para uma “retórica erotizada ( o prazer do texto é um prazer retórico) e para a insuspeita (ou suspeita) plurissignificação de todo e qualquer signo, seja em sua origem, seja em sua recepção. No jogo que as figuras de linguagem travam, estabelece-se, além de uma substituição, uma superposição dialética.

Dentro da mais clássica tradição retórica, as figuras pertencem a quatro famílias: segundo afetam o aspecto sonoro ou gráfico das palavras, o aspecto semântico das unidades, a disposição formal da frase ou o valor lógico e referencial da proposição, operando funções de supressão, acréscimo, substituição e permuta. Eis os quatro grupos: os metaplasmas ou figuras de dicção, que recobrem tanto figuras gráficas quanto figuras fonéticas (apócope, síncope, anagrama, diérese, sinérese, neologismo, paronomásia, aliteração, assonância, calembur, sufixação parasitária, rima...); os metassememas ou tropos ou figuras de palavras, que reenviam à mudança de significado, isto é, projeta-se um significado outro da palavra, diferente de seu significado “normal”, “literal” (metáfora, metonímia, sinédoque, comparação, antonomásia, perífrase, sinestesia, alegoria, catacrese, parábola, símbolo, silepse...); os metataxes ou figuras de construção, que atuam sobre a frase, a ordem das palavras, a gramática, que agem no plano sintático e formal, alteram a estrutura habitual da frase (elipse, zeugma, pleonasmo, assíndeto, polissíndeto, hibérbato, inversão, hipálage, quiasmo, parataxe, silepse, anacoluto, anáfora, aliteração, assonância, onomatopéia, oxímoro, tmese...); enfim, os metalogismos ou figuras de pensamento, que concernem mais diretamente a linguagem, que se apóiam em idéias (litote, antítese, paradoxo, hipérbole, eufemismo, ironia, personificação ou prosopopéia, apóstrofe, gradação...).. Outras taxonomias há das figuras de linguagem – o que prova a atualidade e instigação do estudo da retórica -, como a proposta por Harry Shaw: “As figuras de estilo ou de retórica podem dividir-se em três classes: (1) semelhanças imaginadas, como sucede com a alegoria, a alusão, o conceito e o símile; (2) associações sugestivas em que se relaciona uma palavra com outra, como, por exemplo, áurea com juventude, felicidade e riqueza: a hipálage, a hipérbole, a metonímia e a sinédoque; (3) apelos à vista e ao ouvido: a aliteração, o anacoluto e a onomatopéia. As figuras de estilo podem também agrupar-se em (1) figuras do pensamento, em que as palavras conservam o seu significado, mas não os seus moldes retóricos, como sucede na apóstrofe, e (2) tropos, em que as palavras sofrem uma mudança nítida de significado, como acontece na metáfora. Outra classificação prática das figuras de retórica é: (1) aquelas que envolvem efetivamente uma comparação (analogia, personificação, tropo) e (2) aquelas que normalmente não comparam coisa alguma (hipérbole, lítotes, ironia).”

Haverá, no rico repertório das figuras de retórica, uma figura prima inter pares? Às vezes, a metáfora é, metaforicamente, coroada como “a rainha dos tropos”. Na psicanálise freudiana, reduzem-se a duas as figuras de linguagem: a metáfora, que condensa os signos, e a metonímia, que os desloca. ”. No fundo, no fundo, tudo é metáfora, na medida em que o chamado “sentido literal”, “sentido próprio”, “sentido dicionarizado” não deixa de ser um sentido figurado ou, em outros termos, a denotação seria uma máscara da conotação. Se, para repetir com Fernando Pessoa, ser poeta é fingir, falar é, também, fingir, ficcionalizar, forjar sentidos, que o interlocutor traduz em sentidos outros, próprios ou impróprios. A própria linguagem é metáfora, metáfora da metáfora, metáfora de um real inatingível, segundo Lacan. Aplicado ao discurso, ou à retórica, o próprio termo “figura” é uma figura de linguagem: a metáfora. A figura é uma tradução e, como toda tradução, uma traição. Gérard Genette pondera que, quando se lança mão da sinédoque “vela” para significar “navio”, o sentido é o mesmo, embora não seja a mesma coisa, dado que o signo é diferente.

Para evitar, na prática magisterial, um estudo insípido e, talvez, inócuo das figuras de linguagem, tenho carreado a tipologia para outras linguagens da arte, além da própria literatura, iniciativa que deixa os estudantes à vontade para escolherem o campo de aplicabilidade e que suscita um surpreendente exercício de criatividade. Na teoria da literatura, a sinédoque aplica-se, por exemplo, à questão do gênero para a espécie e da espécie para o gênero, assim como realismo, visto sob o prisma da sinédoque, que designa o continente pelo conteúdo e vive-versa, a causa pelo efeito e vice-versa, chama a atenção para as representações culturais. Analisando-se o filme Vestido, do cineasta Paulo Thiago, inspirado no belo poema “Caso do vestido”, de Carlos Drummond de Andrade, pode-se considerar que as duas personagens fulcrais, Ângela e Bárbara, respectivamente interpretadas por Ana Beatriz e Gabriela Duarte, estabelecem um jogo, onde prevalece o quiasma, na medida em que seriam duas faces da mesma moeda, a esposa ilibada e a perversa concubina, o lado mau e o lado bom de todo ser humano, o angelical (o nome da esposa legítima resolve-se como metáfora) e a sensualidade sedutora e exacerbada (a amante porta, metaforicamente também, o nome de personagem de célebre poema de Chico Buarque, além de ter, numa espécie de dialética da denotação e da conotação, o prenome da protagonista de Jorge Amado, no luxurioso romance Gabriela, cravo e canela). Se a linguagem corriqueira investe-se, sem que disso nos demos conta, de inúmeras figuras de retórica, lêem-se expressões, tais que “céu da boca”, “pé da mesa”, “braço da cadeira”, como catacreses (metáforas esclerosadas, metáforas-clichês, metáforas-nariz-de-cera), que ao estudante, desejo da busca de um estilo, cumpriria ressuscitar, atendendo ao apelo do poeta francês Mallarmé: “Donner un sens plus pur aux mots de la tribu”. Também tecido por insuspeitas figuras de linguagem, o discurso social tem paradigmáticos casos, quando, por exemplo, emprega a metonímia no enunciado da prática simbólica do casamento: “pedir a mão”.

A ambigüidade, que toda figura de linguagem estrutura, configura o que o semiólogo italiano Umberto Eco designa como “obra aberta”, na medida em que, para falar com os formalistas russos, causa “estranhamento”, “dépaysement”. Reenviando, não às coisas de que fala, mas ao modo como as fala, “o discurso aberto tem como primeiro significado a própria estrutura. Assim, a mensagem não se consuma jamais, permanece sempre como fonte de informações possíveis e responde de modo diverso a diversos tipos de sensibilidade e de cultura. O discurso aberto é um apelo à responsabilidade, à escolha individual, um desafio e um estímulo para o gosto, para a imaginação, para a inteligência”. Porque estrutura um discurso fechado, ou persuasivo, na concepção de Umberto Eco, a publicidade presta-se como campo profícuo para o estudo das figuras de linguagem: linguagem com função essencialmente apelativa, ou conativa, o discurso publicitário organiza, todavia, uma retórica da sedução, ancorada em tropos e figuras, que mascaram a ideologia de mercado. Para além, portanto, do estudo da linguagem propriamente dita, a investigação das figuras de linguagem aponta para a ideologia que habita cada signo.

LINGUAGEM; RETÓRICA; SIGNO

BIB: Roman Jakobson, Essais de linguistique générale , p. 110 (1963); Marc Angenot, Glossário da crítica contemporânea, p. 97 (1984); Massaud Moisés, Dicionário de termos literários , p. 188 ( 2004); Roland Barthes, Leçon (1978); Harry Shaw, Dicionário de termos literários , p. 209 (1982); Gérard Genette, Figures I, p. 211 (1966); Roland Barthes, A aventura semiológica, p. 19-94, (1987); Latuf Isaias Mucci, A Retórica como plenitude da linguagem (2005); Umberto Eco, Obra aberta, p. 280 (1962).

Latuf Isaias Mucci

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