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Excreções mentais: o que faz de um escritor um artista?

sábado, 21 de fevereiro de 2009

Pensar a literatura e o papel do escritor contemporâneo é pensar a abrangência dos meios de publicação, sobretudo a mídia digital como valioso e oportuno espaço, quando o universo de publicação e divulgação no país é demasiado para uma comunidade de leitores ainda reduzida e desproporcional ante o número de obras publicadas. Que todas as áreas que atuem com educação e cultura abram espaço para a escrita, para a leitura, para a poesia, para poetas, para os artistas da palavra ...

O escritor-artista não é aquele que se limita a escrever ou descrever um jorro imaginário, mas a pensar sua escrita com inteligência e criatividade. Machado de Assis foi um grande mestre nesta arte. Na contemporaneidade, apontamos um outro escritor que labora a palavra até a exaustão: João Gilberto Noll. Suas obras chocam o leitor menos avisado, leem o mundo e aproximam a literatura da vida, pois a literatura também é vida. Sua escrita pautada no corpo enquanto linguagem e suas palavras são verdadeiras “excreções mentais”, pois possibilitam ser seu mundo criado e a própria construção da narrativa atravessar e ser atravessado pelo leitor.
Neste mundo de deslocamentos e tantas fronteiras, muitos acenos e poucos afagos, pautou o autor sua última obra no avesso dessa verdade. No pequeno trecho de Acenos e afagos abaixo oferece uma espécie de rito de passagem, quando o corpo de um homem vive a experiência de ser mulher e sofre uma “transmutação ao reverso”, conforme anuncia o protagonista. Ao leitor, cabe buscar enveredar por esse tecido para captar o sentido da obra e a essência desse “eu”, que vive o desacerto entre o corpo real e o fictício. Eis o texto aberto a nossa travessia:
Quando cheguei em casa me olhei no espelho. Notei que meu rosto vinha perdendo os pelos que compunham a barba. Eu estava virando uma mulher devagarzinho? Esperava que, quando o destino a completasse, eu ainda não sofresse de sensibilidade e pudesse reconhecê-la, fazendo-a soberana na hospedaria do meu corpo. Não tinha encontrado ninguém no matadouro, ficaria sem carne nos próximos dias. Não me importava. Passaria a cultivar uma vida ascética, sem carne, sem cosméticos, sem sexo fora do casamento nem nada [...] (Acenos e afagos, p. 122).
Por Tania Nunes

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