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Bachelard: A poética do espaço

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Se as filosofias da existência encaravam o homem como um ser lançado num mundo arbitrário, contingente, não escolhido e absolutamente estranho, as filosofias do habitar consideram que a essência do homem é totalmente determinada a partir do habitar. Segundo Bachelard, o homem habita a sua casa antes de habitar o mundo: "Todo o espaço realmente habitado traz a essência da noção de casa" e "a casa é o nosso canto do mundo", "o nosso primeiro universo", porque, antes de ser lançado no mundo, "o homem é colocado no berço". Depois de ter começado a vida bem "agasalhada no regaço da casa", o homem é "expulso" e "posto fora de casa, circunstância em que se acumulam a hostilidade dos homens e a hostilidade do universo". A expulsão do abrigo natal é, de certo modo, preparada pela exploração do espaço livre que circunda a casa: o quintal com o seu jardim, as suas dependências e os seus animais de estimação, um imenso espaço de acção, desprezado por Bachelard, no qual irrompe em segredo o contacto com o mundo exterior. O começo da vida humana ocorre numa conexão essencial com a casa: o estado de abrigado em casa tem objectivamente primazia sobre o estado de "ser lançado no mundo", o qual é experimentado posteriormente. O "encontrar-se" no espaço abrigado da casa opõe-se ao estado de lançado no mundo. Habitar não significa estar abandonado em qualquer lugar de um mundo hostil; mas significa estar abrigado graças ao "amparo da casa".

Minkowski elaborou o conceito de "ressonância no espaço" para qualificar um carácter geral do "espaço vivido", para além da sua significação meramente acústica: o homem pode sentir-se amparado no espaço total como se estivesse num espaço fechado. O espaço pode cumprir esta missão, porque o homem não se encontra originariamente nele como um "estranho" lançado num elemento que lhe é alheio, mas se sente ligado ao espaço, amalgamado com o espaço e sustentado pelo espaço. Daqui resulta que todo o ser vivo pode viver em simpatia, em harmonia e de acordo com o seu meio: a ressonância designa um estado primacial muito mais "primitivo que a antítese do eu e do mundo". Anulada a cisão entre sujeito e objecto, o espaço originário não pode ser objectivado. Embora tenha com o espaço uma relação oscilante, precisamente no ponto central entre o ter e o ser, o homem pode identificar-se com o espaço e, neste caso, ser o espaço onde está. Bachelard cita o verso de Noël Arnaud: "Sou o espaço onde estou". Assim, podemos alargar o conceito de habitar ao modo de ser do homem no espaço e afirmar que o homem mora no espaço, tal como habita na casa. Ora, o habitar na casa só pode dar amparo quando o homem morar de modo mais dilatado no espaço. Retomando o conceito de "encarnação", podemos afirmar que o "homem está encarnado no espaço". Esta expressão significa que o homem não só se encontra num meio e pode mover-se nele, mas que ele próprio é parte integrante desse meio, separado por um limite do meio circundante e, apesar disso, unido e sustentado pelo meio.

Gaston Bachelard destacou fundamentalmente a função de protecção da casa e viu os "espaços felizes" como "espaços de posse": espaços imaginados, construídos, edificados e possuídos pelo homem e defendidos contra as "forças adversas" da natureza e da economia capitalista que reduz a casa à sua mera funcionalidade e à "satisfação do instinto de proprietário", negando-lhe a sua dimensão onírica impulsionada pelos "sonhos que querem enraizar-se". A geografia e a etnografia descrevem os mais diversos tipos de habitação, enquanto a fenomenologia procura revelar a "função original do habitar" e compreender o germe da "felicidade central, segura, imediata": "Encontrar a concha inicial em toda a moradia, no próprio castelo, eis a tarefa básica do fenomenólogo": "A imagem poética (da casa) está sob o signo de um novo ser" e "esse novo ser é o homem feliz". A fenomenologia da casa é, pois, uma "topofilia", que visa determinar o "valor humano" dos "espaços amados", sem levar em conta os "espaços de hostilidade" e os "espaços de ódio e de combate" associados a "imagens apocalípticas" e a matérias ardentes, tais como o fogo, os incêndios, os vulcões ou as guerras.

A explicitação da essência total da casa exige não só um desenvolvimento horizontal, mas também um desenvolvimento vertical. Isto significa que as moradas devem prolongar-se para a altura e a profundidade, ou seja, devem ter um sótão e um porão: "A verticalidade (da casa) é proporcionada pela polaridade do porão e do sótão". Como arquitecto da casa onírica, Bachelard hesita entre a casa de três e a casa de quatro andares, embora se incline para a casa de três andares: "A casa de três andares, a mais simples com referência à altura essencial, tem um porão, um pavimento térreo e um sótão". O interior da casa repete a significação simbólica do de cima e do de baixo. Entre os andares existem as escadas: "A escada que conduz ao porão tem um carácter diferente da escada que leva ao sótão". Descemos as escadas que conduzem ao porão e subimos as escadas abruptas que levam ao sótão: as restantes escadas nós as subimos e as descemos. Descer ao porão, onde a casa mergulha as suas raízes na terra negra e húmida, significa mergulhar na noite e no frio que moram debaixo da casa e, em princípio, só os homens vão à adega buscar o vinho. Subir ao sótão é ascender para a mais tranquila solidão. O sótão é o lugar onde ocorreram as birras de infância, a contemplação, as leituras intermináveis, o disfarce com as roupas dos nossos avós e a descoberta de imensas velharias que se ligam para sempre à alma da criança: os devaneios do sótão tornam vivos o passado familiar e a juventude dos nossos ancestrais. Para Bachelard, o sótão é o que faz a casa estar enraizada no solo profundo, de resto inquietante e terrível, da terra e das rochas. E, seguindo Henri Bosco, sonha com uma "casa com raízes cósmicas", que se eleva das mais terrestres e aquáticas profundezas até à morada de uma alma que habita no céu: "A casa converte-se num ser da natureza. É solidária com a montanha e com as águas que trabalham a terra". Esta casa evocada por Bosco ilustra a "verticalidade do humano" e é oniricamente completa. A casa é um "arquétipo sintético" que evoluiu: no seu porão está a caverna e no seu sótão está o ninho. O porão é a sua raiz e representa o inconsciente, enquanto o seu telhado é o ninho e representa as funções conscientes: "A casa oniricamente completa é um dos esquemas verticais da psicologia humana".

A vida moderna afrouxa o vigor das imagens oníricas da casa com sótão e porão e a sua "topologia onírica", aceitando a casa como um lugar de tranquilidade, embora de uma "tranquilidade abstracta", e esquecendo o aspecto fundamental: o "aspecto cósmico". As casas de Paris já não são autênticas casas: "Em Paris, não existem casas. Os habitantes da grande cidade vivem em caixas sobrepostas". Na cidade, "a casa não tem raízes" e "os arranha-céus não têm porão". Falta às casas da cidade a raiz e um vínculo cósmico mais profundo: os andares ou apartamentos são, como diz Paul Claudel, "buracos convencionais", destituídos de verticalidade em si mesma e sem espaço ao seu redor. A altura dos edifícios da cidade é apenas exterior, os seus elevadores destroem os "heroísmos da escada", o andar é uma simples horizontalidade e, por isso, "já não há mérito em morar perto do céu". As casas da grande cidade perderam os valores íntimos da verticalidade e a cosmicidade que permitia compreender a "situação da casa no mundo": as casas já não estão na natureza, não conhecem os "dramas do universo", as suas relações com o espaço tornaram-se "artificiais" e as ruas são meros tubos onde os homens são aspirados (Max Picard). Como diz Bachelard: "Viver num andar é viver bloqueado. Uma casa sem sótão é uma casa onde se sublima mal; uma casa sem porão é uma morada sem arquétipos". Os seus habitantes são seres desenraizados e apátridas, sem história, sem memória, sem imaginação. Perderam a verticalidade humana e a compreensão da sua situação no mundo: são seres alheados do mundo. Se for "impossível escrever a história do inconsciente humano sem escrever uma história da casa", então a casa da grande cidade perdeu a riqueza dos arquétipos do seu inconsciente e os seus habitantes tornaram-se seres mutilados e seres exilados na terra, portanto, apátridas. A casa da grande cidade é dominada pela "ideia do superego": tem escadas de serviço onde circulam "rios de provisões de boca" (Michel Leiris) e os elevadores levam rapidamente à sala de estar, onde se "conversa" enquanto se aguarda a refeição.

O Porto edificou-se e cresceu, ao longo da sua gloriosa história de cidade invicta, como Cidade do Sonho, "a própria imagem do futuro sonhado" (M. Torga), que, nas últimas décadas, foi abandonada ao esquecimento, devido à concentração de poderes numa capital necrófila e a erros atávicos urbanos e arquitectónicos. No Porto, existem centenas e centenas de casas cuja topologia se organiza em altura: um porão enterrado, o piso térreo da vida comum, o andar de cima onde se dorme e o sótão onde se sonha. Porém, muitas dessas casas evocadas por Júlio Dinis, Camilo Castelo Branco, Almeida Garrett, Sampaio Bruno, Leonardo Coimbra, Jaime Cortesão, Miguel Torga e Agustina Bessa-Luís, e cantadas por Guerra Junqueiro, Teixeira de Pascoaes, António Nobre, Florbela Espanca, Sophia de Mello Breyner Andresen e Eugénio de Andrade, foram e são demolidas para dar lugar a edifícios residenciais e a condomínios fechados, e outras permanecem abandonadas, à mercê da especulação imobiliária irracional, carente de visão do passado glorioso e do futuro aberto ao novo. Estas casas burguesas, ou até mesmo as casas pobres, são sonhos realizados e concretizados na pedra granítica e, na sua topologia onírica, memória e imaginação não se deixam dissociar, trabalhando para o seu aprofundamento mútuo: "Ambas constituem, na ordem dos valores, uma união da lembrança com a imagem". O Porto é a cidade da "bela arquitectura" diversa e plural, cujos quarteirões abrigam no seu interior espaços de sonho, e até mesmo os mais "pobres", as "ilhas", são labirintos que projectam horizontalmente os sonhos diurnos dos seus habitantes, em contraste com as casas burguesas que se elevam na verticalidade, procurando contacto com a "morada celestial" e dando um ar fálico à cidade. No Porto, os edifícios são real e virtualmente corpos de imagens que dão aos seus habitantes, os portuenses ou os homens portugueses "mais livres, mais progressivos, mais responsáveis e mais capazes" (M. Torga), razões ou ilusões de estabilidade e de segurança: as casas portuenses são seres verticais que se elevam e se diferenciam no sentido da sua verticalidade, fazendo apelo à nossa consciência de verticalidade, e são seres concentrados, levando-nos à consciência de centralidade. Segundo Miguel Torga, "os valores autênticos da vida têm de ser sólidos como a Praça da Liberdade e altos como a Torre dos Clérigos". O Porto é imaginariamente uma enorme cidade-abrigo, uma cidade-fortaleza, uma cidade-invicta. Contudo, esta cidade de sonho precisa de cuidados redobrados: conservar os seus valores de intimidade e de cosmicidade, abrindo-se ao futuro e à modernização e ampliando a sua rica confluência de estilos arquitectónicos, em harmonia com a natureza e no resguardo da quadratura (Heidegger).

Porém, as casas autênticas, na estrutura vertical das suas funções como moradas, são mais do que aquilo que está contido nas ideias espaciais geométricas. Assim, Bachelard estabelece uma distinção forte entre a casa como espaço vivido concreto e o conceito de espaço matemático abstracto: "A casa vivida não é uma caixa inerte. O espaço habitado transcende o espaço geométrico". Esta transcendência torna-se evidente na rivalidade dinâmica entre a casa e o universo, na espessura da qual "a casa remodela o homem", adquirindo qualidades e valores humanos. O ser abrigado vive a casa na sua realidade e na sua virtualidade, através do pensamento e dos sonhos diurnos. A casa não é vivida na sua positividade e no momento presente em que reconhecemos os seus benefícios. A casa tem um passado que vem viver, pelo sonho, numa nova casa: "A casa não vive somente no dia-a-dia, no curso de uma história, na narrativa da nossa história. Pelos sonhos, as diversas moradas da nossa vida interpenetram-se e guardam os tesouros dos dias antigos. Quando, na nova casa, retornam as lembranças das antigas moradas, transportamo-nos ao país da Infância Imóvel, imóvel como o Imemorial. Vivemos fixações, fixações de felicidade. Reconfortamo-nos ao reviver lembranças de protecção".

Na nossa sociedade urbana tardia, o homem distancia-se velozmente do abrigo da sua casa: "Por que nos saciámos tão depressa da felicidade de habitar a morada?", eis a questão colocada por Bachelard. Poderíamos procurar uma resposta na dialéctica da casa e do universo ou mesmo na dialéctica do exterior e do interior: o homem "escolhe" um aspecto em detrimento do outro, quando ambos os aspectos são realmente complementares. Porém, Bachelard alude a algo mais profundo, na medida em que não se refere a um distanciamento temporal da casa para voltar novamente ao lar, exemplificado com os casos da viagem ou da ida para o emprego ou para o serviço militar, mas a uma insuficiência definitiva de todas as casas: "Alguma coisa mais do que a realidade faltou à realidade. Na casa não sonhámos o tempo suficiente". A casa perfeita sonhada não pode ser alcançada em nenhuma morada real: "Na minha casa real, sinto exaurida a minha liberdade de habitar: há sempre que deixar aberta a possibilidade de que exista outro lugar". Isto aponta para a conexão da casa e da distância, aquela nostalgia última que arrasta o homem sonhador para a distância. "Alojado em todas as partes, mas em nenhuma parte encerrado", eis como Bachelard formulou o "lema do sonhador do habitar". Isto significa que o homem só pode alcançar a sua última pátria com as criações da fantasia, desencadeada pela nostalgia e pelo sonhar "com aquilo que (na casa natal) deveria ter sido, com o que teria estabilizado para sempre os nossos devaneios íntimos". A nostalgia é vizinha da morte: o sonhador do lar aguarda a chegada da morte (Florbela Espanca) e a sua última morada terrestre (Guerra Junqueiro): o túmulo, o cadáver fechado num caixão e enterrado no interior da terra fria e húmida. A cidade dos vivos nasceu da cidade dos mortos e a ela regressa. (FIM)

(Leia estes textos do Manuel Rocha e da Denise.)

J Francisco Saraiva de Sousa
Publicada por J Francisco Saraiva de Sousa em 0:07
Etiquetas: Arquitectura, Cidade do Porto, CyberEstética, CyberFilosofia e Crítica, Filosofia Política, Pensadores, Política do Ambiente, Política e Poesia, Teoria e Filosofia Sociais

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