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Macunaíma

quinta-feira, 14 de maio de 2009

INTRODUÇÃO/ENREDO

Prof. Teotônio Marques Filho
www.olutador.org.br

Talvez o paulista Mário de Andrade (1893–1945) seja mais conhecido por sua posição à frente do movimento modernista de 1922 do que propriamente como escritor, embora Macunaíma seja considerada uma obra-prima.

Muito devemos a Mário de Andrade, pois sua participação no movimento modernista foi de liderança, – liderança corajosa e inteligente, com sua vida inteiramente voltada para a literatura: poesia, ficção, crítica literária, além de outras atividades artísticas como a crítica de artes plásticas, a musicologia e o folclore.

Das inúmeras obras que escreveu, destacam-se exatamente Macunaíma (1928), Amar verbo intransitivo (1927), Paulicéia desvairada (1922), Losango Cáqui (1926), Clã do Jabuti (1927), Remate de males (1930) e Lira paulistana que foi publicada postumamente, em 1946.

Segundo informa João Luiz de Lafetá, em "Literatura comentada" (da Abril Educação), "a rapsódia Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, foi escrita por Mário de Andrade, na sua primeira versão, em alguns poucos dias do mês de dezembro de 1926. Polido e repolido, o livro seria editado em 1928, depois de quatro redações, segundo conta o autor em carta ao crítico Tristão de Ataíde. Tanto a rapidez da primeira escrita, quanto os cuidados das três revisões posteriores parecem ter sido não apenas fruto da inspiração, mas também de longos estudos sobre mitologia indígena e sobre o folclore nacional, realizados pelo escritor durante vários anos, além de profundas observações sobre os costumes e a língua cotidiana dos brasileiros. O resultado foi sua obra-prima, uma narrativa de estrutura inovadora, ao nível do enredo, da caracterização das personagens e do estilo.

Para Haroldo de Campos, o livro é uma "história de busca" e se compõe de dois grandes movimentos. No primeiro, temos a "situação inicial", onde são apresentados o herói Macunaíma, sua mãe e seus irmãos, Maanape e Jiguê, índios tapanhumas, vivendo às margens do mítico rio Uraricoera. A situação inicial é rompida com a morte da mãe e a partida dos três irmãos, que abandonam terra natal em busca de aventuras. Macunaíma encontra Ci, Mãe do Mato, rainha das Icamiabas, tribo de amazonas. Depois de dominá-la (com a ajuda dos irmãos), faz dela sua mulher, tonando-se assim imperador do Mato Virgem. Mas quando tem um filho e esse morre, Ci morre também e é transformada em estrela. Antes de morrer dá a Macunaíma um amuleto, a muiraquitã (pedra verde em forma de sáurio), que ele perde e que vai parar nas mãos do mascate peruano Venceslau Pietro Pietra, o gigante Piaimã, comedor de gente. Como o gigante mora em São Paulo, a cidade macota do igarapé Tietê, Macunaíma e seus irmãos descem no rio Araguaia e vão para lá, na tentativa de recuperar a muiraquitã.

A maior parte do livro se passa em São Paulo, e é constituída pelos diversos embates de Macunaíma com Venceslau Pietro Pietra, embates entremeados pela sátira deliciosa de aspectos da vida paulistana (e brasileira). No final desse primeiro movimento (de acordo com a divisão proposta por Haroldo de Campos), Macunaíma consegue matar o gigante e recuperar o amuleto, partindo de volta para o Uraricoera.

O segundo movimento relata o antagonismo entre Macunaíma e Vei, a deusa-sol, que a certa altura da narrativa oferecera ao herói uma das suas três filhas em casamento. Macunaíma, entretanto, ao se ver sozinho na jangada de Vei, sai a passeio, encontra uma varina portuguesa e põe-se a namorá-la, perdendo assim a possibilidade de casamento e aliança com Vei. Trata-se, como o próprio Mário de Andrade explicou, de uma alegoria dos destinos do Brasil, que abandonara as possibilidades de construir uma grande civilização tropical (baseada na aliança solar) e enveredou pelos caminhos europeus. Ao fim da narrativa, vem a vingança de Vei: ela manda um forte calor, que estimula a sensualidade do herói e o lança nos braços

de uma uiara traiçoeira, a qual o mutila e faz com que ele perca de novo – dessa vez irremediavelmente – a muiraquitã.

ESTILO DE ÉPOCA

Macunaíma é, sem dúvida, uma das expressões mais caracterizadoras do advento do Modernismo no Brasil. A fúria demolidora que caracterizou a primeira fase do nosso Modernismo (1922 – 1928) está aí em todos os sentidos: a estrutura do romance e a língua, principalmente, vem aí barbaramente violentadas na sua feição tradicional e acadêmica. Mas tentemos esboçar aqui o panorama cultural da época para que se entenda bem a literatura que vem expressa no texto genial de Macunaíma.

Como estilo de época, o modernismo é, sem embargo, fruto da crise moral e espiritual alastrada pelo mundo ocidental cujo desfecho clamoroso foi a primeira grande guerra (1914 – 1918). Por toda parte eclode a fúria demolidora: quebram-se ídolos, destroem-se cânones, desacreditam-se padrões tidos como tradicionais e inabaláveis. "As velhas confianças na razão e no conhecimento puro cederam lugar a uma inquietude e a um sentimento trágico da vida, a uma concepção agônica da existência": "a era da confiança tranqüila na ordem científica e técnica fora duramente desafiada e destruída pela realidade da guerra" – ressalta Afrânio Coutinho. Daí decorreu o fenômeno da inquietude e niilismo, o estado de desequilíbrio, que teve, segundo Crémieux, expressão em formas as mais diversas, como:

a) Futurismo (Marinetti, 1909): Cultuando o presente na sua modernolatria, o Futurismo apregoava a destruição sistemática dos valores passados e tradicionais (antipassadismo), chegando-se mesmo ao exagero de queimar bibliotecas e museus.

b) Dadaísmo (Tzara, 1916). É outra expressão da "fúria demolidora". Seu princípio essencial é, tal como no Surrealismo, o apelo ao subconsciente, pretendendo, pelo escárnio, pelo irracionalismo, pelo acaso, pela intuição, abolir a sociedade, a cultura e a arte tradicionais, a fim de encontrar a realidade autêntica.

c) Surrealismo (Bréton), 1924). Caracteriza-se o Surrealismo pelo anti-realismo, pela aspiração ao absoluto, pelo recurso do inconsciente, pela recusa à inteligência lógica para atingir a autenticidade do ser. É "puro automatismo psíquico", como definiu o chefe do movimento André Breton.

De uma forma ou de outra, esses movimentos influíram na formação e fixação do nosso Modernismo, embora este movimento pretendesse alienar-se da cultura européia: "– Paciência, manos! não! não vou na Europa não. Sou Americano e meu lugar é na América. A civilização européia de certo esculhamba a inteireza do nosso caráter" – é o que declara o herói da nossa gente, Macunaíma (cf. Macunaíma, p. 145).

Mas, embora houvesse esse movimento "contra os importadores de consciência enlatada", é impossível isolar a literatura brasileira e os seus "sapos-cururu" da cultura e civilização européias. Publicado em 1928, Macunaíma reflete, de um modo ou de outro, esta "crise moral e espiritual alastrada pelo mundo ocidental" do pós-guerra.

Passemos agora a relacionar as principais características do nosso Modernismo em Macunaíma:

1) DESTRUIR E FAZER ESCÂNDALO. Conforme declara um dos principais próceres do movimento modernista, Aníbal Machado, uma das metas do Modernismo era destruir, fazer escândalo: "Não sabemos definir o que queremos, mas sabemos discernir o que não queremos". E assim, rejeitou-se tudo o que constituísse patrimônio passadista: "a ênfase oratória, a eloquência, o hieratismo parnasiano, o culto das rimas ricas, do metro perfeito e convencional, da linguagem classicizante e lusitanizante; advogava-se uma maior fidelidade a realidade brasileira" (Afrânio Coutinho).

Macunaíma, como afirmamos no início, é um livro violentado, não só na sua feição estrutural, como, é principalmente, nos seus aspectos lingüisticos. Do primeiro, basta lembrar que o livro não apresenta coerência no que se refere ao tempo, ao lugar, a ação e as personagens. Não existe lógica em qualquer uma destas quatro partes do romance tradicional – fruto evidente da rebeldia e do anti-racionalismo do movimento modernista.

Do segundo aspecto – o lingüístico – não existe melhor exemplo do que a genial "Carta pras icamiabas" (cf. cap. IX), em que Mário de Andrade, servindo-se do artifício da carta escrita por Macunaíma, satiriza o distanciamento entre a língua escrita e a falada: "Ora sabereis que sua riqueza de expressão intelectual e tão prodigiosa, que falam numa Iíngua e escrevem noutra" (p. 106).

2) DESCENTRALIZAÇÃO DA CULTURA. É outra meta norteadora do Modernismo que pode ser entrevista no texto de Macunaíma. Por todos os cantos do Brasil eclode o movimento modernista através de manifestos, revistas e outros meios de comunicação. De norte a sul formam-se grupos e correntes literárias que podemos sumariar assim:

a) corrente dinamista (Rio) cujo principal objetivo era o culto do movimento.

b) corrente primitivista (São Paulo) que se punha "contra todos os importadores de consciência enlatada" em defesa do primitivismo na nossa literatura: "tupy or not tupy that is the question".

c) corrente nacionalista (São Paulo), em torno do verde-amarelismo, buscando os motivos indigenas, folclóricos, nativos e americanos, contra a inspiração nos temas europeus;

d) corrente espiritualista (Rio) defendendo a tradição e o mistério; de certo modo, continuava o movimento simbolista;

e) corrente regionalista (Recife) com sua principal meta: a paisagem nordestina principalmente;

f) corrente desvairista (São Paulo) que foi inaugurada pelo grande Macunaíma, digo, Mário de Andrade, quer na poesia, quer na prosa.

Além destas, muitas outras correntes e grupos se espalharam por todo o Brasil, sem falar nas revistas que proliferaram em número assustador como principal veículo das idéias modernistas.

Um dos pontos em que se expressa essa "descentralização da cultura" em Macunaíma é a língua: aí, com efeito, vem amalgamado "o vocabulário regional de todos os pontos do Brasil" com suas frases feitas e provérbios de propriedade coletiva. Sem dúvida, um dos principais valores do livro e exatamente esse folclore lingüístico, se é que podemos denominar assim. É mais ou menos o que ressalta o crítico Sérgio Milliet: "É a consciência brasileira que leva Mário a encaixar num canto que se passa em São Paulo a sintaxe do Nordeste de permeio com a do Braz, e servir-se em suas imagens do vocábulo amazônico lado a lado com o vocábulo gaúcho. Em nossos tempos de regionalismos literários tentou descobrir e cultivar o denominador comum do português falado no Brasil".

Por outro lado, as próprias andanças do herói por todo o Brasil, e, às vezes, até fora dele, parecem expressar esse desejo de descentralização da cultura – o que nada mais é do que a expressão daquele sentimento primitivista, nacionalista e desvairista que une todo o Brasil.

3) VALORIZAÇÃO DA LÍNGUA FALADA. Conforme ressalta o crítico Peregrino Júnior, o Modernismo "simplificou a prosa e a poesia, adotando o uso da linguagem cotidiana, da frase despojada, das palavras usuais e singelas": a poesia voltou-se, com efeito, para o prosaico, para o apoético, enquanto a prosa despojou-se do artificialismo e da feição lusitanizante de que estava impregnada, tentando aproximar-se o mais possível da língua oral. Já vimos a esse respeito a tremenda "gozação" de Macunaíma a esse povo prodigioso que "fala numa língua e escreve noutra", na "Carta pras Icamiabas".

Sem dúvida, "uma das mais fecundas conseqüências do Modernismo diz respeito ao problema da língua e do estilo brasileiro como legítimo instrumento da literatura aqui produzida" (Afrânio Coutinho). Mário de Andrade chegou mesmo a imaginar uma "Gramatiquinha da Fala Brasileira".

Deste modo, é freqüente em Macunaíma o uso de expressões, de concordâncias, de regências, de colocação que exemplificamos abaixo e que são condenadas pelo "bom falar lusitano":

a) construções irregulares:

"– Meu avo, dá caça pra mim comer?" (Mac. 20)

"– Minha vó, dá aipim pra mim comer?" (Mac. 21)

b) concordância irregular:

"– Tu não é mais curumi, rapaiz, tu não é mais curumi não... Gente grande que faiz isso... (Mac. 20)

"Maanape deu as garrafas pra Venceslau Pietro Pietra, um naco de fumo do Acará pra caapora e o casal esqueceram que havia mundo" (Mac. 56)

c) construções arcaicas:

"Mas porém você tem de ser fiel e não andar assim brincando com as outras cunhãs poraí". (Mac. 89).

d) regência irregular:

"Não vim no mundo para ser pedra" (Mac. 215)

e) colocação irregular:

"– Me acudam que sinao eu mato! me acudam que sinão eu mato!" (Mac. 28)

E assim muitas outras, além do vocabulário acentuadamente indígena e muitas criações marioandradeanas.

Entretanto, como mostrou Cavalcanti Proença, no seu estupendo Roteiro de Macunaíma, "a maioria dos chamados erros da linguagem popular brasileira são sobrevivências do antigo falar e escrever que ciaram em desuso".

4) BUSCA DE ELEMENTOS ACENTUADAMENTE BRASILEIROS. Já ressaltamos atrás os objetivos dos grupos primitivista e nacionalista que defendiam a primazia dos valores e elementos brasileiros. Entretanto, contrariamente ao Romantismo, a nossa realidade teve tratamento nitidamente crítico, e não utópico ou idealizado, como a crença no "paraíso terrenal". Portanto, conscientemente, o movimento modernista gira em torno do Brasil – de seus problemas, da realidade brasileira, do homem brasileiro.

Macunaíma, como temos visto, não foge a este postulado: o livro é um repositório de lendas e sagas do nosso folclore indígena, girando em torno dos feitos do herói mítico que da nome à obra, e foi divulgado principalmente pelo etnólogo Koch Grünberg. Este é o ponto de partida – a realidade objetiva da obra. Na verdade, como o viu a crítica, Macunaíma não passa de "um símbolo da nossa amorfia e da nossa maturidade como povo e como cultura".

Eis o que diz a respeito do livro o competente Cavalcanti Proença: "Ele (Mário de Andrade) criara Macunaíma como um ataque às desvirtudes nacionais, acumulando e exagerando os defeitos que reconhecia sofrendo, no brasileiro. Acabou configurando um tipo nacional que, pela acumulação de baixezas, o irritava. No prefácio fala amargo, violento, fora das normas do seu espírito tolerante. Decepcionou-se ao ver que o brasileiro não era o que ele queria que fosse, não era aquilo que o coração desejava, mas o que o raciocínio penetrante e culto e o sentimento de justiça descobriram: cheio de erros".

Enfim, como ressalta Alceu Amoroso Lima, Macunaíma é "um sacolejado de quanta coisa há por aí de elementos básicos da nossa "psiche", como dizem os sociólogos".

No livro, é genial a forma como Mário de Andrade expressa essa apatia própria do homem brasileiro, pondo na boca do herói esta frase famosa:

"– Ai! que preguiça...."

5) BUSCA DO MUNDO DO SUBCONSCIENTE E INCONSCIENTE. Foi principalmente a partir de Freud que o mundo do subconsciente e do inconsciente se revelou para o homem, revolucionando os processos de análise e de observação.

O Dadaísmo e mormente o Surrealismo são dois movimentos perfeitamente compatíveis com o mundo do subconsciente, que encontrou expressão própria na literatura, sobretudo pelas criações ilógicas imperceptíveis pelo pensamento racional e lógico. É o que ressalta, a propósito de Macunaíma, Cavalcanti Proença: "Em verdade Macunaíma não pode ser analisado pela lógica, está fora do bem e do mal, é um herói verdadeiro, às vezes contraditório, e isto Mário notou. Mas a contradição vem do expoente máximo de virtudes e qualidades anormais que nele se exaltam".

Numa livre associação, o escritor vai evocando todas as peripécias pelas quais, cameleonicamente, passa o herói, cujo caráter se modifica de uma página para outra; o traço que revela num lance, desmente-o no seguinte – herói, pois, sem nenhum caráter.

Deste modo, "como mito, como símbolo de libertação do inconsciente coletivo, Macunaíma metamorfoseia-se segundo o sabor da imaginação popular; não tem por isso, um caráter definido." Partindo daí, Mário de Andrade, livremente, "ajuntou-lhe recontos de outras procedências, enxertou-lhe ditos e parlendas, introduziu-lhe evocações históricas e legendas tradicionais, fundiu-os, agregou-lhe colaboração pessoal e do amálgama extraiu um novo conjunto que, se participa do folclore, se alça a criação literária" – ressalta João Pacheco.

Assim, não se pode entender Macunaíma em termos de lógica, mas como uma livre associação do pensamento e das intenções marioandradeanas – expressão, sem dúvida, do seu mundo inconsciente.

ESTILO MARIOANDRADEANO NA OBRA

Vamos aqui arrolar alguns itens que julgamos caracterizadores do estilo de Mário de Andrade na obra.

1) FONTES E INFLUÊNCIAS. Segundo Cavalcanti Proença, foram "inúmeras as fontes em que se documentou Mário de Andrade no colecionar os motivos para a construção de Macunaíma". Entre as mais importantes, podemos apontar três que "contribuíram com maior contingente nessa antologia folclórica":

a) Koch Grunberg: foi quem deu maior número de motivos com sua coleção de lendas reunidas no segundo volume de sua obra. (cf. Mythen und Legenden der Taulipang und Arekuná)

b) Capistrano de Abreu: sua obra Língua dos Caxinauás é fundamental para o livro de Mário de Andrade. Forneceu o tema central do capítulo 4 "Boiúna Luna" e do capítulo 13 "A Piolhenta do Jiguê"

c) Couto Magalhães: no seu livro O Selvagem já registrara a lenda da "VeIha Ceiuci" do capítulo 11 que Mário de Andrade reproduz e recria em Macunaíma.

Além destes, contribuíram largamente para os temas acessórios: o Poranduba Amazonense, de Barbosa Rodrigues; Lendas Amazônicas, de Oliveira Coutinho; Ao Som da Viola, de Gustavo Barroso; Folclore, de Basílio de Magalhães; Contos Populares, de Sílvio Romero, e muito outros.

A propósito do material coligido no livro, Cavalcanti Proença observa que "a colheita de material para a linguagem de Macunaíma foi tão abundante que dá a falsa impressão de improviso, de inventado, fantasioso. Nada menos justo. Aqui como em tudo houve documentação, o desejo de autenticidade."

2) SÁTIRA. Uma das grandes sátiras, em Macunaíma, é a língua portuguesa, principalmente, no seu aspecto escrito, consubstanciada na "Carta pras Icamiabas". Aí "para mostrar o artificialismo de uma linguagem anacrônica, usa erradamente formas apontadíssimas como errôneas: "aperceber" por "perceber" e o vocabulário padrão dos puristas: galiparlas, lição dos clássicos, etc. Flexiona o particípio passado "hemos aproveitada esta demora, à maneira quinhentista".

Entretanto a sátira, no livro, não se reduz apenas a língua. Aliás, o próprio Macunaíma, como já ressaltamos, é uma caricatura do homem brasileiro – símbolo de sua amorfia e comodismo. Aí está a festa do "Cruzeiro" (p. 113), "feriado novo inventado pros Brasileiros descansarem".

Muitas outras ainda ocorrem no livro, como aquela do pedido dos macumbeiros (p. 79); da maquinização das coisas por Macunaíma (p. 51–21); da origem do carrapato (p.163) e esta outra que transcrevemos aqui. Venceslau Pietro fora para a Europa e os manos ficaram sem saber como ir até lá. Veja que solução prática eles encontraram:

Pois é, meus cuidados, você andou lerdeando, cozinhando galo, cozinhando galo, o gigante é que não havia de esperar, foi-se . Agora agüente a massada.

Nisto Jiguê bateu na cabeça exclamou:

– Achei!

Os manos levaram um susto. Então Jiguê lembrou que eles podiam ir na Europa também, atrás da muiraquitã. Dinheiro, inda sobravam quarenta contos do cacau vendido. Macunaíma aprovou logo porém Maanape que era feiticeiro imaginou imaginou e concluiu:

– Tem coisa milhor.

– Pois então desembuxe!

– Macunaíma finge de pianista, arranja uma pensão do Governo e vai sozinho.

– Mas praquê tanta complicação si a gente possui dinheiro à beça e os manos podem me ajudar na Europa!

– Você tem cada uma que ate parece duas! Poder a gente pode sim porém mano seguindo com arame do Governo não e milhor? É. Pois então!

Macunaíma estava refletindo e de repente bateu na testa:

– Achei!

Os manos levaram um susto.

– Que foi.

– Pois então finjo de pintor que é mais bonito!

Foi buscar a máquina óculos de tartaruga um gramofoninho meias de golfe luvas e ficou parecido com pintor." (Mac. 142)

A respeito desta passagem, Cavalcanti Proença, diz que "curiosamente, o herói pensa fingir de pianista para viajar até a Europa. Porém, Mário de Andrade era pianista, professor de piano, e doeu-lhe a ironia com a sua profissão de começo de vida. Substituiu por pintor."

Depois disso, malogrando a viagem porque "o Governo estava com mil vezes mil pintores já encaminhados pra mandar na pensão da Europa", Macunaíma altera sua famosa máxima: "Pouca saúde e muitos pintores os males do Brasil são".

3) SEXUALIDADE. Até as piadinhas indecorosas bem próprias do gosto brasileiro Macunaíma reúne. É o caso daquelas "três adivinhas" que a filha da caapora Ceiuci faz a Macunaíma, tentando salvá-lo da gula da mãe:

– Vou dizer três adivinhas, si você descobre, te deixo fugir. O que é que é: "É comprido roliço e perfurado, entra duro e sai mole, satisfaz o gosto da gente e não é palavra indecente?

– Ah! isso é indecência sim!.

– Bobo! É macarrão!

– Ahn... É mesmo! Engraçado, não?

– Agora o que é o que é: Qual o lugar onde as mulheres tem cabelo mais crespinho?

– Oh, que bom! isso eu sei! é ai!

– Cachorro! É na África, sabe!

– Me mostra, por favor!

– Agora é a última vez. Diga o quê que é:

Mano, vamos fazer

Aquilo que Deus consente:

Ajuntar pêlo com pêlo,

Deixar o pelado dentro.

E Macunaíma:

– Ara! Também isso quem não sabe! Mas ca pra nos que ninguém nos ouça, você é bem senvergonha, dona!

– Descobriu. Não é dormir ajuntando os pêlos das pestanas e deixando o olho pelado dentro que você está imaginado? Pois si você não acertasse pelo menos uma das adivinhas te entregava pra gulosa de minha mãe. Agora fuja sem escarcéu, serei expulsa, voarei pro céu." (Mac. 133, 134).

Outra passagem que merece destaque é a cena de Macunaíma e Ci, quando aquele, com ajuda dos manos, consegue dominar esta, tornando-se Imperador do Mato Virgem.

4) LINGUAGEM – Um dos aspectos mais importantes do estilo de Mário de Andrade. É talvez um dos pontos mais interessantes do livro, onde o escritor usa fartamente o folclore lingüístico brasileiro, numa atitude que lembra Alencar, no Romantismo, quando se pretendeu criar "um meio de expressão nacional". Não vamos discutir aqui o problema da língua portuguesa no Brasil. Apenas tentaremos apontar alguns fatos lingüísticos próprios da língua falada no Brasil e que Mário de Andrade procurou estilizar no seu livro. Em Macunaíma, como já se ressaltou em outro item, "além do vocabulário regional de todos os pontos do Brasil, notamos o uso freqüente e intencional de frases feitas e provérbios" - o que confere a força extraordinária ao estilo de Mário de Andrade.

Vamos apontar abaixo, seguindo o trabalho de Cavalcanti Proença, alguns fatos lingüísticos da nossa oralidade que levaram Macunaíma a afirmar na "Carta pras Icamiabas" que no Brasil "falam numa língua e escrevem noutra":

1) uso do verbo fazer como vicariante: "No outro dia Paui-Pódole quis ir morar no céu pra não padecer mais com as formigas da nossa terra, fez".

2) uso de brincar como expressão de ato sexual; "O herói se atirou por cima dela pra brincar. Ci não queria"

3) coletivo com o verbo no plural (silepse): "Maanape deu as garrafas pra Venceslau Pietro Pietra, um naco de fumo do Acará pra caapora e o casal esqueceram que havia mundo".

4) troca de tratamento (vós-tu): Agora vossa mãe vai embora. Tu ficas perdido no coberto e podes crescer mais não."

5) uso do pronome reto como oblíquo: "Pra consolar levaram ele passear na máquina automóvel."

6) uso de mim como sujeito do infinitivo: "Minha avó, da aipim pra mim comer?"

7) emprego de verbos de movimentos com a preposição em: "A princesa foi no roçado, Maanape foi no mato e Jegue foi no rio."

8) substituição do verbo dizer por falar: "Nesse instante, falam, ele inventou o gesto famanado de ofensa: a pacova".

9) uso do verbo pedir com a preposição para: "No outro dia pediu pra Sofará que levasse ele passear e ficaram no mato até a boca-da-noite".

10) emprego do verbo ter por haver: "As garruchas inda estão muito verdolengas porém vamos a ver se tem alguma temporã".

11) uso da preposição de nas locuções com dever: "O herói teve um desejo danado de brincar com a princesa porém Oibê já devia de estar estourando por aí."

12) uso do gerúndio em vez do infinitivo com a: "Depois afastou os mosquitos e principiou contando um caso."

13) intensidade verbal por meio da duplicação: "Isso Macunaíma ficava que ficava um leão querendo".

14) virar em vez de transformar-se: Então ele virou na formiga quem- quem e mordeu Iriqui pra fazer festa nela".

15) uso da forma antiga diz-que: "Água fria diz-que é bom para espantar as vontades".

16) uso do diminutivo com valor de superlativo: "Macunaíma passeava passeava e encontrou uma cunhatã com uma urupema carregadinha de rosas".

17) emprego de negativa dupla: "Tu não é mais curumi, rapaz, tu não e mais curumi não..."

18) posposição da negativa: "Olhe, mano Jiguê, branco você ficou não, porém, pretume foi-se e antes fanhoso que sem nariz".

19) uso do pronome no início da frase: "Se lembrou de ofender a mãe do Gigante com uma bocagem novinha, vinda da Austrália'"

20) emprego enfático do prefixo des: "Macunaíma sentiu-se desinfeliz e teve saudades de Ci a inesquecível".

Além destes, há muitos outros aspectos lingüísticos que mereciam referencia como o uso abusivo do que, próprio da linguagem popular.

ESTRUTURA DO LIVRO

Com relação ao gênero literário de Macunaíma, Alceu Amoroso Lima escreve que o livro "não é um romance, nem um poema, nem uma epopéia. Eu diria antes, um coquetel. Um sacolejado de quanta coisa há por aí de elementos básicos da nossa psiche."

O próprio Mário de Andrade teve indecisões ao classificar o livro. Inicialmente o chamou de "história", aproximando-o dos contos populares. Posteriormente chamou-o de "rapsódia", o que está coerente com a variedade de motivos populares que encerra.

"Mais tarde, ressalta Cavalcanti Proença, concorreu como "romance" a um prêmio literário. A idéia não foi de Mário de Andrade, mas ele não a repudiou. Não concordaria com essa classificação se não pudesse justificá-la". Isto quer dizer que não é incorreto se o classificarmos como romance, embora não apresente aquelas características tradicionais do romance que já conhecemos: coerência lógica de tempo, lugar, ação e personagens, como veremos:

1) TEMPO – LUGAR – AÇÃO. "Pelo aspecto de figura de gesta Macunaíma se aproxima demais da epopéia medieval. Tem de comum com aqueles heróis a sobre-humanidade e o maravilhoso. Está fora do espaço e do tempo. Por esse motivo pode realizar aquelas fugas espetaculares e assombrosas em que da capital de São Paulo foge para a ponta do Calabouço no Rio e logo está em Guajará-Mirim nas fronteiras de Mato Grosso e Amazonas para, em seguida, chupar manga-jasmim em Itamaracá de Pernambuco, tomar leite de vaca zebu em Barbacena, Minas Gerais, decifrar litóglifos na Serra do Espírito Santo e, finalmente, se esconder no oco de um formigueiro na lha de Bananal, em Goiás. E as fugas são várias, são mesmo um motivo freqüente no livro, e sempre com essa revolução espacial, e um absoluto desprezo pelas convenções geográficas. Enquanto subverte itinerários, ziguezagueia no tempo em avanços e recuos que só um herói de gesta pode ter. Como aquele Carlos Magno da Canção de Rolando que era um ancião de barba florida quando apenas – historicamente se sabe – tinha trinta e cinco anos.

Macunaíma chega a São Paulo quando o Brasil é uma republica, mas durante as suas correrias encontra João Ramalho dos primórdios da fundação de Santo

André da Borba do Campo, conversa com Maria Pereira que está viva ainda hoje e amofumbada num grotão da beira do São Francisco, desde o tempo da invasão holandesa; convida Bartolomeu de Gusmão para viajar com ele no dorso de um tuiuiú, e o padre voador, que morreu na Espanha, está caminhando e suando num areal do Maranhão" (Cavalcanti Proença, in Roteiro de Macunaíma).

Assim, Macunaíma – rapsódia ou romance, não tem coerência de tempo e lugar, o mesmo ocorrendo com a ação. Esta ultima apresenta, não obstante, uma certa coerência, enquanto o herói luta para reaver a sua muiraquitã perdida – o que lembra a demanda do Santo Graal dos cavaleiros da Távola Redonda do Rei Artur.

Na muiraquitã – presente do seu primeiro e verdadeiro amor – estava a salvação, a pureza, o alento que, por isso mesmo, impulsionava a busca incessante do herói, levando-o a peripécias mil e andanças ilógicas.

PERSONAGENS

Como o tempo, o lugar e a ação, as personagens que aparecem em Macunaíma não apresentam caracteres lógicos, principalmente o herói, que é a figura central, definido por Osório de Oliveira como "uma figura turbulenta e sem medida, que encarna o caos psicológico de um povo em que os mais diversos elementos rácicos e culturais se reuniram, sem, que estejam, por enquanto, amalgamados."

Destaquemos aqui as principais personagens do livro – evidentemente acentuando as cores de Macunaíma:

a) Macunaíma: e a personagem central do livro – d "o herói sem nenhum caráter". "E é justamente essa ausência de caráter que Ihe dá um grande caráter sobre-humano onde se refletem no tumulto de aparente indisciplina as energias elementares" (Ronald de Carvalho). Fugindo à etimologia do nome que da Macunaíma como " o grande mau", podemos afirmar, com Cavalcanti Proença, que o herói é múltiplo: "encarna uma enorme variedade de personagens, ora boas, ora más, ora ingênuas; quase sempre ingênuas." Isto porque o herói reúne em si varias figuras da mitologia indígena que Mário de Andrade soube sintetizar em uma s6 personagem.

Assim, ele é, concomitantemente, o mentiroso Kalawunseg quando inventa ter visto timbó na beira do rio ou quando mente dizendo que caçou veado em vez de ratos; é José de Anchieta quando se faz acompanhar do séquito de papagaios e araras; é o próprio Mário de Andrade quando sai da macumba em companhia de Manuel Bandeira e outros. Encarna ainda muitos outros heróis e vilões no decorrer do livro. É, enfim, uma personagem–síntese que dedica a sua vida a procurar a muiraquitã que perdera com a pureza de índio primitivo e sem pecado, lembrança do único amor de sua vida.

"O herói é o que se chama, em Zoologia, um hipodigma. Não tem existência real. É um tipo imaginário no qual estão contidos todos os caracteres encontrados nos indivíduos da espécie até então conhecidos" (Cavalcanti Proença).

"Macunaíma é especificamente brasileiro, porém pertence ao gênero sul-americano e se aproxima das espécies boliviano, chileno, etc. E porque é do mesmo gênero, é que ele troca a própria consciência pela de um sul-americano e se dá bem da mesma forma": "No outro dia bem cedinho foram todos trabucar. A princesa foi no roçado Maanape foi no mato e Jiguê foi no rio. Macunaíma se desculpou, subiu na montaria e deu uma chegadinha até a boca do rio Negro pra buscar a consciência deixada na ilha de Marapatá. Jacaré achou? nem ele. Então o herói pegou na consciência dum hispano-americano, botou na cabeça e se deu bem da mesma forma". (Mac. 192)

Em resumo, Macunaíma é um herói "altamente complexo, pois nele se acumulam caracteres heteróclitos, que se superpõem muitas vezes sem um traço comum que facilite a evidenciação. Como símbolo popular é um herói folclórico e daí o seu procedimento libérrimo", a ponto de se transformar em formiga (p. 22), pé de urucum (p. 22), piranha (p. 131), além de "preto retinto" e "branco louro e de olhos azuizinhos".

b) Maanape: mano de Macunaíma que o acompanha na sua peregrinação em demanda da Muiraquitã. Tinha fama de feiticeiro o que demonstra em diversas passagens do livro. Por falta de sorte, foi o último a lavar no poço encantado que "era marca do pezão do Sumé, do tempo em que andava pregando o evangelho de Jesus pra indaiada brasileira". Quando foi se lavar também na água do poço encantado "tinha só um bocado lá no fundo e Maanape conseguiu molhar só a palma dos pés e das mãos. Por isso ficou negro bem filho da tribo dos Tapanhumas." (Mac. 48) Representa o elemento negro do complexo racial brasileiro.

c) Jiguê: É o outro mano de Macunaíma que o ajudou a reconquistar a muiraquitã perdida. Vendo que Macunaíma ficara branco, atirou-se também nas águas do poço encantado: "Nem bem Jiguê percebeu o milagre, se atirou na marca do pezão do Sumé. Porém a água já estava muito suja da negrura do herói e por mais que Jiguê esfregasse feito maluco atirando água pra todos os lados, só conseguiu ficar da cor do bronze novo. Macunaíma teve dó e consolou:

– Olhe, mano Jiguê, branco você ficou não, porém pretume foi-se e antes fanhoso que sem nariz" (Mac. 48).

Representa o elemento indígena da nossa formação racial.

d) Sofará: cunhada de Macunaíma, "companheira de Jiguê", com quem Macunaíma "brincou" diversas vezes, transformando-se em príncipe.

e) Iriqui: segunda mulher de Jiguê, com quem Macunaíma também "brincou" muitas vezes. Depois foi dada a Macunaíma, de presente, porque Jiguê achou que não valia a pena brigar por causa de uma mulher.

f) Ci: foi o grande e único amor de Macunaíma. Ao tomá-la como companheira, passou a ser imperador do Mato Virgem, sendo acompanhado de um séquito de papagaios e araras. Com o herói teve um filho que morreu. Ela também morreu, transformando-se na "Beta do Centauro", onde vive "liberta das formigas, toda enfeitada de luz", Foi ela quem deu a Muiraquitã a Macunaíma. "Ci" quer dizer "mãe" – "Mãe do Mato".

g) Capei: era a cobra boiúna (cobra grande) que Macunaíma, dando uma de herói, matou para salvar Naipi, amada de Titçatê. A cabeça, cortada pelo herói, tornou-se lua – "Boiúna-Luna": "Dantes Capei foi a boiúna mas agora é a cabeça da Lua lá no campo vasto do céu."

h) Piaimã: é o gigante comedor de gente, Venceslau Pietro Pietra, que roubara a muiraquitã de Macunaíma. De posse deste famoso amuleto vai constituir-se na principal oposição da reconquista pelo herói. Macunaíma quase foi comido pelo gigante, mas, graças à formiga Cambgique e ao Carrapato Zlezlegue, é salvo. Depois, para se vingar, dá uma tremenda surra no gigante através da macumba de Exu. No final, o herói o mata e readquire o seu talismã. O gigante Piaimã é uma das poucas personagens do livro que não vira estrela. Talvez por representar a maldade e a oposição na conquista da Muiraquitã.

i) Vei: É o sol ou, como quer Mário de Andrade, a sol, que tem duas filhas e quer o herói para genro. Porém Macunaíma é mesmo impossível e não dá certo.

j) Pauí-Pódole: é o pai do mutum, origem da ave mutum, cracídeo. Torna-se depois no Cruzeiro do Sul que é para os índios um enorme mutum "no campo vasto do céu". Por causa dele Macunaíma armou o maior rolo com "o maior mulato da mulataria do Brasil."

I) Ceiuci: velha gulosa, mulher do gigante Piaimã, que também comia gente. Uma vez tarrafiou o herói e só não o comeu porque a filha dela o salvou. É também a caapora, duende maligno e malvado.

m) Oibê: é um "minhocão, variante da cobra-grande amazônica", que dá uma tremenda canseira no herói porque este Ihe comera a pacuera (fressura de animal).

ASPECTOS TEMÁTICOS MARCANTES

Dentre outros aspectos temáticos, destacam-se em Macunaíma os seguintes:

1) COMPLEXO RACIAL – A confluência racial em Macunaíma se evidencia desde o primeiro capítulo. Basta ver que o her6i índio, nasce preto retinto: "No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricoera, que a índia, tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram de Macunaíma." (Mac. 9)

Note-se igualmente que quem avisa que o herói é muito inteligente é o próprio Rei Nagô, figura africana: "e numa pajelança Rei Nagô fez um discurso e avisou que o herói era inteligente" (Mac. 10).

Mas onde esse complexo racial da nossa formação fica claro mesmo é na passagem do poço encantado em que Mário de Andrade reúne os três tipos fundamentais da formação da raça brasileira: o índio, o negro e o branco.

2) APATIA – A natureza apática do homem brasileiro, longe daquele dinamismo de que Mário de Andrade era dotado e queria no brasileiro, é mostrada já na primeira frase de Macunaíma que encarna as nossas virtudes e desvirtudes:

“- Ai! que preguiça!...”

A frase é repetida por todo o livro com o herói da nossa gente sempre a pronunciá-la nas dificuldades que encontra e que exigem um pouco de si.

Na lenda do "Pauí-Pódole" há o exemplo do "dia do Cruzeiro, feriado novo inventado pros Brasileiros descansarem mais". (p. 113); é no capitulo 16

("Uraricoera"), correndo da sombra dos manos e passando pela Paraiba onde alguns trabalhadores destruíam formigueiros" para construir um açude, Macularam pediu água pra eles. Não tinha nem gota, porém deram raiz de umbu. O herói matou a sede dos legornes, agradeceu e gritou:

“- Diabo leve quem trabalha!”

No capítulo seguinte, "Ursa Maior", há passagem bastante clara da falta de ânimo do herói da nossa gente que contrasta com o dinamismo do enérgico Delmiro Gouveia.

3) SUBDESENVOLVIMENTO. Em poucas palavras Macunaíma resumiu o subdesenvolvimento brasileiro: "pouca saúde e muita saúva, os males do Brasil são" que se tornou igualmente uma constante em todo o livro. É o que se pode ver no capítulo 8 ("Vei, a Sol") onde Mário de Andrade escreve:

Nem bem Vei com as três filhas entraram no cerradão que Macularam ficou cheio de vontade de ir brincar com uma cunhã. Acendeu um cigarro e a vontade foi subindo. Lá por debaixo das árvores passavam muitas cunhas, cunhé se mexemexendo com talento e formosura.

– Pois que fogo devore tudo'. Macunaíma exclamou. Não sou frouxo agora pra mulher me fazer mal!

E uma luz vasta brilhou no cérebro dele. Se ergueu na jangada e com os braços oscilando por cima da pátria decretou solene:

“- POUCA SAUDE E MUITA SAUVA, OS MALES DO BRASIL SÃO!" (Mac. 89).

Na "Carta pras Icamiabas" também está o dístico famoso, onde Macunaíma revela, não só o nosso subdesenvolvimento como ainda condena a diferença de classes, satirizando os grandes:

Porém, senhoras minhas! Inda tanto nos sobra, por este grandioso país, de doenças e insectos por cuidar!... Tudo vai num descalabro sem comedimento,

e estamos corroídos pelo morbo e pelos miríapodes! Em breve seremos novamente uma colônia da Inglaterra ou da América do Norte!... Por isso e para eterna lembrança destes Paulistas, que são a única gente útil do país, e por isso chamadas de Locomotivas, nos demos ao trabalho de metrificarmos um dístico, em que se encerram os segredos de tanta desgraça:

"POUCA SAUDE E MUITA SAUVA. OS MALES DO BRASIL SAO. (Mac. 105).

4) LÍNGUA. Além desses aspectos de natureza social e étnica, destaca-se também em Macularam o problema da língua portuguesa no Brasil. Como vimos, o

Modernismo fez uma verdadeira revolução na língua literária, dessacralizando-a da sua feição acadêmica e clássica. Os modernistas aproximam-na do povo, incorporando a ela os modismos brasileiros – É o português do jeito que o brasileiro fala.

5) MUIRAQUITÃ. A muiraquitã é um amuleto que se associa à vida primitiva de Macunaíma, antes do contato com a civilização. Pode-se dizer que a muiraquitã se associa à idéia de pureza e inocência. Com a perda do amuleto, Macunaíma vai-se civilizando e “sifilizando": contrai as doenças da civilização, conforme constata e registra na sua carta as icamiabas:

Inda tanto nos sobra, por este grandioso pais, de doenças e insectos por cuidar!... Tudo vai num descalabro sem comedimento, e estamos corro(dos pelo morbo e pelos miríapodes! (Mac. p. 105).

Como se viu, o herói recupera o amuleto sagrado, mas já não é o mesmo – estava inteiramente "sifilizado"...

6) PIAIMÃ. O gigante Piaimã;, por outro lado, representa bem o elemento estrangeiro, civilizado e superior, que vai dominando a pobre nação, subdesenvolvida e fraca. Somente com muita artimanha, o herói consegue enganá-lo e vencê-lo, na ficção de Mário de Andrade. Na realidade de hoje, a selva amazônica, reduto majestoso das icamiabas de Macunaíma, está à mercê do gigante Piaimã dos impérios internacionais que rondam gulosos à procura de um "pulmão". Mais do que nunca, precisamos, antropofagicamente, robustecer-nos com a força de "I – Juca-Pirama" ou, cameleonicamente, aprender as artimanhas de Macunaíma...

GLOSSÁRIO

Por fim, vamos inserir aqui um glossário das palavras mais freqüentes no livro. Aliás, uma das principais dificuldades de Macularam é esta: o vocabulário indíge-

na que Mário de Andrade usou, além de expressões e vocábulos do nosso folclore lingüistico. Vejamos algumas palavras com seu significado e um exemplo onde ocorre a mesma:

Aimará: traíra (peixe) – "Quando estava légua e meia longe o aimará virou Macunaíma outra vez". (131)

Banzar: zangar, andar a toa – "Foi-se embora e banza solitário no campo vasto do céu." (213)

Bocagem: palavrão (bobagem) – "Macunaíma chimpou outra bocagem mais feia na caapora" (129)

Boitatá: fogo-fátuo – "Pros boitatás não comerem os olhos do morto o enterraram mesmo no centro da taba" (31)

Boiúna: cobra grande – "Minha tribo era escrava da boiúna Capei" (36)

Bué: choradeira – "Macunaíma acordou todos, fazendo um bué medonho" (12)

Cabeceiro: travesseiro (analogia c/ cabeça) – "Fez um cabeceiro da gaiola e adormeceu" (181)

Caborge: feitiço – "Que caborge da marvada!"

Cachiri: bebida – "Quanta sacanagem feliz quanta cunhã bonita e quanto cachiri" (180)

Cotcho: viola – "E quando agarrava cantando companhado pelos sons gotejantes do cotcho, os matos reboavam com doçura" (28)

Coroca: velho – "cai fora, coroca! Vê lá se vou casar com velho!" (209)

Corte: soneca – "Então Jiguê entrou na pensão pra tirar um corte" (61)

Cunhã (cunhatã): mulher – "Macunaíma punha a mão nas graças dela, cunhatã se afastava" (9)

Curumim: menino – "Mas assim que deixou o curumim nas tiriricas (...) ele botou corpo num átimo e ficou um príncipe lindo" (10)

Dandar: andar (voz infantil) – "Vivia deitado mas si punha os olhos em dinheiro, Macunaíma dandava pra ganhar vintém" (9)

Enquizilar: aborrecer, zangar – "Jiguê enquizilou e depois de catar os carrapatos deu nela muito" (11)

Enfezar: ficar contrariado – "Macunaíma enfezou. Deu uma porca de munhecaços na cara da lua" (216)

Gâmbia: perna – "Você está maginando que pegou minha gâmbia, pegou não!" (186)

Gauderiar: vagar, errar – "Gauderiaram gauderiaram por todos aqueles matos sobre os quais Macunaíma imperava agora" (135)

Guaçu: grande (= açu) "Então se escutou um urro guaçu e capei veio saindo d'água (38)

Guascar: fustigar, bater – "Pegou num rabo-de-tatu de calorão e guascou o lombo do herói" (231)

landu: aranha – "E enquanto a iandu caranguejeira fazia mais fio de lá pra riba, o de baixo branqueava todo" (40)

Icamiaba: amazona, mulher guerreira – "Chamou depressa os manos, se despediu das icamiabas e partiu" (35)

Igaçaba: vaso de barro, pote – "Botariam o anjinho numa igaçaba esculpida com forma de jaboti" (31)

Igarapé: rio pequeno – "São Paulo, a cidade macota lambida pelo igarapé Tietê" (48)

Inajá: palmeira – "Maanape trepou no grelo duma inajá pra ver se enxergava o brilho dos brincos do herói, nada." (193)

Ita: pedra – "Agarrou uma ita pontuda escreveu na laje que já fora jaboti num tempo muito de dantes" (215)

Jacumã: leme – "Quando a jacumã de Vei não embalou mais o sono dele Macunaíma acordou" (88)

Jururu: mal-humorado – "Tainã-Cai ficou jururu jururu e principiou imaginando na injustiça dos homens" (209)

Macota: grande, importante – "São Paulo, a cidade macota lambida pelo igarapé Tietê" (42)

Marupiara: feliz – "Passava os dias marupiara na rede matando formigas taiocas" (28)

Matutar: pensar – "Matutava matutava roendo os dedos agora cobertos de berrugas de tanto apontarem Ci estrela" (47)

Micagem: momice, visagem – "Macunaíma ria por dentro vendo as micagens dos manos campeando timbó" (18)

Moçar: desvirginar – "Jiguê não conseguira moçar nenhuma das icamiabas" (31)

Moquém: grade de varas, assado – "Então Macunaíma escutou surucucu tratando com a companheira pra fazer um moquém do herói" (136)

Muiraquitã: amuleto – "Furou o beiço inferior e fez da muiraquitã um tembetá" (35}

Ogã: protetor de macumba: "Na ponta vinha o ogã tocador de atabaque, um negrão filho de Ogum" (74)

Panema: palerma – "Se apiedou do panema e resolveu ajudá-lo" (42)

Papiri: choça, casebre – "Macunaíma queria erguer um papiri pros três morarem" (61)

Paúra: pavor, medo – "Quando os pingos vieram caindo o gigante olhou, pra um agarrado na mão dele e teve paúra de tanta água" (129)

Piá: criança – "A moça carregou o piá nas costas e foi até o pé da aninga na beira do rio" (10).

Pixaim: enrolado – "Caterina, Caterina! me larga minha mão e vaite embora pixaim" (66)

Puíto: ânus – "Então se pos falando pra toda gente si queriam que ela botasse uma rosa no puíto deles" (112)

Querência: bens de uma pessoa, terreno – "Então os três manos voltaram pra querência deles" (177)

Regatão: mascate – "Regatão uma ova, francesa! Dobre a língua'. Colecionador é o que é!" (64)

Rudá: deus do amor – "Rudá! faz com que minha amada/ Por mais companheiros que arranje/ Ache que todos são frouxos'." (180)

Sarapantar: espantar – "Já na meninice fez coisas de sarapantar" (9)

Sim-sinhô: ânus – "Então bem de mansinho o herói pôs o sim-sinhô dele na boca do buraco e falou" (69)

Taludo: desenvolvido, forte – "Maanape deu guaraná pro mano e ele ficou taludo outra vez."

Tiririca (ficar): azedar-se – "Quando voltaram pro mocambo muito se rindo um pro outro, Imaerô ficou tiririca" (210)

Trabucar: trabalhar – "Estava trabucando na sol quando Denaquê apareceu" (21)

Tuxauá: cacique morubixaba – "Eu era uma boniteza de cunhatã e todos os tuxauás vizinhos desejavam dormir na minha rede" (36)

Ubá: canoa – "No outro dia Macunaíma pulou cedo na ubá" (47)

Urupema: cesto – "Encontrou uma cunhatã com uma urupema carregadinha de rosas" (111)

Vagamundar: vagabundar (analogia c/mundo) – "Vagamundou de déu em déu semana" (20)

Xispeteó: ótimo (X.P.T.O. = abreviatura de Cristo) – "Xispeteó! Macunaíma fez e continuou limpando a gaiola" (196)

NOTA: As páginas indicadas entre parêntese referem-se à 6ª edição de Macunaíma, Editora Martins, S.P.

Resumo por capítulo

Macunaíma - Mário de Andrade - Modernismo

por Luci Rocha

Cap.I - MACUNAÍMA

Relata o nascimento do herói, "preto retinto, filho do medo na noite", nascido de uma índia tapanhumas no meio da selva, Macunaíma aprende tardiamente a falar, mas, quando o faz (com 6 anos ao lhe darem água no chocoalho), tem pronto o seu bordão: "Ai, que preguiça!..."

Tinha dois irmãos, Jiguê e Maanape, um velhinho feiticeiro. A diversão de Macunaíma era decepar cabeças de saúva e tomar banho nu junto com a família e as cunhãs, cujas partes íntimas agradavam muito o herói; enquanto "guspia"na cara dos machos.

À noite, de cima de sua rede onde dormia, mijava quente na velha mãe, sonhando imoralidades e dando coices no ar.

A companheira de Jiguê, Sofará, ajudava a cuidar de Macunaíma, levando-o ao mato para passear, mas chegando lá ele se transformava em um lindo príncipe e "brincava" muito com ela. Quando Jiguê chegava na maloca e encontrava o serviço por fazer, catava os carrapatos dela e dava-lhe uma grande surra, a qual recebia calada.

Macunaíma conseguiu capturar uma anta quando estava no mato com com Sofará. Neste dia a cunhã se transformou em uma onça suçuarana e "brincou" violentamente com o herói, sendo assistidos por Jiguê.

Este, deu uma surra no herói , levando Sofará de volta ao pai.

"O berreiro foi tão grande que encurtou o tamanho da noite e os pássaros caíram de susto e transformaram em pedras."

Cap.II - MAIORIDADE

Jiguê arranja uma companheira nova, Iriqui, que trazia escondido um ratão na maçaroca dos cabelos.

Falta o que comer na maloca e para se divertir às custas dos manos, Macunaíma mente que tem timbó no rio, assim eles passam o dia todo procurando timbó, enquanto o herói afirma que timbó já tinha sido gente um dia...

Faz uma mágica para a mãe levando-a para o outro lado do rio, onde havia fartura de caça e frutas, mas ao perceber que a mãe pretende levar alimentos para os outros, transporta-a de volta sem nada. Com raiva, a velha leva-o para o Cafundó do Judas, abandonando-o onde não poderia crescer nunca mais; lá encontrou Currupira, de cuja perna cortou um pedaço e deu para Macunaíma comer, intencionando devorá-lo depois. Macunaíma foge, enquanto Currupira chama pelo pedaço de sua perna que lhe responde: "O que foi?". Assim, ele vomita o pedaço de carne e some.

Uma cotia derrama-lhe uma poção mágica que o faz crescer, contudo assustado desvia e a cabeça do herói não é atingida pela magia, ficando com cara de piá.

Chegando na maloca, fica sozinho com Iriqui e "brinca" com ela, tornando-se seu companheiro. Em uma caçada, persegue uma viada matando-a, ao chegar perto desmaia: a viada era sua velha mãe!

"Então Macunaíma deu a mão para Iriqui, Iriqui deu a mão pra Maanape, Maanape deu a mão pra Jiguê e os quatro partiram por esse mundo"

Cap.III - CI, A MÃE DO MATO

Um dia encontrou Ci dormindo no mato e quis "brincar"com ela, porém a cunhã defendeu-se violentamente, os manos precisaram acudi-lo, pois Ci o estava quase matando. Depois de uma paulada na cabeça, ela desmaiou e o herói pôde "bricar"com a mãe do mato. Agora virara Imperador do Mato Virgem, por isso muitas jandaias, araras, tuins, coricas, periquitos etc, vieram saudar Macunaíma.

Passara agora a viver com Ci, por quem se apaixorara depois de com ela "brincar" em uma rede trançada por ela com os próprios cabelos. Depois de seis meses tiveram um filho que logo morreu ao mamar no peito da mãe, pois este estava contaminado pelo veneno da Cobra Preta.

Neste dia Ci entraga a Macunaíma uma muiraquitã e sobe ao céu, transformando-se Na Beta do Centauro e no túmulo do filho nasceu um pé de guaraná.

"Com as frutinhas piladas dessa planta é que a gente cura muita doença e se refresca durante o calorão de Vei, a Sol".

Cap. IV - BOIÚNA LUNA

Fez da muiraquitã um tembetá pendurado no beiço inferior e padeçou muita saudade de Ci. Assim, choroso, seguiu viagem com os manos, sempre acompanhado das jandaias, araras etc.

Neste capítulo, o narrador relata a lenda do surgimento da Lua. Esta era a boiúna Capei que deveria possuir uma virgem de nome Naipi, porém Naipi entregara sua virgindade ao moço Titçatê. Capei transformou Naipi em uma cachoeira chorosa e o moço em uma planta de flores roxas. Macunaíma ouviu a história da Cascata e disse-lhe que tinha vontade de matar Capei por isso. Capei saiu de baixo de Naipi, onde morava vigiando o sexo da moça e partiu para se vingar do herói. Macunaíma arrancou-lhe a cabeça e este membro de Capei tornou-se escravo dele sempre perseguindo-o, por fim resolveu subir ao céu e lá ficou morando para sempre.

Ele perde o talismã nessa correria e o passarinho uirapuru conta-lhe que a pedra fora achada por um mariscador e vendida pra um regatão peruano chamado Venceslau Pietro Pietra, Piaimã, o gigante comedor de gente que andava com os calcanhares para frente, enriquecera e agora morava na cidade de São Paulo.

"Então Macunaíma contou o paradeiro da muiraquitã e disse pros manos que estava disposto a ir em SP procurar esse tal Venceslau P. P. e retomar o tembetá roubado."

Cap.V - PIAIMÃ

Macunaíma deixa a consciência na ilha de Marapatá, sobre um pé de caruru e ruma pra SP junto com seus manos através do rio Araguaia.

Sem perceber tomou banho em uma água encantada e ficou branco, louro e de olhos azuizinhos, os irmãos também entraram na água, porém já suja do negrume do herói, Jiguê ficou vermelho e Maanape só molhou as palmas das mãos que ficaram mais claras. E seguiram levando uma parte do tesouro da icamiabas.

Chegando em SP a comitiva de pássaros se despedem dele. Olhava pro céu, sentia saudade de Ci, mas conheceu a moças brancas (Mani! Mani! filhinhas da mandioca...") com quem "brincou" por quatrocentos bagarotes.

Tudo para ele era estranho na cidade e foi aprendendo o nome das coisas ( bondes, automóveis, relógio, faróis, rádios, telefones, postes chaminés) as quais chamava de Máquina. Concluiu então que "os homens é que eram máquinas e as máquinas é que eram homens."

Macunaíma saiu com Maanape em busca de Piaimã e da muiraquitã, mas o herói foi pego pelo gigante que o queria devorar. Maanape, ajudado por uma formiga sarará e um carrapato, conseguiu trazer o herói de volta à pensão e ressucitou-o com guaraná. Pensou em arranjar uma arma para matar o gigante e foi pedir aos ingleses.

"Agora dou minha garrucha pra você e quando alguém bulir comigo você atira. Então virou

Jiguê na máquina telefone, ligou pro gigante e xingou a mãe dele".

Cap.VI - A FRANCESA E O GIGANTE

Tentando enganar o gigante, virou Jiguê em telefone e disse a Venceslau que uma francesa iria visitá-lo. Transformado em uma francesa linda foi para tentar negociar a muiraquitã, mas o gigante queria possuí-lo antes de entregar a pedra.

Piaimã descobre que o herói está tentando enganá-lo e tenta pegá-lo; Macunaíma corre muito,

atravessando vários Estados do Brasil e só se livra do gigante quando este tenta tirá-lo de um buraco e pega no "sim-sinhô" do herói arremessando-o longe.

Descobriu que Venceslau era um colecionador célebre e ele não, ficou contrariado e resolveu que colecionaria palavrões.

"Ai! Que preguiça!..."

Cap. VII - MACUMBA

Para se livrar de Piaimã, ele resolve ir ao RJ, no terreiro da tia Ciata, pedir ajuda pro Exu diabo. O herói experimentou a cachaça e soltava gargalhadas escandalosas, por isso todos pensavam que o santo abaixaria nele naquela noite. De repente uma polaca pulou no meio da roda, era Exu que havia possuído a moça. Macunaíma ficou excitado de vê-la caída daquele jeito e correu brincar com ela no meio da roda.

Pediu à entidade que judiasse muito de Piaimã e, através do corpo da polaca, Macunaíma ia fazendo as maldades para o gigante que quase morria de tanto sofrer...

"E os macumbeiros, Macunaíma, Jaime Ovalle, Dodô, Manu Bandeira, Blaise Cendrars,

Ascenso Ferreira, Raul Bopp, Antônio Bento, todos esses macumbeiros saíram na madrugada".

Cap.VIII - VEI, A SOL

Seguindo, Macunaíma topou com a árvore Volomã, cujos galhos estavam carregadinhos de variadas frutas; pediu uma e Volomã negou. Então o herói pronunciou algumas palavras mágicas e todas foram para o chão. Irada, Volomã atirou-o pelos pés em uma ilha deserta. Demorou tanto a cair que dormiu durante o percurso. Lá um urubu fez necessidade em sua cabeça e, po isso, ninguém se dispunha a trazê-lo de volta, pois estava fedendo muito.

Vei, a Sol deu-lhe carona em sua jangada juntamente com suas três filhas, pois pretendia torná-lo seu genro. Mas para isso disse-lhe que não poderia brincar com nenhuma outra cunhã. Nem bem saíram para iluminar o dia, Macunaíma encontrou uma portuguesa com quem brincou demoradamente. Quando chegaram encontraram o herói dormindo com ela na jangada. Vei se zangou e não consentiu que o herói se casasse com nenhuma. À noite uma assombração comeu a portuguesa e o herói voltou para a pensão.

"Pouca saúde e muita saúva, os males do brasil são!"

Cap. IX - CARTA PRAS ICAMIABAS

Com um vocabulário erudito, escreve uma carta pras icamiabas, tentando relatar-lhes as aventuras pelas quais estavam passando ele e seu dois irmãos. Explica-lhes como os paulistanos as chamam, por amazonas, e como estes nunca ouviram falar da muiraquitã tão conhecida e respeitada entre as icamiabas.

Sobre o dinheiro ,chama-o de "o curriculum vitae da civilização", para explicar que as mulheres cobram para brincar. Prolonga-se na tentativa de descrever o comportamento das mulheres paulistanas: como se vestem, como se casam. Fala dos prostíbulos, da política, vida pública em geral e, por fim, descreve a cidade de São Paulo sempre com um linguajar prolixo

"Vazada num vernáculo pernosticamente castiço, com evidente intenção satírica, visando os puristas da belle époque e todos aqueles mais afeitos à dicção portuguesa."( Massud de Moisés - História da Literatura Brasileira).

"Ora, sabereis que a sua riqueza de expressão intelectual é tão prodigiosa, que falam numa língua e escrevem noutra."

Cap.X - PAUÍ-PÓDOLE

Enquanto aguardava uma chance de recuperar a muiraquitã, Macunaíma passeava pela cidade. Foi assim que encontrou uma cunhã vendendo flores e quando o herói passou por ela, esta colocou-lhe uma flor na botoeira da camisa, orifício que ele chamou de "puíto", segundo o narrador, um palavrão muito feio.

Puíto pegou e virou moda.

Depois de uma semana, resolveu ir ao parque ver os fogos. No caminho encontrou Fraülen ( personagem do livro Amar, verbo intransitivo) e foi com ela.

Observando um mulato explicar sobre o dia do Cruzeiro, Macunaíma resolve desmenti-lo e contar sua versão: Pauí-Pódole era o pai do Mutum, um pássaro que fora perseguido por um feiticeiro que tentou

matá-lo. Por isso Pauí resolveu morar no céu e pediu para que seu compadre vagalume alumiasse o caminho dele. Vários vagalumes o acompanharam e po isso esse caminho de estrelas pode ser explicado.

Cap. XI - A VELHA CEIUCI

Sempre mentindo, Macunaíma convidou os manos pra caçar. Pegou dois ratos chamuscados no fogo, comeu-os e disse aos vizinhos que tinha matado dois viados catingueiros.

Depois de desmentido pelos manos, ficou chateado e começou a ter lembranças do Mato e de Ci.

Então ficaram juntos lembrando do passado.

O herói fumou fava de paricá para ter sonhos gostosos. No outro dia causa uma grande confusão quando convence os manos a procurarem rasto de tapir na frente da bolsa de mercadorias, quase foi linchado e preso

Um dia resolveu pescar no igarapé Tietê e encontrou a velha Ceiuci, esposa de Piaimã. Ela capturou o herói e levou-o para casa. A filha mais nova da velha gostou de Macunaíma , "brincou" com ele e deixou-o fugir. A velha transformou a filha em um cometa e correu o Brasil inteiro atrás do herói. Ele pegou carona com um tuiuiu e voltou para a pensão.

"A filha expulsa corre no céu, batendo perna de déu em déu."

Cap.XII - TEQUETEQUE, CUPINZÃO E A INJUSTIÇA DOS HOMENS.

Piaimã viaja à Europa para descansar da sova e Macunaíma fica muito frustrado. O mano Jiguê tem a idéia de irem atrás do gigante, porém Maanape conclui que o melhor é que Macunaíma se finja de pianista e vá sozinho por conta do governo. Macunaíma prefere se passar por pintor, porém não consegue nada .

Além disso, agora tinha perdido quarenta contos ao comprar de um tequeteque (mascate) um gambá que,supostamente, soltava moedas de prata quando fazia necessidades.

Então resolveu que não ia à Europa e decidiu procurar uma panela com dinheiro enterrado, não achando convida os manos para jogarem no bicho.

Numa praça, quando refletia sobre a injustiça dos homens, viu um tico-tico e um chupim, este chorava atrás do outro pedindo comida e o pássaro tentava sustentá-lo achando que fosse seu filhote, então Macunaíma matou o tico-tico para acabar com a injustiça. Mais adiante encontrou um macaco comendo coquinhos, o bicho disse ao herói que estava comendo seu próprios toaliquiçus (bolsa escrotal), deu um pouco para o herói que gostou muito e resolveu comer os dele também. Pegou um paralelepípedo e esmigalhou seus "toaliquiçus", morrendo de dor.

Um advogado encontra Macunaíma morto e leva-o para a pensão, chegando lá, Maanape ressuscita o mano com guaraná; acorda, pede uma centena a Maanape e joga no bicho...

"Maanape era feiticeiro".

Cap.XIII - A PIOLHENTA DO JIGUÊ

Jiguê arrumou uma outra companheira de nome Susi, a qual em pouco tempo já estava namorando e "brincando" com Macunaíma. Quando ia à feira comprar macacheira, levava o herói junto e com ele brincava toda a tarde. Jiguê, desconfiado, deixa a companheira em casa e passa a fazer a feira sozinho, enquanto Susi fica em casa catando os piolhos da cabeleira vermelha que eram muitos. Desconsolado coma traição de Susi dentro de sua maloca, manda-a embora e ela sobe ao céu, trasnformada em uma estrela que pula.

Cap.XIV - MUIRAQUITÃ

Fica sabendo através dos jornais que Piaimã voltou da Europa.

Neste capítulo, o narrador explica por que existe o sono e o homem não pode dormir em pé.

Andando, o herói vê uma casal brincando na beira da lagoa e aproxima-se pedindo um cigarro, o moço diz que não tem e Macunaíma resolve fumar o seu de palha que traz escondido. Esperando dar a hora de ir à casa do gigante ele conta uma história ao casal, explicando que o automóvel, antigamente, era uma Onça parda que perseguida por uma tigre preta resolveu colocar quatro rodas nos pés, tomar óleo de mamona, comer um motor morder dois vagalumes...Assim, transformando-se na máquina automóvel.

"Dizem que mais tarde a onça pariu uma ninhada enorme. Teve filhos e filhas. Por isso que a gente fala "um forde" e "uma chevrolé".

Depois da prosa, o gigante chegou . Observando os três parados perto de sua casa, convidou-os para entrar. Perguntou ao moço se queria balançar e o moço subiu no balanço do gigante, porém a velha Ceiuci estava preparando uma macarronada e esperava o sangue do moço para engrossar o caldo. Piaimã deu-lhe um empurrão e jogou-o na macarronada fervendo Agora queria pegar o herói, porém este se recusava a balançar, fez manha e convenceu o gigante a balançar primeiro. A velha preparou o panelão sem saber quem viria engrossar o caldo. De repente, Macunaíma deu um solavanco no gigante e empurrou-o dentro da macarronada da velha Ceiuci

Então Macunaíma matou o gigante comedor de gente e recuperou sua muiraquitã.

"Num esforço gigantesco inda se ergueu do fundo do tacho. Afastou os macarrões que corriam na cara dele, revirou os olhos pro alto, lambeu a bigodeira:

- Falta queijo! Exclamou...

E faleceu."

Cap. XV - A PACUERA DO OIBÊ

Recuperado o talismã, resolvem voltar para a selva. Na despedida repete pela última vez a sua definição sobre o país: "Pouca saúde e muita saúva,os males do Brasil são..."

Levou com ele um revólver e um relógio que pendurou nas orelhas, um galo e uma galinha Legorne e a muiraquitã pendurada no beiço.

Na volta, pelo Araguaia, pegou a violinha e cantou cantigas tristes e sem sentido, enquanto ia sendo acompanhado pela comitiva de pássaros que o protegia de Sol. Lembrava da donas de pele alvinha e sentia saudades de SP. Perto do mato pegou Iriqui e procurou um lugar para passar a noite.

Em um rancho, encontrou o monstro Oibê que estava fazendo uma pacuera . Disse que estava com fome e o monstro deu-lhe cará com farinha, água e arrumou um lugar para o herói dormir. Macunaíma roubou a pacuera de Oibê e comeu-a .Perseguido pelo monstro, vomita tudo para se livrar.

Na correria encontrou uma princesa, brinca com ela e abandona Iriqui que fica desconsolada, por isso resolve subir ao céu. "E o Setestrelo".

Cap. XVI - URARICOERA

Foram chegando perto do Uraricoera e Macunaíma já começa a reconhecer o lugar, porém muita coisa havia mudado e o herói chorou. No outro dia, enquanto todos se ocupavam com algum serviço, Macunaíma deu uma chegadinha até a boca do Rio Negro para buscar a consciência deixada na ilha de Marapatá; não achando, pegou a de um hispano-americano.

Jiguê encontra uma cabaça encantada que pertence ao feiticeiro Tzaló que tem ma perna só e, com ela, consegue pescar muitos peixes, mas Macunaíma, roubando a cabaça encantada perde-a no rio e Jiguê fica furioso e deixa todos com fome. Para se vingar do mano, Macunaíma transforma uma presa de sucuri em anzol e pede para que espete a mão de Jiguê. Machucado com o anzol, Jiguê tenta curar a ferida, mas esta transforma-se em uma lepra que devora todo o corpo de Jiguê, deixando apenas sua sombra. A princesa ficou com raiva do herói porque ultimamente andava brincando com Jiguê e ordenou que a sombra envenenada destruísse Macunaíma; assim a sombra virou uma bananeira carregadinha e o herói, faminto, devorou as bananas, adquirindo a lepra. Estando moribundo resolveu passar a doença para sete povos. Veio a Saúde e livrou Macunaíma da morte.

A sombra voltou e engoliu a princesa e o mano Maanape, mas não conseguiu pegar o herói.

Correndo dela, Macunaíma passou por vários lugares do Brasil, até conseguir se livrar. Enfim, a sombra econtrou um boi, subiu nas costas dele e não deixava que o bicho comesse nada, assim o boi morreu e muitos urubus vieram fazendo a festa ( aqui o narrador explica a origem do bumba-meu-boi).

"A sombra teve raiva de estarem comendo o boi dela e pulou no ombro do urubu-ruxama. O pai do urubu ficou muito satisfeito e gritou:

- Achei companhia pra minha cabeça, gente!

E voou pra altura. Desde esse dia o urubu ruxama que é o Pai do Urubu possui duas cabeças.

A sombra leprosa é a cabeça da esquerda."

Cap. XII - URSA MAIOR

Sozinho agora e com muita preguiça, Macunaíma amarra a rede em dois cajueiros perto de uma pedra com dinheiro enterrado em baixo. "Que solidão!"

O único que lhe fez companhia foi um aruaí (espécie de arara) muito falador, que aprendia, repetindo, todos os casos contados pelo herói, desde sua infância. E todos os dias a ave repetia o caso da véspera e Macunaíma punha-se a contar mais um.

Depois de muitos dias na rede, comendo caju e contando casos ao papagaio, a Sol veio fazer cosquinhas no corpo do herói e a vontade de "brincar" reapareceu forte em Macunaíma, então resolveu tomar um banho frio no vale de Lágrimas para a vontade passar. Ao olhar para o fundo das águas viu uma cunhã lindíssima, era Uiara que, mandada pela Sol para atrair o herói e matá-lo, vinha dançando e piscando até que Macunaíma pulou no fundo das águas. Atacado pelas piranhas, perdeu a perna deireita, os dedões, os "cocos da Bahia", o nariz, as orelhas e o beiço com a muiraquitã. Depois de muito procurar, encontrou tudo e colou de volta no lugar, menos a perna direita e a muiraquitã, pois foram engolidos pelo monstro Ururau. Sem um sentido agora para continuar vivendo, resolveu ser brilho inútil lá no céu, deixando escrito numa laje: "NÃO NASCI PARA SER PEDRA". No céu, Pauí-Pódole virou Macunaíma na constelação

da Ursa Maior.

EPÍLOGO

Uma feita um homem foi lá.



Então o homem descobriu na ramaria um papagaio verde de bico dourado espiando pra ele.

O papagaio veio pousar na cabeça do homem e os dois se acompanheiraram. Então o pássaro principiou falando numa fala mansa, muito nova, muito! Que era canto e que era cachiri com mel-de-pau,...

Tudo ele contou pro homem e depois abriu asa rumo de Lisboa. E o homem sou eu, minha gente, e eu fiquei pra vos contar a história. Por isso que vim aqui. Me acocorei em riba destas folhas, catei meus carrapatos, ponteei na violinha e em toque rasgado botei a boca no mundo cantando na fala impura as frases e os casos de Macunaíma, herói de nossa gente."

Considerações gerais

"Passando abrupdamente do primitivo solene, à crônica jocosa e desta ao distanciamento da paródia, Mário de Andrade jogou sabiamente com níveis de consciência e de comunicação diversos, justificando plenamente o título de rapsódia, mais do que romance que emprestou à obra.

Simbolicamente, a figura de Macuaníma, o herói sem nenhum caráter, foi trabalhada como

síntese de um presumido "modo de ser brasileiro" descrito como luxurioso, ávido, preguiçoso e sonhador: caracteres que lhe atribuía um teórico do Modernismo, Paulo Prado, em Retrato do Brasil(1926). Mas o herói, em Mário, é colocado na metrópole nova e funde instinto e asfalto, primitivismo e modernismo.

Macunaíma, meio epopéia, meio novela picaresca, atuou uma idéia-força de seu autor: o

emprego diferenciado da fala brasileira em nível culto; tarefa que deveria, para ele, consolidar as conquistas do Modernismo na esfera dos temas e do gosto artístico." (Alfredo Bosi)

"Publicado no mesmo ano de Retrato do Brasil, de Paulo Prado, Macunaíma semelha

indicar-lhe a contraface mítica ou folclórica: a tese das duas obras é idêntica, nucleada em torno da luxúria, obsessão do brasileiro e causa de todos os seus males. Como se a rapsódia servisse de ilustração ao ensaio, as andanças macunaímicas são dum homem primitivo, adâmico, sem peias, entregue desenfreadamente aos exercícios eróticos, de onde adviriam as mazelas que sofre. Frágil ante os perigos, salva-se por via do embuste, da mentira ou do absurdo das licenças míticas, que lhe

facultam atos mágicos capazes de superar as dificuldades interpostas pelos semelhantes e pela natureza." (Massaud Moisés)

"Macunaíma, considerado dentro de um tipo de realismo que lida com o maravilhoso e com o mágico, é uma narrativa linear na medida em que observamos o desenvolvimento de sua ação dramática. As peripécias do herói, vividas num tempo e num espaço mágicos, que absorvem o mito do índio e os mitos do povo como contraponto à mitologia da sociedade tecnizada e de uma cultura colonizada, revelam na construção da narrativa a consciência da exploração do maravilhoso e do mágico, que está, aliás, já na própria criação popular, fonte de Mário de Andrade, autor erudito." (Telê Porto Ancona Lopez)

A figura do herói nas obras "Triste fim de Policarpo Quaresma" e "Macunaíma"

Junho de 97.

Catherine V

Flávia GRC

Introdução

Neste trabalho abordaremos o tema do herói tanto na obra "Triste fim de Policarpo Quaresma" como na obra "Macunaíma". Ambas possuem uma característica predominante: verdadeiros heróis em busca de suas raízes brasilerias.

Destacaremos de forma simples, mas muito bem estudada, a relação homem-cultura e sua transformação em um herói nacional.

A figura do herói nas obras

Apresentando este romance pensamentos, dúvidas e reflexões das personagens, principalmente de Olga e "Quaresma" podemos perceber que este se trata de um romance cujo narrador não consegue esconder sua simpatia pelo protagonista e por suas idéias, embora o coloque muitas vezes em ridículo, para mostrar que ele não tem consciência da disparidade que existe entre seu modo puro e ingênuo de ser e a maldade e hipocrisia do mundo que o cerca.

Este, é um romance de época pois o período de acontecimentos data dos primeiros anos da República e do Governo de Floriano Peixoto, tendo como data final o ano de 1893 por isso tendo como referência a Revolta da Armada, além dos fatos verídicos relatados.

A narração passa-se no Rio de Janeiro, podemos perceber a preocupação do narrador em fixar alguns traços da cidade, com descrições das ruas, tipos de casas, destacando mais os subúrbios. É enfatizado também nesta obra, o descaso dos governantes, que nada fazem para minimizar os problemas dos pequenos agricultores: ignorância, dificuldade de transporte, exploração dos intermediários, taxações etc.

"Policarpo Quaresma": protagonista da história, é um homem magro de mais de quarenta anos, que exerce o cargo de subsecretário do Arsenal de Guerra. É um indivíduo metódico e vive isolado, tendo apenas a companhia de um criado e de sua irmã Adelaide. É patriota do tipo fanático. Seu nacionalismo faz com que ele só veja qualidades em sua pátria, evitando ver os defeitos e criticando e detestando tudo o que é estrangeiro. No fundo, tal figura acaba se transformando numa sátira ao nacionalismo ingênuo. Podemos ver nessa personagem certa semelhança com D. Quixote, criação de Miguel de Cervantes, principalmente por não conseguir enxergar a realidade dura da vida e também por suas atitudes ridículas e patéticas. Enfim, como Quixote, "Quaresma" é um sonhador.

Podemos ver neste trecho, que "Quaresma" preocupado com a salvação da cultura tipicamente brasileira, solicitou a Ricardo Coração dos Outros que lhe desse aulas de violão. Policarpo, ao receber críticas de sua irmã diz:

"Mas você está muito enganada, mana. É preconceito supor-se que todo homem que toca violão é um desclassificado. A modinha é a mais genuína expressão da poesia nacional e o violão é o instrumento que ela pede. Nós é que temos abandonado o gênero, mas ele já esteve em honra, em Lisboa, no século passado, com o Padre Caldas, que teve um auditório de fidalgos" (Capítulo I, pág. 20)

A busca pelo ideal se propaga através da busca pelo nacionalismo e pelo folclore.

Podemos até mesmo dizer, que Policarpo era um herói brasileiro nesta época, pois buscava suas raízes, vivia de acordo com elas e transmitia às pessoas seu idealismo, seus sonhos.

Já "Macunaíma" é uma cacetada contra a imigração italiana, mas especialmente contra o capital estrangeiro corporificado num imigrante italiano. A disputa emblemática em torno da mais-valia. O pícaro "Macunaíma" vai de um lado para o outro, sempre procurando viver às custas dos outros e não trabalhar. "Macunaíma" não é um herói sem nenhum caráter: ele tem o caráter de um pícaro, de um picareta, de um picarus brasiliensis.

Nesta obra, percebemos uma certa colagem de lendas amazônicas misturadas com histórias regionais do folclore brasileiro. Esta obra retrata a fusão de lendas do folclore regional com episódios do cotidiano urbano.

Nascido em plena selva amazônica, "Macunaíma", "o herói sem nenhum caráter "é um personagem guiado pelo prazer, pelo medo e pelo oportunismo.

Produto da combinação entre muitíssimo defeitos e a depurada sabedoria dos habitantes do Brasil continente, "Macunaíma" e fábula e auto-retrato de um povo.

Move-se com inteira liberdade entre o passado e o presente, a floresta e a cidade, a terra e o céu, agitando-se caoticamente através do tempo e do espaço. É um anti-herói: esperto e preguiçoso, sentimental e cínico, sensual e ingênuo, desleal e generoso: não tem coerência senão em seu estado de espírito momentâneo. Nasce negro e de repente vira branco.

Podemos destacar nesta obra, dois confrontos de Macunaína: o primeiro foi o encontro com Ci, rainha das Icamiabas; e o segundo com Vei, a deusa do sol, que dera proteção ao herói em troca da promessa de casamento com uma de suas três filhas.

Enquanto Policarpo era um homem simples que buscava suas raízes nacionais, "Macunaíma" constitui o extremo, pois sendo um índio, é também um herói de verdade, tem que lutar contra forças da natureza para viver como herói; seu cenário: a selva amazônica, patrimônio nacional, que com certeza seria defendida por Policarpo.

Este, no final, deixa de ser uma espécie de Dom Quixote, sempre a se bater por objetivos inatingíveis, e adquire dimensões de herói trágico que, à custa da própria vida, toma consciência da realidade degradada em que vive.

Antes de tudo isso, pudemos observar um fato importante na obra de Policarpo: o livro desdobra no sofrimento patético do Major "Quaresma", incompreendido e martirizado, convertido numa espécie de Dom Quixote nacional, otimista incurável, visionário, paladino da justiça; expressando na sua ingenuidade a doçura e o calor humano do homem do povo.

Dividido em três partes, há uma forte unidade nos episódios da obra, que funcionam não só como três atos da vida de "Policarpo Quaresma", mas também, como três quadros da vida brasileira.

A primeira parte retrata o burocrata exemplar, patriota e nacionalista extremado, interessado pelas coisas do Brasil: a música, o folclore e o tupi-guarani, que pretende transformar na língua oficial do Brasil.

Na Segunda parte, desiludido com as incompreensões, o Major "Quaresma" se retira para campo, onde se empenha na reforma da agricultura brasileira e no combate às inexpugnáveis saúvas.

Na terceira parte acentua-se a sátira política. Motivado pela Revolta da Armada, "Quaresma" apoia Floriano Peixoto e, aos poucos, vai identificando os interesses pessoais que movem as pessoas, denudando o tiranete grotesco em que se convertera o "Marechal-de-ferro".

Dessa foram constatamos que foi preciso haver uma caminhada onde nosso querido Policarpo pode transformar-se num herói, para só depois chegar ver a realidade como ela se apresentava.

Heróis nacionais

Há personagens da história de um povo que personificam a "alma" desse povo segundo a ideologia que num certo momento seja a dominante. Pode ser uma figura como Tiradentes, uma espécie de João Batista da libertação nacional, como pode ser um Duque de Caxias enquanto herói da unidade do Brasil. Além desses heróis oriundos das "páginas da história", há heróis imagens mais ou menos estereotipadas de nações. Quando pretendem corporificar apenas qualidades positivas, tornam literariamente inferiores. Quando fabricados sem a intenção de corporificar apenas qualidades positivas, podem eventualmetne dar certo: é o caso de "Macunaíma".

Tanto em Policarpo como "Macunaíma", representam certos aspectos de um espírito nacional, mas é pura ideologia achar que a nação toda tenha essas qualidades.

Um grande personagem nunca é patrimônio exclusivo de uma nação. Assim que ele alcança um nível artístico, passa a fazer parte do progresso de toda a humanidade.

Conclusão

Concluímos que a figura do herói nas duas obras comparadas embora distintas, possuem uma relação muito forte: o heroísmo é constatado através da vivência de ambos num ambiente tipicamente nacional. Enquanto "Macunaíma" vivia na selva amazônica, travando muitas vezes confrontos com seres da natureza, Policarpo plantava árvores e plantas tipicamente nacionais e buscava em diferentes partes do país resgatar as raízes e a cultura brasileira.

Bibliografia

Andrade, Mário – Macunaíma, Ed. Ática, São Paulo, 2 ed.

Barreto, Lima – Triste fim de Policarpo Quaresma, Ed. Moderna, São Paulo, 1994, 1 ed.

Bosi, Alfredo – História concisa da Literatura Brasileira, Ed. Cultrix, São Paulo, 1994, 32 ed.

Kothe, Flávio R. – O herói, Ed. Ática, São Paulo, 1987, 2 ed.

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